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Explicação Causal e Interpretação dos Signos segundo os Estóicos

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Academic year: 2021

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Explicação Causal e Interpretação dos Signos segundo os

Estóicos

*

ISABELLE KOCK

Université de Provence Aix-Marseille I FRANCE

Resumo: O artigo busca analisar a teoria do signo como fundamento da epistemologia estóica. Opondo-se a Aristóteles, os estóicos propõem fundar o conhecimento humano não mais em uma relação de causalidade, mas em uma teoria do signo como reveladora do que nos é oculto. Para isso, interpretam o signo como um condicional cujo conseqüente faz avançar o conhecimento. A análise da estrutura condicional do signo e as razões que levaram os pensadores estóicos a defendê-la constitui o principal objetivo do artigo.

Palavras-chave: Filosofia Grega. Estoicismo. Aristóteles. Semiologia. Causalidade.

Considera-se freqüentemente, e com razão, que o estoicismo constitui uma etapa importante na história da noção de causa. Como salienta Michael Frede1, um

espírito moderno pode ter alguma dificuldade em conceber como causa um certo número de coisas pensadas nessa categoria por Platão, Aristóteles ou Epicuro, como, por exemplo, o mármore, matéria da estátua; a Idéia, cuja realidade par-ticular retira por participação suas propriedades definíveis; o vazio, que entra na composição das entidades formadas por agrupamento de átomos. A dificuldade

* Tradução de Wladimir Barreto Lisboa.

1 Michael Frede, “Les origines de la notion de cause”, Revue de Métaphysique et de Morale,

1989/4, pp. 483-511, particularmente p. 484: “A noção aristotélica de causa é, portanto, completamente diferente da nossa. Mas ela não é de forma alguma particular a Aristóteles. Encontramos em Platão ou Epicuro as mesmas dificuldades que encontramos em Aristó-teles ou entre os Peripatéticos. As Idéias, assim como o vazio, não parecem ser o tipo de coisa que poderia causar algo. (Cf. Epicure, DL, X, 44)” (As referências bibliográficas são dadas conforme o original francês. N. T.)

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consiste no fato de não considerarmos o material, o modelo ou o componente de uma entidade qualquer como causa, pois pensamos que uma causa é algo que age de modo a produzir um efeito2. Eis a razão pela qual a concepção estóica de

cau-sa é uma etapa importante na história descau-sa noção, uma etapa na qual a antiga noção de causa torna-se mais inteligível para nós. Os estóicos criticavam a dade de causas defendidas por seus antecessores e procuravam reduzir a plurali-dade a uma única causa. Essa causa única é a causa eficiente, a que precisamente age:

Os estóicos admitiam apenas uma causa, a que age (unam causam esse, id quod facit). De acordo com Aristóteles, a causa define-se de três maneiras: a primeira causa, diz, é a própria matéria, condição absoluta de toda criação. A segunda, o artesão. A terceira, a forma que se impõe em cada obra, como a estátua. É o que nosso autor denomina “idos”. (...) A quarta causa é o fim para o qual a obra foi feita. Sem ela, a obra não existiria. (...) A essas causas, Platão acrescenta uma quinta, o tipo exemplar ou, no seu vocabulário, a idéia. É o modelo ao qual o artista dirigia seu olhar du-rante todo o processo. (...) Todo isso que acabas de enumerar não constitui múltiplas causas particulares, mas provém de uma única: da causa que age (non sunt

multae et singulae causae, sed ex una pendent, ex ea quae facit).3

Podemos, então, perguntar-nos se essa nova inflexão conceitual apresen-ta algum corolário na concepção estóica do conhecimento humano. Mas sobre esse ponto os estóicos parecem paradoxalmente em atraso por relação a Aristó-teles, o qual considerava que o conhecimento científico repousa sobre uma expli-cação causal das coisas.4 Entre os estóicos, o peso da explicação causal concorre

com um outro modelo epistêmico, que chamarei “interpretação dos signos” ou “semiologia”. Gostaria de examinar aqui as relações entre esses dois tipos de

2 Idem, “De modo geral, nosso uso do vocabulário da causalidade parece estar

forte-mente marcado pela idéia segundo a qual, na relação causal, existe alguma coisa que, de um modo ou de outro, faz algo, não importa o que, produzir ou realizar um efeito”.

3 Sénèque, Lettres à Lucilius, carta 65.

4 Aristóteles, Seconds Analytiques, I, 2, 71 b 9: “Pensamos conhecer cientificamente

(epistasthai ) – no sentido estrito e não da maneira dos sofistas, por acidente – quando pen-samos que conhecemos a causa pela qual o fato é (quando sabemos que é ela que é a causa disso) e que isso não pode ser diferentemente. Está, portanto, claro que conhecer é algo desse tipo”.

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vestigação científica para procurar entender porque a epistemologia estóica pre-fere interpretar os signos ao invés de procurar as causas.

1. A semiologia na ausência de explicação causal

Comecemos por uma definição sumária do que é, para os estóicos, o modo de conhecimento semiológico. O termo empregado algumas vezes por eles é “semeiosis”, que podemos traduzir por “indicação a partir de um signo”5. A semeiosis consiste, portanto, em apoiar-se nos signos para desvelar as realidades

ocultas. O signo (semeion) é uma realidade evidente (prosdelon), dada à experiência direta, que, graças a seu vínculo com outros objetos não evidentes (adela), possui a propriedade de permitir apanhar, por aqueles que sabem decriptá-la, os objetos não evidentes, ou seja, subtraídos a uma apreensão perceptiva. A importância da interpretação dos signos no estoicismo, cuja dignidade atribuída à adivinhação é uma expressão entre tantas outras, é primeiramente uma resposta a um problema que se apresenta tanto a essa filosofia quanto ao epicurismo: se o conhecimento parte da experiência sensível atual, se apenas o que é percebido pode ser evidente e ser objeto de um conhecimento certo, então necessariamente não podemos ter acesso evidente a tudo, pois há muitas coisas que não podemos perceber dire-tamente. Para conhecer é preciso, portanto, passar do evidente ao oculto, do

prosdelon ao adelon. A constituição do evidente como signo e a passagem ao oculto

como interpretação são maneiras de responder ao problema posto pelo empiris-mo da teoria estóica do conhecimento.

Mesmo se passar do evidente ao oculto é freqüentemente o mesmo que descobrir uma “causa oculta” (aition adelon), o vínculo entre o signo e aquilo que ele significa não é forçosamente causal. O signo indica a conexão necessária que funda uma inferência válida, mas a natureza desse vínculo não é tornada mais

5 A. Long e D. Sedley propõem traduzir por “inferência semiótica” (cfe. Long et Sedley. Les Philosophes hellénistiques, tradução francesa de J. Brunschwig e P. Pellegrin, Paris, GF,

2001, vol. 2, p. 227 n. 2). Todavia, o termo semeiosis possui um sentido mais amplo de indi-cação, designação ou revelação (a partir de um semeion) do que o sentido mais restrito de inferência.

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clara por isso. Os estóicos distinguem grosso modo três casos: o signo é o efeito de uma causa oculta que ele significa (o fato de ter leite para uma mulher é o signo de que ela deu à luz); o signo é a causa de um efeito oculto que ele significa (um ferimento no coração é o signo de que o ferido morrerá); o signo não está de forma alguma ligado causalmente à realidade oculta que ele significa: é o caso, no-tadamente, da linguagem (os enunciados dotados de significação são signos das realidades sem serem nem causas nem efeitos) e dos signos adivinhatórios (a rela-ção, por exemplo, entre o signo astrológico de alguém e sua morte não é enun-ciada como uma relação causal). Malgrado a ausência de reconhecimento perfeito entre as relações de causalidade e as de significação, há visivelmente um vínculo muito forte entre os dois campos, se bem que um certo número de textos sugere que a interpretação dos signos é um substituto da explicação causal lá onde essa última não é possível para o conhecimento humano. Se todas as realidades que compõem o mundo fossem-nos evidentes, não teríamos necessidade da interpre-tação e apreenderíamos todas as relações causais em virtude das quais tudo se produz necessariamente. O mundo seria para nós o que ele é para os deuses, um espetáculo sem sombras, sem mistério, dado à contemplação. É porque nosso conhecimento apreende de forma evidente apenas alguns pontos deste mundo – aqueles dados a uma apreensão atual – que estamos no mundo, para retomar uma expressão de Epiteto, não somente como espectadores, mas sobretudo como exegetas: Deus (ou seja, o princípio organizador de todas as coisas) “intro-duz no mundo o homem para contemplar Deus e suas obras e não apenas para as contemplar, mas para interpretá-las”6. Esta exigência de exegese estabelece os

limites do conhecimento humano que não pode sair da parcialidade que lhe impõe sua origem perceptiva a não ser por meio dos signos e da arte de interpre-tá-los. É o que atesta a distinção entre o conhecimento que um deus pode ter das coisas e o que está ao nosso alcance:

