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Gestos em close-up : por um desenho aproximativo

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE ARTES

JOSÉ CARLOS SUCI JÚNIOR

GESTOS EM CLOSE-UP: POR UM DESENHO APROXIMATIVO

CAMPINAS 2016

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GESTOS EM CLOSE-UP: POR UM DESENHO APROXIMATIVO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

ORIENTADORA: PROFª. DRA. LYGIA ARCURI ELUF

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pelo

aluno José Carlos Suci Júnior e orientado pela Profª. Dra. Lygia Arcuri Eluf.

CAMPINAS 2016

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Gestures in close-up : towards an approximative drawing Palavras-chave em inglês:

Drawing

Motion pictures Creative process Art and motion pictures

Área de concentração: Artes Visuais Titulação: Mestre em Artes Visuais Banca examinadora:

Lygia Arcuri Eluf [Orientador] André Luiz Tavares Pereira Sergio Niculitcheff

Data de defesa: 22-01-2016

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À professora Lygia Eluf, pelo acompanhamento, discussões e orientações durante o período de criação de desenhos e da realização da pesquisa.

Aos meus pais, pelo apoio e estímulo à pesquisa e produção artística.

Ao Thiago Mattos, pela paciência, companheirismo, suporte e incontáveis auxílios. Aos amigos Nana e Gabriel, pela competente e amigável parceria.

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Gestos em close-up: por um desenho aproximativo investiga como as relações entre

enquadramentos cinematográficos, a poética do close-up e os recortes de plano determinam e dialogam com a construção de registros feitos em desenho.

Como ponto de partida, a apresentação do processo criativo das obras presentes norteia a compreensão acerca da produção em desenho contemporâneo e as referências apontadas como alicerce na composição da imagem gráfica.

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Gestures in close-up: towards an approximative drawing researchs how the relations

between cinematographic frameworks, close-up poetics and cuttings in shots determine and dialogue with the construction of records made up in drawings.

As starting point, the creative process presentation of these works guides the comprehension of the contemporary drawing production and the references pointed out as basis of the graphic images composition.

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Figura 1. Todd Haynes – [Frames de] Poison [Veneno], 1991.

Figura 2. Júnior Suci – Sem título [Ações 1-4], 2009. Esferográfica e lápis de cor sobre papel, 21 x 21 cm.

Figura 3. Harun Farocki – [Frames de] Gefängnisbilder [Imagens da prisão], 2000. Figura 4. Júnior Suci – Ferramentas da libertação, 2011. Grafite e lápis de cor sobre papel, 30 x 21 cm.

Figura 5. Júnior Suci – Sem títuo I-IV, 2008. Grafite sobre papel, 20 x 20 cm. Figura 6. Athina Rachel Tsangari – [Frames de] Attenberg!, 2010.

Figura 7. Júnior Suci – Série Meus pequenos talentos, 2010. Grafite sobre papel, 21 x 21 cm.

Figura 8. Michael Haneke – [Frames de] Das weisse band [A fita branca], 2009. Figura 9. Júnior Suci – Série Sem título, 2013. Grafite sobre papel, 30 x 21 cm. Figura 10. Júnior Suci – Adormeci a minha mão, Adormeci a minha fala, Adormeci o meu pé, 2011. Datilografia e grafite sobre papel, 21 x 21 cm

Figura 11. Michael Haneke – [Frames de] Der Siebente Kontinent [O sétimo continenete], 1989.

Figura 12. Júnior Suci – Aquela camisa, Aquela lembrança, Aquele retrato, 2011. Datilografia e grafite sobre papel, 22 x 23 cm

Figura 13. Lucrecia Martel – [Frames de] La Ciénaga [O pântano], 2001.

Figura 14. Júnior Suci – Objeto intocado I – VI, 2010. Grafite sobre papel, 20 x 24 cm. Figura 15. Júnior Suci – Meus grandes segredinhos, 2011. Grafite sobre papel, 21 x 24 cm.

Figura 16. Júnior Suci – Precisei ver meu fôlego I – IV, 2009. Grafite sobre papel, 20 x 20 cm.

Figura 17. Ingmar Bergman – [Frames de] Viskningar och rop [Gritos e sussurros], 1972

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1. INTRODUÇÃO ... 11

2. FALANDO DE DESENHO, FALANDO DE CINEMA ... 14

2.1 Registro e desenvolvimento de ideias ... 14

2.2 A autorreferência e o autorretrato ... 14

2.3 Em cena, corpo e objeto ... 22

2.4 Enquadramento monocromático ... 27

3. GESTOS EM CLOSE-UP ... 32

4. FRAMES DESENHADOS, FRAMES FILMADOS ... 42

5. PALAVRAS FINAIS... 70

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1. INTRODUÇÃO

Pensar o processo criativo em arte apontando referências teóricas, conceituais, artísticas e pessoais é uma prática recorrente nos escritos e nas falas dos artistas visuais e importante para a compreensão e complementação na educação visual e na interpretação que fazemos do trabalho de arte. Nos trabalhos aqui apresentados em desenho há um leque de referências possíveis relacionadas ao cotidiano do sujeito contemporâneo, à linguagem da performance, ao tratamento gráfico da linha no espaço do papel, ao tradicional gênero do desenho de observação, ao trabalho de temática intimista, à presença do corpo na arte contemporânea, ao enquadramento utilizado, às dimensões escolhidas, à técnica e ao material, ao uso da palavra na imagem e ao lugar da modalidade do desenho autônomo no contexto contemporâneo da prática artística. Pensar em escolher uma das referências para uma investigação do procedimento utilizado nos trabalhos aqui presentes resultou na seleção da linguagem cinematográfica, no que diz respeito às suas potenciais interfaces com os desenhos em questão, como o enquadramento em close-up e a dinâmica gestual. Trata-se, afinal, de uma relação com a linguagem do desenho pouco desenvolvida em outros estudos e textos teóricos, além de ser de fundamental importância no processo autoral de produção e conceitualização dessas imagens. Assim, discorrer e estabelecer diálogos entre desenho e cinema é complementar para o entendimento do processo de desenhar, sendo também um procedimento raro, já que procura realizar aproximações e trabalhar sobre tensões daí surgidas que são mais comumente discutidas no âmbito da pintura, e não do desenho autônomo contemporâneo.

Possibilidades de enquadramento existem nas mais diversas modalidades bidimensionais e são abordadas e discutidas tanto pelos artistas quanto pelos teóricos, nas pinturas, gravuras, desenhos e principalmente a partir da Arte Moderna, com o surgimento da fotografia, do cinema e do vídeo como linguagens pertencentes à Arte. No entanto, vamos nos atentar às investigações relacionadas ao enquadramento oriundas da linguagem cinematográfica.

[As] duas características materiais da imagem fílmica [a apresentação pela forma de uma imagem plana e delimitada por um quadro], o fato de ser bidimensional e o de ser limitada, estão entre os traços fundamentais [...] da representação

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fílmica. [...] Alguns filmes, particularmente da época do cinema mudo, como, por exemplo, O martírio de Joana d’Arc, de Carl Theodor Dreyer (1928), manifestam uma preocupação com o equilíbrio e a expressividade da composição no quadro que nada fica a dever à da pintura (AUMONT, 2012: 19-20).

Desse modo, podemos propor uma relação entre o desenho e o cinema, em primeiro lugar, por tratar de uma relação pouco discutida e abordada nos estudos relacionados a essas duas linguagens – uma vez que nas teorias e materiais onde essa questão é desenvolvida há uma limitação ao campo da pintura. Em segundo lugar, pelo fato de a arte cinematográfica ser uma linguagem em que a imagem foi dada, em seu surgimento, como aquela que se apresenta de forma inédita, em movimento, trazendo uma narrativa sequencial, quadro a quadro na película e dando a forma mais visível às relações do enquadramento e do campo (AUMONT, 2012). Esse movimento presente na linguagem cinematográfica (e que depois seria continuada e desenvolvida pelo vídeo e pela televisão), em suas sequências, é um dos pontos presentes no alicerce sobre o qual os desenhos aqui discutidos se constroem, tanto por tratar de questões relacionadas a ações do corpo e de registro, quanto por apresentar uma sequência narrativa, em série, pela disposição de imagens imóveis. Uma terceira razão pela qual podemos justificar a escolha pelo cinema em relação ao estudo que se desenvolve paralelamente à linguagem do desenho (que é estático) é o simples, direto e pertinente fato de ser fonte de referência e inspiração para a criação dos trabalhos aqui apresentados. Ora, cabe ao artista e ao pesquisador construir ideias e conceitos a partir dos elementos que integram os processos de criação.

