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O desencontro entre a teologia luterana e a teologia da libertação

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Academic year: 2021

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O Desencontro entre a Teologia Luterana

e a Teologia da Libertação

V íto r W e sthe lle

F ia i ju s iiiia e i p e rc a i mundus L uiero

I — A Suspeita: O Lugar-Com um do D esencontro

Pode-se dizer que, com raras exceções, o encontro entre a teo lo g ia da libertação e a teo lo g ia confessional luterana^ (bem como outras teologias confessionais) tem caído em dois extremos. Por um lado, registra-se um m útuo desprezo que, freqüentem ente, oculta uma reação odiosa de uma contra a outra; por outro, observa-se tam bém uma fascinação em otiva pela teo lo g ia da li­ bertação. No segundo caso, a teo lo g ia da libertação é vista como a fonte de expiação sacrificial para uma consciência teológica so­ brecarregada de culpa e perdida nas am bivalências políticas e cul­ turais da fase tardia do capitalism o. Assim, torna-se atrativo buscar clareza nas m anifestações sociais do pecado no outro lado da luta de classes, na discrim inação sexista, ou num a coloração e p id é rm i­ ca mais escura. Enquanto a atitude de m útuo desprezo rom pe o flu xo com unicativo, a fascinação em otiva é seguida por um anti-

intelectualism o.

Embora essas duas tendências ofereçam , aparentem ente, opções m utuam ente excludentes, não são de todo incom patíveis. Por vezes, um profundo desprezo por propostas vindas da teologia

(1) A m b o s os te rm o s s ã o a q u i u s a d o s e m u m s e n tid o a m p lo . A s s im c o m o s ã o v á r ia s as f a c ­ çõ e s te o ló g ic a s d e n t r o d o lu t e r a n is m o , ta m b é m s ã o m u ita s as " t e o l o g ia s " d a lib e r t a ­ ç ã o . T o m o c o m o p o n to d e p a r t id a a p e n a s a d is t in ç ã o v u lg a r e n t r e u m a te o lo g ia q u e g r a v ita e m t o r n o d a d o u t r in a d a ju s t if ic a ç ã o e u m a q u e se e n t e n d e c o m o r e f le x ã o s o ­ b re a p rá x is .

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da libertação é disfarçado por uma postura simpática no que toca a alguns temas que, pela ênfase recebida, re-ocuparam lugar no discurso teológico. Essa sim patia, portanto, não se dirig e ao teor propriam ente teológico do re fle tir liberacionista, mas a questões como pobreza, justiça, vio lê ncia, dependência, m a rg in alid ad e , etc. Q uando, no entanto, se busca uma confrontação em questões tra d icion a lm e n te centrais para a te o lo g ia , quando se trata, p arti­ cularm ente, de questões m etodológicas surge um verdadeiro pa­ vor de que a castidade confessional venha a ser prostituída. Está em vigor e já é um lugar-com um dizer que a te o lo g ia da libertação não tom a a sério a re a lid ad e d o pecado, que a te o lo g ia da lib e rta ­ ção reduz a condição universal do pecado às suas m anifestações sócio-econôm icas. E quem haveria de argum entar contra a con­ cepção cristã de que somos pecadores e nos encontram os face a Deus em iguais condições e com igual carência da graça d ivin a pe­ la qual somos justificados independente de nosso m érito ou da q ua lid a de de nossos pecados?

A te o lo g ia da libertação, segue o argum ento, supõe uma visão ingênua da condição hum ana, faz-nos crer que o pecado po­ de ser vencido através de ativism o político, através da so lid arie da ­ de com os pobres e oprim idos, através da construção de uma so­ ciedade socialista, e assim por diante. E por fim ouve-se o golpe de m isericórdia do sim pático carrasco: "sou a favo r da libertação, mas de uma libertação radical, que nos livre da mais profunda fo r­ ma de escravidão que é a nossa natureza pecam inosa. E dessa ma­ neira todas as particulares de opressão poderão ser superadas co­ mo boas obras flu e m de uma fé genuína, como uma boa árvore produz bons fru to s "^ 0 .

Com tal argum ento a teo lo g ia da libertação passa a ser re­ legada à condição de apêndice da te o lo g ia luterana. Isso, na m e­ lhor das hipóteses. A teo lo g ia da libertação viria a ser uma espécie de edição atualizada dos sermões de Lutero sobre as boas obras, legítim a enquanto pressupõe m etodologicam ente a doutrina da justificação.

Poderia-se passar dessa crítica a uma apresentação da con­ dição teórica da te o lo g ia da libertação, reve lar problem as diversos

( l a ) Esta p o s iç ã o s u rg iu e m m e io s e v a n g é lic o s m a s a g o r a é ta m b é m a p r o p r ia d a p e lo V a t i ­ c a n o . V e ja o d o c u m e n to d a C o n g r e g a ç ã o p a ra a D o u tr in a d a Fé d o V a tic a n o , " I n s t r u ­ ç õ e s S o b re A lg u n s A s p e c to s d a T e o lo g ia d a L ib e r ta ç ã o , " 4 :1 2 -1 4 .

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nas suas variadas m anifestações, e mostrar como a referida crítica pressupõe muitas vezes uma apreensão distorcida dessa teo lo g ia . Porém, ao invés da a p o lo g ia , proponho um exam e do argum ento subjacente à crítica m encionada. M ais im portante que a triv ia lid a ­ de com que se apresenta a te o lo g ia da libertação é a m aneira co­ mo se a rticu la esta crítica. Deixo, portanto, claro a suspeita^ com que opero: a m edida em que a crítica à teo lo g ia da libertação aci­ ma caricaturizada é representativa da postura teológica luterana, esta é por dem ais ávida em fa la r fo rm a lm e n te sobre sim ul justus

e t peccator e por dem ais carente em reconhecer o conteúdo p a rti­

cular do pecado e da justificação. Luteranos com veia teológica sa­ bem de cor que o discernim ento entre lei e evan g elho é a pedra fun d am en ta l da arte teológica, mas tal discernim ento corre o risco de recair em um form a lism o abstrato.

Tal form alism o faz com que a transição da lei para o evan­ gelho seja fe ita a custa de uma concepção d ife re n cia d a e co m p le ­ xa da lei. No esquema form a l da relação lei-e va ng e lh o, a lei torna-se em um respaldo abstrato para a firm a r a necessidade da graça divina sobre o pano de fundo da universalidade da condição pecaminosa da hum anidade. Esquem aticam ente, a form alização do argum ento pode ser descrita pelo seguinte silogism o preposte- ro:

1. A experiência p articular do pecado nos torna conscientes de que a lei sempre acusa (le x sem per accusat).

2. Mas o pecado é condição hum ana universal de form a que a lei revela a queda do ser hum ano em geral da qual apenas a graça divin a pode salvar.

