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EXISTEM CIÊNCIAS DE OBSERVAÇÃO? AS SOCIAIS SÃO METATEÓRICAS

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EXISTEM CIÊNCIAS DE OBSERVAÇÃO? AS SOCIAIS SÃO METATEÓRICAS

ALBERTO OLIVA

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, RJ, Brasil

aloliva@uol.com.br

Resumo: A partir de Francis Bacon os filósofos tenderam a atribuir papel crucial à observação na pesquisa científica. Depois da metade do século XX se intensificou o debate em torno do papel cumprido pela atividade observacional na ciência. A visão que encara o que se observa como ‘dados’ a serem simplesmente coletados foi profundamente questionada a ponto de se abrir caminho para a predominância da concepção oposta de que a observação está sempre impregnada de teoria. Este artigo pretende avaliar o impacto dessas discussões sobre a interação entre teoria e observação nas Ciências Sociais. Além disso, almeja mostrar que essas ciências lidam com tipos de objeto com peculiaridades ontológicas que requerem mais que o simples reconhecimento de que a observação é sempre ‘teoricamente impregnada’. Além disso, é também objetivo deste trabalho demonstrar que as principais críticas ao observacionalismo feitas por Popper et alii já se encontram na obra de Comte. No entanto, tais críticas ao observacionalismo são incompletas porque negligenciam um traço crucial de alguns tipos de fato social: o de se oferecerem pré-interpretados à observação. Defenderemos que a presença de ‘teoria’ em vários tipos de fato social gera problemas especiais com relação às formas de observá-los, reconstruí-los e explicá-los. Destacando as dificuldades especiais suscitadas pela observação de fatos da vida associativa que despontam pré-interpretados, este artigo se empenhará em demonstrar que não cabe caracterizar as Ciências Sociais nem como ciências de observação nem como teóricas e observacionais em virtude de possuírem natureza metateórica.

Palavras-chave: observacionalismo, fatos pré-interpretados, metateoria, função manifesta, função latente.

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DO SCIENCES OF OBSERVATION EXIST? THE SOCIAL ONES ARE METATHEORETICAL

Abstract: From Francis Bacon on, philosophers tended to assign to observation a crucial role in scientific research. From the mid-twentieth century the debates on the role played by observational activity in science became intensive. The view that regards what is observed as ‘data’ to be merely collected was deeply questioned in such a way as to give rise to the prevalence of the opposite view according to which observation is always theory-laden. This article intends to assess the impact of the discussions regarding the interaction between theory and observation on social sciences. The goal aimed at is to show that social sciences deal with types of object whose ontological peculiarities demand more than a mere recognition that observation is always ‘theory impregnated’. Another purpose of this article is to demonstrate that the main criticisms addressed by Popper et alii to observationalism are already present in Comte’s work. However, such criticisms of the observationalism are incomplete because they overlook a crucial feature of some types of social fact, namely, that they present themselves pre-interpreted to observation. We will argue that the presence of ‘theory’ in several kinds of important social facts creates special problems concerning the ways to observe, reconstruct and explain them. Highlighting the special difficulties raised by the observation of facts of the social life that show themselves pre-interpreted, this article shall endeavor to prove that it is inadequate to characterize the social sciences as observational sciences or even as theoretical and observational sciences due to the fact that they have a meta-theoretical nature.

Keywords: observationalism, pre-interpreted facts, metatheory, manifest function, latent function.

Formamos livremente hipóteses verificáveis a fim de instituir leis suficientes para nossa conduta sem aspirarmos à perfeita represen-tação do mundo ou à plena satisfação do espírito. (COMTE, 1929 [1853], vol. III, p. 26)

A ciência, gloriosa conquista do homem moderno, se encontra situada entre a matemática pura e a experiência sensorial bruta: é da tensão conceitual gerada entre essas coordenadas polares que deriva as perplexidades filosóficas sobre a ciência. (HANSON, 1971, p. 1)

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Com o advento da ciência moderna, a atividade observacional passa a merecer atenção especial do filósofo. KUKLA (2008, p. 396) é de opinião que “a observação desempenha papel único nas caracterizações filosóficas do empreendimento científico”. Pode-se até dizer que pelo menos até meados do século passado a observação tendeu a ser vista como pilar central de critérios preocupados em demarcar a ciência empírica de outras modalidades de busca de conhecimento como a matemática e a filosofia. KUKLA (2008, p. 396) aponta uma forte tendência a encarar “o conteúdo de nossas observações como nos sendo dado pela própria natureza, como constituindo nossos dados, de tal modo que seus pronunciamentos seriam mandatórios”.

Pouco antes da metade do século XX começou a se intensificar o debate em torno do papel cumprido pela atividade observacional na ciência. Segundo GALAVOTTI (2003, p. vii), “a visão que atribui à filosofia da ciência a tarefa de clarificar a relação entre termos teóricos e observacionais, e que toma o plano da observação como ‘dado’ [...] tem sido gradualmente abandonada em favor do ponto de vista mais flexível segundo o qual teoria e observação não são separadas, mas estreitamente interligadas”. Para SHAPERE (1982, p. 490), “o resultado de se abandonar a distinção entre observação e teoria, ou de se reformularem as relações entre elas, foi o de sacrificar a objetividade e a racionalidade do empreendimento científico”.

Pretendemos neste trabalho avaliar o impacto dessa discussão sobre as Ciências Sociais procurando mostrar que lidam com tipos de objeto com peculiaridades ontológicas que não se limitam a favorecer a tese da dependência da observação à teoria. Além do mais, almejamos demonstrar que as principais críticas feitas ao observacionalismo desde o início do século passado se encontram, no essencial, na obra de Comte. E que, malgrado sejam importantes, essas críticas passam ao largo de um traço distintivo essencial de alguns tipos de fato social, que é o de se oferecerem pré-interpretados à observação. Defenderemos que há presença de ‘teoria’ no próprio fato investigado e que isso suscita problemas especiais com relação às formas de observá-lo, reconstruí-lo e explicá-lo. Debruçando-se sobre os problemas concernentes à interação entre teoria e observação no estudo de fatos da vida associativa que despontam pré-interpretados, este artigo procurará demonstrar que não cabe definir, como tantos fizeram, as Ciências Sociais como ciências de observação nem mesmo como simplesmente teórico-observacionais, já que possuem também caráter metateórico.

