UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO
RIO GRANDE DO SUL - UNIJUÍ
DHE - DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO
CURSO DE PSICOLOGIA
ELIANE MARIA STEIN
A FALA DE UM SUJEITO... UM CORPO QUE ADOECE
Santa Rosa (RS) 2015
ELIANE MARIA STEIN
A FALA DE UM SUJEITO... UM CORPO QUE ADOECE
Trabalho de conclusão de curso
apresentado ao curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, como requisito parcial para obtenção do título de Psicólogo. Departamento de Humanidades e Educação – DHE.
Orientadora: Kenia Freire
Santa Rosa (RS) 2015
O Velho do Espelho
Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho... Meu Deus... Meu Deus...
Parece meu velho pai – que já morreu! Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar duro interroga: “O que fizeste de mim?!”
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga... Que importa?! Eu sou ainda Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos em fim lá se foram por terra. Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra – Vi sorrir, nesses cansados olhos um orgulho triste...
DEDICATÓRIA
Dedico este Trabalho de Conclusão de Curso especialmente a meu Anjo da guarda, que me deu suporte e amparo, com o qual me senti protegida para percorrer os caminhos da Psicanálise.
A meus pais (in memorian) Sílvia Ratz Stein e Cirino Aloísio Stein, com os quais aprendi a brindar a vida com dignidade, sensibilidade e entusiasmo.
E por último, mas, não menos importante ao meu grande companheiro Carmo A. Roth, que desde o início dos meus estudos esteve presente e proporcionou condições para concretizar o meu desejo de colar Grau em Psicologia.
AGRADECIMENTO
Desejo imensamente expressar gratidão a todos aqueles que de uma forma ou de outra contribuíram para a realização deste Trabalho de Conclusão de Curso.
A minha irmã Tânia e especialmente a minha irmã Jaqueline, pelo seu amor ensinando-me maneiras de enfrentar dificuldades que surgiram.
As minhas amigas Lurdes Zerbin e Ivonete Pereira, que me incentivaram e deram as “mãos” no momento oportuno.
Aos meus amados sobrinhos: Yuri, Bernardo e Pedrinho, e ao meu cunhado Valdeci Rodrigues. Que me acompanharam nessa fase tão importante de minha vida.
A querida Josiane Roth, pelo carinho, acolhimento e incontável ajuda.
A Lenir Giovelli e Maida Brum pelo carinho e amizade. Ao hospital Vida e Saúde e a equipe do setor de oncologia pela oportunidade do estágio de Psicologia: Clínica em Extensão na Instituição Hospitalar.
A minha dedicada orientadora Kenia Freire.
A professora Sílvia Colombo, pelo carinho em aceitar participar da banca avaliadora.
RESUMO
Este trabalho intitula-se A Fala De Um Paciente... Um Corpo Que Adoece e versa a respeito da condição do paciente ostomizado no que se relaciona as questões do corpo, da imagem corporal e do esquema corporal, após o paciente passar pela experiência da intervenção cirúrgica denominada ostomia. Esta permite criar uma comunicação entre o órgão interno e o exterior corporal, com o objetivo clínico de possibilitar a eliminação de “restos” orgânicos que seriam normalmente expulsos do organismo através do processo digestivo finalizado pelo funcionamento de um curso intestinal saudável ou, então, pelo sistema urinário. Segundo o Departamento de Psiquiatria UNIFESP/EPM (2000), o paciente ostomizado enfrenta mudanças em sua vida cotidiana, não só no nível fisiológico, mas, também no nível psicológico, emocional e social. Com a intervenção cirúrgica estes pacientes passam a ter dificuldades em lidar com esta nova condição que lhe impõem o uso de uma bolsa coletora do lado externo do corpo. A partir daí se estabelece uma nova relação com o próprio corpo. A imagem corporal é a impressão que se tem de si mesmo, subjetivamente, baseada em percepções internas e externas e nos laços que se estabelecem no convívio social. Os aspectos da dificuldade de reconhecimento da própria imagem diante do espelho ocorre devido à falha narcísica desta imagem; frente ao novo corpo que a doença inaugura, bem como a dor. O trabalho está fundamentado especialmente pela Psicanálise, a partir de autores como Freud, Lacan, Nasio e Levin, entre outros.
Palavras-chave:
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 6
1 OSTOMIA E SUBJETIVIDADE ... 7
1.1 CARACTERIZAÇÃO DA CONDIÇÃO OSTÔMICA ... 7
1.2 SUJEITO E OSTOMIA: DE QUE CORPO SE TRATA? ... 8
2 A CONDIÇÃO DA OSTOMIA DIANTE DE UM CORPO SUBJETIVADO ... 24
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 36
INTRODUÇÃO
A ostomia é uma intervenção cirúrgica que permite criar uma comunicação entre o órgão intestinal e o exterior corporal, com a finalidade de eliminar dejetos do organismo sem a necessidade do trânsito do bolo fecal pela área afetada ou em tratamento. A nova abertura que se cria com o exterior é denominada de ostoma. A pesquisa sobre esta temática surge a partir do desejo de adquirir maior conhecimento sobre as questões que cercam a condição de pacientes ostomizados, desde o momento em que este apresenta lesões intestinais severas e tem como um dos poucos recursos de restabelecimento a cirurgia até a sua trajetória de vida após este procedimento médico-corporal.
Durante o percurso de formação acadêmica, houve possibilidade de estabelecer contato com pacientes ostomizados durante uma experiência de Estágio Curricular em um Hospital Geral. Neste momento nos indagamos: a intervenção da ostomia produziria alteração à sua imagem corporal? Como se construiria a relação com esta nova condição corporal? Como se daria sua relação com a vida? Como se articularia sua relação com a família e com o social, uma vez que esta nova condição inaugura uma nova realidade corporal que, por vezes, se faria evidente nas relações interpessoais estabelecidas?
Para realizarmos este estudo utilizaremos os referenciais teóricos da medicina e da abordagem psicanalítica embasada, fundamentalmente, em Sigmund Freud e Jacques Lacan. Ainda faremos uso de artigos e outras publicações de reconhecimento científico que abordam esta realidade. Assim, o trabalho está estruturado em dois capítulos. No primeiro capítulo “Ostomia e Subjetividade” aborda-se a caracterização da condição ostômica, discorrendo sobre o que é uma ostomia e um ostoma; bem como as mudanças que pacientes que passam por esse tipo de intervenção estão sujeitos tanto no nível orgânico quanto psicológico. Também se coloca a pulsão, o narcisismo e o estágio do espelho em suas implicações na constituição do sujeito para que se possa definir de que corpo se trata. No segundo capítulo - “A condição da ostomia diante de um corpo subjetivado” - trabalha-se os conceitos de imagem corporal, de esquema corporal, de eu ideal e ideal do eu. E por fim apresentam-se as considerações finais acerca do trabalho.
1OSTOMIAESUBJETIVIDADE
1.1CARACTERIZAÇÃO DA CONDIÇÃO OSTÔMICA
Segundo a Associação Paranaense dos ostomizados (APO), ostomia é uma intervenção cirúrgica que permite criar uma comunicação entre o órgão interno e o exterior corporal, com o objetivo clínico de possibilitar a eliminação de “restos” orgânicos que seriam normalmente expulsos do organismo através do processo digestivo finalizado pelo funcionamento de um curso intestinal saudável ou, então, pelo sistema urinário. O trânsito dos dejetos orgânicos, com abertura para relação com o exterior corporal, dá-se através de um recurso de um apêndice sob a forma de prótese ou abertura corporal denominado como ostoma. A ostomia que atinge o aparelho digestivo chama-se de ostomia digestiva e o conteúdo eliminado para o exterior são as fezes. Já a ostomia urinária é aquela que afeta o aparelho urinário e o conteúdo eliminado é a urina. Os motivos para a criação de um ostoma são variáveis, podem ser por perfurações do abdômen, câncer no reto, no intestino grosso e na bexiga. Pessoas ostomizadas são portadoras geralmente de uma bolsa coletora do conteúdo a ser eliminado pelo ostoma.
