Filosofia Antiga
Os filósofos gregos, portanto, ao tentarem entender a natureza e a existência, não iniciaram tal caminho em uma trilha nunca percorrida, visto que já existia uma visão de mundo estabelecida, ainda que implícita, no mito e nos ritos religiosos. Todavia, nenhuma dessas condições teria feito surgir a Filosofia se uma mudança mental e de atitudes não tivesse tido lugar, isto é, se os primeiros filósofos não houvessem feito a descoberta, sozinhos e por si mesmos, do que chamamos de pensamento e de razão. E o fizeram graças a duas qualidades próprias do gênio grego: espírito de observação e poder de raciocínio.
A Filosofia é, ao lado do mito, realmente algo novo. Já não se vive numa crença cega, mas o indivíduo se volta todo para si mesmo e deve, agora livremente, elaborar por si explicações para a existência, examinando e provando o que pensa e o que considera verdadeiro; é uma posição diferente da do mito. Entretanto, as questões formuladas pelo mito ainda sobreviveram na linguagem filosófica. A atividade filosófica enquanto abordagem racional surge, assim, no contexto cultural grego e se expressa como tentativa de explicar a realidade do mundo sem recorrer à mitologia. Dessa maneira, podemos concluir com Chauí:
A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego. (CHAUÍ, 2002, p. 20).
A Filosofia terá, no correr dos séculos, um conjunto de preocupações, indagações e interesses que se vinculam às suas origens, ou seja, a Filosofia Antiga é a referência para toda a compreensão da história da Filosofia e da própria Filosofia. Neste sentido, por questões metodológicas, dividiremos o estudo da Filosofia Antiga em quatro períodos, os quais são aceitos pela maioria dos comentadores (CHAUÍ, 2002, p. 34):
Período Pré-socrático ou Cosmológico: do final do século VII ao final do século V a.C., quando a Filosofia se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transformações na Natureza.
Período Socrático ou Antropológico: do final do século V e todo o século IV a.C., quando a Filosofia investiga as questões humanas, isto é, a ética, a política e as técnicas.
Período Sistemático ou Clássico: do final do século IV ao final do século III a.C., quando a Filosofia busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado sobre a cosmologia e a antropologia, interessando-se, sobretudo, em mostrar que toda discussão pode ser objeto do conhecimento filosófico, desde que as leis do pensamento e de suas demonstrações estejam firmemente estabelecidas para oferecer os critérios da verdade e da ciência.
Período Helenístico ou Greco-romano: do final do século III a.C. até o século VI d.C. Nesse longo período, que já alcança Roma e o pensamento dos primeiros Padres da Igreja, a Filosofia se ocupa, sobretudo, com as questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre o homem e a natureza e de ambos com Deus.
DEFINIÇÃO DE FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA
A Filosofia Pré-Socrática é aquela que possui como principal preocupação de conhecimento as questões cosmológicas, ou seja, é um questionamento que se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transformações na natureza. Seu período se estende do final do século VII a.C. ao final do século V a.C. Recebe essa nomenclatura pelo fato de Sócrates ser considerado um divisor de águas no pensamento grego e o termo indica que as questões do período são anteriores a ele.
Como já vimos, o pensamento filosófico é o momento em que a razão humana resolve investigar a realidade a partir de si mesma, somente com seus próprios meios, momento em que o homem se propõe a conhecer os princípios e as causas das coisas. Como é possível, perguntavam os filósofos pré-socráticos, que todas as coisas mudem e desapareçam e a natureza, apesar disso, continua sempre a mesma? De onde provém o princípio que origina tudo?
CARACTERÍSTICAS DA FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA
O humano sempre foi o ser da busca pela compreensão. Nesta ávida busca pela compreensão da realidade, percebe-na, de imediato, como uma realidade “material”, uma realidade que ocupa um espaço e se desenvolve no tempo e, consequentemente, portando, todas as relações desta categoria espaço-temporal: cores, odores, gostos, figuras, formas, dimensões, asperezas, suavidades, etc. Não estranhemos, pois, que os naturalistas gregos foram considerados os “primeiros filósofos”, visto que consideraram antes de tudo a causa material da realidade.
A Filosofia, então, nasce como cosmologia, como busca incansável pela Physis (termo grego que designa a natureza). Sua origem está ligada à necessidade do homem grego explicar a realidade ao seu redor. A palavra Physis possui três sentidos principais:
Ação de fazer nascer, formação, produção. Natureza íntima e própria de um ser. Natureza como força criadora das coisas.
Na análise sobre a Physis, os filósofos pré-socráticos buscaram uma explicação racional e sistemática sobre a origem, ordem e transformação da Natureza e, consequentemente, do humano. Na busca pela compreensão da Physis, dois conceitos serão perscrutados pelos pré-socráticos:
Arché: significa “aquilo que está no começo”, “principio”, “origem”. É buscada pelos primeiros filósofos com principio absoluto (primeiro e último) de tudo o que existe. É o fundamento, a “origem originante”.
Cosmos: significa “ordem” e “organização do mundo”. Segundo os primeiros filósofos, é uma ordem regrada ou normativa. Seu objetivo é tentar entender, a partir da multiplicidade das coisas, o uno.
Segundo Chauí (2002, p. 35-36), a Filosofia Nascente possuía as seguintes características:
a) É uma explicação racional e sistemática sobre a origem, ordem e transformação da Natureza, da qual os seres humanos fazem parte, de modo que, ao explicar a Natureza, a Filosofia também explica a origem e as mudanças dos seres humanos.
b) A Filosofia pré-socrática afirma que não existe criação do mundo, negando, assim, a afirmação de culturas anteriores e, principalmente, a religião judaica. “Nada vem do nada e nada volta ao nada”, afirmava o espírito grego. E isso significa: 1) O mundo, ou Natureza, é eterno; 2) No mundo, ou Natureza, tudo se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer a sua matéria.
c) O fundo eterno, perene, imortal, de onde tudo nasce, no qual tudo é, e para onde tudo volta, é invisível para os olhos do corpo e visível somente para o olho da razão, isto é, para o pensamento. d) O fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna é o elemento primordial da Natureza e chama-se Physis. A Physis é a Natureza eterna e em perene transformação.
e) A Filosofia dos pré-socráticos afirmava que, embora a Physis seja imperecível, eterna, ela dá origem a todos os seres infinitamente variados e diferentes do mundo; esses seres, por outro lado, são perecíveis ou mortais. A Physis é imortal, mas as coisas físicas são mortais.
f) Afirma o pensamento pré-socrático que todos os seres, além de serem gerados e de serem mortais, são seres em contínua transformação, mudando de qualidade (por exemplo: o quente esfria) e mudando de quantidade (por exemplo: o pequeno cresce). Portanto, o mundo está numa mudança contínua, sem por isso perder sua forma, sua ordem e sua estabilidade. Esta mudança (nascer, morrer, mudar de qualidade ou de quantidade) chama-se movimento e o mundo está em movimento permanente. A Natureza, então, é mobilidade permanente. O movimento do mundo chama-se devir e segue leis rigorosas que o pensamento pode ter acesso mediante o conhecimento. O devir, portanto, é a passagem contínua de uma coisa ao seu estado contrário e essa passagem não é caótica, mas obedece a leis determinadas pela Physis ou pelo princípio fundamental do mundo.
Convém ressaltar que os diferentes filósofos escolheram diferentes Physis, ou seja, cada qual encontrou razões para afirmar qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da Natureza e suas transformações.
Os pré-socráticos são divididos em cinco grupos, obedecendo a um critério geográfico e/ou temático: Escola Jônica: buscam o princípio das coisas (arché) em elementos materiais. São seus
representantes: Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes de Mileto e Heráclito de Éfeso. Escola Pitagórica: assim como os jônicos, buscam o princípio das coisas, entretanto, este não
está na natureza, mas nos números. Isso não quer dizer que o fundamento da realidade seja os números, mas os elementos que eles representam: o limite e o ilimitado (cada número é síntese destes dois elementos). Recebem influência do orfismo na formulação dos seus mistérios, bem como, na fundação de comunidades de vida contemplativa.