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1. Nem de facto nem de jure são as Ciências Sociais observacionais A despeito de seus sistemas teóricos se assentarem em diferentes pressupostos epistemológicos e ontológicos, os founding fathers1 das Ciências

Sociais – a exemplo de Durkheim e Weber – invocam o registro do que é como base da explicação, como antídoto contra o apriorismo e a tentação de sobrepor o dever ser ao ser. Os primeiros cientistas sociais levam em conta as críticas de ARISTÓTELES (1952, §13, p. 384) aos que “não buscam teorias e causas para explicar fatos observados, mas forçam suas observações tentando acomodá-las às suas próprias teorias e opiniões”.

Um dos principais formuladores de uma metodologia para a sociologia inaugural, DURKHEIM (1949 [1895]) recorre em Les règles de la méthode sociologique ao indutivismo baconiano com o objetivo de conferir cientificidade à sociologia. Durkheim adota como postulado o aforismo XXXVI do Novum organum: “só resta um método, muito simples: consiste em conduzir os homens até os fatos a fim de que sigam sua ordem e encadeamento”. A despeito da influência baconiana, é discutível que as teorias substantivas de Durkheim presentes em Les formes elementaires de la vie religieuse, Le suicide e De la division du travail social tenham sido formuladas – e mais ainda que possam ser defendidas – com base em uma concepção indutivista de ciência.

Seguindo os passos de Comte, DURKHEIM (1949 [1895], p. 78) define a sociologia como uma science d’observation. Há, entretanto, diferenças fundamentais entre os modos como concebem a interação entre teoria e observação. Durkheim merece ser visto como defensor, ao menos nos escritos metodológicos, do observacionalismo. Comte, não. Costumeiramente atribuída a POPPER (1959, p. 59; 1986, p. 104; 1989, p. 23), a tese de que toda observação é sempre feita à luz de uma teoria começou, com o apoio de resultados obtidos em

1 (N. de E.) Várias expressões em língua estrangeira são usadas no artigo. Nesta nota,

apresentamos traduções para algumas delas: founding fathers: pais fundadores; soi disant: autodenominado; illata: inferido; fallacy of misplaced concreteness: falácia da concretude mal colocada; overt behavior: comportamento manifesto; socii: membros da sociedade; chose: coisa; spectator methods: métodos do espectador; man made: feito pelo homem; self-fulfilling prophecy: profecia auto-realizadora; suicide prophecy: profecia do suicídio; doxai: opiniões; thin and thick descriptions: descrições rasas e densas; telos: meta; loop: laço; last but not least: por último mas não menos importante; invisible hand: mão invisível; theory laden: carregado de teoria.

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psicologia da percepção, a ser amplamente aceita na filosofia da ciência do século XX. No entanto, ainda no início do século XIX, Comte descreve o pesquisador como pressionado entre a necessidade de observar para formar teorias e a necessidade, não menos imperiosa, de forjar teorias para realizar observações. É um dos pioneiros na defesa da indispensabilidade da teoria para a realização de observações:

Se de um lado toda teoria positiva deve necessariamente estribar-se em observações, é igualmente imprescindível, por outro, que, para entregar-se à observação, nosso espírito necessita de uma teoria qualquer. Se, ao contemplarmos os fenômenos não os relacionássemos imediatamente a alguns princípios não apenas nos seria impossível combinar essas observações isoladas e, por conseguinte, delas extrair algum resultado, mas seríamos mesmo inteiramente incapazes de retê-las; e, na maioria das vezes, os fatos passariam despercebidos aos nossos olhos. (COMTE, 1908 [1830], vol. I, p. 5)

Esta passagem – assim como várias outras da obra de COMTE (1908 [1830], vol. I, p. 71-2; 1908 [1842], vol. VI, p. 425; 1929 [1853], vol. III, p. 19-20; 1929 [1854], vol. IV, p. 24-5, 140-1; 1974 [1844], p. 8, 24-5) – mostra que as críticas que se avolumaram no século passado ao observacionalismo já tinham sido feitas pelo positivismo, normalmente associado a formas toscas de empirismo. Quase que simultaneamente, WHEWELL (1989 [1844], p. 60-1) defende posição muito próxima à de Comte: “assim como a percepção de objetos envolve ideias, a observação envolve raciocínio [...] não podemos raciocinar sem ter as operações de nossa mente afetadas por sensações prévias assim como não podemos conceber o raciocínio como se reduzindo a uma série de sensações; a fim de ser usada pelo raciocínio, a sensação deve se tornar observação, e a observação [...] envolve raciocínio”.

Criticando Whewell, MILL (1949 [1846], p. 193) defende teses de teor observacionalista que mereceriam as críticas que Popper equivocadamente faz a Comte: “de acordo com o Dr. Whewell a concepção era algo que se acrescentava aos fatos; ele se expressa como se Kepler tivesse colocado alguma coisa nos fatos por sua maneira de concebê-los, mas Kepler não fez isso; a elipse estava nos fatos antes que Kepler o reconhecesse, exatamente como a ilha era uma ilha antes de ser circundada; Kepler não colocou o que concebera

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nos fatos, mais viu isso neles [...] se deve fornecer algum conhecimento relativo a esses fatos, a concepção deve ser sobre algo que realmente esteja nos fatos”.

Que não se justifica confundir, como se costuma fazer, positivismo com factualismo fica claro quando nos damos conta de que os textos de Popper em que advoga ser imprescindível contar com uma teoria para a realização de observações são muito parecidos com os de Comte. Para caricaturar o positivismo, Popper o vincula ao empirismo rústico ignorando que Comte advoga pioneiramente que incumbe à teoria a missão de interpretar observações:

Em qualquer ordem de fenômeno que possa existir, incluída a mais simples, nenhuma verdadeira observação é possível sem que seja primitivamente dirigida e finalmente interpretada por uma teoria qualquer [...] toda observação isolada, inteiramente empírica, é essencialmente ociosa, e até radicalmente incerta. A ciência só faz uso daquelas que se vinculam, ao menos hipoteticamente, a uma lei qualquer; é essa vinculação que constitui a principal diferença característica entre as observações dos cientistas e as do vulgo. (COMTE, 1908 [1839], vol. IV, p. 219-20)