Já que todas as coisas se produzem em virtude de um destino (como mostraremos adiante), caso existisse um homem capaz de ver com seu espírito a conexão de todas as causas, certamente nada lhe escaparia. Com efeito, quem apreende as

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causas das coisas futuras deve necessariamente apreender todas as coisas futuras. Mas já que ninguém pode fazer isso a não ser Deus, o que é possível dar ao homem é a presciência do futuro a partir de certos signos que anunciam o que irá se produzir, pois todas as coisas que vão acontecer não ocorrem de uma só vez.7 Um conhecimento perfeito e complexo seria uma maneira de “ver com o nosso espírito” e de ver a “conexão de todas as causas”, o que é uma das defini-ções estóicas do destino. O destino é “um encadeamento (ou seja, uma ordem e uma ligação invioláveis) de causas”8, um “certo ordenamento natural e eterno da

totalidade das coisas, umas seguindo às outras e alternando-se em um inviolável entrelaçamento”9, “um ordenamento e série de causas”10. Para uma tal visão,

na-da seria não-evidente, adelon, mas na medina-da em que ela não é possível para nosso espírito, resta tomar o que podemos ver como um signo para decifrar o que se anuncia.

2. Conexões causais e conexões semânticas

Se a constatação dos limites de nosso conhecimento não encoraja os es-tóicos ao ceticismo, mas à pesquisa e se essa pesquisa adquire para eles a forma da interpretação, isso se dá na base de sua afirmação do destino e de um destino providencial. A interpretação é possível, a passagem do signo ao referente é fac-tível, porque cada coisa no mundo está ligada às demais e nada surge “de um mo-mento a outro”, sem depender de causas anteriores. São as conexões causais reais que fundam a possibilidade das conexões interpretativas. E a conexão interpre-tativa é capaz de produzir uma forma de conhecimento lá onde a conexão causal permanece oculta para nós, pois o destino não é somente um encadeamento de causas que nos seria desconhecido, mas uma ordem providencial que se preocupa em fornecer-nos as melhores condições possíveis, apropriadas a nossa natureza racional, para viver nesse mundo. O papel dado à interpretação em nossa relação

7 Cicéron, De la divination, I, 127.

8 Aétius, in H. Diels, Doxographi Graeci, I, 28, 4. 9 Aulu-Gelle, Nuits attiques, VII, 2, 3.

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cognitiva com as coisas é, portanto, ligado aos seguintes postulados metafísicos: (a) o destino como necessidade causal da qual nada neste mundo escapa (se uma única mudança sem causa se produzisse, dizem os estóicos, a unidade completa do mundo seria destruída11); (b) o destino como providência: nossa posição de

fragmento do mundo proíbe-nos de possuir uma visão completa do mundo, mas seria, todavia, absurdo pensar que os deuses não previram remédio a esta limi-tação, propondo-nos um outro modo de acesso à inteligibilidade de mundo, ou seja, dispondo-nos de signos. O signo não é um objeto complexo que consti-tuiríamos por uma invenção propriamente humana (ainda que a existência de signos suponha a estrutura particular do espírito humano12). Ele é instituído pela

ordem divina para tornar-se acessível a nosso espírito nos casos em que um co-nhecimento direto, de certa forma sinóptico, é impossível. O vínculo entre a exis-tência dos signos e a providência que rege o mundo é muito forte, tão forte que serve de ponto de apoio a um certo número de argumentos: os que buscam es-tabelecer a validade da adivinhação a partir do conceito de deus ou, inversamente, os que fundam a existência dos deuses na adivinhação. Eis alguns exemplos:

Que a adivinhação existe realmente é provado por esse argumento dos estóicos: “se há deuses e eles não indicam previamente aos homens os eventos futuros, então ou bem eles não amam os homens ou ignoram o que vai acontecer ou pensam que os homens não têm interesse em conhecer o futuro ou pensam que é indigno de sua majestade dar signos do que vai acontecer ou os deuses são incapazes de fornecer os signos. Mas não é verdade que eles não nos amam (pois são caridosos e amigos do gênero humano), nem que ignorem o que foi estabelecido e planejado por eles, nem que não tenhamos interesse em saber o que vai acontecer (pois tomamos mais precauções quando o sabemos), nem que considerem isso incompatível com sua majestade (pois nada é mais valioso do que a bondade), nem que sejam incapazes de conhecer previamente o futuro. Logo, não é verdade que haja deuses, mas que não fornecem signos sobre o futuro; ora, há deuses; logo, eles nos dão tais signos. E também não é verdade que, se eles fornecem signos, não nos fornecem os meios para a interpretação científica desses (pois de outro modo os signos seriam dados

11 Veja-se, por exemplo, Alexandre d’Aphrodise, Sur le Destin, § 22.

12 Sextus Empiricus, Contre les Professeurs, VIII, 275 : “Já que [o homem] possui nele

uma noção de consecução (akolouthias ennoian), ele forma um pensamento do signo por meio dessa consecução; de fato, o signo é da seguinte forma: “se isso, então aquilo”. A existência do signo decorrre da natureza e da consecução humana”.

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em vão). E se nos dão esses meios, não é verdade que a adivinhação não existe. Logo, a adivinhação existe.” Este argumento é empregado por Crisipo, por Dió-genes [da Babilônia] e por Antípater.13

Na passagem acima, a existência dos signos e a existência de uma capa-cidade humana para decifrá-los são deduzidas diretamente da análise do conceito de deus, já que recusar essa dupla existência seria admitir acerca deles uma noção falsa (não nos amam, ignoram o que foi estabelecido e planejado por eles, etc). Mas encontramos também o argumento inverso:

Se há intérpretes dos deuses, é necessário que os deuses existam. Ora, há tais intér-pretes. Reconhecemos, portanto, que os deuses existem.14

Que existam coisas que sejam ou que possam ser signos de outras coisas e que sejamos capazes de desenvolver técnicas interpretativas, tudo isso faz parte, aos olhos dos estóicos, da ordem mesma do mundo, ordem essa que é causal. Resulta daí, de um lado, uma racionalização da arte adivinhatória, a qual não é o apanágio de apenas alguns inspirados, mas possui a dignidade de uma techne, aná-loga à arte médica compreendida como interpretação dos sintomas. Cícero distin-gue assim, ao lado da adivinhação inspirada, aquela dos “que profetizam em esta-do de frenesi”, a adivinhação que “participa da arte”, fundada em princípios, com método e observações empíricas15. Resulta também, de outro lado, a ampliação

da prática exegética para além da adivinhação. Se a adivinhação é, por meio da in-terpretação de signos, um desvelamento de conexões reais, mas ocultas, então o filósofo é adivinho e o verdadeiro adivinho é sábio16. Não se trata de simples

me-táfora. Ao contrário, os estóicos fazem da interpretação dos signos o esquema de acordo com o qual eles formalizam os procedimentos de conhecimentos cientí-ficos, contra o silogismo causal de Aristóteles.

13 Cicéron, De la divination, I, 82-83. 14 Cicéron, De la nature des dieux, II, 4, 12. 15 Cicéron, De la divination, I, 34.