3. O e van g elho nos traz a palavra justificadora de Deus. A transiçaõ do ponto 1. ao 2., o salto do conteúdo particular e concreto do pecado à sua afirm a çã o abstrata e universal é, no meu entender, o ponto crucial. Na verdade essa não é uma

cons-(2 ) N ã o p r e te n d o s u g e r ir q u e os m é r ito s h e u rís tic o s d a s u s p e ita h e r m e n ê u t ic a q u e e s to u a p lic a n d o n e s ta d is c u s s ã o p r e lim in a r ju s t if iq u e m o d e s e n v o lv im e n t o d e u m a r g u m e n ­ to t e o ló g ic o . Q u e r o a p e n a s in s is ti r q u e a h e r m e n ê u t ic a d a s u s p e ita o fe r e c e u m c o r r e t i­ v o a te o lo g ia s q u e p o r m u it o te m p o tê m s id o in d ife r e n t e s à g r a n d e c o n t r ib u iç ã o d a s o ­ c io lo g ia d o c o n h e c im e n to (d e AAarx a M a n n h e im , S c h e le r e H a b e rm a s ), i . e . , q u e a p e r c e p ç ã o d a r e a lid a d e c o tid ia n a e a fu n ç ã o r e p r e s e n ta tiv a d a lin g u a g e m c o m u m n ã o s ã o u m a v u lg a r iz a ç ã o d a lin g u a g e m te ó ric a e c o n c e itu a lis ta , m a s a e x p re s s ã o m a is p r ó x im a d a s o r ig e n s s o c ia is q u e c o n d ic io n a m o c o n h e c im e n to .

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tatação o rig in a l. Desde A lbrecht Ritschl e Karl H o lI, a te o lo g ia lute­ rana tem insistido com variada ênfase que o salto ao universal re­ quer tam bém um retorno ao p articular, mas esse retorno (que po­ de ser cham ado de Lebensführung ou am or pessoal) tem sido ex­ presso apenas em categorias do idealism o transcendental que igualm en te nega as determ inações sócio-econôm icas e culturais da expe riê n cia p articular do pecado e de sua retificação, em favor de uma abstrata liberdade cristã a d q u irid a em face a Deus (coram

deo)3.

A renascença luterana deste século, em especial depois de W erner Elert, tratou de a rticu lar a questão da particula rida d e do pecado na existência social através da concepção positiva que Lu- tero tinha do uso civil da lei (usus c iv ilis legis). Esta propiciou o de­ senvolvim ento de uma ética social luterana, por um lado realista e por outro conservadora na acepção precisa do term o^a. Como re­ sultado, restaurou-se a separação ortodoxa luterana entre d o g m á ­ tica e ética. Enquanto a d ia lé tic a da lei e do evangelho desenvolvia-se na relação restrita do uso teológico da lei (usus

theologicus le g is) com o evangelho, a ética social fundou-se no

princípio não d ia lé tico , mas positivo, do uso civil da lei prescindin­ do qua lq u er correlação com o evangelho a nível sócio-político. O p rincípio conservador dessa ética — que não por coincidência desenvolveu-se baixo a hegem onia política do nazismo — era conseqüência lógica da busca por d e fin ir a sociedade hum ana em base a um conceito de lei estabelecido como "o rd e m da cria çã o"

(Schõpfungsordnung) que por conseguinte e lim in a da ordem civil

a presença de um princípio de novidade, de transform ação ou re­ denção. A m áxim a ética era a preservação de uma suposta " o r ­ d e m " civil e não a sua renovação^. O uso civil da lei como catego­ ria básica e única para análise e d e fin içã o da sociedade cria uma im agem estável e ideal (o que deve ser) que flu tu a sobre as insta- bilidades sociais e as nega. Tal negação ou exclusão do novum

(3) E e ssa m e s m a c rític a d a s o lu ç ã o lib e r a l a p lic a -s e ta m b é m à a la c o n s e r v a d o r a q u e , e m ­ b o r a te n d o o m é r it o d e r e c o n h e c e r o c a rá te r p a r t ic u la r d o p e c a d o , i n f la c io n a s u a é tic a c o m u m m o r a l is m o in d iv id u a lis ta ig u a lm e n te a b s tr a to e a lh e i o à s c o n d iç õ e s c o n c re ta s d a e x is t ê n c ia h u m a n a .

(3 a ) V e ja S im o n S. M a im e la . 'G o d 's C re a tiv e A c tiv ity T h ro u g h th e l a w " (D is s e rta ç ã o : H a r ­ v a rd , 1978).

(4 ) V e ja W e r n e r E lert. M orphologie des Luthertum s II, 2. e d . (M ü n c h e n : C .H . B e c k 's c h e

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dos processos históricos e sociais na re fle xã o teológica podia ser norm ativa para sociedades m edievais com estruturas hierárquicas re la tivam en te estáveis e nas quais o ideal da preservação da or­ dem era a única a lterna tiva ao caos. Isso, por exem plo, explica a atitude de Lutero na Guerra dos Camponeses.

No entanto, transposto esse princípio para as sociedades modernas, nas quais a flu id e z da ordem civil e política é constituti­ va da própria d e fin içã o do estado m oderno, o princípio de preser­ vação vira um p rincípio reacionário resultante de um crasso a n a ­ cronismo. A lg o assim como analisar a Revolução Francesa tendo com o instrum ental ana lítico os pressupostos ideológicos do sistema de castas na India. A b a ixo tratarem os de mostrar no que im plica teo lo g ica m en te a defirença entre uma sociedade pré-m oderna (na qual Lutero form u lo u seu conceito do uso civil da lei) e uma socie­ dade moderna.

Por ora, basta reconhecer que o problem a im plícito na tran­ sição do ponto 1. ao 2. é que o uso civil da lei que determ ina o marco social e p rim á rio da experiência concreta do pecado de­ sempenha apenas um papel propedêutico que nos introduz à " v e r ­ d a d e ira ” d ialética da lei e do evangelho. Epistem ologicam ente, é como se o uso civil da lei servisse de uma escada que nos leva ao ensolarado terraço da te o lo g ia que, uma vez alcançado, torna a escada supérflua ou, no m áxim o, como um instrum ento a ser pre­ servado para o acesso de outros. Mas essa preservação visa so­ mente criar as condições para a escalada ao nível dogm ático. Em outras palavras a ordem civil deve proporcionar suficiente tranqü- lidade e paz (pax m u n di) para que o ser hum ano possa erguer-se acim a das preocupações terrenas e participa r do dram a escatoló- gico de salvação e condenação.

Cabe então perguntar: por que o salto do nível da existên­ cia histórica para o nível da d ia lética universal e transcendente da lei e do evangelho? Por que entender a história como uma infra- estrutura neutra sobre a qual se superim põe a d ialética da lei e do evangelho? Por que essa visão cínica da história na qual o ideal de " p a z " visa apenas a criação de um suficiente silêncio para que o evangelho ressoe na consciência convicta do pecado adâm ico? Ora, a resposta é surpreendentem ente simples: porque o e van g e ­ lho é considerado exclusivam ente universal, re lacionado apenas com o uso teo ló g ico da lei. E a boa nova para judeus e gentios, es­ cravos e mestres, oprim idos e opressores, m ulheres e homens, a

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todos em igual m aneira e em total indifere n ça ao conteúdo con­ creto do pecado.

Portanto, se o evangelho é universal e apenas universal, as boas novas que nele estão contidas deverão ser com pletam ente ir­ relevantes ao conteúdo d iferen cia do e particular das experiências históricas dos seres humanos. A descoberta paulina da universa li­ dade da lei que a todos iguala perante a graça abriu as portas para a expansão do cristianism o, mas por vezes tam bém solapou o con­ teúdo particular da pregação e do m inistério de J e s u s .P o rta n to , não é de estranhar que m etáforas corno "D eus é v e rm e lh o ", "ELA é n e g ra ", "Deus se solidariza com os p obres" causem escândalos similares àqueles causados pelo Jesus dos sinóticos ao lig a r salva­ ção e condenação à praxis histórica de seus contem porâneos e não à lei religiosa vigente.