Depois de defender que a concepção original de Wittgenstein no Tractatus se caracteriza pelo descuido com o “problema da universalidade e da generalidade”, pela “negligência com as dificuldades vinculadas ao status de uma hipótese científica, que sempre vai além de uma simples enunciação de fato”, POPPER (1966 [1945], p. 298) advoga que, “com relação a isso, Wittgenstein segue os passos de positivistas anteriores, notadamente de Comte”. Em apoio à sua tese, Popper se reporta à passagem em que COMTE (1929 [1854], vol. IV, p. 140) afirma ser “certamente incontestável, hoje em dia, que a observação dos fatos é a única base sólida dos conhecimentos humanos” e “que toda proposição não redutível à simples enunciação de um fato, particular ou geral, carece de sentido real ou inteligível”. Popper interrompe a citação desconsiderando a oração adversativa que a segue: “mas não é menos certo que o desenvolvimento da capacidade de imaginação deve preceder a capacidade de observação”. Nada fiel ao que Comte pensa sobre a interação entre teoria e observação, POPPER (1992, p. 88) lhe atribui, de modo controverso, a posição epistemológica de que há conhecimento positivo entendido como não hipotético. O modo de Comte encarar o relacionamento entre teoria e observação não recomenda a caracterização que ele faz das ciências empíricas como sciences d’observation. Essa forma de defini-las é coerente com o que defende a

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metodologia de Durkheim. Por isso, as críticas de Popper a Comte seriam mais apropriadas a DURKHEIM (1973 [1893], p. 43), que é observacionalista, como fica claro quando apregoa que a observação é procedimento metodológico crucial que encontra justificação em si mesmo: “objeta-se que o método de observação carece de regras para julgar os fatos recolhidos, mas essa regra se depreende dos próprios fatos”. Por mais que na defesa de suas teorias substantivas Durkheim se revele, como destaca LUKES (1977, p. 34), um teórico ousado, livre das bitolas do observacionalismo, no plano do discurso metodológico, Durkheim confere ao fato social o estatuto ontológico de coisa para, opondo-a à ideia, priorizar a observabilidade, o que se pode exteriormente acompanhar:

É coisa todo objeto de conhecimento […] que o espírito só chega a compreender caso saia de si mesmo para realizar observações e experimentações […] É coisa, com efeito, tudo que é dado, tudo que se oferece ou, antes, que se impõe à observação. Tratar os fenômenos como coisas é tratá-los como dados que constituem o ponto de partida da ciência. (DURKHEIM, 1949 [1895], p. xii-xiii, 27)

Para que se justifique distinguir uma ciência como observacional é preciso ser capaz de fazer observações sem contar com uma teoria e/ou que a teoria seja diretamente derivada de fatos. Ao conceber a teoria (sociológica) como fruto de generalizações confiáveis do que se constata nos fatos estudados, Durkheim está em desacordo com as teses contrárias ao observacionalismo defendidas em várias passagens da prolífica obra de Comte:

O empirismo absoluto é impossível [...] o homem é incapaz, por sua natureza, não somente de combinar fatos e deles deduzir algumas consequências, mas simplesmente de observá-los com atenção e retê-los com segurança se não os vincula imediatamente a alguma explicação. Em suma, não podemos realizar observações sem uma teoria qualquer assim como não há teoria positiva sem observações. (COMTE, 1929 [1854], vol. IV, p.

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Com relação à possibilidade de a sociologia ser de facto uma ciência de observação, cabe levar em consideração a análise feita por BROWN & GILMARTIN (1969, p. 287-88) de 402 artigos veiculados na American Sociological Review e na American Journal of Sociology que os levou a constatarem que o

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chamado método observacional só foi utilizado por 13% dos estudos publicados em 1940-1941 e apenas por 4% dos publicados em 1965-1966. Sendo esse o caso, as práticas de pesquisa não autorizam qualificar a Sociologia como uma ciência de observação, como também fez no Brasil Florestan FERNANDES (1972, p. 68). Assinalam BROWN &GILMARTIN (1969, p. 287-88) que, na prática, o sociólogo tende a se limitar a elaborar questionários e a realizar entrevistas capazes de explicitar sentimentos e opiniões renunciando a construir explicações factuais do comportamento e da interação. A constatação de Brown & Gilmartin – “a sociologia está se tornando o estudo de sentimentos e impressões verbalmente expressos em detrimento de uma análise da performance humana” – se aplica ainda mais à atualidade. Mesmo um perfunctório acompanhamento das principais revistas de Ciências Sociais mostra que o emprego de procedimentos (soi disant) observacionais é hoje ainda menor que o feito, ou propalado, nas décadas de 1940 e 60.

Se de facto as Ciências Sociais não merecem ser chamadas de observacionais, menos ainda de jure. É mais fácil nelas detectar teorismo associado ao emprego abusivo de termos – como, por exemplo, alienação, coesão social, anomia, status, inconsciente etc. – que se referem a pretensos fatos, eventos, estados e mecanismos aos quais se atribuem propriedades cuja existência não tem como ser observacionalmente estabelecida. A proliferação de teorias gravitando em torno de si mesmas explica, em parte, por que conceitos considerados centrais por um estudioso simplesmente deixam de ser utilizados por outro; ou de por que os mesmos termos-chave aparecem com variadas acepções em diferentes sistemas teóricos a ponto de torná-los incomensuráveis. As idiossincrasias terminológicas – noções empregadas exclusivamente por um autor ou escola – dificultam o intercâmbio crítico e fazem com que o que se observa dependa não só da teoria empregada, mas também do jargão empregado.

Para tornar ainda mais questionável aplicar o qualificativo ‘ciência de observação’ às Ciências Sociais, há o fato de que a especificação do que se vai investigar é precedida de ‘escolha ontológica’. Antes mesmo de dar início à pesquisa, o estudioso se defronta com o longevo debate ontológico entre individualistas, holistas e emergentistas. De saída, enfrenta a necessidade de definir se seu objeto de estudo são indivíduos, coletivos, propriedades emergentes ou o Todo. Sua escolha fica na dependência do que considera a entidade fundamental ou a agência decisiva – em suma, a dimensão ontológica

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determinante da vida social. Só depois da ‘escolha ontológica’, o cientista define para onde dirigir sua atenção. Sendo assim, a atividade observacional fica a reboque dos compromissos ontológicos assumidos.