O cinema e as artes plásticas sempre caminharam e se construíram juntos, desde o início do século XX. Como exemplos mais importantes para essa constatação, temos o cinema impressionista francês, o expressionista alemão, o dadaísta, o abstrato e o surrealista – esse último ainda mais conhecido pelo grande público por ser realizado através de artistas consagrados do modernismo, como Luis Buñuel (1900-1983), Man Ray (1890-1976), Salvador Dalí (1904-1989), Marcel Duchamp (1887-1968) e Jean Cocteau (1889-1963). Independentemente de o filme ser ou não realizado por artistas plásticos, esses contribuíram de alguma maneira para o surgimento dessas produções – seja na referência estética, seja dentro do próprio filme, com a colaboração e execução de cenários e objetos. Essa união e

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parceria entre ambas as linguagens ganham força na arte contemporânea, cujo hibridismo entre as modalidades artísticas, já tanto discutido em outros estudos, é uma de suas características. Cineastas como Peter Greenaway e Akira Kurosawa1,

por exemplo, têm como processo de construção de suas cenas imagens que eles mesmos produzem pintando ou desenhando. Assim, as séries de desenho aqui apresentadas e estudadas têm como uma das principais influências a linguagem cinematográfica, no que se refere às escolhas de enquadramento da imagem, a alguns pontos da representação do ator diante da câmera fechada e no uso de uma palheta voltada à monocromia e à acromia.

Mencionado o motivo de referência acima, cabe destacar o que, dessa linguagem, cumpre papel de elemento referencial no processo de criação dessas obras. Podemos afirmar que, se nas séries de desenhos o gesto é presente via observação ou invenção e tem como ponto de partida ações observadas no cotidiano, nas pessoas, ou na própria ficção, em filmes, é relevante apresentar algumas obras fílmicas onde situações gestuais se aproximam dos desenhos inseridos aqui. E se esses desenhos apresentam esses gestos em planos próximos, num recorte aproximativo, em enquadramento close-up, devemos dar especial atenção às questões que dizem respeito a esse tipo de plano, uma vez que o desenho final, autônomo e bidimensional (numa concepção mais tradicional da linguagem do desenho) se constrói dentro de um espaço que enquadra a imagem e que, assim como na pintura, na gravura e no desenho, é um espaço (chamado também de quadro) tido como um dos primeiros materiais sobre os quais o cineasta trabalha (AUMONT, 2012). Portanto, tomaremos como item principal dentro dessa relação a prática do enquadramento aproximado.

1 Realizada na cidade de São Paulo, Brasil, em 2010, no Instituto Tomie Ohtake, a exposição Kurosawa –

Criando imagens para cinema apresentava ao público os storyboards e os desenhos realizados pelo cineasta

japonês, que registrava cenas de seus filmes na eventualidade de nunca serem filmadas. Chegou a realizar desenhos em pequenos formatos, dentre outros, do filme Kagemusha (1980), como uma versão em artes plásticas da sua poética e linguagem originalmente cinematográficas. Sendo assim, o diretor pensava seus filmes e construía sua obra transitando, durante o processo, entre essas duas linguagens.

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2. FALANDO DE DESENHO, FALANDO DE CINEMA

2.1 Registro e desenvolvimento de ideias

A concepção que temos da linguagem do desenho na contemporaneidade reflete transformações pelas quais esta modalidade tão tradicional da arte vem passando desde o período renascentista, quando a arte era voltada ao Homem, como o próprio Leonardo da Vinci já pensava o desenho (como um conhecimento ligado ao intelecto), e ganha força a partir do Modernismo, quando os artistas pensam a arte a partir da própria arte. Nesse período, colocavam-se questões acerca dos próprios meios da arte e suas linguagens, e o desenho foi tratado, como Mário de Andrade (1975: 71) aponta, como uma prática intelectual. Considerando que o ato de desenhar está muito próximo dos indivíduos desde a infância, vale dizer que essa linguagem aproxima o público das obras aqui apresentadas tanto pelo gesto do desenho quanto dos materiais triviais utilizados em sua realização. “O desenho possui muitas facetas e, apesar de toda a tecnologia disponível e envolvida hoje em dia para a produção de imagens, o lápis e o papel ainda permanecem como fundamento rudimentar da arte de desenhar” (NICOLAU, 2010: 102). Sendo assim, a escolha do grafite comum, da caneta esferográfica, do lápis de cor e do tradicional papel branco tem uma importância na construção dessas obras por dois motivos: por aproximar o público quanto à técnica utilizada (uma vez que é comum desde a época escolar realizar qualquer tipo de grafismo sobre papel utilizando lápis ou caneta) e pelo fato de que para uma poética do simples registro (fiel à realidade, como um exercício de observação ou não, conforme trataremos a seguir) não seria satisfatório recorrer a materiais sofisticados ou não-tradicionais, como é comum na produção contemporânea de modo geral.

Pensar o desenho contemporâneo (assim como a arte contemporânea) como uma prática voltada à interdisciplinaridade, ao trânsito entre as diversas áreas do conhecimento e da cultura e à extrapolação de tradicionalismos pertencentes às suas características nos propicia uma visão ampliada do processo criativo de um artista, bem como contribui para uma leitura aprofundada e proveitosa da obra de arte. Cocchiarale (2006, p. 18), afirma que, para se compreender a arte contemporânea, deve-se deixar de lado a visão do especialista e tomar partido da

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arte como uma rede, em que todas as linguagens estão ligadas, dialogando constantemente entre si, tornando-se até interdependentes. Sendo assim, a construção da obra em desenho aqui presente tem como alicerces a sua própria linguagem e a linguagem do cinema, como trataremos ao longo deste trabalho.

Se o desenho vinha desempenhando principalmente um papel de registro, esboço e estudo antes da arte moderna (onde os artistas discutiam, com mais força, a arte através da própria arte), na atualidade, dentro do contexto da arte contemporânea, ele ganha mais espaço como categoria autônoma e independente, existindo por si só e funcionando de modo protagonista dentro de um processo de criação. Trabalhar essas questões dentro de um mesmo trabalho suscita discussões acerca do próprio papel do desenho na arte atual: no que apresentamos aqui, vemos obras que transitam entre essas duas características essenciais dessa linguagem através da ambiguidade.

[A obra é realizada por] uma linguagem das mais fundamentais da tradição artística: o desenho. Dessa linguagem, explora duas dimensões que de certa maneira sintetizam pólos opostos: a invenção e o registro.

O desenho pode ser o emblema da capacidade inventiva, projetiva, designativa do ser humano, como também ser, mais modestamente, um modo de registro, dos mais imediatos e triviais. Protagonista de um fazer ou ferramenta auxiliar. (PITTA, 2010)

A ambiguidade presente nesses trabalhos surge no próprio processo criativo: a construção da imagem se dá pelo desenho de observação somado à invenção ficcional. Para aquele, o artista se utiliza do exame do próprio corpo em partes, e em muitos casos com o auxílio de um espelho, quando é a face, por exemplo, a parte observada. A cena grafada na superfície do papel é vista, na maior parte das vezes, pelos olhos do desenhista-desenhado semelhantemente a uma imagem enquadrada por uma câmera subjetiva e protagonista, no que diz respeito ao ponto de vista e ao ângulo de registro. O espaço intimista e solitário do ateliê possibilita uma observação cuidadosa, silenciosa e atenta aos gestos congelados realizados pelo corpo, que dialogam com a teatralidade da arte performática e da representação cinematográfica. Considerar os gestos, as poses e as situações como um ato performático tem validade pelo fato daqueles serem reproduzidos e encenados num espaço privado para serem registrados por meio do desenho. E

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esse processo solitário, individual e particular, ao possibilitar situações performáticas, assume uma posição subversiva na medida em que o público é privado de assistir à ação em tempo real como espectadores das poses e ações postas pelos desenhos. Essa privação coloca, portanto, o questionamento acerca da veracidade do que é visto e tido como registro, potencializando essa discussão explicitada na própria obra.