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3. Estrutura do signo e formalização do conhecimento

Com efeito, é surpreendente perceber que os estóicos buscaram formular as noções centrais do conhecimento filosófico, de definição e demonstração, se-gundo um modelo que encontra seu núcleo na própria estrutura do signo. Se o signo é uma realidade que remete, por conexão, a uma realidade oculta que ele significa, pode-se reduzir sua forma ao enunciado: “se isso, então aquilo” (ei tode,

tode)17. Todo signo é, portanto, o primeiro termo de uma proposição complexa,

que os estóicos chamam condicional (sunnemenon), quando existe uma relação váli-da entre o antecedente (o signo) e o conseqüente (o revelado pelo signo):

Aqueles que são reputados como tendo feito distinções exatas sobre o signo, os estóicos, quando querem elaborar sua concepção do signo, dizem que um signo é a proposição inicial de um condicional válido, reveladora do conseqüente. (…) Por proposição inicial, entendem o antecedente em um condicional que possui o ante-cedente verdadeiro e o conseqüente verdadeiro. Ela é reveladora do conseqüente, pois no condicional “se esta mulher possui leite, ela deu à luz”, “esta mulher possui leite” parece tornar manifesto que “ela deu à luz”.18

Não entro aqui nos detalhes das discussões relativas aos critérios que permitem identificar um condicional como válido (trarei de alguns pontos dessa discussão quando da relação entre adivinhação e filosofia). O mais importante, no momenrto, é notar ser na base desta estrutura lógica do signo (“se isto, aquilo”) que os estóicos buscaram formular tanto as definições quanto as demonstrações. Aquelas sempre foram formuladas sob a forma de uma proposição hipotética: não como “o homem é um ser vivo mortal que participa à razão”, mas como “se isto é um homem, é um ser vivo mortal que participa à razão”19. Os exemplos

que nos dão de um silogismo, notadamente de um silogismo demonstrativo, en-volve sempre uma premissa maior a qual não é uma proposição simples, como é o caso para Aristóteles, mas uma proposição complexa condicional”. A formu-lação usada é sempre do tipo “se é dia, há luz; ora, é dia, então há luz”; “se tu vês,

17 Sextus Empiricus, Contre les Professeurs, VIII, 276. 18 Sextus Empiricus, Esquisses pyrrhoniennes, II, 106. 19 Cicéron, Premiers Académiques, II, 21.

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tu vives; ora, tu vês, logo tu vives”; “se o primeiro, o segundo; ora, o primeiro, então o segundo”. Podemos nos perguntar porque os estóicos escolheram este ti-po de formulação do silogismo, levando em consideração que essa formulação se baseia na estrutura que define um signo. Um texto de Plutarco pode nos auxiliar, pois ele precisa o estatuto das duas premissas do silogismo estóico:

Homero colocou o presente em primeiro, depois o futuro e o passado. Pois o silo-gismo, pela força do condicional, parte disso que é – por exemplo: “se isto é, isto precede” e, inversamente, “se isto é, aquilo produzir-se-á”. A técnica lógica (to

technikon kai logikon), como já disse, consiste no conhecimento da consecução e é a

sensação que fornece a segunda premissa (proslepsis) do raciocínio. De fato, mesmo se a expressão parece forçada, não posso me impedir de dizer que este raciocínio é a trípode da verdade, que põe a consecução do conseqüente e do antecedente e que, ao constituir em seguida a existência como segunda premissa (proslabon ten

huparxis), leva à completitude da demonstração”20.

O silogismo demonstrativo parte da maior, enunciada como uma propo-sição condicional: “se isto, então aquilo”. Dado que esta é, segundo os estóicos, a estrutura do signo, podemos dizer que a maior tem por função não a de enunciar uma proposição predicativa universal, a partir da qual procuraríamos, em seguida, se um tal caso particular possui também o termo médio (modelo aristotélico), mas a de constituir uma coisa como signo de outra. “Se vês, vives” é uma manei-ra de constituir a visão em signo da vida. Plutarco insiste que o condicional per-mite ao raciocínio de se situar em apenas um fragmento do tempo que nos é acessível e que possui uma realidade, a saber, o presente21. O futuro (“isso se

pro-duzirá”) ou o passado (“isso precede”) não possuem uma verdadeira realidade para os estóicos e não podemos ter um acesso direto (perceptivo) dos eventos passados e futuros. Eles fazem parte do domínio das coisas “não evidentes”, mais precisamente “temporalmente não evidentes”, classe acerca da qual voltaremos a tratar posteriormente. A proposição condicional, por sua vez, encontra

20 Plutarque, Sur l’E de Delphes, 6, 287a.

21 Veja-se Arius Didyme, Stoicorum Veterum Fragmenta, II, 509: “[Crisipo] sustenta que

apenas o presente existe. O passado e o futuro subsistem, mas, segundo ele, de forma alguma existem”.

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ragem no presente quando ela constitui uma coisa evidente (isso) em signo de uma coisa não evidente, ao dar a essa coisa evidente a forma de um antecedente ao qual segue um conseqüente cuja existência poderá então ser inferida, ainda que possa ser objeto de uma preensão direta. Quanto à menor, o fato de Plutarco di-zer que ela é “fornecida pela sensação” e que ela é “a existência [constituída] em segunda premissa” atesta bem que ela corresponde ao encontro efetivo com o signo, com uma coisa perceptível que pode funcionar como signo do oculto porque ela foi previamente constituída como tal pela maior. A demonstração opera, então, da seguinte maneira: constituição lógica de um signo, apresentação sensível desse signo e revelação intelectual do não evidente a partir do signo evi-dente. O valor da demonstração ou revelação parece ir além do da adivinhação, mesmo que de forma ambígua, pois esta “trípode da verdade” remete-nos neces-sariamente à trípode dos oráculos. É preciso, portanto, analisar a relação entre adivinhação e conhecimento humano.

4. Conhecimento por adivinhação e conhecimento científico

Se a adivinhação oferece, em certa medida, um exemplo privilegiado da interpretação que nos aconselha a limitação de nossa capacidade cognitiva, a qual não pode afastar-se de sua necessária ancoragem no presente da atualidade per-ceptiva, ela está, todavia, longe de ser o modelo único de semeiosis e as expressões “o sábio adivinha” e “o filósofo adivinha” não devem ser tomadas como índice de uma religiosidade latente no racionalismo estóico. Evidência disso é a distin-ção, feita pelos estóicos, entre as diferentes maneiras que as coisas possuem de serem não evidentes e, por corolário, entre os diferentes tipos de signos. Estudan-do a distinção, podemos perceber que o signo sobre o qual se apóia o adivinho para predizer o futuro não corresponde perfeitamente ao conceito de signo apresentado na expressão “se isto, então aquilo” e que a adivinhação é finalmente uma forma inferior de interpretação.

Uma coisa pode ser temporariamente não evidente, não evidente por natureza ou absolutamente não evidente. O que é absolutamente não evidente é aquilo de que não podemos ter nenhum conhecimento, direto ou indireto – por

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exemplo, se o número de estrelas é par ou ímpar, ou quantos grãos de areia há na costa da Líbia. Disso não podemos ter também nenhum signo, pois mesmo um conhecimento indireto, precisamente aquele que poderíamos construir por inter-pretação, é aí impossível. Mas isso de forma alguma ocasiona problemas para os estóicos, na medida em que esse gênero de conhecimento não teria nenhum interesse para nós. Ora, se é importante conhecer a natureza e interpretá-la na falta de um conhecimento direto, é porque se busca um objetivo ético, o de viver em conformidade com a natureza. As coisas absolutamente não evidentes são, por isso, sem interesse para a teoria estóica do conhecimento e sua existência constitui apenas uma limitação negligenciável. O número de estrelas é um dos exemplos recorrentes do que nos é “absolutamente indiferente” e que podemos considerar como um análogo ético do que é absolutamente oculto.

As coisas temporariamente não evidentes são aquelas que nos são atual-mente inacessíveis de maneira direta. Por exemplo, se estou longe de Porto Ale-gre, Porto Alegre me é temporariamente não evidente, ainda que não seja incog-noscível por natureza. Um evento futuro ou passado é dessa categoria, o que indica que “temporariamente” não significa forçosamente que a coisa será ou voltará a ser evidente em um momento posterior. Posso voltar a Porto Alegre, que deixará de ser não evidente para mim. Mas um evento passado não voltará a ser atual, o que não o impede de fazer parte dos eventos “temporariamente não evidentes”. Esta classe define, portanto, a não coincidência entre o sujeito e a realidade, seja a não coincidência provisória ou definitiva. Assim, o conhecimento interpretativo é possível para esse tipo de objeto e funda-se em signos chamados “comemorativos” (hypomnestika). Trata-se de signos cuja constituição depende da experiência e da observação empírica. Sobre eles apóia-se, por exemplo, o médico para prognosticar a aparição ou o desenvolvimento de uma afecção mórbida22. A

adivinhação também repousa sobre esses signos. Se ela não é fruto de uma inspi-ração divina e se exerce como techne, suas predições (interpretação de um signo

22 A distinção entre signos comemorativos e signos indicativos parece ter sua origem

em textos de medicina, ainda que freqüentemente se considere que foram os estóicos que a fixaram terminologica e conceitualmente.