Escola Eleata: a Escola Eleata formulará uma ontologia (termo grego que significa a análise do ser; o ser é o princípio unificador da realidade), ou seja, uma filosofia do ser. São seus principais representantes: Xenófanes, Parmênides de Eleia, Zenão de Eleia.
Escola Atomista: defende como arché os átomos, uma unidade indivisível, composta de matéria e de vazio. São representantes desta escola: Demócrito e Leucipo.
Escola Pluralista: apregoam a ideia de que vários elementos geraram o universo; temos Empédocles e Anaxágoras.
ESCOLA JÔNICA
O berço da filosofia grega foi a Jônia, no litoral da Ásia Menor (atual Turquia). São das cidades de Mileto, Éfeso, Clazômena, Colofônia e Samos que provém a maior parte dos filósofos pré-socráticos. A grande preocupação filosófica era, conforme já abordado, a explicação da Natureza (Physis); consideravam os filósofos deste período, que era possível estabelecer um único princípio ou natureza como originante da existência. Vejamos algumas considerações:
Tales de Mileto
Nascido na segunda metade do século VII a.C., desenvolveu a sua atividade intelectual na primeira metade do século seguinte. Astrônomo, predisse o eclipse do Sol ocorrido no ano 585 a.C.; engenheiro e matemático, formulou o teorema que leva o seu nome. Tales é considerado o primeiro filósofo grego ao introduzir a investigação racional acerca do princípio ou arché do real. Ao observar o que se passa no universo, considera a água como elemento primordial de tudo, o princípio gerador de todas as coisas.
Anaximandro de Mileto
Compatrício, discípulo e sucessor de Tales, provavelmente, nasceu nos últimos anos do século VII a.C. e morreu em meados do século VI a.C. Foi também astrônomo, geômetra e geógrafo, desenhou um mapa do mundo e escreveu uma obra que foi posteriormente intitulada Acerca da Natureza.
Anaximandro repele as ideias de seu mestre para afirmar que o princípio universal é uma substância indefinida, infinita, indeterminada: o apeíron. (O prefixo “a”, em grego, significa “não” e o termo “peiron” designa “fim”; logo, apeíron trata-se do infinito). O infinito é o princípio e do apeíron nasce o frio e o calor como separações da substância primordial e se formam os fluídos, a terra, o ar e os astros. O princípio dos seres é o infinito [...]. Naquilo de que os seres extraem sua origem, aí se realiza também sua dissolução, conforme a necessidade: com efeito, reciprocamente descontam a pena e pagam a culpa cometida, segundo a ordem do tempo. (ANAXIMANDRO apud REALE, 2007, p. 50).
Anaxímenes de Mileto
Colega de Anaximandro; sabemos muito pouco a seu respeito, salvo que escreveu também uma obra chamada Acerca da Natureza, na qual expunha as suas teorias sobre a natureza. Ensina que é o ar o elemento primeiro, do qual nasce o fogo, por um processo de rarefação, e, depois, por condensação, a água, a terra, as pedras e os demais seres.
Em um de seus fragmentos, pode-se ler: “Como a nossa alma, sendo ar, nos mantém vivo, da mesma forma o sopro e o ar sustentam o cosmo inteiro” (ANAXÍMENES apud REALE, 2007, p. 51).
Heráclito de Éfeso
Nasceu em Éfeso, na Jônia, e viveu na transição do século VI para o século V a.C. Os historiadores narram que, desde 546 a.C., a Jônia havia sido submetida à invasão e ao domínio dos persas. Em 498 a.C., todas as cidades, com exceção de Éfeso, uniram-se numa confederação contra os persas e foram derrotadas. Isso afastou Heráclito da vida pública. Retirado e isolado, tornou-se um pensador enigmático, melancólico, com estilo irônico e difícil. Sua doutrina torna-se uma espécie de reação contra os eleatas, liderados por Parmênides, como veremos mais à frente, os quais defendiam a imutabilidade do ser. É considerado por muitos, o mais importante dos pré-socráticos. Também é um dos poucos que possuímos fragmentos de seus escritos (ao todo 132 fragmentos).
Sua filosofia é uma tentativa de mostrar o dinamismo do universo e do homem. É tradicionalmente conhecido como o filósofo que afirmou radicalmente o devir de todas as coisas, isto é, que tudo muda e nada permanece (nada é). Seu pensamento pode, sem dúvidas, ser resumido na célebre afirmação: “O que existe não é o ser, mas o devir; não há outra realidade que não seja a mudança”. No universo,
segundo o filósofo, tudo escorre (panta rei), tudo se transforma, há um movimento constante de kinesis (mudança).
A quem desce no mesmo rio sobrevém águas sempre novas.
Não se pode descer duas vezes no mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, mas, por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, se espalha e se reúne, vem e vai.
Descemos e não descemos no mesmo rio, nós mesmos somos e não somos. (HERÁCLITO apud REALE, 2007, p. 52).
Tudo marcha, tudo flui, nada se estabiliza. Trata-se de um princípio verificado pela experiência sensível e isso vem a significar que, o que é muda e, por esse motivo, é. Para Heráclito, o mundo é um fluxo ou mudança permanente de todas as coisas, um devir eterno. A vida se transforma em morte, a morte em vida; o universo é um perpétuo renascer e morrer, nada permanece idêntico a si mesmo.
ESCOLA PITAGÓRICA
A Escola Pitagórica foi uma comunidade singular de caráter científico, religioso e político. No campo científico, cultivaram especialmente a matemática, a música e a astronomia. No âmbito religioso, afirmavam a imortalidade da alma e a sua transmigração, atribuindo importância fundamental à sua purificação através do conhecimento e de um sistema de vida rigidamente regulado por proibições. Essa Escola floresceu no século VI a.C. em torno da figura de Pitágoras de Samos e foi o mais importante centro de estudos e de meditação de toda a Antiguidade; trata-se da primeira instituição filosófica do mundo ocidental, localizada ao sul da Itália, região chamada pelos gregos de Magna Grécia.
Pitágoras era considerado um sofos (sábio), matemático (lembremo-nos de seu famoso teorema), físico, astrônomo, sacerdote e filósofo e reuniu vários adeptos em uma espécie de monastério, submetendo os iniciados a complexos ritos de iniciação.
A FILOSOFIA PITAGÓRICA
A tese principal defendida pelos pitagóricos era a de que o número é a unidade primordial. Foram eles, sobretudo matemáticos, e a sua dedicação à matemática exerceu influência definitiva na sua explicação acerca da origem da natureza do real. Observaram como as propriedades e comportamentos dos seres reais podem ser formulados matematicamente e partiram da hipótese de que todos os seres do universo são formuláveis matematicamente.
Os pitagóricos consideravam como única explicação possível o fato de que os princípios da matemática são também os princípios dos seres reais e, como os princípios da matemática são os números,
afirmaram que os números constituem a natureza do universo. A partir dessa afirmação, atribuíram um número a cada coisa e afirmaram que os números procedem de dois elementos: o par e o ímpar.
Assim, os pitagóricos adotaram o dualismo da natureza e conseguiram estabelecer uma série de oposições entre dois termos (par/ímpar, limitado/ilimitado, bom/mau, luz/obscuridade, etc.), os quais são aspectos dos princípios originais propostos.
Os membros da comunidade guardavam segredo sobre as doutrinas, viviam em rigoroso celibato, abstinham-se de alguns alimentos, acreditavam na metempsicose.
[Metempsicose] é assim chamada a doutrina que admite a transmigração da alma em mais corpos. Subentende em geral uma concepção negativa do corpo (dualismo antropológico) e um ideal ético que tende a purificar a alma e a separá-la o mais possível do corpo. Os órficos foram os primeiros a introduzir esta crença e, em seguida, os pitagóricos a tornaram própria. Mas nesta assunção modificaram o conceito de purificação, não mais a confiando às práticas rituais, mas à ciência – sobretudo à matemática -, enquanto purifica e eleva a alma. (REALE, 2007. p. 29).
Sendo os números a unidade primordial, como os pitagóricos entendiam a Physys? Para os pitagóricos, a Physis é o uno ou a unidade primordial e os seus elementos são o par e o ímpar. O par é ilimitado porque sempre pode ser dividido por dois; o ímpar é limitado porque nunca pode ser dividido por dois. O Uno ou unidade primordial participa de ambos porque é par e ímpar. O Uno, porém, não é o número UM; este já é uma das manifestações determinadas da Physis.