Realizados lentamente, sem grafismos rápidos e certeiros, os trabalhos colocam, ao final, imagens que funcionam como cenas em “pausa” (pelo congelamento dos gestos observados ou imaginados) e mantêm ligações com um cinema lento, contemplativo, desprovido de ações frenéticas e edições enérgicas e múltiplas, sendo uma fonte de embasamento no desenvolvimento dos trabalhos pontuados: uma imagem cinematográfica que possui ações enquadradas de longa duração, num tempo que possibilita alto nível de atenção e contemplação voltadas a determinados planos enquadrados (sejam de cenas estáticas ou em movimento), como nas obras de Abbas Kiarostami (1940) e Apichatpong Weerasethakul (1970), acaba por estabelecer um vínculo com os trabalhos aqui referidos pelo viés do congelamento das cenas que são registradas e das sequências que expõem pequenas variações de uma mesma situação.

Esses desenhos que assumem um papel de autonomia nessa linguagem dentro da arte contemporânea não são antecedidos por esboço ou rascunho: o início do processo parte de anotações feitas dentro da rotina diária a partir do que é observado no entorno ou assistido em obras fílmicas. Essas anotações descrevem os gestos, as situações e/ou o que será apresentado ao público sobre o papel. Feitas as anotações a fim de manter a ideia e organizar o pensamento, os desenhos são realizados em sua maioria com grafite 0.7 mm num intuito de alcançar um tipo de linha que seja, num primeiro momento, fina, frágil e delicada e, durante o desenvolvimento da forma, assuma diferentes intensidades, direções e tamanhos. Linhas hesitantes para compor contornos hesitantes.

Na tentativa de estabelecer aproximação entre os trabalhos produzidos solitariamente e de modo privado (poderíamos também caracterizar esse processo como inscrito em uma dimensão de hesitação e deriva) e o espectador, dois recursos são utilizados: o primeiro, que é o da escolha pelos pequenos formatos e que exige um distanciamento físico mínimo entre o olho do leitor e a obra. Frente a frente, o público e a obra se mantêm separados por um pequeno espaço; o segundo

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é a opção por registrar as formas vistas de perto, apresentadas em detalhe, recortadas do entorno e, portanto, por um enquadramento em close-up, que por si só já possui aspecto de aproximação da forma colocada com a própria visão de quem a observa.

“O desenho não é a forma, é a maneira de ver a forma” (VALÉRY, 2012: 139). Com esse axioma, Edgar Degas (1834-1917), em conversa com Paul Valéry, confirma o aspecto de um desenho que não impõe uma representação exata, mas que a transforma em algo vivido, numa ação de alguém. Semelhantemente a essa concepção, John Berger escreve: “O desenho de uma árvore não mostra uma árvore, mas uma árvore-sendo-observada [...] Dentro do instante de observação de uma árvore, se estabelece uma experiência de vida.” (2007: 71). Ou seja, a maneira como os elementos são observados (e pensados) se traduz em desenho. Tais premissas servem de alicerce na discussão e no entendimento dos trabalhos aqui incluídos, na abordagem do corpo e dos objetos presentes no desenho, conforme discutidos adiante – afinal, os traços que compõem as formas apresentadas se mostram distorcidos, incertos, desfiados – num diálogo com as temáticas desenvolvidas e numa concordância entre conceito e estética, conteúdo e forma: a tensão do que é representado é devidamente contida no próprio traço que representa; a incerteza e a dúvida que permeiam uma sequência onde não se sabe ao certo o que surgiu a partir da observação real e o que se constituiu a partir da imaginação e da memória, impregnam também as linhas, grafadas num método que as faz apontar em várias direções, em camadas duplas, triplas e intensidades fortes e fracas, numa hesitação da própria maneira de compor a forma. Tarkovski discorre acerca da escolha do artista por determinado método no processo criativo e produtivo:

O artista nunca vai em busca do método pelo método, ou apenas em nome da estética; ele é dolorosamente forçado a desenvolver o método como um meio de transmitir com fidelidade a sua visão de autor acerca da realidade. (2010: 120) Trata-se, portanto, de assumir a linguagem do desenho como uma maneira de ver – e não de reproduzir as coisas como se colocam na realidade objetiva – assim como um cineasta faz de sua câmera um olho.

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2.2 A autorreferência e o autorretrato

A presença do corpo e sua relação consigo mesmo é uma das características principais da produção aqui discutida. O autorretrato via desenho de observação, prática tradicional dentro dessa linguagem, é colocado em dúvida a cada imagem encontrada nas séries: como seria possível o desenhista-desenhado registrar no papel suas duas mãos, uma vez que seria necessária uma das mãos para o ato de desenhar? Além disso, numa única sequência, como é possível saber até que ponto esse desenho de observação reproduz, de fato, uma realidade observada diante de situações constrangedoras e teatrais?

O processo de produção das obras ocorre de modo pouco convencional ao desenho [...]. Todos os estudos são escritos e anotações; o trabalho final, prioritariamente desenho, é sempre feito em um único ato, sem rascunho e sem arrependimento. Alguns desses desenhos são mais representações do que registro. É inviável realizar um desenho de observação das próprias mãos durante algumas dessas ações, e isso coloca em dúvida a fidelidade como registro, levantando suspeitas, sempre alimentadas pelo artista, sobre até que ponto a execução dessa ação performática foi bem sucedida (FREITAS, 2012).

Desse modo, temos o trabalho que se localiza entre a ficção e a realidade. Ora, também o ato fílmico envolve o registro captado pela câmera de uma imagem ficcional. Pensar a prática desses desenhos como um ato semelhante seria afirmar que a cada imagem realizada e desenhada temos a presença de realidade e de ficção. Ou de uma verdade inventada (FREITAS, 2012). No entanto, se no filme temos a ideia realista da imagem do corpo e dos objetos, no desenho há a possibilidade de transformar e distorcer a imagem de acordo com o desejo de quem a realiza. Essa “perfeição” da imagem fílmica e fotográfica é tratada por Gerard Richter como inválida em termos do fazer: “Talvez porque a foto me faça sofrer, por prolongar uma existência tão miserável, quando ela é uma imagem tão perfeita, eu gostaria de torná-la válida, visível, de fazê-la” (2009: 115) e completa: “o aparelho fotográfico não reconhece os objetos, mas vê. No caso do ‘desenho à mão livre’, o objeto é reconhecido em suas partes, medidas, proporções” (2009: 115).

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Partindo dessa concepção do desenho que não “copia” fielmente seu objeto, pode-se afirmar que há uma liberdade no gesto de desenhar por conta da expressão de quem o realiza. Nas palavras de Edith Derdyk:

O desenho não é uma mera cópia, reprodução mecânica do

original. É sempre uma interpretação elaborando

correspondências, simbolizando, significando, atribuindo novas configurações ao original. O desenho traduz uma visão porque traduz um pensamento, revela um conceito (2004: 112).

A presença do corpo (do artista), fragmentado pelo enquadramento, é predominada pela figura das mãos. Podemos tomá-las como membros do corpo que são primárias na experiência de mundo, da matéria e das relações interpessoais. “Tocamos nas coisas antes de estas terem sido aprisionadas pela linguagem. Tocamos nas coisas e nos apropriamos de suas essências antes de podermos falar sobre elas” (PALLASMAA, 2013: 38). É com as mãos que conhecemos o mundo pela primeira vez e ao longo da nossa existência a experiência com o outro e com os objetos se dá através do toque; com elas pegamos e sentimos a matéria, em atos de atração e repulsa, de seleção e acaso. No filme Poison, de Todd Haynes, a sequência introdutória traz a câmera aproximada acompanhando a mão do personagem, que transita entre as superfícies dos objetos na busca por algo. Tateando, procurando, conhecendo e vendo o que é necessário, a mão explora os elementos presentes ao seu redor (figura 1).

