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Biografia. Um ser humano como outro qualquer, não um semideus

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Academic year: 2021

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Biografia

Um ser humano como outro qualquer,

não um semideus

FELIZITASVON SCHÖNBORN: Até mesmo as pessoas que quase nada sabem acerca do Budismo e do Tibete prestam atenção quando ouvem as palavras “Dalai Lama”. Para muitos, elas têm um som misterioso, que evoca as montanhas cobertas de neve do Tibete, com seus habitantes vestidos com roupas coloridas e as rebuscadas tankas. O que o ofício de Dalai Lama significa para o senhor?

SUA SANTIDADE: Como você pode imaginar, há grandes expectativas em torno do Dalai Lama em todos os luga-res, e muitas pessoas me respeitam. Mas eu sou um ser humano como outro qualquer. Sou um monge que deve preocupar-se mais com o bem-estar dos outros do que consigo mesmo. Diariamente eu tento, com todas as for-ças, trabalhar de modo a me aperfeiçoar. Nós chamamos isso de bodhicitta, o pensamento voltado à iluminação. É o desejo altruísta de alcançar a iluminação a fim de libertar todos os seres vivos do sofrimento. Em uma oração do século VIII, esse desejo é expresso assim:

Enquanto houver espaço e tempo, enquanto ainda houver seres que devem atravessar repetidas vezes o ciclo do renascimento, que eu também esteja com eles e possa tirar seu sofrimento.

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tibetano). Ele é o bodisatva da compaixão e o protetor de todos os seres vivos. Eu sou a 74a encarnação, em uma

linhagem que começa com um garoto brâmane da época do Buda Sakyamuni. Nós acreditamos em seres, grandes lamas ou tulkus (como são chamados em tibetano), que são capazes de determinar seu próprio renascimento. Esses lamas incluem também o Dalai Lama, cuja reencarnação teve início em 1351. Essas reencarnações acontecem ape-nas para que os Dalai Lamas possam cumprir suas tarefas. Isso é algo de grande importância na busca pelo respectivo sucessor. Segundo nossas crenças, há uma conexão espi-ritual e uma força cármica que me possibilitam assumir o papel do Dalai Lama.

Um oceano de sabedoria

O que significa “Dalai Lama”?

“Lama” significa “o mestre insuperável”. Dalai é uma palavra mongol que quer dizer algo como “oceano”. Em sentido figurado, Dalai Lama significa um “oceano de sabedoria”. Acredito, no entanto, que o título esteja relacionado com o 3o Dalai Lama, Sonam Gyatso. De

acordo com a tradição, ele foi o primeiro a receber o título de Dalai de um chefe mongol. Também pode ser que a palavra gyatso, que significa “oceano” em tibetano, tenha sido traduzida para o mongol. Até a quinta reencarnação, os Dalai Lamas tinham somente funções religiosas. O 5o

Dalai Lama foi o primeiro a assumir a liderança do Esta-do, de modo que os comandos político e religioso foram unificados em uma pessoa.

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Ajudar o próximo é o sentido da minha

existência

Na Europa, parece que as forças espirituais e as seculares nunca conseguiram trabalhar em harmonia. Como foi possível, no Tibete, unir em uma só pessoa duas maneiras tão opostas de ser – a simplicidade de um mendicante e a atividade política de um chefe de Estado?

Seja como monge ou como chefe de Estado, para mim, o significado da vida é ajudar os outros – especialmente os seis milhões de tibetanos que depositam toda sua espe-rança em mim. Como resultado, carrego uma responsa-bilidade considerável sobre os ombros. É claro que vejo em primeiro plano minha missão de ajudar meu povo e servi-lo com toda a dedicação. Através da ajuda sincera aos outros tem-se um proveito duplo, pois ao mesmo tempo nos tornamos felizes.

A maneira como faço jus ao meu papel depende muito de mim mesmo. Somente quando consigo de fato cumprir com minha tarefa o cargo de Dalai Lama se torna útil. Mas, para mim, minha integridade e a auten-ticidade das minhas motivações são certamente decisivas – independentemente de que eu possa ou não alcançar os objetivos políticos do meu povo.