Ora, fica claro, então, que o universo pitagórico é um kosmos (palavra grega que significa “ordem”, “ordenamento”, “organização”). “Cosmos”, portanto, é um termo que os pitagóricos, pela primeira vez, usaram neste sentido específico e neste mesmo sentido se manterá como definitivamente adquirido pelo pensamento ocidental.
Os conhecedores dizem [...] que céu, terra, deuses e homens são mantidos juntos pela ordem, pela sabedoria e pela retidão: é exatamente por tal motivo [...] que chamam tudo isso de cosmo, ou seja, ordem. (PLATÃO apud REALE, 2007, p. 55).
Com o pensamento pitagórico, a Filosofia cumpriu um dos passos mais decisivos: o mundo deixou de ser domínio de forças obscuras, campo de misteriosas e indecifráveis potências (mito), e tornou-se “a ordem” (cosmos) e, como tal, tornou-se transparente ao espírito e ao conhecimento. O termo ordem diz respeito a número e número diz racionalidade, cognoscibilidade e permeabilidade ao pensamento. No fundo, por mais que pareça obscuro e sem nexo o pensamento pitagórico, percebemos que o domínio do número significa o domínio da racionalidade e da verdade.
A ESCOLA ELEATA
O pensamento eleático, assim como o pitagórico, representa uma importância grega para a Itália Meridional. Eleata vem de Hyele, nome de uma fonte que existia na região de Regio Calábria; depois passou a ser designada por Eleia e, finalmente, Vélia pelos antigos romanos.
Em face das questões cosmológicas, a escola de Eleia assume a seguinte posição: nega a multiplicidade e sucessão dos seres, vista como sendo ilusões dos sentidos; e afirma, em nome da razão, a unicidade, eternidade e imutabilidade do ser. De acordo com a opinião de Maritain (Cf. 1978, p. 42), é à escola de Eleia que cabe o mérito, senão de ter fundado a metafísica, pelo menos de ter elevado o pensamento grego ao nível próprio da metafísica e ao grau de abstração que comporta esse ramo de conhecimento.
Xenófanes de Cólofon
É considerado o fundador da Escola Eleata; nascido em Cólofon, na Ásia Menor, quando da invasão dos persas na Jônia, fugiu de sua terra natal em 546 a.C. e, após longa peregrinação, estabeleceu-se em Eleia, colônia jônica da Magna Grécia (Itália), onde fundou sua escola e morreu com mais de noventa anos de idade.
Ficou conhecido na tradição filosófica pela crítica aos aspectos antropomórficos dos deuses míticos, submetidos a paixões e desejos humanos e imaginados com características humanas. De modo geral, é ele o primeiro a nos fornecer uma apresentação filosófica da concepção dos deuses.
Se os bois, cavalos e leões tivessem mãos ou se pudessem pintar e realizar as obras que os homens fazem com as mãos, os cavalos pintariam imagens dos deuses semelhantes aos cavalos e os bois semelhantes aos bois e plasmariam os corpos dos deuses semelhantes aos aspectos que cada um deles tem. (XENÓFANES apud REALE, 2007, p. 57).
O filósofo afirma a existência de um deus único, com poderes absolutos, clarividência infalível, isento de paixões, absolutamente justo e imóvel. Esse deus é sem forma humana ou qualquer outra conhecida por nós, governando todas as coisas pela penetração de seu espírito e habitando sempre o mesmo lugar. Não se “move”, isto é, não está sujeito ao tempo e ao devir (geração, alteração qualitativa e quantitativa, corrupção, degradação, etc.). Sendo imóvel, é sempre idêntico a si mesmo, eterno, uno e todo. Em dado momento, afirmará que esse deus é o próprio kosmos, que não exclui, mas admite outros deuses ou entes divinos, sejam eles partes do kosmos ou forças do kosmos.
Tendo feito essa espécie de “teologia”, também defendeu ideias morais de alto valor e, em particular, afirmou a superioridade da virtude, da inteligência e da sabedoria sobre os valores puramente vitais, como a força dos atletas.
Xenófanes escarnecia a mitologia dos poetas e as opiniões do vulgo. “A nossa sabedoria”, dizia ele, caçoando das honras conferidas aos atletas, “vale mais que o vigor dos homens e dos cavalos”.
Professava a unidade absoluta de Deus, mas confundia Deus com as coisas, dizendo, num sentido panteísta, que Deus é um e tudo. (MARITAIN, 1978, p. 43).
Parmênides de Eleia
Nasceu em Eleia, hoje Vélia, na Itália Meridional. Foi iniciado na Filosofia por um pitagórico, Ameinias; escreveu o famoso poema intitulado Sobre a Natureza e ocupou-se também de política, fornecendo interessantes leis ao povo de Eleia. O “grande Parmênides” (540-470 a.C.), como denominava Platão, no âmbito dos pré-socráticos, é um inovador radical, um revolucionário. Com ele a cosmologia sofre um profundo abalo e transforma-se em uma ontologia, uma filosofia do ser.
Indo além do mundo das aparências sensíveis - ponto de partida e análise apurada de todos os filósofos de então -, alcança aquilo que, nas coisas, é propriamente o objeto da inteligência. O que é que a inteligência vê, em primeiro lugar, nas coisas todas do universo? Segundo Parmênides, vemos precisamente o que as coisas são, ou seja, o ser. A ideia de ser, assim destacada, impõe-se a Parmênides que, de acordo com Maritain (1978, p. 43), torna-se cativo do ser (do mesmo modo como Heráclito tornou-se cativo do devir). Somente uma coisa Parmênides analisa: o que é e não pode deixar de ser; o ser é, o não-ser não é. Por conseguinte, Parmênides é o primeiro filósofo que temos notícia a formular o conhecido princípio da não contradição, princípio supremo de todo reto pensar.
Se a realidade é o ser, consequentemente, ele é eterno e atemporal; toda mudança é ilusória. Para ele, não havia mudança nas coisas; o ser é imóvel e nada perece, como afirma no fragmento abaixo:
[O Ser] é imóvel nos limites de grandes ligações e é sem um princípio e um fim, pois nascimento e morte foram expulsos para longe e uma verdadeira certeza os rejeita. E permanecendo idêntico, no idêntico em si mesmo jaz, e deste modo aí permanece firme. Com efeito, necessariamente inflexível o mantém nas ligações do limite, que o encerra por todo lado, pois foi estabelecido que o ser não fique sem realização: com efeito, ele de nada carece, caso contrário, de tudo careceria. (PARMENIDES apud REALE, 2007, p. 60).
De certo modo, Parmênides se arvora em ser um dos primeiros a estabelecer um itinerário para o conhecimento e nos indica três vias para a pesquisa filosófica:
a) A via da absoluta verdade: essa via é também chamada de “via da não contradição”; o grande princípio parmenidiano, que é o princípio da verdade, assim se enuncia: “O ser é e não pode não ser; o não-ser não é e não pode ser”. O ser, portanto, é e deve ser afirmado; o não-ser não é e deve ser negado, e nisso consiste a verdade. Assim, negar o ser ou afirmar o não-ser é, ao contrário, a absoluta falsidade. Portanto, o ser é puro positivo e o não-ser é puro negativo; o ser é a única coisa pensável e exprimível. Qualquer pensar, para ser tal, é pensar o ser, a ponto de podermos dizer que o pensar e o ser coincidem, no sentido de que não há pensamento que não exprima o ser; ao contrário, o não-ser é todo impensável,
inexprimível, indizível e, portanto, impossível. Estamos, assim, diante da grandiosa explicitação do princípio da não contradição, princípio que afirma a impossibilidade de os contraditórios coexistirem simultaneamente, ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. A via descrita, por conseguinte, é a via da razão e do logos; somente o logos é quem pode afirmar o ser e negar o não-ser. b) A via do erro: essa via é também chamada “via dos sentidos”. Os sentidos, diz Parmênides, levam o homem ao engano, visto que, parecem apresentar o devir, o movimento, o nascer e o morrer e, portanto, o ser junto ao não-ser. Os sentidos são, portanto, a via do erro e é justamente, sobre os sentidos que todos os homens se fundam no processo do conhecimento; e aqui está o perigo que deriva de prestar fé aos sentidos contra a lei do logos. De fato, admitir o ser e juntamente o não-ser significa substancialmente admitir o nada. A raiz do erro, portanto, está na admissão do não-ser ao lado do ser e na admissão da possibilidade da passagem de um ao outro e vice-versa.