Holistas, que não costumam caracterizar de observacionais as Ciências Sociais, mostram propensão ao teorismo e à hipostasiação quando forjam explicações, por exemplo, sobre as classes sociais como se existissem com total independência funcional e acional em relação aos indivíduos que as compõem. Nada mais distante do observável do que dar vida própria a coletivos, do que teorizar sobre classes sociais como se fossem superagências, como se tivessem o poder de pensar, avaliar e tomar decisões, como se, em suma, possuíssem uma mente. Algumas das mais influentes teorias sociais promovem a personificação das entidades supraindividuais às quais conferem primazia ontológico-causal. Muitos marxistas teorizaram sobre as classes sociais atribuindo a elas propriedades que pressupõem o exercício de capacidades como a cognitiva e a volitiva.

Colocando-se à margem de monitoramentos empíricos básicos, as teorias que hipostasiam o que tem existência inferida, o que não passa de construto, postulam alcançar e explicar um plano supraindividual possuidor de mecanismos próprios de formação e reprodução. Dando estatuto ontológico de concreta ao que é illata, incorrem no que WHITEHEAD (1959 [1925], p. 52) chama de fallacy of misplaced concreteness: “o erro de confundir o abstrato com o concreto”. E assim deixam de lado os indivíduos e as suas ‘teorias’ sobre os fatos sociais.

Dentre os poucos cientistas sociais que procuram explicar os fatos da vida associativa adotando o individualismo metodológico, alguns advogam que a primazia ontológica a indivíduos decorre da necessidade de se privilegiar o que é observável. Alegam que as ontologias povoadas por observáveis devem ser preferidas às que se centram em inobserváveis, que as propriedades de ‘entidades’ não observáveis não têm como ser objetivamente identificadas e atribuídas. Apenas o overt behavior dos indivíduos seria passível de ser acompanhado de um modo que permitisse controlar observacionalmente o que se teoriza sobre ele. O fisicalismo de NEURATH (1973, p. 325) é taxativo: “só há gestos, palavras, comportamento; não há ‘motivos’, ‘ego’, ‘personalidade’ para além do que pode ser formulado de modo espaço-temporal”.

As dificuldades ontológicas especiais enfrentadas pelas Ciências Sociais também não permitem qualificá-las de observacionais. Tanto no estudo de

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indivíduos quanto no de entidades supraindividuais constroem-se teorias sobre mecanismos ou fatores inobserváveis. O desafio é determinar, e justificar, de que modo as teorias são inferidas dos observáveis. WATKINS (1973, p. 167-8) concede existência privilegiada aos indivíduos alegando que só eles podem agir. O truísmo de que são sempre os indivíduos a agir não significa que suas crenças, atitudes e hábitos nada devam a uma realidade que, mesmo se criada por eles, consegue ter mecanismos próprios de reprodução que se mostram irredutíveis ao mero somatório das ações observáveis dos indivíduos.

Não se justifica a introdução de um critério que vede a uma teoria assumir compromissos ontológicos que vão além do que possa ser identificado no plano observável. Qualquer teoria, mesmo de uma ciência como a física, postula entidades inobserváveis. O fato de só o indivíduo ter uma existência com coordenadas espaço-temporais identificáveis não obriga o cientista social a considerá-lo seu único (genuíno) objeto de estudo. Os comportamentos dos indivíduos são passíveis de apreensão observacional, mas não os móveis e os sentidos de suas ações. Nenhuma ciência erige a observabilidade em critério ontológico capaz de definir o que se pode supor existente e o que se pode tomar como objeto de teorização.

2. As Ciências Sociais e as críticas do pós-positivismo ao observacionalismo

A caracterização da atividade de observação como independente da teoria não se faz presente no positivismo e sim no positivismo lógico. Carnap e Hempel foram os primeiros a considerar crucial o estabelecimento de uma nítida distinção entre o factual e o teórico. No campo da linguagem, os positivistas lógicos acreditam ser possível separar o ‘vocabulário observacional’ do ‘teórico’. Se o que desponta observável não depende da teoria empregada, seu registro não varia de teoria para teoria. Sendo assim, o que se observa é teoricamente neutro, não sofre qualquer condicionamento do contexto e da etapa do processo histórico – interno ou externo à ciência – em que é feita sua identificação. O cientista nem mesmo é condicionado a observar determinadas coisas em virtude dos problemas que formula.

Para AYER (1972 [1936], p. 142), um enunciado carece de significado caso não possa ser traduzido para a linguagem observacional concebida como

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composta de termos que descrevem apenas propriedades observáveis de coisas observáveis. BRAITHWAITE (1953, p. 8) propõe que “experiência, observação e termos cognatos sejam usados no sentido mais amplo de modo a cobrir fatos observados sobre objetos materiais, ou eventos que neles ocorram, assim como fatos diretamente conhecidos sobre conteúdos ou objetos da experiência imediata”. HEMPEL (1958, p. 41) menciona “coisas e eventos constatáveis por observação direta”. CARNAP (1956, p. 38) tem o mérito de reconhecer que para além de uma linguagem observacional – formada por termos que denotam, direta ou indiretamente, propriedades e relações observáveis – há uma linguagem teórica constituída por termos que denotam eventos inobserváveis, aspectos ou características inobserváveis dos eventos. Não deixa de defender, contudo, que o controle da segunda se faz por suas conexões com a primeira.

Um dos poucos filósofos e psicólogos contemporâneos a defender a neutralidade da observação, FODOR (1984, p. 23-4) endossa a separação tradicional entre a fixação da crença que se dá por meio dos sentidos (‘por observação’) e fixação de crença via inferência, ou seja, com base em crenças previamente adotadas. A seu ver, as crenças fixadas por observação cumprem papel central na aquisição de conhecimento e podem ser consideradas mais confiáveis que as crenças inferencialmente formadas. O percurso que vai do fato de que P para a crença de que P é mais curto pela observação que pela inferência, sem falar que é mais eficaz no enfrentamento e superação de conflitos de opinião.