Por outro lado, é claro que é perigoso que o povo tibetano espere que as circunstâncias opressivas em nossa terra possam ser modificadas por uma única pessoa, mes-mo que essa pessoa seja o Dalai Lama. Não se trata somen-te do presensomen-te. Também devemos encontrar soluções para o bem-estar e a sobrevivência de nossa nação em gerações futuras. Esta é a minha principal preocupação.

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anos, não tinha qualquer experiência política. Mal conse-guia lidar com as convenções diplomáticas. Com o passar do tempo isso mudou. Tenho me beneficiado de minhas experiências das últimas décadas, de vários contatos com líderes políticos e outras personalidades importantes.

Minha grande escola foi a própria vida

Sua Santidade, o senhor disse que não foi suficientemente pre-parado para o importante papel que tem hoje na política inter-nacional. Existe uma educação especial para o Dalai Lama?

Eu não tive uma educação diferente daquela que um monge tibetano costuma receber. Aos treze anos comecei a estudar filosofia, o significado correto dos conceitos e a arte da discussão. Depois, a arte da caligrafia. Depois das aulas de escrita, tive de memorizar os textos budistas. Meu plano de aulas era constituído de cinco disciplinas principais e outras cinco secundárias. As principais disci-plinas eram dialética, arte e cultura tibetanas, gramática e linguística, medicina e filosofia budista. As secundá-rias eram poesia, música e teatro, astrologia, métrica e expressão e vocabulário. Para o doutorado bastavam filosofia budista, lógica e dialética e epistemologia. Em 1959, enquanto eu ainda estava no Tibete, pouco antes de minha partida para o exílio na Índia, completei meus estudos com uma prova – um debate em frente a milhares de pessoas. Foi-me concedido o título de Geshe, o mais alto grau filosófico.

Também obtive vários conhecimentos através de meditação periódica, várias vezes ao dia. Nós temos dois principais tipos de meditação. Um deles foca a concentração, a paz interior; outro envolve análise, um

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conhecimen to mais profundo das coisas. Nas minhas práticas de meditação, preocupo-me sobretudo com a compaixão, com a distinção entre o Eu e os outros e com a maneira com que todas as coisas e os seres vivos, em especial os seres humanos, são interdependentes entre si. Rezo, medito ou estudo todo dia por cinco horas e meia ou até mesmo mais. Também rezo durante o resto do dia sempre que tenho oportunidade. Temos orações para tudo que fazemos. Para os budistas quase não há diferença entre religião e o dia a dia.

No entanto, minha escola mais importante foi a própria vida, com seus imensos desafios e as muitas di-ficuldades que meu povo tem de vencer. Meu destino de refugiado muitas vezes me levou a situações de desespero, quase sem esperança. Forçou-me constantemente a en-carar a realidade nua e crua. Sob essa constante pressão, precisei repetidas vezes provar minha extrema determina-ção e força interior. Tratava-se sobretudo de não perder a coragem e a esperança. Agradeço sobretudo à meditação diária e à minha experiência de vida.

No Palácio de Potala os relógios

trabalhavam de modo diferente

Quando criança, separado de sua família no gigantesco Palácio de Potala, o senhor não estava muito isolado do resto do mundo?

Naquela época, o cerimonial para a vida de um Dalai Lama era muito rígido. Minha vida era caracterizada pela rotina. Porém, eu não consigo me lembrar dos horários

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começa vam e terminavam a seu tempo, sem pressa. Eu era uma exceção porque já quando criança me interessava por relógios. Consertar as engrenagens de um relógio é, ainda hoje, uma das minhas atividades favoritas.

Já na minha infância eu não ligava muito para forma-li dades. Eu era especialmente próximo do cozinheiro-chefe. Aprendi cedo com os empregados, que me tratavam como a qualquer outro garoto, que a vida pode ser difícil para as pessoas simples. Eles me contaram que houve altos funcionários e Lamas injustos, que frequentemente toma-vam decisões muito arbitrárias. Ainda jovem reconheci que é importante, para o líder de um povo, estar ligado às pessoas comuns. É fácil ser persuadido por conselheiros e funcionários a tomar decisões que são do seu próprio interesse. Com isso, os interesses verdadeiros do povo podem acabar ficando para trás.