O que frequentem ente se cham a "ra d ic a lid a d e do peca d o" significa transform á-lo em uma categoria abstrata de form a que a tarefa do pregador ou teólogo seja reconhecer o pecador por sua condição hum ana sem necessariam ente reconhecer o pecado.^ É desnecessário a pontar para o caráter id e o ló g ico de tal acepção visto que a universalização do pecado dá ensejo ò privatização da fé e à perda do caráter público de uma re lig iã o mais e mais restrita ao lavabo da consciência religiosa burguesa.

Reduzindo a d ia lética da lei e do evangelho a um nível fo r­ mal e universal perde-se o conteúdo teológico da existência social e histórica e, por conseguinte, esvazia-se o conceito de salvação de um conteúdo particular. Esta é a causa do desencontro a que nos referim os. A ênfase no caráter particular da experiência evan­ gélica constitui-se no marco teo ló g ico fundam ental das diversas teologias da libertação. O tem or de que tal ênfase no particular venha a oferecer sanção religiosa a m ovim entos de ordem social e política é de todo justificável, o que porém não significa que a par­ ticularização do conteúdo e vangélico im p liqu e ou até mesmo

pro-(4 a ) P a ra o a r g u m e n to d e q u e P a u lo ta m b é m te v e d e re p e n s a r a r e la ç ã o e n t r e le i e e v a n ­ g e lh o s o b o p o n to d e v is ta d a c o n c r e t ic id a d e h is tó ric a , v e ja m e u a r t ig o " P a u l's R e co n s­ tru c tio n o f T h e o lo g y : R o m a n s 9 -1 4 in C o n te x t " , W ord & W orld IV /3 :3 0 7 -1 9 .

(5) E ir ô n ic o n o t a r q u e p a r a se f a l a r d a c o n d iç ã o u n iv e r s a l d o p e c a d o h á q u e se p re s s u p o r u m s a lto e p is te m o ló g ic o a u m a s itu a ç ã o a n t e r io r à p r ó p r ia q u e d a d o se r h u m a n o , p o is só a s s im p o d e h a v e r c o n h e c im e n to d a c o n d iç ã o p e c a m in o s a se m q u e o p r ó p r io p e c a ­ d o d e t u r p e e s te c o n h e c im e n to . Isto é g n o s tic is m o .

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picie tais sanções. Pensar assim seria como um cristão acusar Jesus de ter nascido judeu. Se aí está o desencontro é im portante voltar às possíveis raízes do mesmo e então e lucidar a suposta incom pati­ b ilid a d e entre a te o lo g ia da libertação e a teo lo g ia luterana.

II — A p lic a n d o a Suspeita: Um te x to de Lutero

Este salto form al ao universal não é de todo a lh e io a Lutero sendo que e le d e fin e teologia como o estudo da relação entre o ser hum ano pecador e o Deus que salva e justifica.^* A fo rm a liz a ­ ção teo ló g ica da im anência histórica da existência hum ana p od e ­ ria ser até mais enfatizada com a seguinte citação: "Id e o nostra teo lo g ia est certa, q u ia p o n it nos extra n o s ."^ Mas apesar dessas afirm ações é sabido que não encontram os em Lutero nem uma te o lo g ia sistemática organizada, nem uma m etodologia coerente. Em verdade existem diversos m otivos m etodológicos e nem sem­ pre foi a re la ç ã o form a l entre lei e evangelho (i.e., justificação co­ mo justiça passiva) o princípio regente de seu pensam ento te o ló g i­ co, ainda que seja inegável o seu papel central no corpo de seus escritos.

Um artigo de Lutero servirá para ilustrar essa tese. Sua sele­ ção é a rb itrá ria e visa somente mostrar que Lutero tam bém soube re fle tir te o lo g ica m e n te sem a bandonar o conteúdo particular do pecado, o que im plica em interessantes observações de caráter m etodológico. Nesse texto Lutero re fle te sobre uma situação que julga pecam inosa e intenta, através do tratado, instruir pastores para que preguem a respeito. Trata-se, portanto, de um trabalho de re fle xão teológica (segunda ordem de discurso) e não de uma h o m ilia (prim eira ordem de discurso). Assim poderia ser um texto propício para e la b o ra r a form alização da d ia lé tica le i-evangelho. Mas não é isso o que iremos encontrar.

Este tratado, escrito em 1540, entitula-se "Exortação aos Pastores Para Que Preguem Contra a Usura."® A escolha desse tex­ to não se deve ao fato de tratar-se do único em que Lutero possa ser acusado de ser pouco "lu te ra n o ," mas porque o tema nele dis­ cutido — um problem a econôm ico — com partilha características

(6) W A 4 0 /2 :3 2 8 : " h o m o re u s e t p e rd itu s e t d e u s iu s tific a n s v e l s a lv a to r . "

(7 ) W A 4 0 /1 :5 8 9 .

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com a situação presente criando uma certa dissonância cognitiva (parte da hem enêutica da suspeita). Essa dissonância é im portante enquanto evita uma redução historicista visto que a situação que Lutero descreve nos choca por ser em muitos aspectos atual e p ró ­ xim a rom pendo a confortável distância de três séculos e m eio. A questão não pode ser ignorada ou apenas investigada com o parte de um passado histórico já superado.

E necessário d eixar claro, no entanto, que a escolha desse tratado não é fe ito em base do argum ento ético nele desenvolvido como se fosse possível buscar nele um critério anacrônico que pos­ sibilite justificar uma cruzada moral contra o capitalism o moderno. E correto que durante a vida de Lutero os fundam entos econômicos do capitalism o sedim entavam -se no sul da A le m a nh a e norte da Itália. O usurário é, de fato, o prim ata de nosso hom o pecuniosus, o capitalista m oderno. Mas essa sim ila rid ad e serve apenas como um instrum ento de aproxim ação entre épocas históricas d ife re n ­ tes. Em verdade, há uma certa ironia histórica na m aneira como Lutero condena a usura. O usurário começa a desm antelar o modo de produção m edieval e enceta a transição ao capitalism o com os seus "b e n e fício s p e rifé ric o s " como a função social dos impostos, m o bilidade social e autonom ia política. O argum ento de Lutero pode até ser reconhecido como conservador em bora possa soar hoje como "re v o lu c io n á rio .

Lutero, a quem M arx chamou " o p rim e iro econom ista a le ­ m ã o " (o que, diga-se de passagem, não o fenderia o reform ador para quem não havia santo que não fosse versado em econom ia e p olítica) dem arca com perícia o conceito de usura. Começa por destruir a noção popular de que o usurário, por em prestar d in h e i­ ro, de fato serve ao povo. Pré-dantando a m oderna crítica id e o ló ­ gica, Lutero a firm a :

Quem toma mais ou tira vantagem (do que empresta) co­ mete usura. Isso não se chama serviço e si m dano cometido contra o próximo; tanto como roubar. Nem tudo que se chama serviço e benefício ao próximo o é de fato. Pois,

(9 ) N a su a a v a lia ç ã o m o r a l, L u te ro n ã o re c o n h e c e o f a t o q u e s e m o u s u r á r io n ã o h a v e r ia a tra n s iç ã o p a r a o c a p ita lis m o , p o is e s te p re s s u p õ e a a c u m u la ç ã o d e c a p ita l. E c o m p a ­ ra d o c o m o m o d o d e p r o d u ç ã o a n t e r io r , o c a p ita l is m o r e p re s e n ta u m a v a n ç o e c o n ô m i­ co, s o c ia l e p o lític o . Esta ta m b é m é u m a f a l h a d o e x c e le n te e s tu d o d e G ü n th e r F a b iu n - k e . M artin Luther a is N atio nalo ekon om (B e rlin : A k a d e m íe - V e r la g , 1963).