c) A via das opiniões: essa é, com certeza, uma das mais interessantes contribuições de Parmênides para o pensamento de tradição grega. A via das opiniões ficará conhecida na tradição filosófica como doxa, palavra grega que significa opinião, conhecimento prévio, aparência e, se preferirmos, pré-conceito. Parmênides, embora negando qualquer validez à opinião, concede, todavia, às aparências, certa plausibilidade e, portanto, reconhece alguma validade aos sentidos. Devemos concluir que Parmênides, além da verdade do logos (ser) e da opinião falaciosa (ser e não-ser), reconhecia a possibilidade e a legitimidade de certo tipo de discurso que tentasse dar conta dos fenômenos e das aparências sem ir contra o grande princípio (a não contradição), isto é, sem admitir, concomitantemente, o ser e o não-ser.
Conclui-se, então, que os dois problemas essenciais da Filosofia, os quais nortearão a discussão dos grandes temas da tradição, ficam daqui por diante nitidamente postos: o problema metafísico (conciliação entre ser e devir) e o problema gnosiológico (o valor do nosso conhecimento). De modo geral, o trabalho filosófico, depois de Parmênides e Heráclito, será o de realizar uma espécie de “acerto de contas” entre as duas posições.
Zenão de Eleia
Segundo Reale (2007, p. 36), as teorias de Parmênides causaram grande espanto e suscitaram acaloradas discussões. Quem procurou, então, responder a esse debate foi Zenão, nascido em Eleia, entre o fim do século VI e início do século V a.C. Morreu numa conspiração contra o tirano Nearcos de Eleia; descoberto e submetido a torturas, deveria revelar o nome de seus comparsas. A recusa custou-lhe a vida.
No tocante a obras, a tradição atribui como de sua autoria Discussões contra os físicos, Sobre a Natureza e Refutações de Empédocles (livros escritos em sua juventude). Defensor apaixonado da
doutrina de Parmênides (alguns estudiosos afirmam que foi discípulo do filósofo do princípio da não contradição), defende-a contra seus opositores. Era de espírito polêmico e introduz um novo método na discussão filosófica: em vez de refutar imediatamente a posição dos adversários, aceita-a aparentemente para mostrar suas contradições.
O procedimento que adotou consistiu em fazer ver que as consequências derivadas dos argumentos apresentados para refutar Parmênides eram ainda mais contraditórias e ridículas do que as teses que pretendiam refutar. Ou seja, Zenão descobriu a refutação da refutação, isto é, a demonstração por absurdo. (REALE, 2007, p. 36).
Desse modo, segundo Aristóteles, Zenão fundou o método da dialética, isto é, do confronto entre teses opostas e contrárias para provar que nenhuma delas é verdadeira ou que a tese contraditória seria falsa. Zenão instaura, assim, na Filosofia, a arte da argumentação. Desenvolve seu método de discussão e argumentação como método de prova para defender as teses de Parmênides, que começavam a ser ridicularizadas por outros filósofos e pela opinião pública.
Zenão não pretende demonstrar a verdade de uma teoria, mas os absurdos das opiniões adversárias, isto é, seu foco de debate não é uma apologia, mas uma aporia, uma dificuldade que permanece aberta, insolúvel. Portanto, o raciocínio de Zenão é aporético (criador de dificuldades sem solução) e não apologético (defensor de soluções).
Analisemos um exemplo de como Zenão trabalha com a “demonstração pelo absurdo”, com a refutação pela refutação: a temática mais conhecida é a de que o movimento não existe, pois para realizar um movimento é preciso completar metade dele, depois a metade da metade e ir subdividindo sem jamais concluir. Exemplo: Aquiles jamais alcançará a tartaruga, porque antes fará a metade do percurso, depois a metade da metade ad infinitum (REALE, 2007, p. 61; PRÉ-SOCRÁTICOS, 2000, p. 139-142).
O ECLETISMO
O Ecletismo trata-se do conjunto de tendências filosóficas que sucede o eleatismo e o heraclitismo e possui como principal discussão a existência ou inexistência do uno e do múltiplo, do ser e do devir, da imobilidade e movimento.
Os filósofos que vieram depois de Heráclito e Parmênides já não podiam aceitar que a razão ou o pensamento, o logos, coincidisse diretamente com a experiência sensível, visto que, para ambos, o verdadeiro é o que se oferece apenas ao e pelo pensamento e é este que julga a experiência sensível. Mas, afinal, o logos é uno ou múltiplo? Como manter a ideia de que o ser é o ser verdadeiro porque sempre idêntico a si mesmo e, ao mesmo tempo, demonstrar que a multiplicidade e o movimento, a diferença entre as coisas e sua transformação também são verdadeiras? Essas questões nortearam a discussão filosófica dos ecléticos.
Empédocles de Agrigento
Empédocles (492-432 a.C.) era natural de Agrigento, cidade de origem dórica, na Sicília. Era um homem com fortíssima personalidade, sacerdote, vidente e místico; pregador errante e dramaturgo, político e, claro, filósofo. Os relatos sobre seu fim pertencem às lendas: segundo alguns, teria desaparecido durante um sacrifício; conforme outros, atirou-se no Etna.
Empédocles é o primeiro pensador que procura resolver a dificuldade dos eleatas, tentando salvar, de um lado, a imobilidade e, de outro, os fenômenos testados pela experiência. Admitia uma pluralidade de elementos constituintes das coisas. Eram precisamente quatro elementos primordiais: terra, ar, água e fogo. Podiam misturar-se nas mais diferentes proporções, produzindo assim as várias substâncias que encontramos no mundo. O que determinava a união e a desagregação entre esses eram dois princípios abstratos: amor e ódio. Por sua causa, todas as substâncias compostas são pouco duradouras; somente os quatro elementos e os dois princípios são eternos pelo fato de serem simples.
Para o pensador grego, os quatro elementos são as raízes de todas as coisas, os chamados rizomata e, portanto, são eles a arché da Physis. Essas raízes são eternas, cada uma é idêntica a si mesma, indestrutível, sem nascimento, sem perecimento.
Segundo Empédocles, no princípio as raízes estão inteiramente misturadas e formam o Uno. Depois uma força corpórea, mas externa a elas, as invade e as separa: o Ódio, que separa o que estava misturado e faz surgir o Múltiplo, as quatro raízes diferenciadas. Em seguida, uma outra força corpórea, externa e oposta à primeira, se introduz no seio do múltiplo e faz com que as raízes se misturem e se combinem: o Amor, gerador de todas as coisas. Assim, demonstra um fragmento de Empédocles: “A um dado momento, do Uno saiu o Múltiplo; por divisão – fogo, água, terra e o ar – e o Uno se formou do Múltiplo. Ódio, temível, de peso igual a cada um, e o Amor entre eles” (EMPÉDOCLES apud REALE, 2007, p. 64).
Dessa maneira, percebe-se que o perpétuo misturar-se e separar-se se cumprem lentamente, alternativamente, na rotação do tempo. Cumpre-se segundo a lei, que é o próprio ser; e, por isso mesmo, há um processo de mecanicismo, ou seja, tudo ocorre automaticamente.
Como, porém, se estabelece a questão do conhecimento humano nessa discussão? Ora, o ponto central é o conhecimento de que nós sempre conhecemos o semelhante pelo semelhante. Por sermos terra, conhecemos a terra; por sermos água, a água; por sermos ar, o ar e por sermos fogo, o fogo destruidor; com nosso amor conhecemos o amor do mundo e o seu ódio com o nosso ódio. Na realidade, para Empédocles se estabelece um conhecimento por assimilação, ou seja, conheço a vida mediante a minha própria vida; trata-se de um conhecimento por analogia.