Assim como em outras obras cinematográficas, a de Haynes traz essa parte do corpo como personagem ativo dentro do enquadramento e da sequência, apresentando principalmente as mãos em close-up nas suas interações com o próprio corpo e os elementos presentes no cotidiano. No desenho há a explícita abordagem do tato como maneira primeira de ver e se relacionar com o mundo e consigo próprio.

O tato é o sentido que integra nossas experiências do mundo e de nós próprios. Até mesmo as percepções visuais são fundidas e integradas no continuum tátil da identidade pessoal; meu corpo me faz lembrar quem sou e como me situo no mundo (PALLASMAA, 2009: 103).

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na maior parte das vezes desproporcional, e assume, de certa maneira, um papel generalizado do indivíduo – o corpo do artista acaba se tornando qualquer outro corpo ao subtrair características físicas individuais e específicas do retratado. Essa abordagem é consolidada por estar diretamente relacionada à poética e às temáticas presentes nas obras: o corpo performático daquele que re(a)presenta, como um ator, incorporando ações de outrem ou as realizando quase que ritualisticamente – ou supersticiosamente –, interpreta a si mesmo e/ou aos outros; e pode, assim, ser ele próprio ou qualquer outro indivíduo.

A autorreferência é reforçada nas imagens quando essas trazem dentro de si frases escritas à mão, podendo também ser datilografadas, gravadas ou impressas: trazer uma imagem acompanhada de legenda, nos casos presentes, em primeira pessoa, cumpre um papel de complemento direto, objetivo (quase redundante), reforçando a voz de quem se apresenta na imagem. Desse modo, o artista se mostra de maneira mais integral por meio de si próprio ou de seu personagem, usando a expressão verbal via relatos em primeira voz.

Mas essa característica não está presente unicamente nas frases presentes no enquadramento. Grande parte dos trabalhos recebem títulos que escancaram a voz do autor-narrador-personagem, inteirando o que é mostrado na imagem.

Nos trabalhos cujos títulos são “Ação nº 1: fiquei alegre”, “Ação nº 2: fiz bico”, “Ação nº 3: fiquei triste”, “Ação nº 4: fiquei calado” (figura 2), os atos e estados ditos nos títulos adicionam às imagens o que se pretende destacar. As situações acusadas nesses títulos são traduzidas pelas expressões labiais desenhadas: a sensação de alegria é normalmente mostrada a outro sujeito por intermédio do rosto com um sorriso, por exemplo. Todavia, nessas situações, esses aspectos são forçados pela intervenção das mãos sobre os lábios, forjando a expressão trazida pelos títulos. A teatralidade, a representação e a mentira são pontos que podem ser destacados aqui: o sujeito, para se exibir encaixado em determinadas condições emocionais ou comportamentais, força com as mãos as expressões faciais que correspondem a essas condições, numa declarada ação performática do corpo social pontuada pela ironia.

Os desenhos da série, realizados com caneta esferográfica de cor preta, ganham força quando preenchidos por uma massa ocre, por meio do lápis de cor. As mãos, responsáveis pelas expressões labiais, são assim consideradas por exercer

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modificações na boca a fim de posicioná-la devidamente em acordo com o que os títulos trazem ao espectador. A caneta esferográfica, material gráfico tão trivial e comum, é uma escolha que se faz coerente com a característica dos desenhos, que colocam questões igualmente corriqueiras num suporte de status semelhante. E é utilizada dentro da mesma dinâmica do grafite em outros casos: ora pressionada sobre a superfície do papel, ora tocando-o levemente. Essa técnica e modo de fazer surgir a imagem em desenho possibilitam variações do preto no resultado final. Esses traços de pressões heterogêneas, realizados sob força e leveza na constituição da forma, traduzem a tensão, a contraditoriedade, a incerteza, a deriva e a dúvida que estão contidos na construção e nos temas dos trabalhos. Inserir a cor pelo lápis torna a forma mais densa, que, preenchida, pesa dentro da composição de linhas de contorno soltas, trêmulas, paralelas. A massa de cor que traz uma das inúmeras tonalidades da pele humana contamina as formas: as mãos ocres são pintadas com lápis de cor no mesmo movimento, ritmo e intensidade que os lábios, numa proposta de tornar ambos a mesma forma, impregnando as duas partes do corpo visíveis no enquadramento da mesma maneira – de modo que são destacadas e se colocam em primeiro plano pela presença da cor, como uma maneira de evidenciar e sublinhar a ação das mãos sobre o rosto, conforme já descrito.

Evandro Nicolau complementa em sua dissertação acerca da intenção contida num desenho:

A expressão da mão, o temperamento da linha, o resultado de valor tonal, da forma sobre a superfície em que se inscreve o desenho, traz consigo a revelação de uma intencionalidade e de uma individualidade, aquilo que historicamente é tratado como o estilo do artista, sua expressão pessoal (2010: 57). Diante dessa expressão livre e individual da qual o desenhista se apropria, cabe discutir aqui as questões principais que norteiam o processo de construção dos desenhos aqui apresentados, sempre ancorado à escolha do enquadramento – espaço a partir do qual tanto o cineasta trabalha quando o artista visual também. Nas palavras de Fayga Ostrower:

Quando o artista começa criar uma imagem, ele parte de um plano pictórico, uma superfície. Esta superfície ainda está

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vazia, não há nada dentro dela, mas ela já constitui uma forma espacial. [...] a superfície tem margens, limites, e, por ter limites, tem uma forma. [...] A partir de limites, portanto, intuímos a existência de uma estrutura interna. [...] [E] só podemos perceber formas ou ordenações que sejam delimitadas. [...] a compreensão depende de limites (1998: 174).

No exato momento da criação e produção da imagem, a reflexão acerca do que aparecerá dentro do espaço delimitado do papel (como no quadrilátero de uma câmera) se constitui a partir de uma concepção cinematográfica do espaço a ser trabalhado: embora o ato de enquadrar no cinema seja diferente no desenho – na medida em que o primeiro recorta uma imagem preexistente e o outro se utiliza de um caráter inventivo dentro do enquadramento – a ideia de limitar e fragmentar uma imagem vem à tona na ocasião do fazer. Assim, o que é colocado no papel é exatamente a ação representada que se mostra importante para a obra, numa tentativa de simplificar as informações visuais, os ruídos adicionais e as camadas de imagens passíveis de relações internas. Para tanto, faz-se necessário, dentro da proposta, uma aproximação máxima da situação, num close-up que possibilita uma compreensão mais proveitosa da imagem, como pontua Ostrower.