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uma adúltera e um adúltero prestam um ao outro grande serviço e satisfação... O próprio diabo presta aos seus servi­ dores grande e inestimável serviçoJ®

Fazendo um a p e lo à razão para d e fin ir, com a ajuda da f i ­ losofia (Aristóteles e Sêneca em particular), o conceito de e q u id a ­ de ,11 o reform ador busca dem onstrar que o caráter injusto da usu­ ra reside na m aneira "a n tin a tu ra l" (w id e r d ie N a t u r ) ^ de produ­ zir valor. N ão que se trate de uma form a "s o b re n a tu ra l" de p ro d u ­ zir valor. Trata-se da expropriação de valor produzido por trabalho

a l h e i o J ^ Nesse sentido, é contra a natureza pois a liena do traba­

lhador o fruto de sua interação com a natureza. Lutero aqui já in ­ troduz os fundam entos do conceito de m ais-valia. V ale assinalar que o uso instrum ental do valor m onetário ainda não im plicava a p ropriedade dos m eios de produção, mas cabe a Lutero o m érito de reconhecer elem entos da estrutura básica do capitalism o ope­ rantes no capital fin an ce iro .

Como este processo de usura tende a escalar a taxa de ex­ propriação do tra ba lh o , o reform ador não se in tim id a de passar seu veredito: "A in d a que não fôssemos cristãos, nos d iria a razão — assim como os gentios — que um usurário é um a s s a s s in o ."^ E após mostrar por m eio da razão secular ("poupem os a teo lo g ia pa­ ra mais t a r d e " ) ^ que a usura é injusta, Lutero dirige-se aos cris­ tãos e, p articularm ente, aos pregadores que se posicionam com indiferença ante o problem a. Por serem coniventes com a usura, tais cristãos partilha m a herança dos usurários: o inferno.

Os gentios souberam concluir, por meio da razão, que um usurário é um ladrão e assassino. Mas nós cristãos o temos em tão alta honra que praticamente o adoramos por causa de seu d in h e iro .^

E o ataque continua ao usurário que se encontra comoda­ mente sentado em sua cadeira quando, em vez, deveria estar pendurado na forca e ser devorado por tantos urubus

(1 0) W A 5 1: 3 38 -3 9 .

(1 1 ) W A 5 1 :3 4 4 . P a ra o a r g u m e n to d e A ris tó te le s v e ja T re a tise on G o ve rn m en t, liv r o 1, c a ­

p it u lo 10. (1 2 ) W A 5 1:3 60 . (1 3 ) W A 5 1:3 51 . (1 4 ) W A 5 1 :3 6 1 -6 2 . (1 5 ) W A 5 1:3 4 4 . (1 6 ) W A 5 1:3 61 .

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quantos florins roubou, se pelo menos tivesse tanta carne que tantos urubus pudessem dividi-la. Enquanto isso enfor­ camos pequenos ladrões... Pequenos ladrões são jogados aos calabouços, grandes ladrões ostentam ouro e s e d a .^ Portanto, não há na terra inimigo maior dos homens (de­ pois do diabo) que um sovina e usurário porque este quer ser Deus sobre todos os homens... Um usurário e sovina quer que o mundo inteiro morra de fome, sede, miséria e carência assim que ele possa ser dono de tudo, e que todos recebam dele como de um deus e eternamente sejam seus servos. ^ ®

O usurário é um mestre do engano, "se fa z passar por um hom em de grande piedade, mais misericordioso que o próprio Deus e mais am ável que a m ãe de D eus." E Lutero conclui:

Portanto, um usurário e sovina não é um homem correto, é um lobisomem mais terrível que tiranos, assassinos e la­ drões, quase tão maligno quanto o próprio diabo, mas que não aparece como um inimigo, porém como um amigo e cidadão que pertence à comunidade e que, portanto, rou­ ba e mata com mais atrocidade que um inimigo. Assim, uma vez que decapitamos e punimos assaltantes e assassi­ nos quanto mais deveríamos punir, torturar, maldizer e de­ capitar todos usurários.'^

No entanto, se esperamos que Lutero passe agora da situa­ ção particula r do pecado para a sua condição universal e declare a usura uma manifestação do pecado original que tudo nivela, fica ­ remos surpreendidos. Ele até mesmo considera essa possível tra je ­ tória m etodológica e com enta:

Dizem que o mundo sem usura não existiria. Isto certamen­ te é verdade, pois jamais houve e jamais haverá um gover­ no tão forte e rígido que pudesse evitar todo o pecado. E ainda que um governo pudesse fazê-lo, haveria o pecado original, a fonte de todo pecado... Mas se com esse argu­ mento pensam-se desculpados, eis que já verão... Usura há, m a s ai do u s u r á r i o . 0

(1 7) W A 5 1:3 62 .

(1 8 ) W A 5 1 :3 9 9 -4 0 0 . (1 9) W A 51:4 21 .

(11)

Os pregadores que não ousam fa la r contra a usura "to rn a m seu o fício de pregadores em uma farsa... tais indivíduos não po­ dem prom over o e v a n g e lh o ." ^ E o reform ador compara tais pre­ gadores que universalizam sua pregação a ponto de serem inca­ pazes de denunciar o usurário em p articular (mas apenas o pecado em g e ra l) àqueles que pretendem represar uma enchente (a m etá­ fora favo rita de Lutero para descrever injustiça socio-econôm ica e ana rq u ia política) com uma cerca.^2

Contudo, poderia constatar o atento leitor que Lutero está apenas enfocando sua crítica em uma m anifestação do pecado de form a que a palavra justificadora de Deus poderia ainda ser d irig i­ da ao usurário enquanto pessoa. De Hol|23 e E le rt^ a A lth a u s ^ e

H e c k e l ^ ó esta tem sido a interpretação " o f ic ia l" da ética luterana

neste século. Mas não é assim neste tratado de Lutero. Deus não é somente o in im ig o da usura (como a m anifestação p articular do pecado o rig in a l) mas do pró prio usurário.^7 O usurário é cham ado

de ju re e de facto incrédulo e idólatra, o que leva Lutero a exortar

os pregadores a não tom arem um usurário por cristão.28 A eles, argum enta o reform ador, deve ser negada a participação nos sa­ cramentos, a absolvição dos pecados e a participação na co m u ni­ dade cristã.29 Lutero a té mesmo sugere a lg o que se assem elha a uma h ierarquia de pecados quando diz: "n ã o há na terra in im igo m aior dos homens (depois do d iabo) que um sovina e usurário por­ que este quer ser Deus sobre todos os hom ens."3 0 O pecado aqui denunciado não é a q u ilo que poderia ser cham ado de um pecado "e s p iritu a l" ou mesmo pessoal, mas um pecado de caráter social e econôm ico. O usurário não é aquele que pensa que a salvação eterna é ganha através de obras, ele age para que assim seja. E o

(2 1) W A 5 1:4 09 .

(2 2 ) W A 5 1 :3 5 3 .

(2 3 ) K a rl H o ll. G e sa m m e lte A u fsätze zur K irch en g e sch ich te. 3 v. (T ü b in g e n : J .C .B .M o h r,

1 92 8 -4 8), 1 :2 4 6-5 0 .

(2 4 ) E ie rt. M orphologie II, p. 24, 36.

(2 5 ) P a u l A lth a u s . T he Ethics of M artin Luther ( P h ila d e lp h ia : Fortress, 1972), p. 79.

(2 6 ) J o h a n n e s H e c k e i. Lex C h a rita tis (D a rm s ta d t: W is s e n s c h a ftlic h e B u c h g e s e lls c h a ft,

1 97 3 ), P. 33, p assim .