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presente para desvelar uma realidade futura, ou seja, temporariamente não evi-dente) são fundadas na observação de conjunções regulares que autorizam a to-mar um fato presente por signo de um evento futuro:

Os adivinhos que possuem a arte são aqueles que procuram novas informações por conjetura e que receberam suas antigas informações por observação. Aqueles que são privados disso são os que pressentem o futuro não por razão nem por con-jetura a partir de signos observados e constatados, (…) como acontece freqüente-mente com sonhadores e as vezes com aqueles que profetizam em estado de frenesi23.

Um exemplo célebre (que está no centro do debate entre Crisipo e Dio-dorus Cronos sobre o possível) é o princípio astrológico famoso à época: “se um homem nasceu no nascer da Canícula, não morrerá no mar”24. Ter nascido no

nascer da Canícula está constituído como um signo do fato de que não se mor-rerá no mar dadas as observações freqüentes de semelhantes conexões entre o momento astrológico do nascimento e fato de que ninguém que nasceu durante o surgir no céu dessa estrela morreu no mar. Neste caso, como no da medicina, a interpretação do signo funda-se em manifestas semelhanças entre os fenômenos ou conjunções de fenômenos freqüentemente observados no passado. É isso o que os estóicos (seguindo os epicuristas, que fazem uso abundante desse método para conhecer aquilo que não podemos aprender pelos sentidos) chamam “a in-dicação a partir de um signo por semelhança”. Trata-se de revelar, a partir dos signos (a semeiosis), uma verdade oculta baseando-se na semelhança dos casos (homoiotes). Em todos os casos observados, um ferimento no coração levou à morte. Assim, quando um ferimento idêntico se apresenta, o médico pode prog-nosticar a morte considerando o ferimento como um signo comemorativo, lem-brando as conexões empíricas já observadas entre o ferimento e a morte do fe-rido e revelando o evento temporariamente oculto – a morte. O mesmo ocorre na predição: todos os que nasceram durante o nascer da Canícula jamais mor-reram no mar. Quando um novo caso se produz (Fábio nasceu no nascer da

23 Cicéron, De la divination, I, 34. 24 Veja-se Cicéron, Sur le destin, VI, 12.

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Canícula), o adivinho pode, por semelhança, tomar o momento do nascimento como um signo de uma verdade temporariamente oculta e assim inferir que ele não morrerá no mar. A questão que se impõe é a de saber qual valor os estóicos atribuem a esse tipo de raciocínio produzido a partir do signo comemorativo. Sem dúvida, eles não consideram que esse raciocínio seja verdadeiramente demonstrativo, ou seja, “revelador” de uma realidade não evidente e anunciada por um signo comemorativo. Se o raciocínio produzido a partir desse tipo de signo não é revelador, podemos nos perguntar em que o signo comemorativo, aquele mesmo usado na adivinhação, é verdadeiramente um signo, ou seja, retomando a definição mencionada por Sextus Empiricus, a “proposição inicial de um condicional válido, reveladora do conseqüente”. Para isso, faz-se necessário analisar a noção “signo revelador”.

5. O que é um signo “revelador”?

Do que depende a propriedade reveladora de um signo? De duas coisas: das razões que implicam a adesão do intérprete à conclusão (ao conseqüente in-ferido a partir do signo) e que motivam a interpretação do signo; e também, mais originariamente, do tipo de vínculo que une o conseqüente ao antecedente. Veja-mos esses dois pontos.

Quanto ao primeiro, podemos nos auxiliar de uma distinção, também mencionada por Sextus Empiricus, entre dois tipos de argumentos. Dentre os ar-gumentos que nos conduzem de algo evidente a algo não evidente, alguns condu-zem-nos “de forma somente progressiva” ao passo que outros “de forma pro-gressiva e reveladora”25. Sextus fornece-nos dois exemplos os quais

correspon-dem grosso modo à distinção entre signos comemorativos e indicativos. Primeiro exemplo: se Zeus me disse que tal homem será rico, ele o será; ora, Zeus me disse que este homem será rico; logo, ele o será. Nesse caso, afirma Sextus, o argumento conduz à conclusão (que é uma predição sobre o futuro financeiro do

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interessado) “de forma apenas progressiva”, mas não “reveladora”. Por quê? Por-que faz parte dos raciocínios Por-que

parecem depender da confiança e da memória (…). Com efeito, damos nosso assentimento à conclusão menos por causa da necessidade das premissas do que pelo fato de nos fiarmos na afirmação do deus.26

Trata-se aqui da confiança na palavra de Zeus e (podemos supor) na lembrança de casos anteriores nos quais a palavra divina foi regularmente con-firmada pelos fatos. Percebemos facilmente que os exemplos já vistos, relativos à medicina e à adivinhação, nos quais os signos são constituídos e interpretados na base da observação e da experiência, pertencem a essa mesma categoria “não re-veladora” já que estão fundados na memória e em uma certa confiança na regu-laridade da experiência.

Completamente diferente é o tipo de assentimento que daríamos a um argumento que nos conduz a uma realidade não evidente de forma “reveladora”. O exemplo dado é o seguinte:

Os argumentos que nos conduzem à conclusão de forma tanto progressiva quanto reveladora são do seguinte tipo: “se o suor escorre na superfície da pele, existem poros que o pensamento pode descobrir; ora, o primeiro; logo o segundo”. Com efeito, a proposição que o suor escorre é reveladora da proposição que existem poros, graças à nossa preconcepção de que através de um corpo compacto um líquido não pode passar. (…) [Trata-se de] um argumento que possui uma conclusão revelada pela força das premissas.27

Nesse caso, o signo é o escorrer do suor na superfície da pele – fato ofe-recido à percepção e, portanto, evidente. Esse signo revela algo que os estóicos qualificam de “não evidente por natureza”, a saber, a existência de poros na pele, imperceptível por sua própria natureza (e não apenas temporariamente), mas que pode, todavia, ser inferida de forma correta a partir de um signo. O signo não é chamado, nesse caso, de comemorativo, mas de “indicativo” (endeiktikon). O que

26 Idem, 142. 27 Ibid.

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permite passar do signo à sua interpretação (à coisa revelada) não é nem a me-mória (não é porque tenho a lembrança de ter visto as pessoas transpirarem que a inferência se produz), nem a confiança, mas uma “preconcepção”, uma prelepsis. A revelação é, portanto, provocada unicamente pela “força das premissas”, ou mais exatamente pela força que confere a essas premissas o critério de verdade que constitui a “preconcepção” (pois, no exemplo escolhido, não encontramos entre as premissas a proposição que afirma que um líquido não pode atravessar um corpo compacto). As preconcepções, como se sabe, são noções gerais que o espí-rito humano forma a partir da experiência sensível e que constituem a razão hu-mana:

Quando um homem nasce, dizem os estóicos, a parte diretiva de suas alma é como um folha de papel pronta para que nela escrevamos. O homem inscreve nela todas as suas noções. O primeiro método de inscrição é aquele que opera pelos sentidos. Com efeito, quando percebemos algo, por exemplo, o branco, uma lembrança persiste após o desaparecimento da coisa. E quando muitas lembranças do mesmo tipo nos apareceram, dizemos que temos uma experiência, pois a experiência é uma pluralidade de representações do mesmo tipo. Entre as noções, algumas se formam de modo natural segundo as modalidades que acabamos de mencionar e sem inter-venção artificial. Outras, por meio de nossos próprios métodos de ensino e apli-cação. Essas últimas chamam-se simplesmente “noções”; as primeiras chamam-se também “preconcepções” (prolepseis). A razão, que faz com que sejamos chamados “racionais”, é dita alcançar sua plenitude, a partir das preconcepções, durante os sete primeiros anos.28

De acordo com essa teoria empirista da formação dos conceitos a partir da sensação, a criança passa da simples percepção descontínua de objetos distin-tos e sucessivos a uma “experiência”, ou seja, a um primeiro modo de organiza-ção mental da realidade plural, fundado na repetiorganiza-ção e semelhança das represen-tações. É desse primeiro grau da abstração que nascem nossos conceitos mais fundamentais, as “preconcepções”. Essas noções constituem o estofo da razão, que não existe enquanto as noções não são formadas, e são os utensílios naturais de todo conhecimento.