Segundo o Departamento de Psiquiatria UNIFESP/EPM (2000), o paciente ostomizado enfrenta mudanças em sua vida cotidiana, não só no nível fisiológico, mas, também no nível psicológico, emocional e social. Tais mudanças produzem sofrimento, incerteza quanto ao futuro e medos relacionados às possibilidades de rejeição no estabelecimento de relações interpessoais. O paciente submetido ao procedimento de ostomia precisa se reposicionar diante das transformações resultantes desta intervenção, o que pode lhe causar grande impacto, desde a perda de um órgão altamente vital até a consequente privação do controle fecal e da eliminação de gases. Um procedimento assim tão agressivo altera tanto a sua fisiologia, quanto a sua autoestima, imagem corporal, sexualidade, além de tantas outras modificações em sua vida. Sendo assim, leva o paciente à realização de grandes transformações em sua subjetividade e em seus laços sociais.
Para a United Ostomy Association (2004), a adaptação à condição de portador do estoma e da bolsa coletora é um processo longo e contínuo e está
relacionado à doença de base, ao grau de incapacidade, dos valores preconcebidos e ao tipo de personalidade do paciente. O uso da bolsa coletora pode representar uma mutilação sofrida apontando para a perda de controle, das eliminações fisiológicas e de seu corpo. Isto pode ter efeitos nas suas capacidades produtivas, na sua imagem, ou seja, na sua vida. A ostomia implica não somente o uso de uma bolsa coletora, mas fundamentalmente uma necessidade do sujeito se haver com sua própria imagem e com sua condição subjetiva.
Uma ostomia pode ser um sério limitador da qualidade de vida do sujeito. Os pacientes ostomizados passam por alterações corporais que influenciam a autoestima e as relações de convívio social. Sabe-se que as implicações emocionais e psicológicas variam de um sujeito para o outro, de acordo com uma série de fatores particulares relativos à estrutura psíquica e historia de vida.
Para alguns pacientes, as mudanças na vida diária causadas pela ostomia são fatores que dificultam o processo de aceitação de uma realidade até então desconhecida. Em consequência dessas mudanças, o corpo que o paciente constituiu pode passar por um processo de estranhamento diante desta nova realidade corporal que se impõe. Quais seriam os possíveis impactos que a ostomia poderá vir a causar à condição psíquica e à imagem corporal? O desdobramento deste texto procura elaborar possíveis análises a esta questão.
1.2SUJEITO E OSTOMIA: DE QUE CORPO SE TRATA?
Para tentar responder esta questão, é elaborada outra questão que norteará este momento de trabalho, a saber: o que é um corpo na condição humana e como ele atravessa a experiência da ostomia?
Segundo Freud (1923), a parte mais material e visível do nosso “eu” é
o corpo, sendo, portanto, o ego1, antes de tudo, um ego corporal. O autor utiliza
o termo ego corporal quando fala do corpo como sendo a sede das pulsões e o
1
Queremos assinalar que mantivemos o termo ego por ser uma citação. No entanto, quando se tratar de escrita nossa, usaremos o termo “eu.”
lugar das representações, assim como lugar do prazer e também de condição objetal. Ao trabalhar em sua clínica diante dos sintomas histéricos, Freud se lança às questões corporais desencadeadas por problematizações psíquicas.
Conforme Jerusalinsky (1993, p.134) “ao mesmo tempo em que no sintoma da paralisia histérica, algo é mostrado aos olhos, algo também permanece oculto por ele: o seu nexo com o sofrimento subjetivo”. Para reestabelecer essa ligação, é preciso escutar o paciente, pois é somente a partir dos significantes que se apresentam que o sintoma passa a ter sentido. No entendimento de Jerusalinsky (1993) foi a isto que Freud referiu-se. Para a mesma autora, “os sintomas que dizem respeito ao corpo, não ficam do lado de fora, pois nesta substituição da fala pelo sintoma no corpo, dizem algo do sujeito, estando, portanto, tomados na dimensão da linguagem”.
Para Jerusalinsky:
Se a cura vai na direção de que aquilo que no corpo fica paralisando o sujeito, possa desdobrar-se em uma rede discursiva, e justamente porque o que é da ordem da manifestação corporal encontra-se intimamente intrincado com a linguagem, dado que é somente a partir dela que os membros deste corpo, seus órgãos ou até os seus gestos assumem uma significação. Não há para eles significação possível fora da linguagem ou anterior as marcas desta. Não há significação possível para eles fora do texto de um sujeito (JERUSALINSKY, 1993, p. 134).
Assim, ao abordar o corpo, Freud o articula à condição psíquica; apresentando a hipótese de que na esfera humana o corpo é portador de marcas inerentes ao processo de subjetivação. Neste contexto, insere o conceito de corpo enquanto articulado aos movimentos característicos da pulsão e do narcisismo. Considera a pulsão como o limite entre o psíquico e o somático; e o narcisismo secundário como constituinte de um eu e regulador das relações entre o sujeito, seu corpo e os objetos.
O conceito de “pulsão” (Trieb) é fundamental na psicanálise. Conforme Freud (1915a, n.p), a pulsão é: “[...] um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, (...) um representante psíquico dos estímulos que provém do interior do corpo e alcançam a alma.” A pulsão tem sua origem no interior do organismo exercendo uma ação constante sobre o psiquismo e da qual é impossível escapar. No mesmo texto Freud (1915ª) examina certos termos
utilizados com referência aos elementos que constituem a pulsão, por exemplo, sua ‘pressão’, sua ‘finalidade’, seu ‘objeto’ e sua ‘fonte’.
Por pressão (Drang) podemos entender seu fator motor ou a quantidade de força de trabalho que ela representa. A característica de exercer pressão é a própria essência da pulsão. A finalidade ou o alvo (Ziel) de uma pulsão é sempre satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte da pulsão. O objeto (Objekt) é a coisa através da qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável numa pulsão. O objeto não é fundamentalmente algo estranho: poderá também ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. Podendo ser modificado quantas vezes for preciso no transcorrer dos destinos que a pulsão sofre durante sua existência. Pode ocorrer ainda, que o mesmo objeto sirva para a satisfação de várias pulsões ao mesmo tempo. Por fonte (Quelle) de uma pulsão compreende-se o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental por uma pulsão.
Para Freud (1915a) a pulsão é como uma força que tem sua origem no corpo, mais exatamente em partes dele que são as fontes das pulsões e que tendem à satisfação imediata, seguindo o ordenamento do princípio do prazer,
que se caracteriza por funcionar pelo processo primário2 buscando atingir a
menor tensão possível.
Portanto, pela ação de satisfação das pulsões constitui-se um circuito cuja extensão, mesmo mínima, já motiva uma perda que acarreta uma vicissitude do regime pulsional, que é o da determinação da sua parcialidade. Ou seja, há sempre algum nível de tensão que não é nem abolido e nem abrandado. Ocorre, então, que o circuito pulsional se realiza tomando uma forma dentre uma diversidade de vicissitudes para chegar ao seu destino de satisfação parcial da pulsão. Neste mesmo texto o autor aponta quatro vicissitudes fundamentais que determinam o destino da pulsão: a reversão em seu oposto, o retorno sobre o próprio eu do indivíduo, a repressão e a sublimação.
2
Conforme Laplanche e Pontalis (2001, p. 371) “[...] O processo primário caracteriza o sistema inconsciente e o processo secundário caracteriza o sistema pré-consciente-consciente. [...] A oposição entre processo primário e processo secundário é correlativa entre princípio de prazer e princípio de realidade”.