O lótus branco fl oresce no lodo

O senhor disse que o Dalai Lama é a reencarnação de um bodisatva. O senhor poderia, por favor, explicar o que se entende por isso no budismo tibetano?

Para nós, o bodisatva é um “ser da iluminação” que re-nuncia à realização da própria iluminação, por compaixão em relação a todos os outros seres, até que tenha ajudado a salvá-los. Um bodisatva renasce por conta de seu pró-prio desejo. Ele decide voluntariamente permanecer no ciclo do renascimento, no Samsara, para ajudar os outros. Ele quer tomar para si mesmo o sofrimento dos outros. Chama-se isso de “a prática de dar e receber”, em que o sofrimento do outro é recebido e a própria felicidade é passada adiante.

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Um símbolo de que o bodisatva superou os desejos e as paixões da vida é a flor de lótus. Ela é uma flor muito bonita que cresce no lodo, mas sua cor branca permanece intocada pela sujeira. Daí surge uma força que nos torna resistentes ao caos do “vir a ser” e da morte. Bodhi significa entender a verdadeira natureza da realidade ou da sabedoria, e satva é alguém movido por uma compaixão abrangente. Segundo o ideal bodisatva, devemos lutar para praticar uma com-paixão ilimitada com uma comcom-paixão infinita.

A minha linha de conduta é a de um monge. Isso quer dizer que devo obedecer às 253 regras do monge. As quatro regras principais proíbem um monge de matar, roubar e mentir acerca de seu conhecimento espiritual. Um monge também deve manter rigorosamente o voto de castidade. Essas regras me livram das grandes distrações e preocupações do dia a dia.

Um sorriso é mais bonito do que

todas as joias

Frequentemente vemos imagens de lamas tibetanos retra-tados com seus mantos de seda. Existe um motivo pelo qual Sua Santidade sempre se veste de modo tão simples?

Visto um hábito comum ao monge tibetano. Segundo a tradição, ele é composto de várias partes, uma roupa de retalhos que deve simbolizar a pobreza.

No entanto, a vestimenta não tem qualquer sig-nificado em termos de desenvolvimento espiritual. Na tradição tibetana os grandes lamas muitas vezes se vestem luxuosamente. Eles usam os chapéus correspondentes ao

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verdadeiro mestre é o Buda, e ele não possuía um chapéu. Somos apenas estudantes. O Buda deveria ter tido muito mais direito de se vestir luxuosamente porque ele era o verdadeiro mestre, e, apesar disso, ele preferiu permanecer um simples monge.” Qualquer pessoa pode se vestir com extravagância e pendurar joias em si. Mas é uma ilusão acreditar que isso possa mudar algo na essência do ser humano. Compaixão e amor, um sorriso cordial, um olhar bondoso, essas coisas me parecem ser as mais valiosas das joias. Um rosto hostil não se torna mais bonito mesmo com o mais caro enfeite.

Às vezes, acho que, se eu sempre andasse com uma expressão austera e não sorrisse tanto, haveria menos amigos interessados na causa do Tibete. Então faço uma política do sorriso.

Um Tibete livre vai votar por conta própria

Sua Santidade, visto que o senhor não mais considera o sistema social tibetano adequado aos nossos tempos, a pri-meira coisa que o senhor fez quando esboçou a Constituição de 1963 foi restringir o poder do Dalai Lama. E, em 1988, o senhor disse, em um discurso em Estrasburgo, que não gostaria de ter papel ativo em um novo governo tibetano. De agora em diante, o Dalai Lama será apenas o líder es-piritual do Tibete?

Sempre farei o que for melhor para o meu povo. Tomei a decisão de, num Tibete livre, abrir mão do papel de líder político. Aí então eu seria apenas o líder espiritual. Ori-ginalmente, os Dalai Lamas também cumpriam somente tarefas religiosas. Então irei transferir minha função po-lítica a um tibetano eleito pelo povo.

Referências

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