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Em que medida a intervenção de uma “preconcepção” garante às pre-missas de um raciocínio uma “força” tal que esse raciocínio possa ser “revelador” da conclusão? Para responder a isso, é preciso entender como funciona o tipo de argumento que não se contenta de nos fazer avançar em direção ao não evidente, mas que nos revela, que nos mostra, ou seja, que nos torna possível uma apreensão intelectual disso que escapa, por natureza, à apreensão sensível. A força reveladora das premissas depende da entrada em jogo de uma preconcepção do espírito humano, a qual intervém de maneira manifesta, ainda que o texto não o precise, na constituição da maior, ou seja, na constituição do escorrer do suor como signo dos poros invisíveis. A preconcepção não intervém na menor, que é “fornecida pela sensação” (para retomar a expressão de Plutarco já citada acima) e que corresponde à apresentação sensível do signo constituído na maior. Por outro lado, para constituir o escorrer do suor como signo da existência de poros, necessito da preconcepção segundo a qual um corpo desprovido de poros é impermeável. Pode-se perguntar em que esse signo difere dos signos comemorativos, já que vimos que as preconcepções eram também produtos da observação e da experiência e que elas eram formadas por meio da memória. As artes, como a medicina e a adivinhação, também formam noções gerais na base de observações repetidas, memorizadas e classificadas. Zenão define a techne como “coleção sistemática de conhecimentos unificada pelo exercício em vista de um fim útil na vida”29 e é apoiando-se nesses

conhecimentos derivados da experiência e ordenados que o médico e o adivinho constituem as evidências perceptivas dos signos a partir das quais o primeiro produz seu prognóstico. O segundo, sua predição. No entanto, é claro que, para os estóicos, o estatuto das “preconcepções” naturais e o das noções utilizadas pela arte após tê-las adquirido por uma “intervenção artificial” são bastante diferentes. O traço principal das preconcepções é que elas são “comuns a todos os homens”, diferentemente das noções formadas “artificialmente” por um

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ensinamento específico30. E o “consentimento da humanidade”, como o chama

Sêneca, lhe confere a força e a função de um critério de verdade:

Crisipo diz no livro I de seu tratado Sobre a razão que a percepção sensível e a preconcepção são critérios [da verdade], a preconcepção sendo uma noção natural dos universais.31

Que a preconcepção seja o critério da verdade, determina a força dos argumentos que constituem as premissas nele fundadas. É preciso sublinhar que a diferença entre os argumentos que conduzem à sua conclusão de modo “apenas progressivo” e aqueles que conduzem de forma “reveladora” evidencia a maneira distinta como esses argumentos demandam nosso assentimento, ou seja, nossa adesão à conclusão. Uns verdadeiramente revelam algo, ou seja, fornecem uma evidência intelectual à sua conclusão e conferem, desse modo, um estatuto seme-lhante ao das coisas evidentes (as apreendidas por uma percepção sensível) à uma realidade não evidente por natureza. Já deve ter ficado claro que, no texto de Dió-genes Laércio acima citado, a preconcepção é apresentada como critério da ver-dade ao lado da percepção sensível, ou seja, disso por meio do que podemos, pri-mitivamente, ter acesso às coisas evidentes. Por essa razão, o assentimento im-plicado pela evidência intelectual é um assentimento forte, pois o próprio da evi-dência é que não podemos recusar-lhe o assentimento e que o espírito está incli-nado a fornecer-lhe com uma força invencível:

Da mesma forma que o prato deve baixar quando colocamos pesos na balança, assim também o espírito deve inclinar-se frente à evidência; (…) ele não pode não aprovar uma evidência que lhe é apresentada.32

Por outro lado, os argumentos não reveladores solicitam nosso assenti-mento ao apelarem à nossa confiança (fiamo-nos na palavra de Zeus) e a nossa memória (lembramo-nos de que, em nossa experiência passada, a conjunção de

30 Epictète, Entretiens, I, 22 : “As preconcepções são comuns a todos os homens”. 31 Diogène Laërce, Vies et doctrines des philosophes illustres, VII, 54.

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dois fatos foi sempre verificada – o ferimento no coração e a morte, por exem-plo). O tipo de adesão é, portanto, diferente. Ele depende de uma convicção ra-zoável suscitada pelo provável e não de uma certeza imposta pela evidência. Um texto acerca dos raciocínios a partir de signos fundados na semelhança e na ex-periência mostra bem isso:

De todo modo, no que diz respeito a essas coisas [i.e., as semeioseis por semelhança] e àquelas que derivam da experiência, basta-nos sermos convencidos na medida do razoável, da mesma forma que o somos quando nos lançamos ao mar em pleno verão e chegamos sãos e salvos.33

Nesse caso, a inferência a partir de signos é simplesmente convincente, ou seja, ela implica normalmente apenas um assentimento que os estóicos deno-minam “reservado”, “tido com reserva” (meth’hypexaireseôs / cum exceptione). O exem-plo da navegação em tempo bom, com um bom capitão e um navio seguro, é um dos exemplos favoritos de Sêneca para ilustrar a idéia do assentimento reservado, que é conferido à verossimilhança e não à verdade. Por mais favoráveis que sejam as condições de viagem no mar, não posso assentir com uma evidência certa à idéia que chegarei bem no porto. Posso apenas assentir com uma cláusula de reserva (“se nada o impedir”, “se nenhum obstáculo se apresente”34). Eu seria

louco e exposto à paixão se desse meu assentimento sem reserva nesse caso, pois o destino poderia sempre ter determinado que, em razão de circunstâncias ex-cepcionais, eu naufragaria em vez de aportar são e salvo.

A diferença entre a força dos assentimentos solicitados pelos argumentos fundados em signos indicativos, que revelam ao espírito o não evidente lhe conferindo uma evidência intelectual, e a menor força da adesão provocada por signos comemorativos, simplesmente fiáveis, é importante para refletir acerca do estatuto da interpretação, respectivamente no caso da adivinhação e do conhe-cimento. De um lado, a diferença sublinha que a adivinhação não fornece, no fundo, conhecimento verdadeiro de suas interpretações. Ela propõe apenas

33 Philodème, Des signes, 7.

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pretações convincentes às quais é preciso assentir com reserva. De outro, ela in-dica aquilo de que depende uma inferência reveladora e não simplesmente pro-vável a partir de signos. A validade dessa inferência, já vimos, depende, em última instância, da maneira como é formada a premissa maior (“se o suor escorre pela superfície da pele, existem canais que podemos descobrir pelo pensamento”), ou seja, e mais precisamente, trata-se do tipo de vínculo que une, na maior, o antecedente e o conseqüente. Alcançamos aqui a questão anunciada acima e deixada provisoriamente em suspenso: o que é um condicional válido? Se o signo possui como forma própria “se isto, aquilo”, o que é um signo verdadeiro capaz de produzir uma “revelação” disso de que ele é signo sem se limitar a levar a uma convicção simplesmente provável?

As discussões sobre esse ponto são longas e complexas. Podemos nos li-mitar aqui a lembrar as conclusões. O critério canônico admitido pelos estóicos, ao menos a partir de Crisipo, é o da “coerência” (sunaetesis) e é definido da seguin-te maneira:

Aqueles que introduzem a noção de “coerência” dizem que um condicional é vá-lido quando o oposto do seu conseqüente está em conflito com o seu antece-dente.35

Uma proposição condicional é verdadeira quando o oposto do conseqüente entra em conflito com a antecedente, par exemplo: “se é dia, há luz”. Isso é verdadeiro, pois o oposto do conseqüente, “não há luz”, está em conflito com “é dia”. Uma proposição condicional é falsa quando o oposto do conseqüente não está em conflito com o antecedente, por exemplo: “se é dia, Dion caminha”. Com efeito, “Dion não caminha” não está em conflito com “é dia”.36

Para que um signo seja um “bom” signo, capaz de conduzir de maneira certa àquilo do que ele é signo, é preciso haver coerência entre ele e isso do que ele é signo. Essa coerência deve ser dotada de necessidade atestada pela incompati-bilidade entre o antecedente e o oposto do conseqüente. Em “se tu vês, estás vivo”, há uma consecução que é muito mais forte do que aquela existente no caso dos

35 Sextus Empiricus, Esquisses pyrrhoniennes, II, 112. 36 Diogène Laërce, Vies …,VII, 73.

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nos comemorativos. A consecução necessária não é provada mediante uma recen-são empírica que constataria em todos os casos observados que os seres que vêem estão vivos. Ela é obtida de modo lógico, quando o oposto do conseqüente (“tu estás morto”) é conceitualmente incompatível com o antecedente (“tu vês”).