Considerando a existência de forças motoras que evitam que uma pulsão seja elevada até o fim de forma não modificada, também podemos considerar essas vicissitudes como modalidades de defesa contra as pulsões. A reversão de uma pulsão ao seu oposto ocorre em dois processos diferentes: uma mudança da atividade para a passividade e uma reversão de seu conteúdo.
Freud aborda cada caso separadamente, explicando uma mudança da atividade com os pares sadismo e masoquismo e o prazer de ver e de mostrar (escopofilia-exibicionismo), e exemplifica a reversão de seu conteúdo, assegurando que seu único caso é a mudança do amor em ódio. Quanto ao retorno sobre o próprio eu, pouco se diferencia do primeiro caso, uma vez que a transformação em passividade coincide com a mudança que ocorre no destino da pulsão quando esta toma o eu como objeto. Para a proposta deste trabalho não interessa o aprofundamento da pesquisa sobre a reversão de uma pulsão, ainda que este elemento esteja interligado à condição pulsional que atravessa a condição corporal.
Uma das vicissitudes que uma pulsão pode sofrer é encontrar resistências que procuram torná-la nula. No texto Repressão (1915b) Freud afirma que “Em certas condições, [...] o impulso passa então para o estado de ‘repressão’ (Verdrängung).” Pois outro destino possível da pulsão é encontrar resistências a sua satisfação por meio do mecanismo da repressão, pois, embora a satisfação da pulsão seja em si mesma prazerosa, a descarga pode ser incompatível com as reivindicações feitas por uma das instâncias psíquicas, originando um desprazer cuja intensidade excede o prazer da satisfação.
Para a psicanálise, o bebê nasce na condição de infans; o que implica dizer que ele ainda não enfrentou nenhum conflito estruturante do seu processo de subjetivação. Para um bebê constituir-se é necessária a presença
de um Outro3, que represente o simbólico que encarne a função materna para
este bebê. Esse processo de desenvolvimento vai ocorrer a partir do vínculo estabelecido entre o bebê e o Outro, que vai estabelecer um lugar de onde o bebê vai poder iniciar o seu reconhecimento enquanto sujeito e,
3
Para Lacan, o conceito de Outro não se refere a uma pessoa física e sim a uma instância que dá conta da dimensão simbólica, o Outro pode ser compreendido como a linguagem, equivalente a cultura, ao conjunto de marcas que preexistem e constituem a história de um sujeito.
consequentemente, sua estruturação subjetiva. Trata-se da relação de objeto formada entre mãe e bebê, no exercício materno de assumir um lugar simbólico através do discurso, para marcar subjetivamente o corpo do bebê.
Assim, quando o bebê chora, a mãe escuta esta manifestação como fala articulada as trocas humanas inerentes à linguagem, a mãe responde a esse choro pegando o filho no colo, por exemplo, oferecendo-se enquanto “seio” para atender sua necessidade convertida em demanda. A mãe supõe estar respondendo àquilo que o bebê estaria lhe pedindo. O bebê necessita de alguém que exerça a função materna (a mãe ou quem cuide da criança) para que a partir daquilo que lhe é oferecido ele encontre o objeto que o satisfaça. É somente pela relação com o desejo do Outro, através da linguagem, que o sujeito pode ter acesso ao saber que permite que ele escolha o objeto de satisfação e que se define como objeto através do qual se inscreve a experiência do prazer e do desprazer.
Conforme Levin (1995), não nascemos com o corpo constituído, sendo o Outro que tem a função de apresentar o corpo à criança através da linguagem:
Como se apresenta o corpo à criança? É o Outro que vai criando nesse puro corpo ‘coisa’: buracos, bordas, protuberâncias, tatuando deste modo um mapa corporal produto do desejo do Outro, que o erogeinisa e funcionaliza, ou seja, cria-lhe uma falta no corpo, uma maneira, uma forma de que lhe falte algo. Estas faltas primordiais geram uma queda deste corpo ‘coisa’, ‘carne’, puro real, que ao cair reencontra-se sujeito ao Outro. Estas marcas, estes modos de que falte algo no corpo, transformam-no num corpo erógeno e simbólico (LEVIN, 1995, p. 52).
Para o mesmo autor, a mãe (Outro) apresenta o corpo ao bebê e por sua vez a criança determina na mulher sua condição de mãe. A criança é nomeada como filho e a mulher como mãe. Porém, isso depende do personagem paterno o qual tem como função a possibilidade de nomeação que afirma a falta na mãe. A lei do pai é afirmada na relação mãe-criança, o que permite a circulação do desejo (corpo castrado-corpo simbólico). Para Levin (1995), a criança conhece seu corpo através de um Outro faltante, o que determina que algo também falta a criança.
Conforme Levin (1995), a necessidade da criança depois de passar pelo Outro se transforma em demanda. O estado de necessidade do bebê é
transformado pelos significantes que vem do Outro que lhe dá o dom da linguagem. “Daí em diante o que retorna constantemente já não é o corpo da necessidade, mas o que um sujeito deseja através do seu corpo” (p. 54).
Para Levin (1995) é a partir dos cortes, das marcas e das inscrições que o Outro promove que o corpo subjetivado irá constituir-se. Neste processo, encontramos a articulação do corpo ao prazer e sua inscrição na lógica da sexualidade.
Em “Introdução À Metapsicologia Freudiana” (2000, p. 41-2) Garcia-Roza, observa que Freud “caracteriza o autoerotismo como um estado original da sexualidade infantil, anterior ao do narcisismo, no qual a pulsão sexual encontra satisfação sem recorrer a um objeto externo.” Seria uma forma inicial da sexualidade, que além de agir com independência de um objeto externo também é independente de qualquer função biológica. Pode-se pensar que
seria um estado caótico da sexualidade no qual as pulsões parciais4 procuram
satisfação no próprio corpo. É uma satisfação não unificada, sem articulação em relação às demais satisfações parciais, pura satisfação de órgão.
Em Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914), Freud introduz o conceito de narcisismo e analisa o lugar ocupado por ele no desenvolvimento sexual normal. No início do texto o autor questiona a relação entre o narcisismo e o autoerotismo, que havia sido anteriormente descrito como um estado inicial
da libido5. O próprio Freud responde:
No tocante à primeira questão, posso ressaltar que estamos destinados a supor que uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo — uma nova ação psíquica — a fim de provocar o narcisismo (FREUD, 1914, n.p.).
Conforme Garcia-Roza (2000, p. 42), “o que precisa ser adicionado ao autoerotismo, para formar o narcisismo é o eu (Ich)”. Antes de 1914 o narcisismo era vinculado à perversão, ou seja, a escolha do próprio corpo
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“[...] Cada um destes elementos se especifica por uma fonte (pulsão oral, pulsão anal) e por uma meta (pulsão de ver, pulsão de dominação)” (Laplanche e Pontalis, 2001, p 402).
5
“Energia postulada por Freud como substrato das transformações da pulsão sexual quanto ao objeto (deslocamento dos investimentos), quanto a meta (sublimação),e quanto a fonte da excitação sexual (diversidade das zonas erógenas)” (Laplanche e Pontalis, 2001, p 266).
como objeto de investimento amoroso. Após o texto Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914) o conceito passa a ser visto como forma necessária de constituição da subjetividade. Logo, o narcisismo passa a ser condição de formação do eu.
As distinções entre narcisismo e autoerotismo, estão a seguir explicadas através desses conceitos: narcisismo primário e narcisismo secundário. Freud (1914) passa a considerar os investimentos libidinais, com o ingresso dos termos libido egóica ou narcísica e libido de objeto e o conceito de ideal de ego.