Entre os principais críticos da ‘tese da separação’, os autodenominados pós-positivistas – com destaque para Hanson, Feyerabend e Kuhn – advogam que a observação é sempre carregada de teoria, de tal forma que o que se logra observar depende decisivamente da teoria com a qual se opera. A prevalecer essa visão, as ciências empíricas são mais teóricas que observacionais. Mais que o cientista natural, o social costuma endossar a visão de que fazer observações envolve recorrer ao holofote de uma teoria e a de que há sempre uma impregnação teórica da observação. A tese da dependência do que se observa ao esquema teórico-conceitual e ao conhecimento possuído precisaria se escorar em comprovações da psicologia referentes a como funciona a percepção humana. E a maioria dos estudos da percepção humana não dá apoio à caracterização das Ciências Sociais como ciências de observação. Acolhida pelos pós-positivistas, e com boa penetração nas Ciências Sociais, a chamada hipótese Sapir-Whorf – segundo a qual o que se observa é em boa

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parte definido pela linguagem empregada – representa uma guinada que coloca o ‘linguisticismo’, e não o teorismo, no lugar do observacionalismo:

Há um sentido em que ver é uma atividade ‘permeada de teoria’. A observação de x é moldada pelo conhecimento anterior de x. Outra influência sobre as observações deriva da linguagem – ou da notação usada para expressar o que sabemos – sem a qual haveria pouco que pudéssemos reconhecer como conhecimento. (HANSON, 1977, p. 19)

Documentamos acima que é injusto apresentar como antipositivista a tese de que fazer observação envolve empregar uma teoria. É inclusive discutível que a visão de que a observação está sempre impregnada de teoria se choca com o que propala Comte. Mesmo a tese de HESSE (1980, p. 56) segundo a qual “os dados à luz dos quais as teorias são testadas não podem ser descritos independentemente da linguagem teórica” não entra em dissonância cognitiva com Comte. A outra tese de Hesse, mais forte, de que “os dados não são destacáveis da teoria, que sua expressão é permeada de categorias teóricas” não discrepa do que pensa COMTE (1929 [1853] vol. III, p. 19-20): “os fenômenos, por mais reais que sejam, são, na maioria dos casos, essencialmente construídos por nossa inteligência”. Quando, no entanto, advoga que “a correção dos dados pode ser feitar com base na teoria e a teoria com base nos dados”, Hesse adota posição que, negando a existência de um universo ontologicamente autônomo de fatos com poder para julgar as teorias, conflita com o positivismo.

Defendemos que as visões contrárias ao observacionalismo – de Comte ao pós-positivismo, passando por Popper – são insuficientes para elucidar o tipo de relação que se estabelece entre teoria e alguns tipos de fato social. Nossa argumentação não se centra nos padrões sociais, nos fenômenos recorrentes da vida social, nem nos agregados sociais, e sim nos fatos para o entendimento dos quais é importante atentar para os modos com que as pessoas atribuem ‘sentidos’ ao que fazem e ao que é feito por outrem; em particular, nas formas com que compreendem o que vivenciam. Concentramos nossa análise no tipo de fato social para a ocorrência do qual são importantes os modos com que é compreendido pelo homem comum. Por conseguinte, não se enquadram no território deste trabalho os estudos que atribuem à sociedade propriedades como, por exemplo, a de ser estratificada e democrática ou a um grupo a característica de ser coeso ou oligárquico. Ressaltamos, no entanto, que

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mesmo essas modalidades de estudo não justificam tachar de observacionais as Ciências Sociais:

Cabe ao cientista natural, e só a ele, definir [...] seu campo observacional e nele identificar os fatos, dados e eventos relevantes ao seu problema [...] Esses fatos e eventos não são pré-selecionados nem seu campo observacional previamente interpretado. O mundo da natureza, tal qual explorado pelo cientista natural nada “significa” para as moléculas, átomos e elétrons. No entanto, o campo observacional do cientista social – a realidade social – tem uma estrutura específica de significado e relevância para os seres humanos que em seu interior vivem, agem e pensam. (SCHÜTZ, 1971 [1954], p. 59)

Pensamos que fatos portadores de carga teórica intrínseca suscitam problemas que não se resolvem com as velhas e novas maneiras de encarar a interação entre teoria e observação. Além de fazer observações impregnadas de teoria, o cientista social se defronta com as ‘teorias’ que os socii criam sobre os fatos. Mais que observações teoricamente selecionadas e conduzidas, o cientista social faz observações sobre o que, per se, encerra conteúdo ideacional, sobre fatos que abrigam também a ‘teorização’ do leigo sobre eles. SOROKIN (1960, p. 57) lembra que o evento de alguém ser baleado envolve fatos físicos, químicos e biológicos, e só se transforma em fenômeno sociocultural ou superorgânico quando adquire, por exemplo, o sentido ou valor de ‘homicídio’ ou ‘legítima defesa’.

Sendo as ideias dos participantes conteúdos que fazem parte do fato social, a observação é atividade sobre o que também é ‘teórico’. Um grupo de manifestantes que queima a bandeira de um país não executa um ato equivalente a atear fogo em um mero pedaço de pano. É crucial saber o que os manifestantes pensam sobre o que fazem, uma vez que as alegações deles são parte integrante do fato. Sendo esse o caso, o cientista social faz observações à luz de uma teoria, encontra ideias nos próprios fatos – a bandeira é uma ideia-símbolo mais que um objeto físico – e constroem explicações sobre as visões que as pessoas têm dos fatos. Todos esses são componentes essenciais do objeto estudado.

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3. Para além da observação: a desqualificação das razões dos indivíduos A maioria dos cientistas sociais acredita que se justifica deixar de lado os entendimentos que as pessoas têm do que vivenciam por entender que estão condenados ao erro ou à ilusão. Os membros de uma sociedade desconheceriam que suas ações são condicionadas ou determinadas por funcionalidades sistêmicas. Mesmo reconhecendo que as pessoas elaboram ideias sobre instituições e fatos sociais antes de serem forjadas explicações (pretensamente) científicas sobre eles, os objetivistas se limitam a desqualificá-las:

Os homens não esperaram o advento da ciência social para formar ideias sobre o direito, a moral, a família, o Estado, a própria sociedade. Não poderiam passar sem elas para viver. É, sobretudo, na sociologia que essas pré-noções, retomando a noção de Bacon, estão em condições de dominar os espíritos colocando-se no lugar das coisas. (DURKHEIM, 1949

[1895], p. 18)

Desacreditadas como as pré-noções baconianas, as ‘compreensões espontâneas’ não precisam ser identificadas e muito menos explicativamente reconstruídas. A ‘teoria’ presente nos fatos é encarada como fruto da ‘ignorância primária’, de ilusórias ‘racionalizações subjetivas’. O estudo científico revelaria que a vida social é produto de estruturas e processos com mecanismos de reprodução independentes das escolhas dos indivíduos e dos modos com que enxergam suas ações. Durkheim não desqualifica as ‘compreensões espontâneas’ apenas por supô-las fadadas ao erro ou à falsidade, mas principalmente por conceber o fato social como portador de existência independente das ideias que o acompanham e das representações que dele façam as consciências individuais. Sendo o fato social concebido como chose, entende Durkheim que tem o mesmo estatuto ontológico dos fenômenos naturais, o que significa que pode ser da mesma maneira observado e teorizado. À luz dessa visão objetivista, só os spectator methods, como os denomina BRODBECK (1977 [1963], p. 98), são genuínos. Desprezando as ideias que as pessoas formam sobre si mesmas e sobre a sociedade na qual se inserem, o cientista desconsidera (que) aquilo que se oferece à observação (é) ‘teoricamente’ impregnado:

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Os estados da consciência podem e devem ser considerados de fora, e não do ponto de vista da consciência que os experimenta. Essa é a grande revolução ocorrida nesse tipo de estudo. (DURKHEIM, 1949

[1895], p. 30)

As opiniões de senso comum sobre os fatos sociais em nada ajudam a entendê-los em virtude de as pessoas serem vítimas de uma ‘ilusão primária’: pensam que agem em conformidade com razões quando, de fato, são determinadas por causas que provêm de um domínio da realidade que elas sequer sabem que existe. Para poder apresentar a sociologia como uma ciência de observação dedicada a lidar com choses cuja existência nada deve a conteúdos da consciência individual, Durkheim precisa ignorar as ‘teorias’ presentes nos fatos sociais. Reconhecendo que “os indivíduos, os agentes da história, fazem determinada ideia dos acontecimentos de que participam”, DURKHEIM (1987 [1897], p. 245-6) salienta que para “poderem compreender seu comportamento imaginam-se a perseguir tal ou qual objetivo que lhes parece desejável e constroem razões para provar a si mesmos e, caso seja necessário, a outrem que esse objetivo é digno de ser desejado”. Todavia, as razões e alegações de senso comum são, em continuação, depreciadas por Durkheim como “explicações subjetivas destituídas de valor em virtude de os homens não verem os verdadeiros motivos que os fazem agir”.

A decisão de sempre ignorar as razões dos agentes, de condená-las ao erro ou à ilusão, se baseia no pressuposto de que o que os leva a agir de determinados modos está fora de sua consciência, de que nada tem a ver com os modos com que ‘teorizam’ sobre suas vivências. A despeito de fazer a mesma constatação de Durkheim – “o homem não espera pela ciência para ter sua vida explicada, e quando o teórico aborda a realidade social encontra um campo já ocupado pelo que se pode chamar de autointerpretação da sociedade” – VOEGELIN (1952, p. 27) diverge do objetivismo ao defender que “a sociedade humana não é meramente um fato, ou um evento do mundo exterior, a ser estudado por um observador como um fenômeno natural”. E que por se tratar de “um pequeno mundo [...] iluminado de significado a partir de seu interior pelos seres humanos” demanda um método especial.

A visão prevalente entre os teóricos sociais – contrapor às falsas razões alegadas as causas efetivas – possui uma matriz filosófica spinoziana. Depois de afirmar que “cada coisa individual é necessariamente determinada por alguma causa externa que a leva a existir e atuar de forma específica e fixa”, SPINOZA

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(2006 [1674], p. 364) conclui que “essa é a liberdade humana, que todos se vangloriam de possuir, e que consiste apenas no fato de que os homens são conscientes de seu próprio desejo, mas ignorantes das causas em razão das quais esse desejo foi determinado”.

Mesmo com posições epistemológicas, ontológicas e axiológicas muito diferentes das de Durkheim, MARX &ENGELS (1978 [1846], p. 154-5) também encaram as razões dos agentes como condenadas à ilusão ou à alienação: “os fantasmas formados no cérebro humano são necessariamente sublimações de seu processo de vida material”. Não sendo apenas parciais ou falhas, as razões do leigo são funcionalmente enganosas por ignorarem como se deu sua formação e a serviço de que estão. Contra esse tipo de visão pode-se objetar que, sendo as razões apresentadas pelos agentes partes constitutivas de suas ações, desprezá-las envolve deixar de lado traços importantes dos fatos estudados. BERGER &KELLNER (1982, p. 72) salientam que “o sociólogo não interpreta a ‘realidade’” e sim as várias interpretações da realidade (ou a ‘definição de realidade’), e que normalmente quando se opera com o conceito de ‘falsa consciência’ se pressupõe “que existe a ‘consciência certa’ que, por seu turno, implica um acesso direto à realidade, algo que o sociólogo não tem como prover”.

Para que a sociologia seja uma ciência, Durkheim considera necessário explicar a vida social não com base nas ideias dos participantes, mas em causas que escapam a eles. A questão é que se as formas de as pessoas encararem os fatos sociais fazem parte destes, a justificativa para ignorá-las não pode se resumir à alegação de que não contribuem para entendê-los. Por mais que as ‘compreensões espontâneas’ se mostrem erradas ou falsas, isso não implica que apreendê-las não tenha relevância para o entendimento de traços marcantes dos fatos sociais. Mesmo tendo um curso evolutivo independente das escolhas de indivíduos específicos, uma instituição social é também fruto do que pensam sobre ela os que dela participam. Quem estuda a família e as grandes transformações por que tem passado não pode desconsiderar o quanto é impactada pelas opiniões que vão historicamente se formando sobre ela. Nesse sentido, seus modos de existir e evoluir são afetados pelas maneiras com que são pensados por seus membros.

Poucos teóricos sociais têm procurado construir explicações capazes de lidar com as compreensões que acompanham os fatos, em razão de deixarem de reconhecer que “as relações sociais de um homem com seus semelhantes são

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– como aponta WINCH (1976 [1958], p. 23) – permeadas por suas ideias sobre a realidade [...] e que relações sociais são expressões de ideias sobre a realidade”. Advogando que “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” e que “a cultura é formada por essas teias”, GEERTZ (1973, p. 5) rechaça a caracterização do estudo da cultura como “uma ciência experimental em busca de leis” por entender que se trata de “uma ciência interpretativa à procura do significado”.

