FERREIRA GULLAR
O ELECTRA II Qualquer coisa eu esperaria ver no céuda rua Paula Matos aquele dia por volta das dez da manhã
menos um Electra II da Varig (entre os ramos quase ao alcance das mãos) num susto! II Foi um susto vê-lo: vasto pássaro metálico azul parado (um segundo) entre os ramos rente aos velhos telhados
àquela hora da manhã, de dentro de meu carro.
III Electra II é para mim ponte-aérea Rio-S.Paulo é cartão de embarque na mão e vento nos cabelos é subir a escada e voar Electra II para mim é a cidade do alto a ponte e a salgada baía e a Ilha Fiscal antes de pousar e sentir depois o odor do querosene ardente Natural pois encontrá-lo no aeroporto Santos Dumont mas nunca
na rua Paula Matos ainda que
acima da minha cabeça (e das casas)
espiando entre os ramos como se me buscasse pela cidade IV Os moradores da rua ignoram que naquele instante um poema tenha talvez nascido não escutaram seu estampido conversavam na sala na cozinha ou preparando o almoço e no quintal alguém ergue um jirau para plantas Se fosse um assalto com tiros um crime de morte na esquina todos saberiam mas na rua havia aquela hora muito barulho: de cão de moto e do próprio avião que gerou o poema:
são vozes do dia que ninguém estranha: como o trepidar do tempo que escorre da torneira por isso se um poema nasce
ali não se percebe e mesmo se naquele momento fizesse total silêncio na rua ainda assim ninguém ouviria detonar o poema
porque seu estampido (como certos
gritos)
por alto demais não pode ser ouvido Pode ser que
um gato ou um cão e talvez o canário — de melhor ouvido — tenham escutado a detonação. Rio, fev./abril 91
FRANCISCO ALVIM
ELEFANTEO ar de tua carne, ar escuro anoitece pedra e vento.
Corre o enorme dentro de teu corpo o ar externo
de céus atropelados. O firmamento, incêndio de pilastras,
não está fora — rui por dentro. Reverbera no escudo o brilho baço do túrgido aríete
com que distância e tempo enfureces. Teu pisar macio, dançarino,
enobrece os ventres frios, femininos.
A tua volta tudo canta. Tudo desconhece. CÉU
Um céu, que não existe
ou talvez exista na França de Poussin refratado nos interiores de Chardin talvez em Turner
talvez em Guignard certamente em Dante
ao chegar na ilha do Purgatório A felicidade que a luz traz solta, nua neste céu
ENTRE A CARNE E O SONHO
A poesia quer tudo, porque pode tudo. O direito e o avesso. O dizível e o indizível. É tão desejante a poesia e tamanho o seu poder, que ela pode até mesmo o não querer, o não poder. E este jogo de contrários, de triunfo e fracasso no dizer, está em todo o poema e em cada uma das partes — concretudes, abstrações — que o conformam.
Escritos traz essa tensão, da coisa e do avesso da coisa. Do dito, não dito. A poesia confrontada com o núcleo de seu desejo: vestir de linguagem a realidade. A coisa espelhada no espelho.
Tamanha ânsia de dizer, para dizer da vida, do nada? A poesia é veleidade? Pois o real está além, a anos-luz de distância de toda ambição de palavra. Longe da palavra, é certo, mas dentro da carne, essa matéria sem nome, densa, escura, que só a dor penetra. Mais forte que o sonho é a carne. A poesia só pode dizer do nada.
JOSÉ PAULO PAES
ANAMNESE
Só souberam que o era após a Queda.
Como caíram de muito alto, mal lembravam de onde vinham.
Para que não se apagasse de todo a tenuíssima lembrança, pintaram-na primeiro na parede das cavernas. Levaram-na mais tarde para os campos de cultivo e a
colheita das vinhas.
Sobre ela assentaram as colunas do templo. Com ela acenderam a pira dos sacrifícios.
Mesmo por trás da grossa muralha dos castelos, algum pequeno horto lhe estava sempre consagrado. Tampouco ficou esquecida nos jardins geométricos dos
palácios e nos estranhos animais das tapeçarias.
Em meio à floresta das chaminés fabris e sobre a rede fluvial dos esgotos, subsistiu com grotesca nostalgia.
Dizem que foi sob os escombros até agora fumegantes da Utopia que a sua fragílima semente pereceu enfim.
Isso não muito depois de o gigantesco cogumelo de fogo, o mais sinistro arremedo da sua cornucópia, ter tornado supérfluo o próprio esforço de lembrar.