O autor estuda o narcisismo avaliando particularmente os investimentos libidinais no estudo da psicose, apontando para a possibilidade da libido investir o ego, desinvestindo o objeto. Assim, o investimento do ego persiste. O mesmo autor estabelece um equilíbrio entre a libido do ego e a libido objetal afirmando que quanto mais uma é empregada, mais a outra se esvazia. Além de dar importância à posição dos pais na constituição do narcisismo primário, asseverando que o amor dos pais pelo filho equivale ao próprio narcisismo dos pais. Para Freud (1914) ocorre uma reprodução do narcisismo dos pais, projetando nele todos os sonhos renunciados. Desse modo, sua majestade o bebê os realizará, garantindo a imortalidade do eu. O primeiro narcisismo é o da criança que toma a si mesma como objeto de amor, antes de eleger os objetos externos; sendo esta uma fase atual à manifestação da primeira unificação do sujeito, da construção do ego (FREUD, 2014, n.p.).
O narcisismo secundário deriva de um retorno ao ego dos investimentos feitos sobre os objetos externos. A libido que antes investia o ego passa a investir objetos externos e depois volta a tomar a si, como objeto de amor. Pois, nunca existe uma renúncia completa do investimento da libido, seja no ego ou no objeto. A criança desiste de seu narcisismo primário, quando seu ego se vê afrontado por um ideal com o qual se compara, em função das exigências às quais é submetida pelo mundo externo, passa a perceber que a mãe, ou aquela pessoa que cuida, deseja além dela, ou seja, que não é tudo para ela. Seria a angústia de deixar de ser sua majestade o bebê. Surge então outro objetivo, o de recuperar o amor pleno do objeto, que por sua vez, só poderá acontecer através da satisfação das exigências do ideal do ego.
No mesmo texto de 1914, Freud assinala dois tipos de escolha de objeto: o tipo anaclítico (de ligação) e o tipo narcísico. No primeiro, a criança escolhe como objeto sexual as pessoas incumbidas de sua alimentação, cuidados e amparo, como já referido acima a mãe ou substitutos. No segundo tipo de relação, a narcísica, ela adota ela mesma como objeto de amor. Também neste texto Freud vai se referir ao conceito de Ideal do ego, ele afirma:
Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (self love) desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar a perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ideal do ego. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal (Freud, 1914, n. p.).
Freud (1914) é levado a examinar a relação entre a formação de um ideal e a sublimação e de um ideal e a idealização, sendo esta última um processo que diz respeito ao objeto. Pela idealização, esse objeto, sem nenhuma alteração em sua natureza, é exaltado na mente do indivíduo. A idealização é possível tanto na esfera da libido do ego quanto na da libido objetal. O mesmo autor traz como exemplo a supervalorização sexual de um objeto como sendo uma idealização do mesmo.
Assim, pode-se ponderar que a relação do narcisismo com as pulsões está no fato de que no narcisismo primário cada pulsão se satisfaz no próprio corpo. Já no narcisismo secundário, o sujeito concentra num objeto suas pulsões parciais, que até ali funcionavam através da modalidade autoerótica. A libido investe o objeto, pois a primazia das zonas genitais ainda não foi instaurada. Depois esses investimentos retornam para o eu, uma vez que a libido tomou o eu como objeto. Ocorre aqui uma reunião das pulsões parciais, articulando possibilidades de esboçar uma imagem corporal; na medida em que o eu se estrutura e se articula ao corpo.
Conforme Nasio (1997, p. 56-7), a noção de narcisismo possui destaque na teoria lacaniana, sendo a teoria do “estádio do espelho” representante do próprio nascimento do eu e da imagem corporal. Para Lacan
apud Nasio (1997, p. 57) o eu está ligado à imagem do corpo próprio. Destaca que inicialmente a criança vê sua imagem total refletida no espelho, porém há uma desarmonia entre essa visão global da forma de seu corpo - que precipita a formação do eu - e o estado de dependência e de impotência motora em que ela se encontra na realidade. Nasio (1997) observa que Lacan enfatiza nesse ponto a prematuridade e a condição de impotência da criança, o que seria a causa da alienação imaginária da criança ao espelho. Mas, ao mesmo tempo a criança antecipa, através da experiência do espelho, o domínio de seu corpo. Antes a criança vivenciava-se como um corpo despedaçado, agora ela se acha fascinada por essa imagem do espelho e se rejubila. Entretanto, para Lacan:
O Outro é o lugar no qual se situa a cadeia do significante que rege tudo aquilo que, do sujeito, poderá se fazer presente, é o campo desse ser vivente onde o sujeito tem que aparecer. E tenho dito que pelo lado desse ser vivente chamado à subjetividade manifesta-se essencialmente a pulsão (LACAN, 1985, p. 212).
O eu se forma através da imagem do Outro, sendo este último representado pelo espelho. Para Lacan:
A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (LACAN, 1998, p. 97).
A essa assunção jubilatória Lacan (1998, p. 97) vai designar de Eu-ideal: “trata-se da imagem ideal dela mesma, a qual ela jamais conseguirá unir-se”. Para Nasio (1997. p. 57), a criança identifica-se com essa imagem, toma-se por ela e conclui: “a imagem sou eu”, mesmo que, essa imagem toma-seja externa a ela.
Para Dör (1991, p. 79 - 80) a experiência da criança na fase do espelho organiza-se em torno de três tempos fundamentais, que pontuam a aquisição progressiva da imagem de seu corpo. No início tudo ocorre como se a criança percebesse a imagem de seu corpo como a de um ser real a quem ela procura apreender. Esta primeira fase é marcada por uma confusão primeira entre si e o Outro, o que se confirma na relação estereotipada que a criança tem com
seus semelhantes e que atesta sem dúvida, que no início, é no Outro que a criança se vivencia e se orienta. Neste primeiro tempo da fase do espelho fica evidente o assujeitamento da criança ao registro do imaginário. O segundo momento constitui um período decisivo no processo identificatório no qual a criança é paralelamente levada a descobrir que o outro do espelho não é um outro real, mas uma imagem. A partir daqui ela deixa de tentar apoderar-se da imagem, pois dá sinais de que agora sabe distinguir a imagem do outro da realidade do outro. O terceiro momento dialetiza as duas etapas anteriores do estádio do espelho. Agora além de a criança estar segura de que o reflexo do espelho é uma imagem, ela adquire a convicção de que não é nada mais do que a uma imagem, a sua própria imagem. Sendo que ao reconhecer-se nesta imagem, a criança recupera a dispersão do corpo esfacelado numa totalidade unificada, que é a representação do corpo próprio.
Para DÖR (1991) “a imagem do corpo é, portanto, estruturante para a identidade do sujeito que através dela, realiza assim sua identificação primordial”. O autor afirma ainda “que esta conquista da identidade é sustentada, em toda a sua extensão pela dimensão imaginária [...] trata-se de um reconhecimento imaginário” (p. 80).
Nasio (1997, p. 61) destaca que “o eu se origina no espelho, o outro é o espelho e é a ordem simbólica que sustenta o narcisismo, organizando uma mediação entre o eu e o semelhante”. Então, conforme o autor, para que servem as imagens? Apesar do mundo simbólico ser preexistente ao sujeito é mister para que os símbolos se revelem que eles passem pelo suporte corporal, “o eu e a relação imaginária com o outro são fundamentais para que se produza uma inserção da linguagem, da lei, etc. na realidade do sujeito” (NASIO, 1997, p. 61).
Para Lacan apud Nasio (1997, p. 61): “para que se estabeleça uma relação com o objeto do desejo, é preciso que haja uma relação narcísica do eu com o outro”. O narcisismo representa a condição necessária para que os desejos dos outros se inscrevam, ou para que os significantes se inscrevam. Um significante é um elemento de uma cadeia de linguagem onde o desejo do outro se inscreve, sendo que a imagem do corpo fornece o quadro das inscrições significantes do desejo do outro. A imagem do corpo seria o que
representa o primeiro ponto de engate dos significantes e, inicialmente, dos significantes maternos.