2.3 Em cena, corpo e objeto

“O corpo, por si só, não vale muito”. A frase pronunciada pela voz da narradora no filme Gefängnisbilder [Imagens da Prisão], de Harun Farocki, acompanha esse “filme-ensaio” que constrói uma narrativa a partir de imagens de câmeras de segurança de prisões, que seguem penitenciários em seus cotidianos e testemunham, através do monitoramento em planos-detalhe, momentos de gestos de amor a brigas corporais (BRUNO, 2012). Se os filmes desse cineasta, documentarista e artista plástico têm como principal tema investigar as relações entre a imagem e as suas significações (FUSCO, 2009), podemos destacar especificamente neste trabalho a relação entre o objeto e suas significações. Em determinado momento do filme, a câmera mostra um sujeito preso transformando objetos comuns do cotidiano em outros objetos; assim, colheres de metal, ao serem diariamente e repetidamente raspadas e adulteradas, transformam-se em objetos pontiagudos, do mesmo modo que um lençol pode assumir função de corda e um

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arame de objeto-escavador. A força conceitual e que nos interessa nessa relação aparece quando o cineasta coloca essa transformação do objeto pelo sujeito nomeando esses objetos alterados como “ferramentas da libertação” (figura 3). Na série de desenho que leva o mesmo título, de 2011 (figura 4), temos a presença de objetos cotidianos apresentados, em cada um dos trabalhos da série de quatro desenhos, em pares e amarrados entre si. A prática da gambiarra que é traduzida no ato de transformar amadoramente um objeto em outro ou amarrar um ao outro com um cordão torna explícita tanto no filme quanto nos desenhos a necessidade do indivíduo de que aqueles objetos triviais assumam funções que não são comumente atribuídas a eles. Se uma colher tem como principal função útil ser utilizada no preparo e no consumo de alimentos, ela aparece no filme como uma protagonista na tentativa de fuga do preso; dentro dessa reflexão, os objetos amarrados no desenho, num primeiro olhar, não estabelecem relações diretas entre eles – mas a função dessa união se dá a partir da necessidade e da busca do indivíduo por novas funções e papéis dos objetos diante de determinadas situações. O valor simbólico contido num calçado, numa chave, numa caneta etc. e os papeis que cada um desses objetos pode desempenhar mediante algum contexto específico são questões abertas e relativas para o espectador. Como exemplo desse argumento, é possível pensar se uma caneta esferográfica banal já foi utilizada por alguém sem ser para realizar uma escrita. Isto é, se uma mera caneta, cuja função é possibilitar a grafia à mão, já foi retirada de seu lugar usual para ser útil em outras funções. Não se trata de uma recorrente discussão na arte contemporânea sobre a subversão dos objetos cotidianos por si só, mas de uma relação com eles fortemente subjetiva, afetiva e dependente.

O espaço do enquadramento nessa sequência se desloca ao longo da série: cada um dos quatro trabalhos que compõem o conjunto apresenta o espaço vazio colocado em diferentes posições; ora mais à esquerda, ora mais próxima ao canto, contornados por uma massa de cor azul. Através do lápis de cor, essas margens preenchidas e de diferentes espessuras oferecem outro recorte de imagem em seu interior além do recorte do papel (se se considerar que na grande maioria das outras séries o contorno do próprio papel-suporte define o enquadramento e delimita a imagem, como as bordas de uma imagem filmada.). A monocromia, a ser comentada posteriormente, aparece no uso do azul nas margens enquadradoras e das linhas que formam os objetos, numa sintonia entre a forma e a margem. Dessa

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maneira, é possível afirmar que o corpo do sujeito contemporâneo é dependente de objetos corriqueiros em diversas camadas funcionais e sob diferentes graus emocionais e pessoais. Essa questão estará presente ao longo da produção aqui apresentada, representando objetos triviais isolados ou em interação com o sujeito e contendo uma narrativa que se faz parcialmente transparente através da âncora com os títulos dos trabalhos.

Essa fragilidade do corpo contemporâneo, que no caso presente não faz referência a uma condição física, mas emocional, é um tema presente no centro de todos esses desenhos onde o corpo aparece. O corpo, que responde a estímulos internos emocionais, busca apoio em si próprio ou em objetos externos. Como observa Rilke: “Uma mão apoiada no ombro ou na coxa de outro corpo já não pertence completamente àquele de quem ela veio: dela surge algo novo, o objeto que ela toca ou agarra, algo que não tem nome e não pertence a ninguém, o que passa a importar é esta nova coisa” (2004: 45). Esse tema do corpo dependente, do corpo em busca de “bem-estar” ou de “conforto”2, da procura por elementos e

pequenas ações “aliviantes” e “iluminadas”, é comentada por Luisa Duarte:

Em uma das séries de trabalhos são reproduzidos movimentos realizados com as mãos, facilmente reconhecíveis, como os de fazer figa, imitar um coração ou fazer sexo. Tais gestos vêm acompanhados das seguintes frases: "Eu posso ter o que eu quiser"; "Eu posso amar quem eu quiser"; "Eu posso foder quem eu quiser". Em outra sequência de desenhos, uma lâmpada acesa (colorida de amarelo) aparece em diversas partes do corpo, evocando a possibilidade deste ser um receptáculo para a aparição de "luz". [...] Trata-se de olhar para esses rituais que incorporamos e que nos são endereçados cotidianamente, em gestos e discursos, como sintomas de uma cultura. Expandindo, o que está figurado em gestos banais nos

desenhos [...] pode ser transfigurado

para mensagens recebidas diariamente em propagandas, livros de autoajuda, terapia de toda sorte, no uso cada vez maior dos psicofármacos, ou em tantas outras modalidades de busca por bem-estar e "qualidade de vida". A paciência do olhar nos fará também notar a presença constante de um traço nervoso, como que trêmulo, em todos os trabalhos. Como se o artista, com isso, buscasse traduzir a ansiedade e a instabilidade (impregnadas no corpo mesmo) que, no fundo, caracterizam

2 Termos de significação relativa – uma vez que o que é considerado “conforto” para um sujeito não

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esse indivíduo contemporâneo, ávido por soluções, conquistas, por algum tipo de "luz". Indo além, podemos pensar que esse traço empregado [...] é representativo da natureza ansiosa que constitui o homem atual e também a evocação de uma urgência do próprio artista em metaforizar tal estado de coisas. (DUARTE, 2009: 63)

O sujeito contemporâneo, nessa busca desenfreada por prazer, conforto, estabilidade, acaba por realizar ações e promover situações que ora são subjetivas ora repetidas ao longo de gerações. Usar uma parte do corpo – as mãos – para, num movimento simples dos dedos, crer na realização e na conquista de um desejo, acaba ganhando um aspecto de ato performático, teatral. Sobrepor o dedo médio da mão ao dedo indicador, cruzando-os, é um sinal simbólico de ajudar na torcida para que algo que se almeja se concretize. Simular, com o dedo polegar ereto e o indicador esticado e projetado para frente, a figura de um revólver, para muitos que o realizam pode ser um gesto libertador de vingança, de provocação, de expressão do sentimento de fúria quando é direcionado a alguém com o qual não se mantém uma relação agradável ou positiva (figura 5).

Esse corpo que é matéria e que não vale tanto quanto parece, conforme consta na obra de Farocki, também assume um papel de alívio. Seja por um gesto direcionado a outra pessoa ou elemento, seja para si mesmo, são pequenas ações libertadoras – na medida em que funcionam como respostas a um acontecimento maior e/ou a um sentimento interno e pessoal, e que possui a probabilidade da comunicação.

Reagimos ao gesto com extrema atenção e poder-se-ia dizer que o fazemos segundo um elaborado código que não está escrito em lugar nenhum, que ninguém conhece, mas que todos compreendem. (SAPIR, 2010 apud DAVIS, 1979: 19) Athina Rachel Tsangari é uma cineasta grega que em seu segundo filme, intitulado Attenberg!, coloca esse frágil corpo enquadrado de modo próximo e também com desequilibrado e descentrado recorte numa proposta de discutir a decadência do corpo do homem contemporâneo (figura 6). Para tanto, suas personagens imitam animais, dançam aleatoriamente e executam gestos estranhos, constrangedores e fracassados numa busca pela liberdade, pela autenticidade e na luta contra a morte. Há, nesta obra, segundo Luiz Zanin, um “mal-estar profundo que

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se esconde atrás da aparente leveza” (2011).