O pensamento de Empédocles constitui uma interessante síntese do heraclitismo e do eleatismo. É eleática sua doutrina da existência de um ser eterno, indestrutível, qualitativamente imutável (rizomata); é heraclitismo o misturar-se e separar-se, que constitui o devir.
Anaxágoras de Clazômena
Anaxágoras (500-428 a.C.) nasceu em Clazômena, na Jônia. Pertencia a uma família aristocrática; fez seus primeiros estudos com os discípulos de Anaxímenes.
Foi o primeiro filósofo a fixar-se em Atenas e lá suas ideias foram consideradas perigosas para o Estado. Fundou uma escola de filosofia na cidade de Lâmpsaco, na Jônia, onde morreu.
Sua proposta filosófica era resolver a crise do eleatismo e do heraclitismo, isto é, afirmar simultaneamente a existência do Ser imutável e a do mundo plural e mutável. Para Anaxágoras, a Physis de tudo é o spermata (sementes). Cada tipo de matéria provém de uma mistura originária e tal mistura são as “sementes”; são invisíveis, eternas, imutáveis, idênticas a si mesmas, totalidade plena, assim como o ser de Parmênides. Entretanto, como podemos saber da existência de tais sementes? Pelo pensamento, como ele mesmo afirma em um de seus fragmentos: “Pela debilidade de nossos sentidos não somos capazes de discernir a verdade, mas podemos valer-nos da experiência, da memória, da sabedoria e das técnicas, pois o que aparece é uma visão do invisível” (ANAXÁGORAS apud REALE, 2007, p. 65).
Anaxágoras continua na perspectiva de Parmênides e Heráclito, isto é, somente a razão ou a inteligência, somente o pensamento alcança a realidade última e originária: a Physis. A razão, auxiliada pela experiência, pela memória e pelas técnicas nos ensina que o verdadeiro é invisível.
Anaxágoras, entretanto, introduziu na especulação filosófica um elemento novo que lhe assegura um lugar à parte entre os primeiros filósofos: até então, a formação do mundo era considerada como que regida pela fatalidade, lei imanente dos seres, que regula todos os seus movimentos; impressionado com a ordem e a organização do cosmos, Anaxágoras inserirá um elemento radicalmente distinto, que chamará de Nous (Razão ou Inteligência): a ordem somente pode ser explicada por uma inteligência soberana, uma substância inteligente ou pensante, sutil, invisível. Esta força inteligente introduz o movimento na massa primitiva das sementes. O Nous é a substância que sabe ou reconhece todas as coisas, que move todas as coisas, mas se encontra sozinho e em si mesmo. Como Deus, o Nous está separado e fora do mundo.
A doutrina atomista, fundada por Leucipo, sistematicamente desenvolvida e levada a êxito pelo seu discípulo Demócrito, assinala a última tentativa de responder as aporias dos eleatas, buscando salvar o princípio de fundo do eleatismo: o Ser (e isso sem negar os fenômenos).
Para os atomistas, a Physis é o átomo (palavra grega criada por Demócrito para designar aquilo que não é divisível). O átomo é uno, contínuo, imutável, eterno (como o Ser de Parmênides); mas há uma quantidade inumerável ou infinita de átomos ou unidades discretas, como os números pitagóricos. Existe, ainda, uma grande novidade nos atomistas, que os distancia de Parmênides e dos pitagóricos: entre um átomo e outro há o vazio, que é o não ser como algo real, existente. Assim, pela primeira vez, um grego admite a existência do vácuo, a existência real do espaço sem ser corporal. Portanto, o átomo (pleno) e o vazio (vácuo) são os princípios constitutivos de todas as coisas, geradas pelo contato entre os átomos que se movem no vazio, chocando-se, ricocheteando-se uns contra os outros, fazendo as coisas nascerem, mudarem e perecerem.
Percebe-se, no pensamento de Demócrito e dos atomistas, uma espécie de preparação para a descrição física do átomo e da própria matéria. Porém, que lugar teria o processo cognitivo para os atomistas? O pensamento é também movimento de átomos. A diferença entre o conhecimento sensível e racional é apenas de grau. O pensamento supõe um mais fino e rápido movimento de átomos do que a percepção sensível; é o início do que a tradição filosófica designará como materialismo.
À primeira vista, ao nos debruçarmos sobre o pensamento dos pré-socráticos, parece-nos que estamos diante de um emaranhado de informações desconexas, um pensamento ingênuo e sem critérios. Entretanto, nada há de ingênuo no pensamento desses gregos; percebe-se uma intensa capacidade de realizar um discurso até então não feito: o discurso estritamente racional e especulativo, um discurso que procura compreender os fundamentos da existência e, acima de tudo, um discurso que nos abre acesso para o “amor à sabedoria”.
BIBLIOGRAFIA
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus, 2007. JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1965.
MARITAIN, J. Introdução geral à filosofia. Rio de Janeiro, Agir, 1978. PRADO JUNIOR, C. O que é filosofia. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. PRÉ-SOCRÁTICOS. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Coleção Os Pensadores). VERNANT, J. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1978.
O PERÍODO SOCRÁTICO
A PASSAGEM DA FILOSOFIA DA NATUREZA À FILOSOFIA MORAL
Durante o longo período que analisamos anteriormente, grandes avanços foram obtidos para o pensamento humano. Porém, se analisarmos tal período com o olhar de hoje, ou seja, sem entender o contexto daquele momento, com certeza diríamos que a Filosofia que antecedeu Sócrates, Platão e Aristóteles estava encoberta de teorias contraditórias e até mesmo absurdas (MARITAIN, 1978, p. 44-45).
Nota-se que, no período dos filósofos da Natureza, havia certa ambição de saber todas as coisas, mas não havia um método esclarecido e próprio para tal; não é de se admirar, portanto, que esta elaboração tenha levado a uma crise intelectual e tal crise é chamada por alguns pensadores (entre eles Maritain, 1978, p. 45) de sofística, pensamento produzido pelos sofistas na transição entre os primeiros físicos e os grandes filósofos do apogeu de Atenas.
O período da sofística compreende os séculos V e IV a.C. e é fruto de dois deslocamentos: um, geográfico-político; outro, intelectual. O primeiro deslocamento é a “migração” do pensamento filosófico das colônias gregas da Ásia Menor e Magna Grécia para a Grécia Continental, para a Ática e, mais precisamente, para Atenas. O deslocamento segundo, que se inicia com os sofistas e Sócrates, consiste na mudança do centro da reflexão filosófica: deixa-se de se preocupar com a cosmologia e volta-se para a formação do cidadão, ou seja, abraça-se a reflexão antropológica.
Este período se caracteriza pela formação da democracia, da tragédia grega e pela implantação da nova areté.
DEMOCRACIA, TRAGÉDIA E ARETÉ
A partir de 510 a.C. Atenas conhece a grande reforma política de Clístenes, o qual faz com que a unidade política de base fosse o demos em lugar da gene (espaço territorial da família, que possibilitava a formação de tiranos). Implantando a unidade do demos, enfraquecendo a possibilidade da atuação tirana de alguns cidadãos, criou-se a mais importante instituição política de Atenas: a boulé (conselho de quinhentos anciãos que são sorteados entre os membros de todos os demos, sorteio que garante a todos o direito de participar diretamente das decisões da polis). Estabelecida, assim, a Ekklesia (assembleia geral de todos os cidadãos atenienses), nela se discutiam os grandes assuntos da cidade, sobretudo as decisões de guerra e paz. Assim está criada a democracia: demo = cidadão e kratós = poder.
Eis algumas características da democracia grega:
Na democracia ateniense nem todos são cidadãos, mas apenas os homens livres e súditos leais de Atenas. Portanto, mulheres, crianças, estrangeiros e escravos estão excluídos da cidadania. Trata-se de uma democracia direta e participativa e não representativa, como as modernas. Isonomia: todos os cidadãos são iguais perante a lei.
Isegoria: todos os cidadãos podem exprimir em público suas opiniões.