Encontramos outra formulação deste critério para o condicional válido no que os estóicos chamam de método por eliminação (anaskeue). De acordo com esse método, um condicional é válido quando a eliminação do conseqüente im-plica a eliminação conseqüente. Eliminar “tu estás vivo” é eliminar ipso facto “tu vês”. O interesse dessa formulação, bastante próxima da primeira, consiste em que ela é explicitamente ligada à preocupação de definir um signo verdadeiro, um “signo próprio”, capaz de indicar necessariamente, e não de modo aleatório, isso do que ele é signo. Ademais, ela é formulada em um contexto polêmico no qual se trata de invalidar o método epicurista que busca desvelar o não evidente por um método fundado em semelhanças, o que, para os estóicos, constitui exclu-sivamente signos comemorativos, cuja insuficiência já foi vista. Nesse contexto, o signo constituído pela observação de casos semelhantes é rejeitado na medida em que ele pode muito bem não remeter àquilo de que ele é supostamente um signo. Os estóicos opõem a esse signo, chamado “comum à verdade e ao erro”, o “sig-no próprio”:

Trata-se de um signo “comum” [à verdade e ao erro], pela simples razão que isso pode existir, mesmo que exista ou que não exista a coisa não evidente [de que ele é supostamente signo]. Quando acreditamos que tal homem é bom porque é rico, di-zemos que utilizamos um signo vicioso e comum, pois podemos encontrar muitos homens ricos que são extravagantes e muitos que são bons. Assim, o signo próprio, se é verdade que ele é necessário, não pode existir senão em conjunção com a coisa da qual afirmamos que ela se relaciona necessariamente com ele, ou seja, a coisa não aparente da qual ele é signo. (…) E isso se faz pelo método da indicação a partir do signo (semeiosis) por eliminação (anaskeue).37

O exemplo do signo vicioso e comum é o de um signo constituído pelo método epicurista, fundado na semelhança ou homoiotes: se experimentei um

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de número de conexões semelhantes entre riqueza e bondade (podemos pensar nisso em função da abundância de bens distribuídos), posso, nesta base, cons-tituir a riqueza como signo da bondade. Não se trata, no caso, de um bom signo, pois isso de que ele é signo não ocorrerá de modo necessário – existe um número tão grande de ricos que gastam suas fortunas de modo extravagante quanto o dos que a distribuem com bondade. O signo pode assim existir sem que exista aquilo de que ele é supostamente signo. Vale dizer, ele não é verdadeiramente signo, ou então é um signo que pode no máximo me dar uma convicção provável, mas não “revelar” o não evidente, ou seja, produzir conhecimento. O signo próprio deve ser “necessário”. Deve necessariamente ser signo. Dito de outra forma, deve ser impossível que o signo exista e que isso do que ele é signo não exista. Ele não pode existir a não ser em conjunção com isso de que ele é signo, ou seja, com a coisa não aparente com a qual ele necessariamente se relaciona enquanto signo. O vínculo de necessidade entre o antecedente e o conseqüente é estabelecido por eliminação: se a eliminação da bondade não elimina ipso facto a riqueza, então a riqueza não é um signo próprio da bondade. Por outro lado, a eliminação dos canais invisíveis na pele elimina ipso facto o escorrer do suor pela pele e é por isso que o escorrer pode ser interpretado com um signo próprio da existência de canais invisíveis e revela sua existência de modo evidente para os casos em que não há evidência perceptiva.

Muito se debateu acerca o tipo de necessidade que deve assegurar a “coe-rência” entre o signo e isso de que ele é signo em um condicional válido e que garante o caráter próprio e cognitivo do signo assim constituído. Trata-se de uma necessidade lógica retirada apenas da análise dos conteúdos conceituais do ante-cedente e do conseqüente? Trata-se de uma análise empírica que remete a uma conexão causal empiricamente constatável? Os estóicos não se preocuparam em fornecer indicações claras acerca desse ponto. Talvez mesmo não estivessem todos de acordo sobre isso. Em todo caso, os comentadores modernos não o estão e encontramos defensores de ambos os tipos de necessidade. Parece-me provável que a natureza do vínculo necessário varia em função do caso. Na prova

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da existência dos deuses a partir da existência de seus intérpretes38, a conexão é

manifestamente desprovida de todo apoio na experiência empírica. Aliás, nesse exemplo, o signo é constituído pelo condicional: “se há deuses, há intérpretes dos deuses” (de onde se segue o argumento: ora, há intérpretes dos deuses, logo há deuses). Para que esse condicional seja considerado válido pelos estóicos e para que o signo assim constituído seja próprio e não comum, é preciso basear-se na análise do conceito de deus tal como é desenvolvida na prova inversa, a que deriva a existência da adivinhação de uma análise da noção de deuses como ne-cessariamente generosos com o gênero humano, capazes de conhecer previa-mente o futuro, etc. Trata-se, portanto, de uma necessidade conceitual que une aqui o signo e seu significado. Por outro lado, no exemplo do suor como signo da existência dos poros na pele, a necessidade parece ser empírica, já que se funda na propriedade física dos corpos não porosos (eles são impermeáveis). Se a questão ainda não foi resolvida, ela convida, por outro lado, a nos interrogarmos sobre as relações, evocadas no início do trabalho, entre a interpretação do signo e a expli-cação causal. Como pudemos descobrir, quando o signo é “próprio”, ele permite construir argumentos que produzem um conhecimento verdadeiro da coisa não evidente da qual ele é signo. Nos casos em que o caráter próprio do signo e sua ligação necessária com aquilo de que ele é signo parecem se fundar em proprie-dades físicas dos corpos, tornadas evidentes ao espírito sob a forma de precon-cepções, porque os estóicos sustentam um conhecimento por signos, ao invés de concebê-la como uma explicação causal? Poderíamos pensar que, no exemplo do suor como signo dos poros, a investigação científica teria ganhos ao substituir uma argumentação fundada em signos por uma explicação física e causal a partir da preconcepção relativa a impermeabilidade dos corpos não porosos.

6. O predomínio da semiologia sobre a explicação causal

Parece que os estóicos sentiram uma certa resistência com respeito a esse tipo de proposta. É claro que sua compreensão geral da realidade repousa na

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mação de que o destino, definido fisicamente como pneuma, produz e organiza todas as coisas de maneira causal. De acordo com esses princípios, a física, que é uma disciplina teórica, dogmática e não experimental, atribui um lugar de des-taque ao princípio de causalidade. Mas no detalhe de sua explicação dos fenô-menos concretos, eles preferem a semeiosis, que se apoia em signos para manifestar ao espírito realidades ocultas, à explicação causal que vincularia tal fenômeno a uma ou mais causas. Sem dúvida, encontramos na filosofia natural exemplos iso-lados de esforços que buscam passar dos signos às causas. Essas tentativas são devidas principalmente àqueles estóicos que buscavam responder aos argumentos apresentados pelos céticos contra a teoria estóica da astrologia a da adivinhação. Ora, essas tentativas parecem ter suscitado reações e suspeitas no interior do estoicismo. Assim, Boetos ou Possidônio procuraram justificar as predições dos adivinhos (notadamente as metereológicas) dando uma interpretação causal dos fenômenos anunciados:

Teus Prognósticos são repletos de antecipações desse tipo. Quem poderia ligá-los a causas? Vejo com clareza que o estóico Boetos se esforçou para isso e é verdade que ele chegou a dar conta cientificamente dos fenômenos precursores celestes e marinhos.39

O filósofo Boetos, no quarto livro de seu Comentário a Aratos, enumerou as causas físicas dos ventos e das chuvas, indicando as previsões metereológicas ligadas aos ditos fenômenos.40

Poderíamos pensar que esses trabalhos devem ter suscitado um certo espanto, pois eles contribuíam, ainda que modestamente, para fazer recuar o conhecimento por signos em prol do conhecimento das causas, conhecimento esse digno dos deuses. Mas não foi o que ocorreu. Ao contrário, o infeliz Possi-dônio foi atacado por Estrabão por excesso de “aristotelização”.

39 Cicéron, De la divination, I,8, 13. Os Prognósticos são um conjunto de predições

metereológicas de Aratos, que Cícero havia traduzido para o latim.