A maneira de como o significante se inscreve, principalmente a sucessão das identificações, determina as modalidades pelas quais se farão as flutuações libidinais. A imagem do Outro aparece então fragmentada: são séries de imagens, um conjunto de traços que o sujeito investe. Existe para cada sujeito, uma série de significantes privilegiados, uma série de elementos em que o Outro se inscreve, e esses significantes se revelam na relação imaginária com o semelhante.
Conforme Nasio (1997, p. 64) posteriormente Lacan dedicou-se à questão do real: no tocante ao narcisismo, foram abordadas, sobretudo as relações da imagem e da pulsão. Segundo Nasio (p. 64), Lacan voltou à dialética do estádio do espelho e assinalou que a visão da imagem no Outro não basta, por si só, para constituir a imagem do corpo próprio, caso contrário, o cego não disporia de um eu. O importante, para que a imagem se mantenha, é a existência de um furo nessa imagem: eu posso ver minha imagem no espelho, mas o que não posso ver é o meu próprio olhar. Correlativamente, a imagem que o Outro envia não é completa, permanece furada, porque o Outro é também um ser pulsional, em falta.
Nasio (1997) faz algumas considerações em relação à fase do espelho: quando a criança vê sua própria imagem, ela se volta para a mãe. Por um lado a criança espera da mãe um consentimento, ela chama a mãe em sua dimensão simbólica, aquela que nomeia que reúne na nomeação. Por outro lado, ela vê que a mãe também dirige o olhar a ela, a criança percebe o desejo da mãe. Então, ela confronta-se com a mãe pulsional, faltosa, e por isso, desejante. Para o mesmo autor:
Já que o outro é pulsional um furo subsiste em seu domínio, um branco ou uma mancha em sua imagem. Existe, pois, a libido que não é recoberta pela imagem, resta uma parcela sexual que fura a imagem. Esse furo na imagem é o que Lacan chama de falo (falo imaginário) é diante desse furo que surge a angústia.
A imagem sempre contém, portanto, uma parte real, ou seja, uma parte do sexual que ela não cobre. E é nesse furo que se veem colocar os objetos pulsionais, é nesse furo da imagem que vem se alojar o objeto a, causa do desejo (NASIO, 1997, p. 64).
Ao relacionar o Estágio do Espelho com a condição pulsional - estruturante do psiquismo e de um corpo subjetivado - pode-se compreender
que o objeto a6 da pulsão não se apresenta desinvestido (despido), ele sempre
é revestido de imagens. A relação do sujeito com a pulsão não ocorrerá se não existirem imagens remetidas pelo Outro. Nasio considera que:
Por fim, o narcisismo vem dar sua roupagem ao objeto pulsional, envolve-o o que Lacan escreve como i (a). Pusemos a letra a no furo da imagem. O eu, o narcisismo, compõe-se, portanto de um conjunto de imagens investidas que circulam em torno de uma falta; trata-se de uma montagem ao redor de um furo. Esse furo real representa a causa da montagem do narcisismo, e as imagens investidas permitem adaptar-se a essa hiância.
Mas cabe notar, desde logo, que esse furo real é duplicado por um outro furo, inerente ao mundo simbólico. Existe uma relação de reduplicação entre duas faltas. O outro, o Outrão da linguagem, tesouro dos significantes, revela-se igualmente furado: o Outro é incapaz de dar a criança um significante adequado, um significante que a satisfaça (NASIO, 1997, p. 64-65).
Constata-se que, no pensamento do autor, a mãe pode agradar o filho com os melhores elogios, mas um siginificante que o signifique por inteiro em seu ser continua impossível de dizer; pois, há uma falta no campo da linguagem, causando a retomada da fala e do desejo quando se sobrepõe ao furo pulsional. Logo, o Eu tem como característica essencial apresentar-se “furado” a própria imagem e a imagem do outro aparecem como uma única e mesma instância: o eu, enquanto reunião de imagens.
Segundo Chemama (1995, p. 58), se há um processo de identificação no campo especular, na medida em que a criança assume determinada imagem de si, ela não se reduz a isso. A criança nunca se vê com seus próprios olhos, mas sempre com os olhos da pessoa que a ama ou detesta. Então, para se constituir psiquicamente e formar a imagem corporal, a criança precisa ser objeto do olhar do Outro; cujo reconhecimento, na medida em que a nomeia, permite sua entrada no registro simbólico. Nesse sentido é através do Outro que a criança aprende a se reconhecer - o que implica considerar que seu desejo, tal como seu corpo, não é inicialmente vivido como seu, mas projetado e alienado no Outro. A criança, a princípio, é o desejo da mãe. Assim o grande impasse da relação dual imaginária é esse de que não há
o reconhecimento de dois desejos, dois sujeitos; mas de um desejo alienado no desejo do Outro.
Vamos a partir daqui nos referir, conforme ideias de Freud e Lacan, ao conflito edipiano não apenas como uma fantasia, mas como um momento no qual se assume a imagem (de eu e de corpo); ou seja, a apropriação de um corpo significante, marcado pela história de vida, pela relação com o outro em direção à construção da posição de alteridade enquanto sujeito. As fantasias que giram em torno do pai e da mãe imaginários são um momento do complexo de Édipo estrutural.
Conforme Freud (1924), quando o interesse do menino se volta para os seus órgãos genitais, ele revela o fato manipulando-os frequentemente, e então se depara com a desaprovação dos adultos no que se refere a esse comportamento. A criança recebe a ameaça de que seu órgão lhe será tirado se ele não parar com a masturbação. Geralmente, é de mulheres que vem a ameaça; sendo esta reforçada por uma referência ao pai ou ao médico, como sendo estes os executores da punição. Ou seja, o menino é ameaçado com a castração. Mais tarde, devido à visão do menino dos órgãos genitais femininos a perda de seu próprio pênis fica imaginável e a ameaça de castração passa a fazer efeito.
Segundo Freud:
Agora, porém, sua aceitação da possibilidade de castração, seu reconhecimento de que as mulheres eram castradas, punha fim às duas maneiras possíveis de obter satisfação do Complexo de Édipo, de vez que ambas acarretavam a perda de seu pênis — a masculina como uma punição resultante e a feminina como precondição. Se a satisfação do amor no campo do complexo de Édipo deve custar à criança o pênis, está fadado a surgir um conflito entre seu interesse narcísico nessa parte de seu corpo e a catexia libidinal de seus objetos parentais. Nesse conflito, triunfa normalmente a primeira dessas forças: o ego da criança volta às costas ao complexo de Édipo (FREUD, 1924, n.p).
Para Freud (1924) a partir daí as catexias de objeto são abandonadas e substituídas por identificações. A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e então surge o núcleo do superego, que assume a severidade do pai e a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do retorno da catexia libidinal. As tendências libidinais pertencentes ao Complexo de Édipo são em parte dessexualizadas, em parte sublimadas e em parte são inibidas
em seu objetivo e transformadas em impulsos de afeição. Estando assim, o órgão genital preservado.
Para compreender o Complexo de Édipo precisamos considerar três tempos. Em “A Lógica da Castração: os três tempos do Édipo” (1999, p. 197-198), Lacan assevera que num primeiro momento a criança se encontra numa relação de indistinção com a figura materna, ao sair do Estádio do Espelho a criança ainda está numa relação imediata com o desejo da mãe (ou com quem exerça a função materna). No primeiro tempo do Édipo a criança se põe no
lugar do objeto que ela acredita faltar à mãe, ocupando então o lugar do falo7.