A série “Meus pequenos talentos” (figura 7), aparentemente dotada de leveza, também contém a presença de um mal-estar. A sequência coloca o sujeito como corpo que precisa mostrar qualidades para alcançar um estado emocional satisfatório. Se num primeiro momento é possível pensar esses gestos como algo que não passa de uma brincadeira infantil, logo nos deparamos com um indivíduo adulto com frases determinantes diante de seus atos expostos: “Consigo separar os dedos em pares”, “Consigo dobrar a língua em ‘U’”, “Consigo dobrar só as pontinhas dos dedos” e “Consigo tocar a ponta da língua no nariz” demonstram essa leveza de um ato ingênuo como máscara para uma intenção maior. Esse corpo, já tratado como insuficiente por si só, realiza gestos, por mais banais e comuns que sejam, para alcançar o que podemos chamar de sucesso. “[As obras] apresentam o artista desta segunda década do século XXI como um indivíduo destituído de qualquer atributo que o qualifique acima de sua condição humana” (CHIARELLI, 2013). Assim, o sujeito não realiza nenhuma ação especial ou complexa; pelo contrário, vale-se de gestos ligados ao universo infantil (quando crianças mostram umas às outras o que conseguem fazer com o corpo, realizando caretas, alongamentos, torções) para provar para si mesmo que é um ser dotado de talento. A ironia é um elemento contido nesse trabalho, dentre outros, por trazer à tona situações e declarações que esbarram no ridículo ao propor uma discussão séria e relevante acerca do indivíduo contemporâneo.

Nos quatros desenhos da série, o corpo se apresenta cortado em

close-up num pequeno espaço quadrado de papel. O público, naturalmente, aproxima-se

para ler as frases que acompanham o desenho no enquadramento, igualmente grafadas com linhas desfiadas e trêmulas. O gesto na obra, assim, pode estimular o gesto do/no público no processo de aproximação – tanto em relação ao gesto de encontro em direção à obra, que é pequena e exige esse close-up corporal por parte do espectador, quanto em relação ao tema, comum e conhecido de todos. O corpo do artista é o corpo de um personagem e corpo do público, que pode se ver nas obras e nos gestos.

Assim, torna-se possível enxergar em uma obra como essa, intimista e calcada em gestos do cotidiano, uma tradução de uma situação política, no sentido daquilo que diz respeito a muitos. Essa capacidade de extrair do mínimo uma reflexão

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sobre o macro é uma característica da arte contemporânea. Se a modernidade buscou em modelos universais seus motivos de reflexão e suas buscas por "soluções", a contemporaneidade testemunha outra estratégia. Abordagens universais perdem sentido, soluções gerais também. No lugar da dinâmica moderna, ganha força a aproximação paciente e atenta que sabe ver ali, no mais próximo e cotidiano, os sintomas de uma cultura e suas doenças e, por que não, o solo no qual correm suas possíveis brechas. Brechas que signifiquem alguma dose de resistência, crítica e poesia diante de um mundo sôfrego por uma saúde e equilíbrio fakes, que, se por fora brilham e sorriem, por dentro tremem assustados e ansiosos, tais como os traços dos desenhos de Suci. Que, por sinal, parecem sempre prestes a estilhaçar. (DUARTE, 2009: 63)

2.4 Enquadramento monocromático

O diretor austríaco Michael Haneke, ao comentar sua obra Das Weisse

Band [A Fita Branca], de 2009, rodada em filme preto e branco, diz sobre sua opção pela monocromia: “O preto e branco é muito bonito, é rigoroso, não distrai o olho” (2014). Com essa afirmação do cineasta podemos validar a ideia de que uma imagem acromática, onde não há grandes contrastes de luminosidade, torna o olhar do espectador mais atento à forma (ou à ação) (figura 8). No filme citado há personagens inseridas em cenários internos dotados de inúmeros elementos cenográficos que, se originalmente possuem cores variadas, nas imagens do cineasta são fotografados em escala de cinza, simplificando as variações tonais.3

Grandes contrastes e/ou variedades de matizes num mesmo campo imagético dirigem o olhar do espectador através das grandes ou curtas ondas de luz. Esse pensamento se relaciona diretamente com os desenhos aqui discutidos, principal e primeiramente porque o tema abordado é o próprio gesto e objeto apresentados (como no cinema) e a intenção como autor é atrair o olhar do público para esse gesto; em segundo lugar porque simplificar ao máximo as informações no desenho através do uso de poucos elementos da linguagem visual contribui para o foco na ação do gesto e na presença da linha. Sendo assim, construí-lo em preto e branco é de grande pertinência no desejo de homogeneizar, até certo ponto, os elementos presentes na imagem, limpando-a de ruídos e obstáculos de luzes variadas.

3 Fábio Andrade, em sua crítica ao filme em questão, comenta: “Haneke usará o contraste com o preto para fins

de expressiva simplificação. É justamente a anulação das gradações do espectro humano que o diretor busca em seu filme, onde o vermelho também parecerá preto, e o amarelo se aproximará do branco.”

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Tarkovski comenta, não sem possíveis controvérsias, que “[...] embora o mundo seja colorido, a imagem em preto e branco aproxima-se mais da verdade psicológica e naturalista da arte” (2010: 166).

Ora, esse conceito de uma imagem limpa e de certa elegância obtida através dessas duas cores situadas em lugares opostos na escala de luminosidade é um conceito construído culturalmente, conforme cita Luciano Guimarães. De qualquer maneira são duas cores fundamentais na sintaxe visual:

A mesma escolha paradigmática entre branco e preto, a partir da origem física dessas cores, comparece na oposição entre signos positivos e negativos, entre o sim e o não, embora o preto possa ser apresentado como presença de grafismo (figura) e o branco como ausência de grafismo (fundo) na percepção de padrões visuais (GUIMARÃES, 2000:58)

Ainda citando o filme de Haneke, essa sugestão do branco como sinônimo de pureza se evidencia no destaque que o diretor faz saltar ao contrastar o branco com o preto. Se as tonalidades e diferenças de claridade de uma cor é alcançável através do tipo de filme fotográfico e edições pós-produção no cinema e da mistura química entre determinado matiz e a cor branca quando se trabalha com pigmento na linguagem pictórica, pelo desenho à grafite essas variações tonais e de claridade são conseguidas a partir da ação da mão sobre a matéria, ora exercendo mais força sobre o papel com o grafite, ora tocando levemente a ponta dele na superfície do suporte. O gesto da mão que domina o material sobre a superfície é o protagonista na obtenção das tonalidades. E a escolha por um papel de cor branca e com textura lisa para a execução do desenho tem justificativa nessa defesa pelo contraste e ausência de elementos que possam funcionar como informações complementares desnecessárias às questões que são apresentadas na obra.

Através da variação da pressão do grafite sobre o papel é possível conseguir diferentes e inúmeros tons de cinza dentro do mesmo desenho. A série “Sem título”, de 2013 (Figura 9), é composta por quatro trabalhos onde a presença do corpo humano se mostra fragmentado. Aqui, a interação das mãos do indivíduo entre si gira em torno de ações e gestos corriqueiros e conhecidos pela grande parte dos indivíduos contemporâneos da cultura ocidental, que se repetem ao longo do tempo e ao longo das gerações, atingindo grande parte dos variados tipos do relacionamento humano desde a infância, como apertar as mãos num modo de

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cumprimento, enganchar os dedões ou os dedos mínimos como maneira de deixar claro e formalizar ludicamente um pacto de, respectivamente, rompimento ou aproximação, e entrelaçar todos os dedos quando há uma interação entre as mãos de um casal apaixonado.

No entanto, o sujeito exposto na série, ao repetir esses gestos corriqueiros e exercendo essas ações consigo próprio, abre a obra para uma leitura contornada por certa camada de humor: realizar gestos que tradicionalmente se dão entre mãos de pessoas diferentes explicita uma subversão desses gestos (que traduzem uma linguagem típica de uma classe social, ou de qual é o nível de relação com o outro ou ainda a qual faixa etária o sujeito pertence) – e é dotado de um simbolismo pertencente ao plano das relações, mas que mergulha numa narrativa solitária, intimista e particular. Já foi dito o processo criativo pelo qual se constroem os desenhos: dá-se sobretudo através de um fazer solitário e privado, na medida em que o desenho é feito a partir da observação do próprio corpo do artista-desenhista como modelo. E, aqui, “Ficar de bem” ou “de mal” de si próprio não é um comportamento improvável, principalmente para o homem contemporâneo ocidental. Contudo, realizar tal gesto (tomado na infância como “jogo” de criança em suas relações interpessoais) e realizá-lo consigo próprio gera um estranhamento com carga trágica e irônica. Como nos filmes do diretor estadunidense Todd Solondz – em que há forte presença de um humor ácido diante de situações tristes, ridículas, trágicas, constrangedoras e absurdas, mas passíveis de serem vividas em diversos aspectos (PRADO, 2001) –, existe uma atmosfera dotada de um humor corrosivo, num ato de sorrir por fora, mas se estilhaçar por dentro (DUARTE, 2009) nas séries de desenhos aqui tratadas, podendo estimular no espectador das obras um riso nervoso ou uma tristeza “bem-humorada”.