Supondo que a captação do sentido subjetivo seja essencial, como advoga Weber, ao entendimento da ação social, não basta apreendê-lo; o desafio é determinar o que deve a teoria científica fazer com ele, já que não pode simplesmente se adstringir à sua descrição. Sendo os fatos ‘teorizados’ pelo senso comum, sendo à ação conferido um sentido, o cientista tem a opção de elaborar metateorias cujo valor elucidativo, e mais ainda explicativo, se mostra sempre difícil de estabelecer. Nenhuma conquista explicativa é assegurada apenas com o reconhecimento de que para estudar o man made – uma palavra, um pronunciamento, uma transgressão, uma cerimônia, um julgamento – é necessário também levar em conta como este é vivenciado e compreendido. A verdade é que as teorias sociais que têm procurado reconstruir as compreensões que ‘fazem parte’ do objeto estudado não têm conseguido resultados alvissareiros, não têm logrado forjar explicações que integrem fato e sentido:

Uma correta interpretação causal de uma ação típica (tipo de ação compreensível) significa que a ocorrência considerada típica se oferece com adequação de sentido (em algum grau) e que também pode ser comprovada como causalmente adequada (em algum grau). Caso falte a adequação de sentido encontramo-nos apenas diante de uma probabilidade estatística insuscetível de compreensão (ou compreensível de modo incompleto) [...] Somente as regularidades estatísticas que correspondem ao sentido visado compreensível de uma ação constituem tipos de ação passíveis de compreensão [...]; isto é, são “leis” sociológicas. (WEBER, 1979 [1925], p. 11)

Desprezando a problemática do sentido da ação, a concepção de fato social como chose pode destacar o papel da observação. Em associação com a tese da ‘falsa consciência’, o objetivismo leva a um entendimento da ação humana em que desponta programada e guiada por estruturas sociais. Com

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isso, desconsidera-se que a ocorrência ou a recorrência de vários tipos de fato social resulta das ideias que as pessoas formam sobre eles. Na filosofia sempre se debateu a capacidade das ideias de representarem o real nas suas múltiplas expressões e manifestações. No estudo da vida social é necessário reconhecer que ideias podem operar como causas na medida em que contribuem para que certas coisas aconteçam; modos de encarar fatos psicossociais têm o potencial tanto de gerá-los quanto de evitá-los. Há tipos de eventos sociais que resultam de ações que só são executadas porque as pessoas formam determinadas ideias sobre eles. Mesmo se erradas, falsas ou ilusórias, as opiniões e visões que as pessoas formam sobre fenômenos da vida associativa contribuem para a existência ou ocorrência deles.

THOMAS & THOMAS (1928, p. 572) destacam que “se os homens definem situações como reais, elas são reais nas suas consequências”. Batizando essa tese de teorema de Thomas, MERTON (1964, p. 421-2) mostra que “os homens não respondem apenas aos aspectos objetivos de uma situação, mas às vezes, e em primeiro lugar, ao significado que a situação tem para eles”. A consequência disso é que, prossegue Merton, “uma vez que tenham conferido algum significado à situação, o significado atribuído é a causa determinante de seu comportamento e de algumas de suas consequências”. Por mais que as compreensões dos agentes pareçam fadadas ao erro ou à ilusão não se justifica negligenciar de que maneira os sentidos atribuídos às ações levam à sua execução. O inventário ontológico da realidade social que registra que o ‘apenas pensado’ e o que se ‘supõe existente’ norteiam ações não tem como deixar de reconhecer o alcance limitado da atividade observacional nas Ciências Sociais.

Em defesa do externalismo, DURKHEIM (1949 [1895], p. 28) propõe que os fenômenos sociais sejam “considerados em si mesmos, desvinculados dos sujeitos conscientes que os representam”; e que, para tanto, “é necessário estudá-los de fora como coisas exteriores”, já que “essa regra se aplica à realidade social toda, sem que haja lugar para exceção”. Em seu estudo clássico sobre o suicídio, DURKHEIM (1967 [1897], p. 4) deixa de lado a intenção por ser inobservável, por considerá-la “algo demasiado íntimo para poder ser atingida do exterior” e por entender que “até da observação interior ela se defende”. Por sempre desqualificar o que pensam os agentes sobre o que fazem, defende que “as causas dos fenômenos sociais devem ser procuradas fora das representações individuais”. Daí DURKHEIM (1987 [1897], p. 250) sustentar que “a vida social deve ser explicada, não através da concepção que dela fazem aqueles que dela

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participam, mas pelas causas profundas que escapam à consciência [...] essas causas devem, sobretudo, ser procuradas no modo como os indivíduos associados se agrupam”.

Indaga WINCH (1976, p. 24): “como dar algum sentido à ideia de Durkheim sobre ‘a forma como se agrupam os indivíduos associados’ sem levar em conta as noções desses indivíduos?”. Os motivos atribuídos por um agente à sua ação podem não ser os reais, mas em combinação com valores e significados contribuem para sua execução ou repetição. Salienta HAYEK (1948, p. 60) que “nenhum conhecimento superior que o observador possa possuir sobre o objeto, mas que não é possuído pelo agente, pode ajudar a entender os motivos de suas ações”. Durkheim não pensa assim, por entender que todos os conteúdos ideacionais, sendo subprodutos da vida social, se impõem aos indivíduos de fora. Visto que dar significado aos fatos e vivências é subproduto da vida social, isso pode ser explicado sem que haja necessidade de se levar em conta o que as pessoas pensam sobre eles. Sendo as pessoas incapazes de entenderem como a sociedade atua sobre elas, sobre suas ações, não há razão para levar em consideração o que pensam sobre os fatos sociais. Resulta desnecessário considerar as ‘teorias’ encontradas nos fatos se a ciência apreende e explica os mecanismos sistêmicos e os determinantes estruturais da vida social inacessíveis ao senso comum:

Somos vítimas de uma ilusão que nos faz crer que somos os criadores do que nos é imposto de fora. (DURKHEIM, 1949 [1895], p. 7)

É controverso que as teorias sociais afinadas com o objetivismo granjeiem a cientificidade postulada. A eventual falsidade da ‘teoria’ que acompanha o fato estudado não implica que a teoria que se considera científica possua efetivo poder explicativo. Para decretar que a ‘teoria’ presente no fato pode ser sempre ignorada, posto que especiosa, o cientista social precisa atribuir à sua teoria a prerrogativa de identificar as causas efetivas, considerá-las as únicas determinantes da ação e conceder à ciência o monopólio do acesso a elas.