(2 7 ) W A 5 1:4 22 .

(2 8 ) W A 5 1:3 68 .

(2 9 ) W A 5 1 :3 6 7 -6 8 .

(12)

critério que Lutero oferece para seu julgam ento te o ló g ic o não po­ de ser considerado de puro cunho dogm ático: " o usurário quer que o m undo inteiro morra de fom e, sede, miséria e carência."^1

Resta-nos apenas uma últim a questão. Se a reflexão que o reform ador enceta desenrolar-se no chão das particularidades his­ tóricas e se através da razão encontra-se o crité rio do legal e do justo, pode-se cham ar isso de uma re fle xão teológica? De acordo com Lutero, para que seja teológica deve apresentar a correlação e o discernim ento entre lei e evangelho. Mas pode-se fa la r de uma m anifestação particular do evangelho? O que Lutero diz é conciso mas ainda assim surpreendente para um pensador pré- m oderno que não poderia conceber que transform ações históricas e a aparição do novo em processos sociais fossem im anentes aos processos históricos.

Se o nosso evangelho é a verdadeira luz, em verdade ne­ cessita brilhar na escuridão. E a escuridão não há de suprimi-lo. Se não queremos sofrimento, se queremos um mundo transformado (die W elt anders haben), então deve­ mos sair ao mundo (zur Welt hin aus gehen), ou criar um outro mundo que venha a fazer aquilo que nós ou Deus

q u i s e r . 3 2

E Lutero acrescenta: " o m aravilhoso e onipotente poder e sabedoria de Deus é tal que precisa ser percebido e apree n did o em nosso m eio ( h i e r i n ) . " 3 3

III — Reconstrução e C rítica

Essa breve resenha da exortação de Lutero aos pastores pa­ ra que preguem contra a usura nos oferece base suficiente para a r­ gum entar que, pelo menos neste caso, ele não dá o salto m etodo­ lógico da situação p articular do pecado à sua condição universal para que então a palavra e vangélica seja expressa. A boa-nova não é apresentada como um sim forênsico a todos crentes e peca­ dores (sim ul) independente do conteúdo particula r dos pecados. Fé e existência social são interlaçados a tal ponto que a perem ptó- rica afirm ação pode ser feita: o usurário não pode ter fé e assim é

(3 1) W A 5 1 :3 9 7 . (3 2) W A 5 1 :4 0 9 . (3 3) W A 5 1 :4 1 2 .

(13)

irrelevante o quão piedoso, confessante e fie l cristão luterano pa­ reça ser. Nessa situação prática, Lutero não presume que todo pe­ cado reduza-se à condição pecaminosa antes que o evangelho deixe nesse velho m undo as marcas (Spuren)^^ de um m undo no­ vo. Sua re fle xão teológica está fun d ad a num a expe riê n cia históri­ ca p articular na qual justiça e pecado encontram -se em relação antitética. Esta antítese descoberta no parâm etro socio-econôm ico da história (sub specie m undi), certam ente encontra na doutrina da jutificação seu desdobram ento dogm ático no pla no das univer- salidades, numa dim ensão totalizadora e escatológica que Lutero d enom inou geistliches Regim ent. Mas a história da luta entre opressão e justiça não pode ser suprim ida pela com preensão u ni­ versal da relação entre pecado e justificação. Esta relação é e x p li­ cativa daquela luta, mas sem a qu e la , q ua lq u er d o u trin a da ju s tifi­ cação não passa de uma abstração form a l e teórica. O usurário, para tom ar este exem plo, não pode ser sim ul justus e t peccator da m aneira como Lutero d e fin iu essa sim ultaneidade (como totus jus­

tus et totus peccator). Essa d e fin içã o só pode ser afirm a d a escato-

logicam ente como uma profissão de fé de que no fim , na to ta lid a ­ de da ação criadora e redentora de Deus a graça abarca toda a condenação, a tota lid a de do pecado não substrai da tota lid a de da graça. Esta é a fé que nutre a paradoxal esperança. Este é o misté­ rio que deve perm anecer como tal: m istério. O que não cabe é valer-se dele para oferecer uma solução analítica a problem as particulares.

Todas as afirm ações paradoxais que abundam nos escritos de Lutero e adem ais em todas doxologias não são mais que ge­ niais criações linguísticas usadas para rom per com a fin itu d e e dar vazão às profundezas da e xpe riê n cia de fé situadas além do que conceitos analíticos são capazes de desvendar. Esses paradoxos são, portanto, apropriados para descrever uma re a lid ad e escatoló­ gica que a tudo abarca. A linguagem paradoxal, tal como a poe­ sia, escapa de conceptualizações e raciocínios analíticos não sen­ do assim de valor operacional para descrever a cooperação fin ita entre Deus e os seres humanos no â m b ito da história, no que Lute­ ro cham ou w e ltlic h e s Regim ent.

Por rom per as barreiras da fin itu d e histórica e categórica, a lin g ua g em paradoxal é in tuitiva e sua função na te o lo g ia é

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m entalm ente doxológica, é um a to de louvor a Deus no qual se crêem vencidas todas as barreiras do cotidiano. Portanto, apenas d oxologicam ente pode-se a firm a r a tota lid a de do sim ul luterano. Este jam ais pode servir com o disfarce id e oló g ico das barreiras e lu ­ tas históricas. Só assim pode-se fa la r em justificação por fé sem torná-la em uma palavra de auto-justificação. Somente no contex­ to doxológico em que se oferece louvor a Deus, a justificação per­ manece como um ato de graça d ivin a ante o qual a palavra hum a­ na só pode ser de louvor. E através desse m eio doxo ló g ico que ao crente é dada a graça de m irar através das máscaras (larvae) de Deus na história e na natureza.^5

No m undo essa total sim ultaneidade de pecado e graça não existe senão em reais antíteses. Sob o ponto de vista histórico (co­

ram m undo) so se pode a firm a r um sim ul p a rtim justus sim ul par- tim peccator. Não se trata de abandonar a fun çã o doxo ló g ica da

linguagem paradoxal na relação entre lei (usus theologicus ou a q u ilo que Heckel cham ou le x iu s titia e u niversa lis contra pecca-

tum o rig in a l is )36 e evangelho. A o contrário, busca-se m anter a

distinção dos dois "re in o s ” (qua Regim ente) em Lutero precisa­ mente para restaurar o va lo r da doxo lo g ia e a clareza do discurso ético evitando a mesma confusão que o reform a do r detectou na cristandade romana e na ala entusiasta da Reforma. A prim eira fez do discurso teológico-político um discurso d oxológico enquanto que a segunda fez do discurso doxo ló g ico um discurso ético- político.

A crítica aqui dirige-se em particular contra o salto teológico que abandona a realidade concreta e p articular do pecado já a n ­ tes do evan g elho ser proclam ado. Tal crítica já im p lica que uma criteriosa distinção entre os dois usos na lei necessitará que o evan g elho não seja restrito à sua correlação escatológica com o uso teológico da lei. O evangelho necessita ter uma função con­ creta e prática que se correlacione com o uso civil ou político da lei de form a que sua "m a rc a s " possam ser "p e rc e b id a s e apreendidas em nosso m eio” histórico. Portanto, podemos concluir que o evan­ gelho, segundo a estrutura da "d o u trin a dos dois re in os" aqui ca­ racterizada como dois discursos com plem entares — um d oxológico

(3 5) U lric h A s e n d o r f. Esch ato io g ie b ei Luther (G o e ttin g e n : V a n d e n h o e c k & R u p re c h t,

1967), p. 246.