Através de um olhar voltado à analise estética dessa série, é pertinente afirmar que existe, no mesmo espaço, pontos antagônicos da plasticidade: o peso contrapondo-se à leveza, forma-linha versus forma-plano, a fragmentação em oposição à continuidade (FILHO, 2012). Parte dessa constatação se justifica pela maneira como a linha e a cor são usadas nessa série especificamente. Se na grande parte dos desenhos aqui apresentados as imagens são construídas e compostas apenas por sutis linhas canhestras de diferentes tonalidades de cinza, sem a presença recorrente de uma massa de cor, aqui nesta série pode-se destacar certa alteração constituinte do processo artístico no que diz respeito ao modo como é

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construída a imagem: a inserção de formas sólidas. O contraste surge, então, com a presença de linhas descontínuas em movimento num contraponto com massas de cor dentro do mesmo espaço. João Gomes Filho, ao tratar a questão do movimento, afirma: “qualquer imagem visual que apresente os objetos por meio de qualidades perceptivas, tais como forma de cunha, direção oblíqua, superfície sombreada, linhas ou volumes ondulados, por exemplo, transmitirá impressão de movimento” (2012: 67). Nessa expressividade tensa obtida, portanto, das ondulações e desfiados das linhas no desenho, há um peso contrastante: são quatro faixas que funcionam como tarjas abaixo do desenho do gesto e o principal motivo de ali estarem é a referência ao formato widescreen cinematográfico.

Sendo o widescreen um formato de espaço onde um quadro irá se compor, num recorte imagético, sua função não é autônoma dentro da composição, como um elemento plástico presente e significante; ele apenas recorta a imagem e delimita o que será mostrado – além de caracterizar o formato e tamanho do filme utilizado. Na série em questão, onde a citação ao widescreen aparece, há a repetição por quatro vezes da tarja, uma sobre a outra, numa escala crescente de luminosidade – se vista de baixo para cima, verticalmente – e é presente dentro do campo como elemento gráfico, matérico, registrado. Essa característica expõe na mesma composição a obsessão pela tarja, materializando-a e registrando-a como algo palpável como um corpo ou objeto - e pelos tons de cinza que as linhas do gesto podem assumir, como um mostruário de tons de cinza ali obtidos, em ritmos diferentes de pressão da mão. Sobre o retângulo branco, as faixas, por serem massas preenchidas de cor e compactas em suas formas, dão um peso à metade inferior da imagem, explicitando o quanto uma massa pictórica realizada com a cor preta tem densidade diante do branco ou de elementos frágeis, ao mesmo tempo em que confina e oprime o espaço vazio onde o gesto será desenhado. Assim, o restante das linhas pretas e cinzas do gesto ganham força em sua expressividade, vibração de deslocamento e também chamam o olhar do espectador só para o movimento registrado (como tema e como técnica), mas acabam ofuscadas e oprimidas pela solidez das tarjas.

Outra série que podemos considerar pertinente para esta análise é composta pelos trabalhos “Adormeci a minha mão”, “Adormeci a minha fala” e “Adormeci o meu pé” (figura 10). Neles, vemos partes do corpo amarrados com um tipo de cordão: no primeiro vemos surgir o pulso apertado por esse elemento; no

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segundo, a língua do sujeito é igualmente amarrada e, no terceiro, é o pé que tem os dedos apertados e amarrados. Também se reportando a certas brincadeiras de infância, como quando se segura fortemente o pulso com a outra mão para vê-la ficar vermelha, estes três desenhos trazem a ironia característica através dos títulos e legendas. Adormecer uma parte do corpo impedindo uma ideal e natural circulação sanguínea é um ato que não acaba em si mesmo. No caso do segundo trabalho da sequência, o sujeito aparece com a língua amarrada e o verbo “adormecer”, ali, presta contas tanto ao fato físico do adormecimento e formigamento que tal situação pode provocar, quanto à escolha do indivíduo (lembrando que as legendas vêm na primeira pessoa do singular) de se manter em silêncio, de suprimir sua fala, sua voz. A mesma ocorrência é vista nos outros dois desenhos: o impedimento do tato, do movimento, da locomoção (quando se pensa em mãos e pés). Com suas linhas que contornam e compõem em vermelho, a pulsão exposta pela própria característica do traço é acentuada por essa única cor. Esses trabalhos trazem ainda palavras datilografadas também em vermelho, cujo conteúdo é a repetição do próprio título de cada trabalho. Nesse caso, a cor do texto sendo semelhante à cor da imagem facilita a existência de um olhar homogêneo e sem desvios causados por contrastes de matiz, uma vez que a imagem em sua totalidade é produzida em uma única cor. Lembrando a fala de Haneke, temos uma uniformidade dentro do quadro que, por conta da cor, torna texto e imagem ainda mais relacionados e integrantes do mesmo elemento imagético: complementam um ao outro de modo direto e possuem a mesma cor na letra e no traço do desenho.

Essa inexistência de variações de matiz contribui para o entendimento desses desenhos como uma prática voltada ao registro simples e urgente. A falta de rebuscamento e de uma complexidade no uso de cor são pontos que permitem uma atenção voltada à ação registrada pelas linhas e à ação da própria linha no espaço do papel. Nesse caso, a ação que também contém certa dose de humor e constrangimento, resultando numa possível tragicomédia4, ganha força pela situação

apresentada e não por enfeites ou complementos estéticos.

4 Ester Abreu Vieira de Oliveira comenta em seu artigo sobre o cômico, o trágico e a tragicomédia que trocar a

situação trágica e angustiosa de ver um homem sofrendo para outros ambientes variados, por intermédio de situações ridículas, é uma mudança risível.

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3. GESTOS EM CLOSE-UP

Na definição de Jorge Machado (2014), o close-up seria um plano “que enfatiza um detalhe. (…). Tomando a figura humana como base, este plano enquadra apenas os ombros e a cabeça de um ator, tornando bastante nítidas suas expressões faciais”; ou, seguindo a definição de Rodrigues (2005: 30), seria um plano que “mostra detalhes e enfatiza a carga dramática do que é mostrado”. Ora, os desenhos em pequenos formatos, como já foi dito, além de abordar uma temática naturalmente intimista, apresentam-se ao público numa forma também intimista, já que, sendo pequena, exige a aproximação física do espectador perante a obra, num exercício de fruição que se desenrola e se constrói numa curta distância entre a visão e a imagem. Estes gestos simples, presentes nos trabalhos, e à primeira vista tão triviais, necessitam de um enquadramento que seja coerente com sua poética e sua proposta. Se a função do plano-detalhe fechado é enfatizar a carga dramática do que é mostrado, essas imagens são pertinentemente construídas dentro desse recorte aproximativo. Para além da própria imagem que se apresenta em detalhe, como um recorte de câmera, temos uma dimensão pequena que exige do espectador a aproximação física com a obra. O gesto do espectador se assemelha, aqui, ao gesto da câmera ativa da aproximação ao objeto. Temos, então, um close-up em duas vias: da imagem contida no enquadramento do papel e do olhar do espectador dentro do espaço expositivo, como se o olhar tivesse um papel de zoom e de complemento à intenção básica desse plano aproximativo.