Para Lacan, “to be or not to be,” o que a criança busca é satisfazer o desejo da mãe, ser ou não ser o objeto de desejo da mãe, a criança pensa que para agradar a mãe é preciso e basta ser o falo. Nesse momento do Édipo ela está presa na dialética ser ou não ser o falo e alienada no desejo da mãe.
No segundo tempo do Édipo quando intervém a palavra paterna na relação mãe-filho, a criança é inserida na dialética da castração. A mediação paterna surge sob a forma de privação. O significante Nome - do - Pai revela à mãe que ela não pode reter o seu produto, e ao filho que ele não pode ser reintegrado à própria mãe. O pai aparece como representante fálico, como o rival que vai promover o deslizamento do filho com relação ao lugar fálico frente ao desejo materno. Diante da função paterna há um deslocamento à representação do objeto fálico. A criança percebe que o pai significa a Lei, e que a mãe também está submetida a essa Lei; o desejo da mãe, assim, está submetido à lei do desejo do Outro. Ou seja, o desejo da mãe é dependente de um Outro, que detém o objeto de seu desejo: surge o pai como possuidor do falo e da palavra do pai (LACAN, 1999, p. 198-199).
O terceiro tempo do conflito edípico é o momento do declínio do Complexo de Édipo que traz o fim da rivalidade fálica com o pai em torno da mãe; nessa fase ocorre a simbolização da Lei, a mãe e a criança inscrevem-se na dialética de ter. A mãe não possuindo o falo pode ir à busca de quem o tem, e sabe onde procurar, no lado do pai. O filho vai renunciar a ser o falo e irá à
7Em Psicanálise, o uso deste termo sublinha a função simbólica desempenhada pelo pênis na
dialética intra e intersubjetiva, enquanto o termo “pênis” é sobretudo reservado para designar o órgão na sua realidade anatômica (Laplanche e Pontalis, 2001, p 166).
busca de vir a possuí-lo, para isso vai trilhar o caminho da identificação com o pai. A menina por sua vez, renuncia a ser o objeto de desejo da mãe, posicionando-se na dialética de ter. Ela está do lado da falta, ela não tem o falo por isso se identifica com a mãe, e assim como a mãe sabe onde ir buscá-lo, no lado do pai (p. 200).
O movimento em direção ao Nome - do - pai é correspondente ao recalque originário, pois, pelo acesso à linguagem a criança produz um afastamento com relação à sua própria vivência, substituindo o registro de ser o falo pelo registro do ter um desejo mesmo que limitado. A castração imposta pelo pai resulta no recalque do desejo incestuoso pela mãe. A partir da linguagem, o desejo é nomeado e simbolizado, o Nome - do - pai produz ao mesmo tempo a clivagem da subjetividade infantil em consciente e inconsciente. A castração (simbólica) incide, pois, sobre um objeto imaginário, o falo. “A criança deixa de ser o falo e a mãe deixa de ser a lei’’ (GARCIA-ROZA, 2001, p. 222).
Para o mesmo autor, impossibilitado de ser aquilo que falta à mãe e na tentativa de nomear o desejo materno, pois o simbólico não recobre todo o real, a criança desloca-se e passa a identificar-se com o pai, suposto objeto do desejo da mãe, constituindo o ideal do eu. Neste momento a criança substitui a identificação com o eu ideal para uma identificação com o ideal do eu.
O eu ideal, enquanto imagem de perfeição narcísica, identificava-se com o falo, isto é, com a imagem que a criança fazia de si mesma. Ao ser produzida a disjunção criança/falo, o pai passa a encarnar o ideal de perfeição. Mais precisamente: o pai passa a ser o representante desse ideal com o qual a criança passa a se identificar. A identificação da criança não é, pois, uma identificação com o pai, mas com o que o pai representa, com o pai enquanto uma ‘constelação de insígnias’, como diz Lacan (Garcia-Roza, 2001, p. 223).
O pai é o representante da Lei e a interiorização da lei possibilita à criança constituir-se como sujeito. A criança passa a se identificar com o superego do pai, e o superego da criança é o efeito da identificação com o ideal do eu. É o momento em que a criança ao ser separada da mãe pelo interdito paterno, toma consciência de si mesma como uma entidade distinta e como sujeito e é introduzida na ordem da Cultura. Neste tempo a criança após
a identificação com o pai, assume sua imagem e seu desejo de forma distinta e separada do outro. Para Garcia-Roza:
Com o aparecimento do pai funcionando como interditor e produzindo a disjunção mãe-criança, cria-se a condição necessária à experiência da criança por si mesma como uma entidade separada e, portanto, a representação de si mesma como um eu (GARCIA-ROZA, 2001, p. 224).
A criança precisa renunciar a onipotência narcísica em consequência da castração, o que é a condição para que o sujeito ocupe um lugar na ordem social. Surge o sujeito desejante, sendo a angústia de castração a marca da incompletude humana.
Então se o narcisismo, o Estádio do Espelho e as problemáticas edípicas e de castração representam a condição necessária para que o desejo se inscreva, ou para que os significantes se inscrevam - sendo que a imagem do corpo fornece o quadro das inscrições significantes do desejo do Outro – como pensar a edificação da imagem e do esquema corporal E como fica a imagem corporal do paciente que passa pelo processo da ostomia? Estas questões nortearão os escritos do próximo capítulo.
2ACONDIÇÃODAOSTOMIADIANTEDEUMCORPOSUBJETIVADO Conforme os autores trabalhados até aqui, o eu se origina no “espelho”, o outro é o espelho e é a ordem simbólica que sustenta o narcisismo, organizando uma mediação entre o eu e o semelhante. Mas, apesar do mundo simbólico ser preexistente ao sujeito necessita-se de imagens para que os símbolos se revelem e possam passar pelo suporte corporal. Por isso, o eu e a relação imaginária com o outro são fundamentais para que se produza no sujeito a inserção da linguagem e da lei.
Para que se estabeleça uma relação com o objeto do desejo, é preciso que haja uma relação narcísica do eu com o Outro. Então, o narcisismo representa a condição necessária para que os desejos dos outros se inscrevam, ou para que os significantes se inscrevam. Sendo que a imagem do corpo fornece o quadro das inscrições significantes do desejo do outro.
Entretanto, somente a visão da imagem no outro não basta, para constituir a imagem do corpo próprio. Para que a imagem se mantenha, é preciso a existência de um furo nessa imagem, pois correlativamente, a imagem que o outro me envia não é completa, permanece furada, pois o outro assim como o eu é também um ser pulsional.
Compreendemos a imagem corporal como a impressão que se tem de si mesmo, subjetivamente, baseada em percepções internas e externas e nos laços que se estabelecem no convívio social. Para Levin:
Como já temos dito, esta imago é uma representação (inconsciente) do corpo, e o esquema corporal funciona como uma re-presentação (pré-consciente) desta imagem. Sustentamos que sem imagem do corpo não há esquema corporal possível (LEVIN, 2001, p. 106).
Levin (2001) aponta a questão do mistério da imagem corporal. O que é misterioso é o fato de a imagem, apesar de unida, não ser completa. Ou seja, a imagem é furada, em movimento, em falta, sendo isso que a torna desejante. “Eis seu valor antecipatório e ao mesmo tempo alienante” (p.115). Conforme Levin (2001), a entrada do pai em cena recoloca a função materna e o lugar da criança na cena triangular do cenário simbólico. O mistério da imagem do corpo não está no corpo - órgão, mas em sua ausência (em sua castração), na falta
que levanta as marcas do Nome do Pai, em sua nomeação e apropriação sobre a qual a criança usará seu corpo, em uma estatura significante. “A imagem do corpo é o sinal deixado pela dialética ausência-presença” (2001, p. 116). O mistério não está na imagem em si, mas no seu reconhecimento imaginário:
A imagem do corpo implica uma dimensão a menos, não é uma somatória, ela determina uma subtração e uma ausência. A imagem é uma estranha isca que alicerça a crença de ‘si mesmo’. Mas, por acaso alguém é exatamente sua própria imagem? Quem é que coincide totalmente com ela? Narciso, com sua morte, procura dar-nos uma resposta, uma vez que só a morte suspende a relação com a imagem: ali o corpo se transforma em cadáver, pois o mistério foi consumido na imagem (LEVIN, 2001, p.117).