(15)

e o outro ético-político — , exige uma dupla "fu n ç ã o ” que corres­ ponda aos dois usus da lei: uma função doxológica e uma função ético-política. Poderia-se em prestar as categorias para classifica­ ção da lei em Lutero e fa la r de um munus th e o lo gicus e v a n g e lii (função teo ló g ica do e vangelho) e de um munus c iv ilis e v a n g e lii (função civil ou política do evangelho), em bora isso não signifique que apenas a prim eira pertença propriam ente ao discurso te o ló g i­ co.

Cabe aqui assinalar que a busca por uma categoria que se correlacione com o uso civil da lei tem sido buscado na te o lo g ia lu ­ terana desde que M elanchton passou a d efender o terceiro uso da lei, a lei civil restaurada por valores cristãos para e dificação de uma sociedade justa. W erner Elert corretam ente enfatizou a dis­ cordância entre Lutero e M elanchton nesse p a rtic u la r.37 M as e |e estava certo pelas razões erradas. O p roblem a im plícito na defesa do terceiro uso da lei no contexto da te o lo g ia de Lutero é que re­ sulta em uma incoerência teológica e não porque leva ao sinergis- mo e ao utopismo como quiz Elert.38 Este exagera a suposta oposi­ ção de Lutero à afirm a çã o de M elanchton de que a vontade de Deus é, a associação dos seres humanos (vult Deus esse consocia-

tionem )39 desprezando a enfática noção que Lutero tinha da coo­

peração hum ano-divina na regência da história.^0 O problem a com o terceiro uso da lei é que este faz possível transformações históricas e sociais através da ação ética dos renascidos pela graça d ivin a (ren a ti e t ju t if ic a ti) . ^ No entanto, Lutero, via de regra, não conecta a responsabilidade pela preservação e renovação da lei civil à conversão.^2 É nesse contexto que surge um dos mais em ba­ raçosos problem as para a ética social luterana numa época de rá­ pidas transformações socio-históricas: ou segue-se Elert afirm ando que a ordem civil provê apenas meios de compulsão e preserva­ ção social, ou segue-se o m odelo re form ado que H. Richard Nie- buhr a prop ria d am en te cham ou de "C risto, transform ador da

cultu-(3 7 ) E le rt. M o rpholog ie II, p. 26-36.

(3 8 ) Ib id . p. 30-31. (3 9 ) Ib id . p. 3 1, 51. (4 0) W A 18:754.

(4 1 ) E le rt. M orphologie II, p. 26.

(4 2) V e ja U lric h D u c h ro w . C h riste n h e it und W eltveran tw o rtu n g (S tu ttg a rt: Ernst K le tt,

(16)

ra ."4 3 o impasse, então, é esse. Ou abondona-se o luteranism o em questões de ética social ou aceita-se uma ética social essen­ cialm ente conservadora cuja m áxim a é a preservação da ordem social como ditam e da criação divina. Mas tal ética é incapaz de pensar os processos históricos e sociais como dinâm icos e em per­ manente transform ação.

Althaus procurou e vitar esse impasse com a introdução de uma terceira categoria teológica situada entre lei e evangelho. Ele a denom inou de m andato (m andatum ou G ebot).44 Com esta ca­ tegoria visa e xplicar a transform ação e renovação da lei (enquan­ to le x civilis). O m andato d ivin o renova a lei e a m antém a tu a liza ­ da com o desenvolvim ento histórico. O conceito de m andato per­ m ite explicar como, por intervenção d ivin a (quasi e x m achina), o e q u ilíb rio e a paz no âm b ito histórico são reestabelecidos. No e n ­ tanto, tal a rtifício teo ló g ico não passa de um p e titio p rin c ip ii, de uma hipótese que no argum ento funciona com o uma dem onstra­ ção que visa explicar, depois da em ergência histórica de re vo lu ­ ções populares e conquistas tirânicas, como Deus através de uma intervenção sui g eneris reestabelece a justiça necessária e com pa­ tível com um novo m om ento histórico visto que o antigo padrão de justiça tornou-se obsoleto.

Esta proposta sofre de dois males. Prim eiro, perm anecendo fie l ao silêncio de Lutero no que se refere a transform ações sociais e históricas, ela contradiz à convicção do reform ador que a gover­ nança histórica de Deus se dá na cooperação dos seres humanos com Deus (co o pe ra tio hom inis cum deo).45 Assim, incapaz de ser in d ifere n te ao desenvolvim ento histórico das sociedades m oder­ nas, Althaus visa explicá-las através de um ape lo a uma causa so­ brenatural. Para Lutero esse não era um problem a uma vez que com partilhava com sua era a inaptidão de reconhecer que a histó­ ria é um processo em perm anente transform ação.

Segundo, não há necessidade m etafísica que e x ija que Deus atue em duas m aneiras diferentes, salvação e preservação. Mais uma vez, Lutero foi poupado de abordar essa questão sendo que, incapaz de conceber q u a lq u e r desenvolvim ento legal tam

-(4 3) H. R ic h a rd N ie b u h r . C risto e Cultura. (R io d e J a n e iro : Paz e T e rra , 1967), p. 223-65.

(4 4 ) P a u l A lth a u s . The D ivin e Com m and. ( P h ila d e lp h ia : Fortress, 1966).

(17)

bém não necessitava de uma atuação especial de Deus para p re ­ servar ou reconstituir a ordem c iv il.^6 Para o reform ador, a preser­ vação das instituições hum anas era o mais a lto o b je tiv o da ordem civil e para isso Deus instituirá a u t o r id a d e s . A lt h a u s , um teólo­ go do pós-ilum inism o, renova o conservadorism o político de Lutero tornando-o em um reacionarism o político que se volta contra mu­ danças e renovações na sociedade civil enquanto essas são neces­ sitadas pelo próprio processo histórico.

IV — Razão Pública e Eqüidade

O argum ento desse ensaio, que a interpretação contem po­ rânea de Lutero exige, por m otivos de coerência interna, que a re­ lação le i-evangelho se desenrole em duas dim ensões (uma sócio- política de conteúdo histórico e outra doxo ló g ica de conteúdo es- catológico), produz um problem a crítico. Qual o crité rio que per­ mite a distinção e o relacionam ento entre lei e evan g elho no â m ­ bito da história. Se o evangelho possui uma função particular, se a boa-nova tam bém tem um conteúdo histórico particular, não se pode dizer que a busca por paz no m undo seja desprovida de con­ teúdo salvífico (pax m undi non speranda). O ataque lançado por Lutero à sancionada prática da usura não foi somente expressão de uma profunda frustração com o d efe nd e Benjam in Nelson em seu já clássico estudo sobre o te m a . ^ Foi tam bém expressão de uma nascente esperança nas possibilidades de criar novos padrões de justiça que um ser racional d everia levar em consideração. Ao conectar a luta contra a usura com a m anifestação do evangelho, Lutero entendeu o e van g elho como tendo uma função particular, como sendo um sinal ou mesmo um m ilagre (sem eion). Para

Lute-(4 6 ) E m b o ra L u te ro n ã o te n h a u m a e x p lic a ç ã o s o c io - p o lític a p a r a m u d a n ç a s h is tó ric a s , e le e n t e n d ia q u e D e u s c o m p e le a lg u n s in d iv íd u o s — W u n d e rie u te, viri heroici — a r e a li­

z a r a to s e x tr a o r d in á r io s e m m o m e n to s d e crise s h is tó ric a s . Estes h e ró is p o d e m o u n ã o se r c ris tã o s . V e ja A s e n d o r f. Eschatolog ie, p. 2 6 0 ; e G u s ta v W in g re n . Luther on V oca- tion ( P h ila d e lp h ia : M u h le n b e r g , 1 957), p. 92. O a p e lo a in d iv íd u o s e x tr a o rd in á r io s p a ­

ra e x p lic a r m u d a n ç a s h is tó ric a s a p e n a s e n f a tiz a a f a l t a d e c o n s c iê n c ia h is tó r ic a e m Lu­ te ro .