Neste momento de crescimento político, desenvolve-se, também, a tragédia grega, um gênero literário e teatral nascido dos cultos religiosos a Dionísio. A palavra provém de tragos (bode expiatório dos sacrifícios rituais que representam a morte e renascimento de Dionísio). São características da tragédia grega:
Trata-se de uma instituição social: são escritas e representadas durante as festas cívicas de Atenas; o coro é formado por um colégio de cidadãos; a cidade paga e financia a escrita e a apresentação das peças e trata-se de uma reflexão teatral que a cidade faz sobre o nascimento da democracia.
Vislumbra o conflito de duas leis: a lei da família (gene) e a lei da cidade (demos).
O herói trágico e a heroína trágica são personagens marcados pelo conflito entre sua vontade e seu destino, sua consciência-ignorância e o cumprimento do destino. A tragédia põe em questão a existência da vontade, da liberdade e da consciência de nossas ações. Nela, conhecimento é ignorância do destino; ignorância é conhecimento. A tragédia tematiza a cidade, a lei, o cidadão,
a diferença entre passado e presente, o indivíduo, a consciência e a ética (CHAUÍ, 1994, p. 112-116).
Percebe-se, então, um novo estilo ou modelo de cidadão que é delineado; é consequência, então, que se pense nas virtudes e qualidades exigidas e requeridas para esse “novo cidadão”. A educação para os cidadãos propõe a excelência e o valor humano para os membros da sociedade, e daqui o termo areté: a formação do aristós, o melhor, o mais nobre, o homem excelente.
Até antes da reforma democrática, a formação do jovem era a formação do guerreiro belo e bom (kalós kagathós), um homem perfeito de corpo e dotado de uma virtude principal: a coragem para os perigos da guerra. A nova formação do cidadão para a direção da sociedade se efetua mediante a política, isto é, refere-se ao caráter e aos costumes sociopolíticos; o ideal de homem é o cidadão que fale bem, o orador, pois o logos é inseparável da democracia.
É diante desse quadro que surgirão um grande número de pensadores gregos que terão a função de preparar os jovens cidadãos para os debates: os sofistas, os quais “souberam captar de modo perfeito essas instâncias da época conturbada em que viveram, sabendo explicitá-las e dar-lhes voz e vez” (REALE, 2007, p. 75).
SIGNIFICADO DO TERMO “SOFISTA”
Na linguagem corrente, o termo “sofista” assumiu um significado pejorativo: sofista é aquele que, fazendo uso de pensamentos e frases capciosas, busca enfraquecer o argumento do adversário e convencer os ouvintes de “sua” verdade. No sentido etimológico, porém, significa “sábio, especialista do saber, possuidor do saber”.
Segundo alguns comentadores, a palavra sofista não tem nenhum valor filosófico determinado e não indica uma escola. Originariamente significou apenas sábio e depois passou a designar aqueles que faziam profissão da sabedoria e a ensinavam mediante remuneração (eram eles os primeiros “professores particulares” da história da civilização ocidental). O lugar da sofística na História da Filosofia não apresenta, por isso, analogia com o das escolas filosóficas anteriores ou contemporâneas. Os sofistas influenciaram poderosamente o curso da investigação filosófica, mas isto aconteceu por modo inteiramente independente de sua intenção, que não era teorética, mas, apenas prático-educativa. Os sofistas não podem relacionar-se com as investigações especulativas dos filósofos jônios, mas com a tradição educativa dos poetas; todos eles orientaram a sua reflexão para o homem, para a virtude e para o seu destino e retiraram, de tais reflexões, conselhos e ensinamentos. Os sofistas não ignoram esta sua origem ideal porque são os primeiros exegetas das obras dos poetas e vinculam a eles o seu ensinamento.
Os sofistas foram, pois, mestres de cultura. Mas a cultura, objeto de seu ensinamento, era aquela que seria útil à classe dirigente da cidade em que tinha lugar o seu ensino: por isso era pago. Para que o seu ensino fosse não só permitido, mas ainda requerido e recompensado, os sofistas tinham de inspirá-lo nos valores próprios da comunidade onde o ministravam, sem tentar impor críticas ou indagações que os colocassem em choque com tais valores.
Por outro lado, precisamente por esta situação, os sofistas estavam em condições de se darem conta da diversidade ou heterogeneidade de tais valores. Eles podiam ver que de uma cidade a outra, de um povo a outro, muitos dos valores em que assenta a vida do homem sofrem variações radicais e tornam-se incomensuráveis entre si. A natureza relativista das suas teses teóricas não é mais que a expressão de uma rendição fundamental de seu ensinamento.
Ademais, consideram-se "sábios" precisamente no sentido antigo e tradicional do termo, isto é, no sentido de tornar os homens hábeis nas suas tarefas, aptos para viver em conjunto, capazes de levar a melhor nas competições civis. Certamente, sob este aspecto, nem todos os sofistas manifestam, na sua personalidade, as mesmas características. Protágoras (um dos sofistas mais conhecidas desse momento) reivindicava para os sábios, e para bons oradores, a tarefa de guiar e aconselhar para o melhor a própria comunidade humana. Outros sofistas colocavam explicitamente a sua obra a serviço dos mais poderosos e dos mais sagazes. Em qualquer dos casos, o interesse dos sofistas limitava-se à esfera das ocupações
humanas e a própria Filosofia era considerada, por eles, como um instrumento para se moverem habilmente nesta esfera.
Diante da Sofística, devemos, em primeiro lugar, ter em mente os resultados a que chegaram os filósofos naturalistas: tinham chegado ao ponto de se “anularem” mutuamente, visto que, os resultados do eleatismo contradiziam os dos heraclitismo; os resultados dos ecléticos contradiziam os dos jônios e pitagóricos. Parecia que todas as possíveis soluções tinham sido propostas e não havia mais nada a ser analisado pela nova forma de pensamento. Assim, era inevitável que a Filosofia deixasse de lado a natureza (Kosmos, Physys) e deslocasse seu interesse de questionamento para outro objetivo, a saber: o homem e tudo o que é tipicamente humano.
Tornando-se uma reflexão antropológica, a Filosofia terá alguns temas dominantes: ética, política, retórica, arte, linguagem, religião, educação, ou seja, tudo o que hoje designamos com o nome de cultura humanística.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DA SOFÍSTICA
Convém esclarecer que, o que conhecemos dos sofistas, além dos fragmentos e algumas obras, se deve à critica socrática, crítica que afirmava que os sofistas vivem no mundo da doxa, das opiniões e são facilmente levados de acordo com o pagamento. Não procuram a aletheia, não se interessam pela verdade. Para Sócrates, os sofistas são os “prostitutos do saber”.
Independente das críticas levantadas por Sócrates e Platão, os sofistas trouxeram contribuição inegável para o pensamento ocidental: desenvolveram a arte da dialética e da retórica; fizeram uma crítica sobre os alicerces da sociedade grega e introduziram o relativismo para aquilo que, em lugar da Physis, chamaram de nomos (convenção). Citamos as seguintes características desses pensadores:
Relativismo: os sofistas, ao contrário dos pré-socráticos, se fixam na instabilidade das coisas. Nada é fixo, absoluto, nem estável; tudo muda. As essências das coisas são variáveis e contingentes.
Subjetivismo: para os sofistas não existe verdade objetiva. As coisas são como a cada um lhe aparecem. O homem é a medida de todas as coisas, dirá o sofista Protágoras.
Ceticismo: o homem não pode conhecer nada com a certeza absoluta que tanto deseja; adotam uma postura negativa diante do conhecimento.
Indiferentismo moral e religioso: se o homem é a medida de todas as coisas, e as coisas são como a cada um lhe aparecem, então não existem coisas boas nem más em si mesmas, pois não existe uma norma transcendente de conduta.
Convencionalismo jurídico: os sofistas acentuavam a contraposição entre a lei e a natureza (nomos X Physys); afirmavam que não existem leis imutáveis, pois as mesmas são convenções (nomos) da sociedade. A única lei natural e universal é a dos instintos. Nesse sentido, a moral, a religião, o Estado, as raças, a igualdade, etc., tudo nasce por convenção, ou seja, por acordo e decisão dos humanos, podendo, de acordo com a própria sociedade, modificar-se.
Ora, sendo tudo nomos, tudo pode ser ensinado, inclusive a areté e o nomos. Portanto, deve haver alguém ou uma classe que seja responsável por esse ensino, ganhando por ele; o ensino da retórica, assim, será a fonte de lucro para os sofistas.