É mister que façamos uma distinção entre imagem corporal e esquema corporal. Em Psicomotricidade e seus Conceitos Fundamentais: Esquema e Imagem Corporal (1994, p. 38), Yañez refere o esquema corporal ao conhecimento que temos de nosso corpo, sendo de ordem evolutiva, pois o corpo muda de tamanho, peso e medida. Além disso, implica uma representação, pois a criança pode falar das funções das partes desse corpo. Para ela o esquema corporal refere-se centralmente a esse corpo que podemos ver e manipular.
Já a construção da imagem corporal funda-se na história individual do sujeito e nas relações com o Outro:
A atitude referente a distintas partes do corpo podem obedecer ao interesse dispensado a nosso corpo por outras
pessoas que nos rodeiam... Elaboramos nossa IC [Imagem
Corporal] de acordo com as experiências que obtemos através dos atos e atitudes dos outros (YAÑEZ, 1994, p. 38).
A autora afirma que a imagem do corpo não é um fenômeno estático, do ponto de vista fisiológico, pois ela constrói-se através do contato com o mundo e os processos que constroem a imagem corporal também estão no campo libidinal e emocional.
No texto O Inquietante8 (1919 [2010, n.p]), Freud faz uma associação entre o familiar e o inquietante. Não há intenção em um maior aprofundamento nos conteúdos deste texto, mas apenas ilustrar o impacto que o sujeito pode sofrer ao se deparar com sua própria imagem sem que possa reconhecê-la. O autor faz um relato de sua experiência de duplo:
[...] Viajava só, no vagão de leitos de um trem, quando, numa brusca mudança de velocidade, abriu-se a porta que dava para o toalete vizinho e apareceu-me um velho senhor de pijamas e gorro de viagem. Imaginei que ele tivesse errado a direção, ao deixar o gabinete que ficava entre os dois compartimentos, e entrasse por engano no meu compartimento, e ergui-me para explicar-lhe isso, mas logo reconheci, perplexo, que o intruso era minha própria imagem, refletida no espelho da porta de comunicação. Ainda lembro que a figura me desagradou profundamente (FREUD, [1919] 2010, p. 371).
Esta experiência tem sido classicamente interpretada desta forma: o estranho é visto por Freud através da imagem de um senhor de idade, no caso, ele próprio, como a antecipação de uma imagem familiar, mas estranha. Podemos relacionar este estranhamento que causa inquietude à velhice, mas aqui vamos relacionar a inquietude que sentem os pacientes portadores de ostoma à estranha imagem de si.
Ressaltamos a fala deste paciente:
‘É tudo muito estranho’ diz ele, pois sempre foi saudável, podia comer de tudo e nada lhe fazia mal. Hoje é um paciente dependente dos cuidados familiares e do suporte da equipe de enfermagem. Emocionado fala que ainda não sabe de nada do que pode lhe acontecer, está desorientado, não tem controle nenhum sobre sua realidade, sua incerteza no amanhã o deixa muito triste. Segundo relata, o que lhe resta no momento é sua condição: faz um gesto apontando para a ‘bolsinha’ (ostoma). Tem vontade de ficar sozinho (sic).
Para Freud (1919 [2010]), “uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido recalcados revivem uma vez mais por meio de alguma impressão”. Isto pode ocorrer em qualquer momento da vida, o que nos leva a considerar a experiência da ostomia como um
8Título original: em alemão: “DAS UNHEIMLICHE”, foi anteriormente traduzido por outras
edições como “O ESTRANHO.” A edição da Companhia das Letras, usada por nós neste TCC, foi traduzida por Paulo César de Souza, que optou pelo termo “O INQUIETANTE”.
momento propício a tal vivência devido à exposição do ostoma, o que nos remete a traços do real da castração, uma vez que os pacientes submetidos à ostomia estão expostos a um real diante do qual se sentem desamparados e confrontados com a morte. Como expressa a fala de outro paciente:
Até poucos dias atrás podia me considerar uma pessoa, depois de poucas horas, sou outro homem. É como se tivesse morrido e deixado de existir. Antes da cirurgia levava uma vida bem diferente desta vida que levo agora (sic).
“Um estranho efeito se apresenta quando se extingue a distinção entre a imaginação e a realidade, como quando algo imaginário surge diante de nós na realidade” (FREUD, 1910 [2010]). Para o autor essa sensação de estranho é não dialetizável, uma lacuna frente a qual o sujeito não tem palavras para nomear. Pensamos que o sujeito se depara com a doença no real, algo que ele não tem como suportar, possivelmente pelo fato de que o imaginário e o simbólico se encontram momentaneamente incapazes de responder a este real. Antes da cirurgia os pacientes não têm como imaginar e simbolizar as alterações que ocorrerão na imagem do corpo após a cirurgia.
Nos casos destes pacientes, a cirurgia e o tratamento quimioterápico alteram expressivamente o esquema corporal; colocando em questão as edificações imaginárias e simbólicas referentes à imagem corporal. Não se pode negligenciar que o esquema corporal se estrutura através da experiência subjetiva. A retirada total ou parcial do intestino - e o manuseio do ostoma -, associada aos efeitos colaterais da quimioterapia, remetem a um conjunto de alterações significativas no corpo do paciente. O que passa a ser vivido pelo mesmo como tortuoso e estranho em relação ao esquema corporal.
Segundo Françoise Dolto, a imagem do corpo se cruza com o esquema corporal através da condição subjetiva que circunscreve o narcisismo:
A imagem do corpo é a síntese viva de nossas experiências emocionais: inter-humanas, repetitivamente vividas através das
sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais. Ela pode ser considerada como a encarnação simbólica inconsciente do sujeito
desejante e, isto antes mesmo que o indivíduo em questão seja
dizer Eu. [...] A imagem do corpo é, a cada momento, memória inconsciente de todo o vivido relacional e, ao mesmo tempo, ela é atual, viva, em situação dinâmica, simultaneamente narcísica e inter-relacional [...]
É graças a nossa imagem do corpo sustentado por – e que se cruza com – nosso esquema corporal que podemos entrar em comunicação com outrem (DOLTO, 2004, p. 14-15) [grifo do autor]. Somos impelidos a apreender que é através do narcisismo que se criam as representações de sujeito e de corpo, articulando-se às marcas da experiência atual. O corpo, na dimensão do esquema corporal, é afetado ao mesmo tempo em que, na forma passiva ou ativa, o paciente será afetado também em sua imagem corporal. Tal situação pode ser observada na fala de uma paciente:
Olha só para minha barriga, preciso carregar isso (o ostoma). O médico foi cuidadoso durante a cirurgia para que não ficassem muitas cicatrizes. Mas, não me conformo, sempre gostei de me arrumar, usar blusinhas apertadas e coladas. Eu usava um piercing, agora só tenho uma cicatriz no lugar do piercing. O médico recomendou que não me expusesse ao sol, logo eu que gosto tanto de tomar banho de sol, não aguento mais essa situação Parece um pesadelo. É como se esse corpo não fosse o meu não tenho mais aquele corpo. Olho no espelho e começo a chorar (sic).
Examinando o estranhamento da paciente em relação ao próprio corpo e a sensação de que este não é seu, nota-se a contradição da paciente em apropriar-se do próprio corpo, como se o mesmo fosse um objeto a serviço dos outros, como se não fosse parte do próprio eu.