( 4 6 a ) V a le n o ta r , c o n tu d o , q u e e s ta p o s iç ã o d e L u te ro a r e s p e ito d a s a u t o r id a d e s c o m e ç a v a a m u d a r q u a n d o e s c re v ia e s te tr a ta d o . Esta m u d a n ç a e s ta v a lig a d a à c o n ju n tu r a p o l í t i ­ ca e m q u e se m o s tra v a d e d if í c i l h a r m o n iz a ç ã o os in te re s s e s d os p rín c ip e s c o m os d o im p e r a d o r .

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ro, a característica fundam ental da dim ensão histórica (w eltliches

Regim ent) é o a propriado uso da razão (ra tio ou V e rn u n ft). Ulrich

Duchrow em seu ainda insuperado estudo da "d o u trin a dos dois reinos"^® deixa claro que, apenas com a exceção de algum as poucas passagens onde a coerção — cuja m etáfora é a espada — aparece como últim o critério para controle da sociedade civil, pa­ ra Lutero "n ã o a força, mas a sabedoria ou a razão devem g ove r­ nar sobre gente má e b o a . " ^ A razão é até mesmo considerada a "m e s tra " da lei c iv il.^0 o próprio m undo é visto positivam ente co­

mo o "re in o da ra z ã o " (regnum r a tio n is ) .^

Contudo, o a p e lo ò razão como agente governante e estru- turador da história política não deve ser interpretado como um a p e lo a ra cionalidade cartesiana, técnica e instrum ental.^2 o uso da razão em Lutero é função da persona p u b l i c a .53 A razão é san­

cionada apenas enquanto é exercida no d om ínio p úblico com o propósito de adm inistrar justiça e criar relações socio-econôm icas mais eqüitativas ainda que a criação dessas relações e xija trans­ form ações legislativas.54

Desde Descartes o O cidente passou a entender a razão co­ mo uma faculdade instrum ental do intelecto destinada ao controle e d om ín io da natureza e sociedade: saber é poder. Com isso perdeu-se a acepção que Lutero ainda tinha do conceito de razão. M artin Honecker, no seu estudo sobre a "d o u trin a dos dois r e i n o s . " ^ avançou nesse mesmo rumo ao sugerir que a redesco- berta da função pública da razão pelos teóricos da Escola de Frank­ fu rt como Horkheim er, A dorno e Habermas na verdade recupera e desenvolve a com preensão que Lutero tinha da razão. " A essência da razão pertence seu caráter p ú b l i c o ."^ 6 A razão assim volta a

ser entendida a partir de sua natureza dialógica e é expressa ou

(4 8 ) D u c h ro w , C h riste n h e it, p. 4 9 5 -9 8 . (4 9) W A 3 0 /2 :5 5 6 . (5 0) W A 11:2 72 . (5 1) D u c h ro w . C h risten h eit, p. 498. (5 2) V e ja a p e r t in e n te d is tin ç ã o e n t r e ra z ã o c rític a e ra z ã o té c n ic a e m M a x H o r k h e im e r , C ritica i Theory (N e w Y o rk : S e a b u ry , 1972), p. 188-252. (5 3 ) D u c h ro w . C h risten h eit, p. 499. (5 4) Ib id . , p. 4 95 -5 1 2.

(5 5 ) M a r t in H o n e c k e r. S o z ia lle h re zw ia sh e n Tradition und V ern u n ft (T ü b in g e n : J .C .B .

M o h r , 1977), p. 175-278. (5 6) I b id . , p. 205.

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interpretada p e lo conceito contem porâneo de práxis entendido como exercício prático de d iá lo g o em busca de uma com unicação universal entre grupos de interesse visando o discernim ento e a ar­ ticulação desses interesses em fôro público. Até mesmo a função coerciva do estado deve ser subm etida à sanção da razão pública visando o "u so publicam ente controlado e le g itim a d o da força p a ­ ra a proteção do bem -estar geral. "5 7 O uso da razão só é legítim o enquanto m antido no d om ín io público com o propósito de a d m i­ nistrar justiça e alcançar equidade mesmo que esta esteja além do d om ín io da le i.58 O próprio conteúdo do regnum rationis é d e fin i­ do pelo conceito de equidade (aequitas ou Billigkeit).59 Este con­ ceito desem penha sua função ao oferecer um p rincípio para dis­ cernim ento e avaliaçã o das causas que trazidas a fô ro público são inadequada ou insuficientem ente tratadas na legislação em v ig o r.60 Isso significa que mesmo a lei civil e os mores de uma so­ ciedade são sujeitos a exam e pelo critério da e q ü id a d e . S e g u n ­ do Brian Gerrish, a estreita conecção que Lutero estabelece entre razão e eqü id a de resulta na quase identificação de am bos.62 A pe­ sar de todo seu desprezo pela escolástica, é im portante notar a a l­ ta estima que Lutero tinha pela m aneira como A ristóteles d e fin iu o conceito de epieikia (eqüidade) na sua Ética. O uso do conceito de e q ü id a de em Lutero é praticam ente uma paráfrase da concepção aristoteliana da eqüidade como critério para "re tific a ç ã o da justiça

le g a l.” 63

Com o surgim ento da consciência histórica m oderna no que diz respeito à re la tiv id a d e dos padrões de justiça e le g a lid a d e , a questão da "re tific a ç ã o da justiça le g a l" assume uma im portância incom parável. Já não se pode levantar a questão da eqü id a de aparte das form as constitutivas da existência social e econôm ica na história. O in ventário legal e moral de uma sociedade é incom ­ preensível à parte da form a de existência socio-econôm ica dessa sociedade e das transform ações históricas pelos quais essa passa.

(5 7 ) U lric h D u c h ro w ( e d . ) . Lutheran C h u rch e s: Salt or M irror of So ciety (G e n e v a : LWF,

1977), p. 4. (5 8 ) D u c h ro w , C h riste n h e it, 498-99. (5 9 ) Ib id . (6 0 ) W A 1 9:632. (6 1) Br 3 :4 8 5 . (6 2 ) G r a c e and R easo n (O x fo rd : C la re n d o n , 1962), p. 35. (6 3 ) TR 6 :3 4 5 ; W A 4 4 :7 0 7 ; c f. A ris to te le s , Etica U 3 7 a 3 0 -b 3 0 .

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Assim, a questão da eqüidade é sempre re la tiva ao possível pa­ drão de justiça que essa form a ção social e econôm ica p e rm ite .64 A questão da e q ü id a de esta, portanto, d ire tam en te ligada à ques­ tão da riqueza produzida e ao nível de ig u aldade na sua d is trib u i­ ção. E na equação entre produção e distribuição que se resolve o problem a da eqüidade. Também é essa a posição de Lutero quan­ do ele investiu contra a usura por esta valer-se do tra ba lh o a lh e io para a acum ulação de riqueza. E é por isso que o uso p úblico da razão é de im portância decisiva. Só ele é capaz de a b rir um espa­ ço p úblico para a reivindicação da causa dos que foram vítimas da desigualdade e da opressão.