OS DIVERSOS GRUPOS DE SOFISTAS
Reale (2007, p. 75) afirma que os sofistas não constituem um bloco compacto de pensadores; entretanto, todos visavam à mesma finalidade: responder as necessidades de pensamento do momento. Diante dessa tentativa de respostas, os sofistas podem ser divididos em quatro grupos:
Os grandes e famosos mestres da primeira geração, que não estavam em absoluto privados de reservas morais e que o próprio Platão considerou dignos de certo respeito.
Os “Erísticos”: levaram o aspecto formal do método à exasperação, perderam interesse pelos conteúdos e também perderam a reserva moral que caracterizava os mestres.
Os “Políticos-sofistas”: utilizaram ideias sofistas em sentido “ideológico”, ou seja, com finalidades políticas, caindo em excessos de vários tipos e chegando até a teorização do imoralismo.
Uma escola particular de sofistas, que não se identifica com a dos mestres da primeira geração e tomou o nome de “naturalistas”, enquanto contrapunha a lei positiva à natural, privilegiando a última e relativizando a primeira.
SÓCRATES E A FUNDAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL OCIDENTAL
De grosso modo, pode-se dizer que foi Sócrates (469-399 a.C.) quem salvou o pensamento grego do perigo mortal em que o colocava a sofística (MARITAIN, 1978, p. 47). Seu gênero de vida parecia exteriormente com o dos sofistas e até mesmo Aristófanes chegou a confundi-lo com um. Na realidade, Sócrates era um “educador dos homens” e acreditava que a verdade existe e pode ser conhecida desde que se proceda a uma interrogação metódica. Já percebemos, então, duas grandes diferenciações com relação aos sofistas: um universal (a verdade) e um método de encontrá-lo.
Nascido em Atenas, era filho de um escultor e de uma parteira. Não fundou nenhuma escola, como os outros filósofos, realizando seu ensinamento em locais públicos (ginásios, praças, mercados, templos, etc.), como uma espécie de pregador itinerante, exercendo grande fascínio não somente entre os jovens, que eram ávidos por um mestre, mas entre os homens de todas as idades. Após acusação de que seu ensino afastava dos deuses e de que corrompia a juventude de Atenas, é condenado pela democracia à pena de morte, tomando um veneno chamado cicuta.
AS FONTES DE CONHECIMENTO DE SÓCRATES
Não temos conhecimento de nenhuma obra de Sócrates; toda a sua obra, portanto, é uma obra de conversação, isto é, de diálogos que efetuava em seu dia-a-dia em Atenas. Seu pensamento e o que sabemos de Sócrates chegaram até nós através das seguintes fontes:
Xenofonte: em sua obra Memoráveis, afirma que Sócrates foi um cidadão altamente patriota, piedoso, justo, que fazia sacrifícios aos deuses e era leal aos amigos. Segundo Xenofonte, Sócrates discutia na ágora e nas ruas, perguntando aos passantes o que seria a virtude, a justiça, o bem, a piedade, etc., deixando-os enfurecidos e desesperados à medida que refutava cada uma das repostas que lhes ofereciam, provando que são ignorantes e, pior, nem reconhecem e nem sabem que o são.
Aristófanes: em sua obra As Nuvens ridiculariza Sócrates como sofista. Sócrates, na obra, dá consultas suspenso num cesto. No fundo, a obra revela a imagem que os atenienses tinham de Sócrates, como os não-intelectuais o percebiam e, rindo, deixavam escapar a cólera que ele provocava neles.
Aristóteles: o grande filósofo (que não conhecera pessoalmente Sócrates) diz que o filósofo ateniense é o criador da ciência. Ressalte-se que, para os gregos, ciência é a episteme, ou seja, conhecimento das coisas por meio de conceitos universais e necessários. A preocupação socrática, segundo Aristóteles, volta-se exclusivamente para a ética: a virtude, o bem e a justiça. Sócrates coloca a ciência a serviço da moral, ou seja, a moral depende da razão e, com isso, torna-se o primeiro filósofo racionalista.
Platão: foi o discípulo mais destacado de Sócrates e, com certeza, é a mais respeitável fonte de conhecimento da vida e do pensamento de seu mestre. Platão viu em Sócrates o filósofo por excelência, aquele que não somente ensinou Filosofia, mas a viveu; é o fundador da filosofia especulativa, o adversário dos sofistas. Note-se que nas obras de Platão, a maioria escrita em formas de diálogos, a figura central é Sócrates.
AS TEMÁTICAS CENTRAIS DO PENSAMENTO SOCRÁTICO
Sócrates não era um metafísico, era antes um “médico” das almas. Não estava empenhado e preocupado em construir um sistema filosófico de compreensão da realidade, mas fazer com que as inteligências trabalhassem. Segundo Reale (2007, p. 91-93), as principais temáticas de seus discursos e ensinamentos foram:
O homem é sua alma: a sabedoria humana de que Sócrates se diz mestre consiste na busca de um fundamento da vida moral, ou seja, de uma justificação filosófica para o reto agir. Este agir consiste na própria essência humana; neste sentido, Sócrates se coloca em oposição aos sofistas, para quem o reto agir não nascia da essência humana, mas das convenções. Ao afirmar que a essência do humano é agir corretamente, o ateniense apresenta uma máxima: “O homem é sua alma”. Por alma deve-se entender a
consciência, a personalidade intelectual e moral e daqui a máxima que, segundo a tradição, Sócrates visualizou no portal do Oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”.
A moral é fundada sobre a alma: se o homem é sua alma, a virtude do homem se atua com a “cura da alma”, fazendo com que ela se realize da melhor forma possível. E como a alma é atividade cognoscitiva, a virtude será essencialmente potencialização dessa atividade, ou seja, será “ciência”, “conhecimento”. O corpo, porém, como se apresenta nessa discussão? Dado que o corpo é instrumento da alma, também os valores ligados ao corpo serão instrumentais em relação aos da alma e, portanto, a eles subordinados.
Intelectualismo ético: se a virtude é ciência, temos duas consequências: a) existe uma só virtude, que é, ao mesmo tempo, o mínimo denominador comum e o fundamento de todas as múltiplas virtudes em que o grego acreditava; b) ninguém pode pecar voluntariamente, porque quem peca se engana sobre o valor daquilo a que a própria ação tende; considera um bem aquilo que é mal, aquilo que é bem apenas na aparência. Bastaria mostrar a quem erra a verdade, e esse corrigiria o próprio erro. Em uma palavra: uma pessoa age de maneira correta porque conhece; se está na ignorância, agirá de maneira equivocada. A liberdade: ainda no tocante à alma humana, emana a temática da liberdade, entendida como liberdade interior e, em última análise, como “autodomínio”. Uma vez que a alma é racional, ela alcança sua liberdade quando se livra de tudo o que é irracional, ou seja, das paixões e dos instintos. Dessa forma, o homem se liberta o mais possível das coisas que pertencem ao mundo externo e que alimentam suas paixões.
A felicidade: também a felicidade assume valência espiritual e se realiza quando na alma prevalece a ordem. Tal ordem se realiza justamente mediante a virtude. Dessa forma, afirma-se o princípio ético que a virtude é prêmio para si mesma e deve ser buscada por si mesma.
A não-violência: diante do exposto, assume relevo considerável o tema da “persuasão” e da educação espiritual. Nas relações com os outros, a violência jamais vence: o verdadeiro vencer consiste em “convencer”.
A teologia: Sócrates também teve uma particular concepção de Deus, deduzida da constatação de que o mundo e o homem são constituídos de modo tal – isto é, segundo tal ordem e tal finalidade – que exige uma causa adequada. Esta Causa é justamente Deus, entendido como inteligência ordenadora e providência. Uma providência que, porém, não se ocupa do homem individual, mas do homem em geral, fornecendo-lhe o que lhe permite a sobrevivência. Todavia, enquanto Deus é bom, ocupa-se, ao menos indiretamente, também do homem bom, como acontece no caso de Sócrates com a voz divina que lhe indica algumas coisas a evitar.