Para trazer um primeiro exemplo, vale destacar a obra Der Siebente

Kontinent [O Sétimo Continente], outro do diretor austríaco Michael Haneke,

realizado em 1989. No enredo inspirado em uma história verídica, uma família de classe média austríaca resolve cometer suicídio. Para tanto, o diretor opta por filmar os momentos prévios à morte dos três personagens utilizando-se do close-up, no momento em que a família decide destruir todo o rastro deixado em seu lar antes da autodestruição. Veem-se planos-detalhe das mãos de cada personagem “matando”, por meio da destruição, os objetos presentes na casa: rasgam fotografias, desfiam roupas, cortam peças de decoração, martelam móveis. À medida que esses objetos (e suas memórias) são destruídos, a câmera vai tomando distância para que seja possível visualizar atos de violência do corpo em seu estado completo contra objetos de maior dimensão (figura 11). Ora, a câmera em close-up nos momentos iniciais

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dessa aniquilação da matéria deve ser vista como um olhar cúmplice e aproximativo desse ato silencioso que é finalizar a existência de pequenos objetos, trazendo o espectador o mais próximo possível da imagem. De certo modo claustrofóbico, esse modo de filmar as cenas contribui para a tensão gerada pela situação destrutiva, na medida em que se fecha em poucos elementos e através de uma câmera subjetiva – o que a personagem vê, encara e com a qual se relaciona, nós, espectadores, igualmente vemos, encaramos e nos relacionamos. A sequência de cenas mantém um paralelo com a série de desenhos “Objeto Assassinado”. Esses frames desenhados mostram, em enquadramento subjetivo (autorretrato), as mãos do sujeito aparecendo como violadoras de alguns objetos. Camisa, retrato (ilustrado como um pedaço de papel) e uma flor são rasgados e quebrados como um ritual de morte à carga de memória e história que esses objetos carregam e expõem ao indivíduo (figura 12). Espécie de voodoo não-sagrado, esse ato é comum entre pessoas que almejam eliminar de seu cotidiano elementos que possam deixar vir à tona lembranças e sensações não desejadas: rasgar a fotografia onde aparece um sujeito pelo qual houve rompimento de uma relação ou quebrar um presente pelo qual inexiste admiração por quem o ofereceu. Essa sequência traz uma variação de uma mesma situação, característica recorrente em todos esses trabalhos seriais e a posição das mãos ao longo da sequência são diferentes, o que evita a monotonia quando colocada sobre a parede. A legenda datilografada faz menção aos objetos ali presentes e remetem a uma situação de memória. Pode-se perceber esses trabalhos como frames de uma narrativa fílmica, pausados e transferidos para o espaço semelhantemente bidimensional do papel.

Confinar o corpo dentro de um plano é também uma característica trazida pela cineasta argentina Lucrécia Martel (figura 13). A produtora contemporânea produz suas imagens, em especial na obra La Ciénaga [O Pântano], encaixando de modo apertado os corpos das personagens dentro do seu quadro. Cléber Eduardo comenta: “Vemos vitalidade e degradação, vemos prazer e dor. Lucrécia filma em espaços apertados, às vezes cola a câmera nos corpos, deseja-os, corpos colam em outros corpos”. Se o que aparece dentro do plano é aquilo que o autor quis expor é uma constatação que não temos dúvida, Martel vai além e coloca situações importantes para fora do enquadramento para deixar recortes do corpo e de gestos carregados de sentido no interior do seu recorte de câmera. Numa determinada cena, torna possível a aproximação física do corpo de uma mãe e seu filho seminu,

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deitados numa cama; os corpos se tocam como que obrigados pela seleção de plano da câmera – é ela quem empurra a matéria visível para seu interior, ela que os faz agir sutilmente por meio do toque5. O diálogo – e, portanto, o enredo verbal, a

palavra dita – aparece como pano de fundo de uma imagem que incomoda pelo teor erótico entre pessoas de forte grau parentesco. Numa outra situação, presente na mesma obra, duas crianças têm seus rostos filmados em close-up, olhando fixamente para alguma situação que ocorre fora do quadro – e pela qual o espectador não tem acesso. Nesse caso podemos destacar o fato de que a ação que chama a atenção dessas duas personagens infantis não é mais importante que a ação deles – realizada pelos olhos – e de suas expressões faciais perante o que veem. O gesto é o principal. Esses dois exemplos do enquadramento como agente confinador protagonista afirma ainda mais a ideia do recorte do plano como principal contribuinte na construção de uma poética do gesto na imagem bidimensional.

As cenas de O Pântano constroem-se em função da predominância das tomadas de curta duração e da presença majoritária de planos médios e planos detalhe, com enquadramentos nos quais os corpos e os objetos aparecem fragmentados ou tomados de ângulos inusitados. [...] Como afirma Weiss (2010), os enquadramentos deixam ver pouco, obstruem o olhar, embaçam o que deveria ser contemplado – o que vemos é parcial, limitado; corpos sempre quebrados, distorcidos e desfocados. (BARRENHA, 2013: p. 137, 138) Essa aparição de corpos e objetos em fragmentos e desfoques no trabalho de Martel são recorrentes de maneira semelhante na produção dos desenhos abordada neste estudo. A série “Objetos intocados”, de 2010, apresenta seis objetos num enquadramento cuja centralização é suprimida (figura 14). Neles, a figura é “intocada” (como sugere o título) tanto pela visão do espectador na medida em que, em sua maioria, não aparecem por completo, quanto pela atmosfera mí(s)tica que esses objetos assumem em seu contexto: trata-se de elementos cotidianos que em algum momento transformam-se em objetos fetichizados e sagrados na memória do sujeito-corpo que mantém contato com eles. A série foi produzida a partir de histórias reais e ficcionais que apontam situações em que

5 Cléber Eduardo comenta sobre La Ciénaga: Temos uma intimidade sem distanciamento e [de uma] excessiva

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indivíduos humanizam objetos que tiveram participação protagonista numa situação particular. Como exemplo disso, temos no primeiro desenho a figura fragmentada e cortada ao meio (pelo enquadramento) de uma poltrona. Nela, faleceu um ente querido e hoje o assento mantém a presença dessa memória. No segundo, a presença de uma faca pode sugerir um ato violento ou de libertação executada por ela. No terceiro, temos um porta-retratos que pode conter a fotografia de um momento tomado como positivo ou negativo – e que em ambos os casos esse objeto exerce poder sobre o indivíduo que o possui, tanto para escondê-lo, virando a imagem para baixo a fim de aparecer o verso do objeto, quanto para colocá-lo em um lugar de destaque. No quarto exemplo temos uma cama sobre a qual se faz presente um lençol desarrumado: nesse rastro humano sobre o objeto guarda-se a memória de uma filha que, após se levantar sem arrumar o leito, nunca mais voltou para casa. No penúltimo exemplo da série, uma chave que guardou por anos objetos de infância. E já no sexto e último desenho da série temos o exemplo mais direto e objetivo dentro do conceito de intocabilidade: a imagem de uma santa católica; mesmo fabricada com materiais nada nobres (nas pequenas esculturas que representam os santos do catolicismo e tão populares nos domicílios de várias camadas sociais, são usados, normalmente, gesso ou cerâmica), esse tipo de objeto (dentre outros pertencentes às religiões) é tomado como a presença do próprio santo-deus; sendo assim, é blasfêmia e desrespeito inseri-lo em espaços não adequados, bem como vergonhoso o ato de quebrá-lo ou arremessá-lo. Esses objetos dotados, portanto, de uma aura ligada à memória, à personificação e até ao misticismo, são colocados nessa série como exemplos de materiais intocáveis, humanos, porém eternos. Mostrá-los de modo incompleto e fragmentado pelo corte do papel-suporte contribui para a ideia de mistério e de sagrado que esses elementos transmitem para cada indivíduo.

O uso recorrente de enquadramentos descentrados questiona a tradicional relação entre centro e margem, já que em muitas ocasiões ambos aparecem como intercambiáveis. A fronteira entre os dois se dilui pelo fato de construir um novo espaço, assinalado por uma nova lógica. Não estamos mais na presença de uma imagem clara, centrada, para a qual o espectador se vê conduzido sem interferências, senão ante um espaço que continuamente se reconfigura, exigindo uma nova forma de olhar, um novo circuito do olhar (VERARDI, 2005, p. 9 apud BARRENHA, 2013, p. 138).

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