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Encontramos nele [i. e., Possidônio] muito de etiologia e de aristotelização, coisas das quais os membros de nossa escola se afastam devido à obscuridade das causas.41

Esse juízo negativo é, de fato, corroborado pela doxografia. Foi apenas na época de Possidônio que a filosofia estóica desenvolveu a etiologia como parte importante da física42, dotada de um método específico aplicado, de um lado, à

psicologia e à fisiologia (notadamente no caso da etiologia das paixões) e, de ou-tro, aos fenômenos naturais não humanos (particularmente os metereológicos). Além disso, Possidônio parece ser exceção, no seio do Pórtico, quando insiste acerca do caráter privilegiado de explicação causal próprio ao físico em sua investigação científica, porque apenas esse método é verdadeiramente capaz de produzir uma explicação de tal ou tal fenômeno, para os casos em que um método por hipóteses não pode construir a não ser explicações possíveis43. Para a

maioria dos estóicos, procurar as causas precisas de fenômenos particulares (“aristotelizar”) parece ser uma atitude incerta que convém evitar. Mais certa é a via da semeiosis a qual fornece um acesso suficiente às realidades não evidentes sem necessidade de se pronunciar acerca da natureza do vínculo – causal ou outro – que une o que percebemos com o que inferimos.

Mas seria sempre os limites de nosso conhecimento que justificam essa preferência? Com efeito, os detratores da etiologia face às tentativas audaciosas de Possidônio invocam a prudência. Mais vale não se lançar nesse tipo de método “devido à obscuridade das causas”. Podemos, contudo, nos interrogar acerca de eventuais razões mais profundas para uma resistência tão amplamente compar-tilhada. Michael Frede, por exemplo, vê aí um indício do fato de que o interesse dos estóicos pelas causas não é orientado primeiramente para uma explicação de fatos particulares, mas é “oriundo do interesse pela responsabilidade”44.

41 Strabon, Géographie, II, 3, 8.

42 Cf. Diogène Laërce, Vies …, VII, 132. 43 Cf. Sénèque, Lettres à Lucilius, Lettre 88, 26-27.

44 Michael Frede, “Les origines de la notion de cause”, art. cit., p. 490 : “A

documen-tação sugere que o interesse dos estóicos pelas causas é oriundo de seu interesse pela responsabilidade. Com efeito, quando observamos o uso efetivo que os estóicos fizeram

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De maneira semelhante, podemos procurar razões na concepção estóica do conhecimento humano – não mais simplesmente em seus limites, mas em sua estrutura ou natureza própria. Podemos considerar, por exemplo, que o que é procurado como critério de verdade na formulação estóica do silogismo demons-trativo é completamente diferente do que visa o silogismo aristotélico. O modelo silogístico aristotélico é profundamente ligado à preocupação de exprimir a causa no raciocínio. Aristóteles insiste em que as premissas devem ser causa da conclu-são, não somente no sentido lógico (a verdade das premissas determina a da con-clusão), mas também em relação ao referente da conclusão. Os atributos enun-ciados nas premissas devem indicar a causa da atribuição obtida na conclusão, notadamente através do termo médio (“todas as plantas com folhas largas per-dem suas folhas; toda videira possui folhas largas; logo, toda videira perde suas folhas”, ou seja, “toda videira perde suas folhas porque ela é uma planta com fo-lhas largas”). A forma escolhida pelos estóicos obedece talvez a uma outra preo-cupação e isso explicaria a importância concedida por eles à essa forma mesmo nos casos nos quais uma relação causal está mais ou menos implicada na cons-tituição da maior. De acordo com o exemplo relatado por Sextus Empiricus (“se o suor escorre na superfície da pele, há poros que o pensamento pode descobrir; ora, o primeiro; logo, o segundo”), podemos dizer que aquilo que a maior ex-prime na forma condicional é uma relação causal entre a existência dos poros e o escorrer do suor. Esse raciocínio poderia ser formulado segundo o modelo aristo-télico da seguinte maneira: “todos os corpos permeáveis são dotados de poros; ora, toda pele é um corpo permeável (ela deixa escorrer o suor); logo, toda pele é dotada de poros”. Todavia, os estóicos jamais adotaram esse tipo de formulação. O argumento poderia ter ainda por maior uma proposição causal e não uma con-dicional – por exemplo, “porque o suor escorre pela superfície da pele, existem poros que o pensamento pode descobrir; ora, o primeiro; logo, o segundo”. Com

de sua teoria das causas, parece que a questão era sempre a de atribuir e distribuir respon-sabilidade. (…) A distinção entre as diversas espécies de causas apenas retoma, sob forma mais refinada, a distinção intuitiva ordinária entre as diferentes espécies de responsabi-lidade”.

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efeito, a classe de proposições complexas não se reduz à da proposição condi-cional. Os estóicos enumeram diversos tipos de proposições complexas, dentre os quais figura a proposição causal:

Entre as proposições não simples, há a proposição condicional (to sunnemenon), a paracondicional (to parasunemmenon), a conjunção (to sumpeplegmenon), a disjunção (to

diezeugmenon), a causal (to aitiodes) e a que elucida o mais e o menos (to diasaphoun to mallon kai to hetton). (…) A proposição causal é uma proposição ligada pelo

“por-que” (dioti ), por exemplo: “porque faz dia, há luz”. Deve entender que o primeiro termo é a causa do segundo.45

Entretanto, a formulação estóica do silogismo não abarca a proposição ca-sual, mesmo quando isso pareceria possível. Ela prefere sempre a proposição con-dicional. Muito mais do que uma proposição complexa entre outras, ela é a “propo-sição a mais lógica” ou “a mais racional” (to logikotaton axioma). Daí seu papel domi-nante e mesmo exclusivo na formulação da premissa maior das demonstrações:

Aparentemente, na dialética, a conjunção condicional “se” possui uma grande força (megisten dunami ), já que ela permite formar a proposição a mais lógica (to logikotaton

schematizon axioma). Com efeito, como não seria ela uma condicional (to sunnemenon),

pois somente ao homem, ainda que os animais compartilham com ele o conhe-cimento da existência das coisas, a natureza concedeu a faculdade de perceber e julgar sua ligação? Com efeito, lobos, cães e pássaros têm a sensação de que é dia e de que há luz. Mas apenas o homem pode compreender “se é dia, há luz”, porque apenas ele possui a expressão do antecedente e do conseqüente, de sua mútua arti-culação, de sua relação e de sua diferença, do que as demonstrações retiram seu princípio primordial.46

A primazia do condicional sobre as demais proposições complexas, bem como a primazia do “se” (ei ) sobre as demais conjunções, está diretamente ligada à especificidade humana, à sua racionalidade. Não aos limites da razão humana, mas à sua natureza e às suas capacidades próprias, bastante superiores a dos outros animais. É isso que precisaremos examinar à título de conclusão.

45 Diogène Laërce, Vies …, VII, 69-72. 46 Plutarque, Sur l’E de Delphes, 6, 387 A.

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7. O condicional, a “proposição a mais racional” e a “representação racional”

Essa especificidade encontra entre os estóicos uma expressão bastante pre-cisa: que o homem seja dotado de logos significa não apenas que ele possui uma faculdade da qual os demais animais são desprovidos, mas também que as fa-culdades que ele possui em comum com os demais animais (a representação,

phantasia e o impulso a agir, horme) apresentam uma estrutura completamente

distinta – uma estrutura proposicional. A phantasia do animal racional é dita

logike47 e a horme é um logos prostaktikos, um “discurso que ordena”. Trata-se aqui

de conhecimento e não de ação, sendo, portanto, o estatuto da phantasia logike o que nos interessa. Todas as representações formadas pelo espírito humano, sejam elas corretas ou incorretas, próprias ao sábio ou ao insensato, são ditas “racio-nais”48. Isso significa, em primeiro lugar, que elas possuem, antes mesmo de sua

explicação sob a forma de um discurso articulado, uma estrutura discursiva. Não

47 Diogène Laërce, Vies …, VII, 51: “As representações são ou racionais (logikai ) ou

não racionais (alogoi ); racionais, aquelas dos animais racionais; não racionais, aquelas dos animais não racionais; as representações racionais são pensamentos (noeseis), as não racio-nais não possuem nome.”