O MÉTODO SOCRÁTICO
Segundo Marilena Chauí (1994, p. 144), com Sócrates a filosofia começa a falar em método e ciência (episteme). Se há uma episteme, então se faz necessário um “caminho organizado” (método) para se alcançar a episteme. O método socrático, então, se efetua mediante o diálogo. Consta de duas partes: a) Protréptico: em grego significa exortação; é o momento em que Sócrates convida o interlocutor a filosofar, a buscar a verdade, a “examinar a própria alma”, segundo a expressão de Sócrates.
b) Elenkós: em grego significa indagação. Ao comentar as respostas dadas pelos seus interlocutores, Sócrates volta a indagá-los, caminha com o questionado até encontrar a definição do que realmente estão conversando. O elenkós é dividido em duas partes e são essas que, comumente nos livros e manuais, são chamadas de método socrático:
Ironia: feita a pergunta, Sócrates comenta as várias respostas que a ela são dadas, mostrando que são sempre preconceitos recebidos, imagens sensoriais percebidas ou opiniões subjetivas e não a definição buscada; no fundo, Sócrates refuta com a finalidade de quebrar a solidez aparente dos preconceitos. “A ironia é a característica peculiar da dialética socrática, não apenas do ponto de vista formal, mas também do ponto de vista substancial. Em geral, ironia significa ‘simulação’. Em nosso caso específico, indica o jogo brincalhão, múltiplo e variado das ficções e dos estratagemas realizados por Sócrates para levar o interlocutor a dar conta de si mesmo” (REALE, 2007, p. 101).
Maiêutica: Sócrates, ao perguntar, vai sugerindo caminhos ao interlocutor até que este chegue à definição procurada e Sócrates chama esse momento de maiêutica, isto é, arte de realizar um parto, no caso, parto de uma ideia verdadeira. Sócrates afirmava que a alma está “prenhe de verdade” e deve dar à luz o saber. Percebe-se que ele exerce a mesma profissão de sua mãe, com a diferença de que ele não faz nascer corpos, mas espíritos. O caminho do espírito para a verdade é o raciocínio e Sócrates serve-se do método da indução para isso.
IDEIAS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA SOCRÁTICA: SÍNTESE
Dos diálogos platônicos Laques e Mênon, podemos concluir as ideias fundamentais da filosofia de Sócrates:
Não é possível definir uma virtude sem definir a essência da virtude (areté), isto é, a virtude é uma totalidade que deve estar presente em todas as suas partes.
Não é possível separar virtude e ciência, virtude e saber, virtude e razão; a virtude é uma forma de conhecimento (a mais alta, diga-se de passagem). Agimos virtuosamente porque conhecemos e sabemos o que é a virtude.
A essência da alma é a razão; a ignorância é a doença da alma e origem de todos os vícios. A razão é a capacidade para chegar aos conceitos pela distinção entre aparência sensível e
realidade, entre opinião e verdade, entre imagem e conceito. A razão é o poder da alma para conhecer as essências das coisas.
A alma é diferente do corpo. É a inteligência enquanto reflexão (conhecimento de si mesma) e interrogação sobre a verdade e realidade das coisas: a alma é o poder intelectual para descobrir, em si mesma, e por si mesma, a verdade e para dar, a si mesma, e por si mesma, as regras da vida ética virtuosa.
A Filosofia trata das qualidades morais e políticas dos homens e os meios de conhecê-las. A finalidade da vida ética (Filosofia) é a felicidade e esta se encontra na autonomia, isto é, na
capacidade do homem para, por meio do saber, dar a si mesmo as suas leis e regras de conduta. OS SOCRÁTICOS MENORES
De acordo com Reale (2007, p. 105), os Socráticos Menores (séculos V a IV a.C.) retiraram da mensagem de Sócrates, às vezes, alguns conceitos éticos e, outras, alguns elementos lógicos, desenvolvendo outras teorias e reflexões a partir do filósofo morto pela democracia ateniense.
Foram todos discípulos diretos de Sócrates e são chamados “menores” porque desenvolveram de modo parcial o pensamento de seu mestre. Citamos os seguintes socráticos menores:
a) Antístenes: fundador da chamada Escola Cínica, desenvolveu os temas éticos da liberdade e do autodomínio.
b) Aristipo: fundou a Escola Cirenaica, afastou-se do mestre e afirmava que o sumo bem, estava no prazer.
c) Euclides: iniciador da Escola Megárica, assumiu alguns princípios da Escola de Eléia, identificando o bem com o uno e desenvolveu a técnica lógico-refutatória de Sócrates.
d) Fédon: fundador da Escola de Elida, retomou tanto o aspecto lógico-dialético como o ético do mestre, mas sem desenvolvimentos de particular importância.
Segundo Maritain (1978, 51), Sócrates é um admirável iniciador da Filosofia. Deu o impulso, porém, não alcançou o fim; e quando morreu, tudo fica inacabado, visto que o método não é suficiente. E mais: segundo o pensador francês, além da ética, Sócrates não possuía doutrina alguma. A consumação doutrinal de sua obra e a instauração da verdadeira Filosofia – aquela que pensa a existência de maneira sistemática, racional, rigorosa e radical – estavam reservadas a Platão e Aristóteles.
BIBLIOGRAFIA
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus, 2007. DORION, L. Compreender Sócrates. Petrópolis: Vozes, 2006.
MONDOLFO, R. Sócrates. São Paulo: Mestre Jou, 1972.
PLATÃO. Diálogos. Tradução. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 1975.
PERÍODO SISTEMÁTICO
PLATÃO: O NASCIMENTO DA RAZÃO OCIDENTAL
O CONTEXTO DE PLATÃO
Após as Guerras Pérsicas, no século V a.C. – nas quais Esparta e Atenas se uniram para derrotar Dario e Xerxes –, a Grécia iniciou a busca da sabedoria, ou seja, a Filosofia. Os primeiros filósofos, como já vimos, eram astrônomos.
Com o progresso econômico de Atenas, os gregos se tornaram suficientemente audazes para tentar explicações naturais para processos e acontecimentos até então atribuídos à ordem sobrenatural; nasce, então, a Filosofia. De modo geral, é esse o contexto de Platão: consolidação de Atenas, surgimento da Filosofia, pré-socráticos, a presença dos sofistas e o declínio da democracia.
VIDA
Filho de Aristo e de Perictona de Atenas, Platão nasceu em 427 e morreu em 347 a.C. Sua família pertencia à antiga aristocracia ateniense; recebeu a educação clássica dos jovens aristocratas de Atenas: o ginásio (para ali se tornar o kalós kagatós, ou seja, o guerreiro belo e bom); frequentou os sofistas (para aprender a arte da retórica) e, aos vinte anos, começou a frequentar o círculo de Sócrates, tornando-se seu discípulo mais importante.
O encontro de Platão com Sócrates representara um momento decisivo em sua vida. Ele tinha sido criado com conforto e, talvez, em meio à riqueza; era um jovem belo e vigoroso – chamado de Platão, dizem, devido à largura dos ombros; distinguia-se como soldado [...]. Uma adolescência dessas não costumava produzir filósofos. Mas o espírito sutil de Platão descobriu um novo prazer no jogo dialético de Sócrates. (DURANT, 2000, p. 39).
A presença de Sócrates em sua vida foi tão marcante que certa vez afirmou: “Agradeço a Deus por ter nascido grego e não bárbaro, homem livre e não escravo, homem e não mulher, mas, acima de tudo, por ter nascido na era de Sócrates” (PLATÃO apud DURANT, 2000, p. 39).
Platão estava com 28 anos quando Sócrates morreu. A morte de seu mestre marcou-o profundamente a ponto de enchê-lo de desprezo pela democracia, a qual deveria ser substituída pelo governo dos mais sábios e melhores, ou seja, dos filósofos. Assim, a preocupação de sua vida passou a ser a procura de um método pelo qual os mais sábios e melhores pudessem ser descobertos e, depois, habilitados e persuadidos a governar. Como era discípulo de Sócrates, decidiu, após a morte do mestre – por medo de represálias –, correr o mundo; em 399 a.C. foge de Atenas, conhece a comunidade pitagórica na Magna Grécia e entra em contato com a filosofia de Parmênides e Heráclito. Perambulou durante 12 anos, absorvendo cultura e vida.