A partir deste estranhamento com relação ao corpo e à imagem corporal manifestado na fala do paciente, pretendemos chegar à questão do eu ideal e do ideal do eu. Para isso retomaremos brevemente o capítulo anterior.
Conforme já foi explorado neste trabalho, a pulsão é um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático, como um representante psíquico dos estímulos que provém do interior do corpo e alcançam a alma. A pulsão tem sua origem no interior do organismo exercendo uma ação constante sobre o psiquismo e da qual é impossível escapar. As pulsões estão presentes no indivíduo desde o início, funcionando numa modalidade autoerótica (estado original da sexualidade infantil, no qual a pulsão sexual encontra satisfação sem recorrer a um objeto externo). Porém, o eu não existe no indivíduo desde o começo, ele tem que ser desenvolvido, é preciso que uma nova ação
psíquica seja adicionada ao autoerotismo para provocar o narcisismo, e esta ação psíquica é o “eu”.
A partir de então o narcisismo passa a ser condição para formação do eu. O primeiro narcisismo é o da criança que toma a si mesma como objeto de amor, antes de investir os objetos externos, esta fase ocorre ao mesmo tempo em que ocorre a primeira manifestação da construção do eu. O narcisismo primário também é uma reprodução do narcisismo dos pais, os quais projetam na criança (sua majestade o bebê) os seus sonhos renunciados. O bebê os realizará, garantindo a imortalidade do eu. Podemos afirmar que o eu ideal da criança é constituído durante o narcisismo primário pelos pais. No narcisismo secundário, a libido que antes investia o eu passa a investir objetos externos e depois volta a tomar a si, como objeto de amor. Neste momento, a criança desiste de seu narcisismo primário, pois seu eu é confrontado por um ideal com o qual se compara, em função das exigências do mundo externo.
A criança passa a perceber que a mãe (ou cuidador) deseja além dela, o que causa a angústia de deixar de ser sua majestade o bebê. Então a criança busca recuperar o amor pleno do objeto, que por sua vez, só poderá acontecer através da satisfação das exigências do ideal do eu.
Para Garcia-Roza, o eu do estágio do espelho é concebido como um [...] eu original que permite a passagem do auto-erotismo para o narcisismo, não é uma unidade definitiva que permanece para sempre idêntica a si mesma, mas algo que, uma vez constituída, é renovada ou acrescentada de novos traços. A imagem corporal não é, portanto, a única que dá forma ao eu, ela é apenas a forma primeira, mas não a definitiva.
O eu é constituído também pelas enunciações, pelos juízos de valor, pelas declarações de preferência ou de rejeição (GARCIA-ROZA, 2000, p. 56-57).
Para o autor uma das formas que o eu toma é a do eu ideal, imagem essa dotada de todas as perfeições e sobre as quais recai o amor de si mesmo usufruído na infância pelo eu real. Seria um eu original e forma primeira do eu ideal e do ideal do eu que vem a ser a forma idealizada do ideal do eu.
O ideal do eu é um conjunto de traços simbólicos implicados pela linguagem, pelos laços sociais e pelas leis. Esses traços são mediadores na relação dual imaginária, na qual o sujeito encontra um lugar para si, pois através do ideal do eu ele poderá ser amado, desde que cumpra certas
exigências externas. Nesse momento o simbólico prevalece sobre o imaginário. Assim como o ideal do eu prevalece sobre o eu (NASIO, 1997, p. 65).
Podemos pensar que o ideal do eu situa-se no simbólico e que seria referência e produto de identificação ao Outro. Desiderativo do Complexo de Édipo, a articulação do ideal do eu remete ao desejo de retornar à posição imaginária de eu ideal criada e idealizada pelos pais no narcisismo primário, mesmo que isso não seja mais possível. O eu seria resultado dos investimentos narcísicos do outro sobre o sujeito. O efeito desses investimentos na imagem do sujeito faz com que ele mesmo se identifique com sua própria imagem, passando a investir nela também. Esse investimento permite que o sujeito ame a si mesmo, numa dimensão narcísica. A fala da paciente remete à impossibilidade de responder a abordagem de um corpo atravessado pelo ideal do eu e pela imagem narcísica perfeita do eu ideal.
No texto Sobre o Narcisismo (1914) Freud propõe que uma pessoa angustiada por dor e mal - estar orgânico pode deixar de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que estas não dizem respeito ao seu sofrimento:
Uma observação mais detida nos ensina que ela também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos: enquanto sofre, deixa de amar. A banalidade desse fato não justifica que deixemos de traduzi-lo nos termos da teoria da libido. Devemos então dizer: o homem enfermo retira suas catexias libidinais de volta para seu próprio ego, e as põe para fora novamente quando se recupera. ‘Concentrada está a sua alma’, diz Wilhelm Busch a respeito do poeta que sofre de dor de dentes, ‘no estreito orifício do molar’.
Aqui a libido e o interesse do ego partilham do mesmo destino e são mais uma vez indistinguíveis entre si. O egoísmo familiar do enfermo abrange os dois (FREUD, 1914, n.p).
Há casos em que os pacientes não manifestam interesse algum em falar, muito menos em interagir com a família, amigos, companheiros de enfermidade ou com a equipe de profissionais da saúde que os auxilia. Freud aborda que há alteração da maneira pela qual os doentes têm seus sentimentos de amor com relação aos outros suprimidos pelas moléstias do corpo e substituídos por uma total indiferença.
É possível ainda referir a fala de outra paciente com a obra freudiana. A mesma diz sentir-se infeliz, sem vontade de viver e que não encontra mais sentido na vida. Relata não ter mais ânimo; nem forças para realizar atividades
leves. Para ela tudo poderia acabar, tem vontade de morrer. Pois não se sente útil para mais nada, prefere ficar sozinha. A paciente também relata que se sente “feia”. Para Freud (1914, n.p.), “a doença orgânica, manifesta-se em sensações corpóreas aflitivas e penosas, e o doente retira tanto o interesse quanto a libido dos objetos do mundo externo, concentrando ambos no órgão que lhe prende a atenção”. Ao que podemos interpretar como um superinvestimento por parte do paciente no órgão adoecido, como se o corpo não fosse uma unidade, mas um órgão.
Nas palavras de uma paciente:
Hoje quando tomei banho, antes de vir para cá (setor de oncologia), vi que estou toda marcada, minha barriga dói, esse lugar (mostra a queimadura circulando o orifício confeccionado para o uso do ostoma) não dá para tocar, até minha roupa machuca, deve ser bem soltinha. È horrível de olhar. Eu não era assim não me olho mais no espelho, ele está mentindo para mim. Quando isso vai acabar? (sic)
Para Levin apud Freud (2001, p.77) “a dor é um articulador, ou melhor, um operador entre o corpo (o corporal) e a alma (o píquico)”. Sendo esta condição fronteiriça que nos coloca de frente ao limite entre o corpo órgão e o corpo subjetivado.
É possível pensar a experiência diante da dor de acordo com proposições de Levin (2001), a criança nasce indefesa, e sua proteção contra a dor corporal passará pelo Outro, que irá representar a imagem corporal sobre a qual o bebê se sustentará. É no Outro materno que doerá primeiro a dor do bebê. Então, o Outro interpretará e decodificará a dor do bebê como se fosse sua. Ou seja, a “mãe sente a dor do bebê como própria, e com base na sua dor ela decodifica a dor da criança” (2001, p. 79).
Para o mesmo autor, a dor nasce do encontro da sensibilidade do bebê com o afeto materno, que referencia a dor da criança num contexto simbólico. O bebê não pode compreender a dor como dor em si, pois ainda não estruturou sua imagem e seu esquema corporal para referi-los a si mesmo. Ele ainda não é capaz de afirmar que sente dor, para isso ele terá que constituir uma imagem corporal com a qual possa se reconhecer e se diferenciar do Outro.