48 A tradução de “phantasia logike” por “representação racional” é bastante imperfeita.

Poder-se-ia preferir “representação lógica”, que exprime melhor o caráter discursivo que os estóicos reconhecem como a marca própria da representação humana. A primeira tradução possui, todavia, outras vantagens, uma vez que permite lembrar que, se o espírito humano é capaz de formar tais representações, isso ocorre porque, diferentemente dos animais privados de logos, seu hegemonikon é um fragmento da razão divina (logos) que organiza o mundo. Veja-se, por exemplo, Claude Imbert, “Théorie de la représentation et doctrine logique dans le stoïcisme ancien”, in Les Stoïciens et leur logique. Actes du colloque de

Chantilly [18-22 septembre 1976], Paris, Vrin, 1978, p. 226: “Empregado pelos estóicos, Logos recebeu três sentidos, ligados entre si: razão divina organizadora da matéria, razão

humana e discurso. O qualificativo logike lembra que a representação retira seu estatuto discursivo da razão humana na qual ela nasce e que essa é um fragmento da razão divina, capaz de penetrar no ordenamento físico das aparências sensíveis. Buscando estar conforme a esse uso, traduziremos phantasia logike por representação racional, lamentando que o qualificativo francês oblitere uma parte da significação original e mesmo que o contexto exija, freqüentemente, que o acento seja colocado sobre o caráter discursivo da representação”.

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apreendemos, como provavelmente o faz o animal não racional, o branco e o doce. Apreendemos desde o início “isso é branco” e “isso é doce”49. Esse é o

primeiro traço pelo qual a representação humana se distingue da representação animal. Que a representação racional seja, para os estóicos, “aquela na qual o conteúdo da representação pode ser exibido na linguagem”50, não significa que o

discurso racional seja uma tradução segunda do conteúdo da representação em uma estrutura que lhe será homogênea (a da linguagem), mas que nossas repre-sentações possuem de início uma tal estrutura apta à explicação sob a forma de enunciados:

Por meio da representação lógica, que não é outra coisa senão a representação hu-mana enquanto o homem é um animal lógico, é no âmbito do discursivo que os homens encontram-se desde o início inscritos. Se a representação precede o pensamento, que é naturalmente loquaz (éklalètikè huparkhousa [Diógenes Laércio, VII, 49]), a representação contém nela mesma tudo o que a discursividade efeti-vamente exporá. Seu conteúdo é proposicional. Antes mesmo de dizer, efetiva-mente, que “Catão caminha”, o que vejo é Catão caminhando.51

O homem não possui representações irracionais com as quais ele po-deria, posteriormente, por uma capacidade suplementar e distinta, produzir um equivalente discursivo. Ele possui representações distintas das dos animais e a

49 Veja-se Cicéron, Premiers Académiques, II, 21: “As características que pertencem às

coisas que descrevemos como percebidas pelos sentidos pertencem também a essas coisas que descrevemos como percebidas não pelos próprios sentidos, mas de uma certa ma-neira por eles, como, por exemplo, “isso é branco”, “isso é doce”, “isso é melodioso”, “isso é bom” e “isso é rugoso”. Nosso conhecimento das coisas, nós o obtemos já pelo espírito e não pelos sentidos.” “Já pelo espírito”, pois nossas representações, formadas no momento da sensação, já são pensamentos, noeseis.

50 Sextus Empiricus, Contre les Professeurs, VIII, 70.

51 Frédérique Ildefonse, Les Stoïciens. Zénon, Cléanthe, Chrysippe, Paris, Belles Lettres,

2000, p. 103. Veja-se também: Claude Imbert, Pour une histoire de la logique. Un héritage

platonicien, Paris, PUF, 1999, p. 91: “Trata-se de um traço definidor da representação, ao

menos para o homem, que ela seja discursivamente elaborada. Se nos for permitido tomar emprestado a terminologia da fenomenologia, não há estado “antepredicativo” da consciência”.

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ferença diz respeito à própria natureza do conteúdo das representações52. Se

considerarmos os exemplos dados na tipologia das representações relatada por Sextus Empiricus, perceberemos que a realidade existente a partir da qual nosso espírito forma representações, ou seja,o phantaston do qual deriva a phantasia, não é propriamente falando um objeto exterior, mas antes uma situação ou um corpo em situação, tanto no contexto do mundo quanto no contexto de sua relação com o sujeito que percebe. Os diferentes tipos de representação enumerados por Sextus Empiricus – convincentes (pithanai ), não convincentes, simultaneamente convincentes e não convincentes, nem convincentes nem não convincentes; as convincentes subdividindo-se em representações verdadeiras, falsas, verdadeiras e falsas, nem verdadeiras nem falsas – são ilustradas por exemplos que ultrapassam amplamente a simples designação ou a simples correspondência com o objeto isolado (ou com a substância individual, para falar como Aristóteles). Assim, as representações convincentes são do tipo: “‘é dia’, ‘falo’ e tudo ao que se liga uma semelhante evidência”. Não convincentes são aquelas que, ao contrário, “afastam-nos de nosso assentimento, por exemplo: ‘se é dia, o sol não está sob a terra’”; convincentes e convincentes, como, por exemplo “as produzidas por argumentos insolúveis”; nem convincentes nem não convincentes: “tais como ‘as

52 Veja-se Long et Sedley. Les philosophes hellénistiques, vol. II : Les Stoïciens, tradução de J.

Brunschwig e P. Pellegrin, Paris, GF, 2001, p. 184: “No ser humano adulto, todas as re-presentações são “racionais”. Todas elas são “processos da razão” e todas as noções (ennoiai ) são “espécies da representação” (cfe. Plutarque, Des notions communes contre les

stoïciens, 1084 f), o que sugere que todas as representações dos seres humanos adultos são

concebidas como tendo um conteúdo proposicional. (…) Assim compreendidas, as repre-sentações racionais do mundo exterior não implicam uma teoria segundo a qual o espírito recebe materiais brutos que, posteriormente, busca a interpretar. É preciso antes supor que as próprias representações racionais representem seus objetos de um modo que pres-supõe a linguagem e os conceitos; no mínimo, “isso é branco”. A racionalidade de todas as representações no adulto humano implica que o estoque de conceitos no espírito é imediatamente colocado em atividade quando lhe chega uma representação sensível, ten-do como resultaten-do que a representação representa seu objeto sob uma forma conceitual”.

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estrelas são em número ímpar’, ‘as estrelas são em número par’”53. Nenhum dos

exemplos menciona que a representação possa tratar de um objeto isolado, já que, mesmo no caso de uma representação convincente, os exemplos simples como ‘é dia’ ou “falo’ não possuem sentido senão no contexto de uma situação atual (enquanto estou falando, formo a representação ‘falo’). Eles atestam, por-tanto,

o conteúdo situacional da representação [racional]. Nesse sentido, podemos apenas falar de objeto da representação apenas entendendo o objeto como uma situação. Não possuo uma representação de um corpo ou de uma ação, mas tenho ime-diatamente a representação de uma situação, ou seja, de um certo vínculo entre o corpo e uma ação, ou seja, de um corpo afetado de uma maneira de ser deter-minada. Isso significa que o conteúdo da representação é um conteúdo imedia-tamente proposicional (…): a representação contém de maneira congregada todas as informações que a proposição desdobrará no campo da discursividade efetiva.54 Essa característica própria à representação humana conduz a uma outra, deveras importante para nosso propósito. Se a representação humana é discur-siva, representando uma situação de acordo com uma estrutura proposicional implícita, ela rapidamente se multiplica em representações simples e complexas, da mesma forma como as proposições que as explicitam são ora simples ora complexas. Eis porque o homem difere do animal não apenas pela representação simples, que não possui a mesma forma para os dois, mas também pela capaci-dade de formar representações complexas:

O homem não se distingue dos animais não racionais pelo discurso proferido (logos

prophorikos) – pois os corvos, os papagaios e os cucos proferem sons vocais

arti-culados – mas pelo discurso interior (logos endiathetos). E não difere também somente pela representação simples (pois eles também recebem representações), mas porque essa é transitiva e combinatória (te metabatike kai sunthetike). Porque ele possui em si uma noção da consecução (akolouthias ennoian), ele forma desde o início um pen-samento do signo por meio dessa consecução. De fato, o signo é da seguinte

53 A tipologia das representações e os exemplos são relatados por Sextus Empiricus, Contre les Professeurs, VII, 242-243.

54 Frédérique Ildefonse, La naissance de la grammaire dans l’Antiquité grecque, Paris, Vrin,

Referências

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