A acepção que Lutero tinha da razão mereceu pouca aten­ ção na literatura especializada. Tomava-se o fato de Lutero cham á-la prostituta como a palavra cabal sobre o assunto. Dois es­ tudos rom peram um longo silêncio sobre o assunto. Bernhard Loh- se em seu livro Ratio und F id e s ^ explica a concepção que Lutero tinha da razão como p a ra le liza n d o seu conceito de obras, o que lhe perm ite a firm a r que sob a prim azia da fé tanto a razão quanto as obras são louvadas. A razão deve ser condenada quando usada para interesse p ró prio e para o exercício do a rb ítrio p r i v a d o . ^ 6

Com isso enfa tiza tam bém Lohse o caráter público da razão para que seu uso seja sancionado. Brian Gerrish em seu livro G race and

Reason avança ainda mais nessa rota sugerindo que hoje a acep­

ção correta do que em Lutero era o uso público da razão deve ser entendida como razão prá tica . ^ Com isso Gerrish estabelece não apenas o caráter público da razão, sua função d ia ló g ica , como tam bém define sua aplicação como estando orientada para a solu­ ção de problem as de natureza ética.

Com essas observações torna-se mais fácil entender porque o conceito da razão em Lutero deve ser hoje interpretado em ter­ mos de uma práxis com unicativa que visa a m axim ização da p arti­ cipação de todos no discurso público. Tal reinterpretação perm ite- nos reconstruir a dim ensão socio-política da teo lo g ia de Lutero de form a que a preocupação deste por fazer do regnum ra tio n is uma

(6 4) S o b re a e v o lu ç ã o e tr a n s fo r m a ç ã o d o s p a d rõ e s é tic o s , v e ja A la s d a ir M a c In ty r e . A Short H istory of Ethics ( N e w Y o rk : M a c m illa n , 1960.

(6 5) B e r n h a r d Loh se . Ratio und Fid es ( G o e ttin g e n : V a n d e n h o e c k & R u p re c h t, 1 9 5 8 ), p . 126-

30. (6 6) I b id . , p. 54.

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entidade de m útuo serviço seja m antida. E nos perm ite, ainda mais, com preender essa práxis no contexto contem porâneo em que a conversação pública visa ser inclusiva e em ancipatória em solidariedade com o outro, particularm ente com o m arginalizado, com o o p rim id o e discrim inado, com a q u e le que a lie n a d o perdeu a voz, perdeu o d ire ito de re ivin d ica r sua causa em p ú b lic o .6® A integração na práxis com unicativa d aq u ele que foi calado torna-se não só a norma pela qual se renova a lei e cria-se le galidade, mas tam bém torna-se " a origem possível do fa la r de D eus," como Hel- muth Peukert tem insistido.6^ É a origem possível do fa la r de Deus (te o-lo gia ) porque perm ite in clu ir na conversação a voz do que não tem voz, o clam or daqueles que, à m argem da vida, são capa­ zes de fo rm u la r as questões mais decisivas sobre o significado da existência hum ana num universo que o cristão confessa ser todo criação de Deus.

A razão concebida com o práxis com unicativa e e m a ncip a ­ tória visa estender a com unicação para a lém das barreiras da id e o lo g ia dom inante, para além da própria lei civil que tam bém re fle te a id e o lo g ia dom ina n te. A práxis com unicativa e e m ancipa­ tória, ao in clu ir na conversação o m a rginalizado, cria o fôro no qual se faz possível o u vir a palavra de novidade que surge como a voz estranha da vítim a das próprias convenções legais e morais. Dito teologicam ente, a razão torna-se o espaço público no qual a relação lei-e va ng e lh o se desdobra na p articularidade histórica. Ao incorporar-se a vítim a na conversação é que a lei se cumpre e é tam bém superada enquanto re fle xo ide oló g ico de um grupo socio- p oliticam en te hegem ônico. Dar voz aos que não têm voz, perm itir que a voz do m arginalizado entre na conversação é a condição de possibilidade para a em ergência do novo que rom pe a hegem onia ideológica do discurso, que perm ite o anúncio do novo. E desse uso público da razão que Lutero se vale na crítica ideológica da usura. Ao prom over o desm ascaram ento da justificativa ideológica

(6 8 ) N a A m é r ic a L a tin a a d e f e s a d e s te a r g u m e n to te m s id o f e i t o p o r E n riq u e D ussel " D o m in a ç ã o - L ib e r t a ç ã o : u m d is c u rs o te o ló g ic o d i f e r e n t e / ' Co nciiiu m 96: 7 1 4 -3 4 ; M é ­ todo p a ra uno filo so fia de la lib eració n (S a la m a n c a : S íg u e m e , 1974), p. 2 5 9 -8 8 ; de

m a n e ir a um p o u c o d if e r e n t e e n c o n tr a m o s e sse a r g u m e n to e m G u s ta v o G u tié r r e z . La fu e rza histórica d e los p ob res (L im a : CEP, 1 979), p. 3 0 3 -9 4 . M a s , e m g e r a l, e ste te m s i­

d o o a r g u m e n to d a te o lo g ia p o lít ic a d o m u n d o n o r t e -a t lâ n tic o .

(6 9 ) W is s e n s c h a f ts t h e o r ie - H a n d lu n g s t h e o r ie - f u n d a m e n t a le T h e o lo g ie (D ü s s e ld o r f:

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da usura, Lutero abre espaço no discurso dom ina n te para a inser­ ção da voz d aq u ele que é vítim a da usura.

É im portante lem brar que esse breve esboço da razão p rá ti­ ca im plica certas conseqüências que necessitam ser levadas em conta considerando que o uso da razão deve ser sempre orientada pela busca da eqüidade. Por isso é im portante que a práxis com u­ nicativa encontre sua le g itim id a d e som ente enquanto esta for exercida em função de uma m aior eqüidade nas relações econô­ micas, sociais e políticas. A conversação de que aqui falam os não pode ser um fim em si mesma. Ela sempre deve ser exercida em função de uma distribuição mais ig u a litá ria dos recursos sociais e econôm icos acum ulados e produzidos historicam ente por uma so­ ciedade.

Em conclusão cumpre assinalar que o escopo do argum ento acim a desenvolvido não visou arrancar intenções ocultas em Lute­ ro, não buscou d e fin ir o "v e rd a d e iro ” Lutero. O propósito foi mos­ trar que o desencontro entre a teo lo g ia da libertação e a teo lo g ia luterana que se dá na questão do reconhecim ento da p a rtic u la ri­ dade do pecado e da graça não encontra inequívoca corroboração em Lutero. O tratado acima discutido não perm ite e reprovação da d ia lética histórica de lei e evan g elho no processo de libertação co­ mo tam bém não faz de Lutero um teólogo da libertação. O que faz é a b rir a possibilidade de um d iá lo g o que via b iliz e a reconstrução teológica que cada época exige, a mesma reconstrução que Lutero buscou no seu contexto, desafiado por problem as característicos de sua época.

As implicações do argum ento aqui desenvolvido para o que em Lutero era propriam ente teológico, teo lo g ia fe ita in loco ju s tifi-

cationis, foram apenas ventiladas. Mas pode-se adian tar que o ato

teológico e xercido in loco ju s tific a tio n is surge no contexto cúltico como um m om ento d oxológico, como um parênteses nos proces­ sos históricos aberto por aqueles e para aqueles que vivenciam no cotidiano a experiência histórica da graça lib e rtad o ra . Por isso d e ­ les é o louvor e a esperança radical e escatológica que ousa con­ fessar no "a in d a -n ã o " da história o " j á " da justificação divina.

Referências

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