Em busca de explicação para fenômenos compulsivos, FREUD (2001 [1895], p. 79) analisou a misofobia – o caso da pessoa que lava compulsiva-mente as mãos. À luz da teoria psicanalítica, as mãos não estão literalcompulsiva-mente sujas, mas simbolicamente. O que faz com que sejam vistas como ‘sujas’ é o fato de serem associadas a uma culpa, a algum malfeito real ou imaginário no

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passado. Sendo assim, postula o estudioso a existência de crença inconscientemente adotada sobre a culpa para explicar a diuturna lavagem das mãos, e apela para o mecanismo de defesa, de repressão, para explicar por que a crença permanece inconsciente. Colocando sob suspeição o relato em primeira pessoa, encarando como enganada a autocompreensão, ou a ‘teorização’ do paciente sobre suas ações, a psicanálise tem ‘semelhanças de família’ com a desqualificação do senso comum promovida, entre outros, por Marx e Durkheim. Para Freud, outro tipo de erro de apreensão e compreensão é também comum: além de oferecer razões que não passam de racionalizações, de desconhecer os móveis efetivos, o paciente alega inexistir razão para um ato quando há uma causa a desencadeá-lo. Seu exemplo é de uma pessoa que se esquece de enviar uma carta e insiste, mesmo depois de refletir, que isso não se deve a qualquer razão. Para Freud, há causas para uma ação mesmo quando para o agente é imotivada.

Se toda compreensão que a pessoa tem de si mesma, de seus atos, está fadada a ser falsa ou ilusória, não só quando apresenta razões para ações submetidas a causas que ela ignora como também quando alega inexistir razão para o que faz, então o agente não tem como saber por que faz o que faz. Só o cientista social seria capaz de identificar e explicar os determinantes sistêmico-estruturais ou inconscientes do pensamento e ação humanos. Só o psicanalista, desbravando as ‘cavernas’ do inconsciente, consegue constatar o quanto o ser humano está enredado na camada ‘epidérmica’, especiosa, do psiquismo. Para Durkheim, Marx e Freud, o homem se engana e se ilude o tempo todo – sobre o que pensa sobre si mesmo e sobre a vida social.

Visto que as compreensões das pessoas são motivos conscientes para que pensem ou ajam de determinados modos – se o paciente imagina ter as mãos sujas isso é suficiente para, no plano da consciência, ser levado a lavá-las seguida e compulsivamente –, o essencial passa a ser a determinação em última instância. Se não acreditasse que as mãos estão sujas, o paciente só as lavaria repetidamente se fosse marionete de pulsões inconscientes ou se fosse teleguiado por forças externas. Tende-se a negligenciar que o que é pensado sobre fatos sociais pode fazer com que ocorram ou deixem de acontecer. MERTON (1964, p. 421) chama de self-fulfilling prophecy o caso da crença que gera fato. Há casos em que acreditar que algo acontecerá – por exemplo, a falência de um banco – faz com que ocorra. Já a suicide prophecy é exemplo de que ao se acreditar que algo ocorrerá, se age para evitar – e se consegue evitar – que

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aconteça. O estado de saúde financeira de um banco é um fato; já as crenças dos agentes dizem respeito ao que pensam sobre bancos e ao que acreditam que pode estar acontecendo com determinado banco.

4. Precisam as Ciências Sociais ser metateóricas?

A tese de que só se entra em contato com o material empírico fazendo uso de um holofote teórico e a de que toda observação está impregnada de teoria podem ser aplicadas tanto às ciências naturais quanto às sociais. Já a constatação de que a entidade privilegiada – indivíduo, grupos, coletivos, classes ou o Todo – depende não do que se observa, mas de escolha ontológica, vale mais para as Ciências Sociais. O que temos defendido é que uma característica diferencial das Ciências Sociais – lidar com fatos que se apresentam ‘teorizados’ – não autoriza defini-las como ciências observacionais; e caracterizá-las como teóricas é insuficiente na medida em que algumas de suas pesquisas possuem - ou deveriam possuir - caráter metateórico. Se há ‘teoria’ no que é observado e não apenas na observação teoricamente conduzida, as Ciências Sociais precisam elaborar teorias sobre ‘teorias’. Se a teoria empregada para fazer observações encontra ‘teorizado’ o próprio conteúdo observado, há boas razões para se endossar a posição de FEYERABEND (1980, p. 160-4) de que não há como separar o componente teórico do observacional.

Aplica-se ainda mais às Ciências Sociais a tese de Paul CHURCHLAND (1985, p. 38-9) de que a “adequação empírica de qualquer teoria é radicalmente subdeterminada por qualquer evidência que nos seja disponível [...] já que para uma teoria ser empiricamente adequada o que afirma sobre coisas observáveis deve ser verdadeira – sobre todas as coisas observáveis, no passado, no futuro indefinido e nos mais distantes rincões do cosmo”. E como os dados a que se tem efetivamente acesso são finitos e com alcance limitado ocorre um problema de subdeterminação. Se, como destaca Churchland, mesmo teorias atreladas ao nível observacional são radicalmente subdeterminadas pela evidência, o que dizer dos estudos sociais com vocação metateórica?

Nas Ciências Sociais, não há apenas a dificuldade de como justificadamente ir além do que se constata, de apresentar boas razões para se ultrapassar a evidência disponível, de explicar fatos, e neles encontrar embasamento, cuja existência é teoricamente estabelecida. O desafio maior é o

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de teorizar sobre o que no próprio fato é ‘teorizado’. Depois de indagar “se o uso de todos os predicados observacionais envolve implicações teóricas, como podem ser usados em descrições que se pretendem evidência para essas teorias?”, HESSE (1970, p. 62) assinala que “se por ‘impregnação teórica’ se entende que os termos usados no relatório observacional pressupõem a verdade da própria teoria sob teste, então esse relatório observacional não tem como proporcionar evidência para essa teoria”. O desafio de quebrar a ‘cumplicidade’ entre teoria e fato é ainda maior nas Ciências Sociais.

Não é apropriado chamar de observacionais as Ciências Sociais em razão de envolverem três dimensões teóricas: as construções explicativas dos cientistas sobre os fatos, as ideias que integram os fatos e as ‘visões’ que as pessoas criam sobre os fatos. Quando se lida com fatos da vida social que despontam pré-interpretados, não é apenas a observação que é teoricamente impregnada, mas o próprio fato a observar. É teoricamente conduzida a atividade de observar e é também ‘teorizado’ o que se oferece à observação. Reconhecida a existência e a importância da ‘teoria’ dos socii presente nos próprios fatos, o desafio passa a ser o de elaborar uma metodologia capaz de dar origem a metateorias aptas a aspirar à condição de científicas.

Nossa tese é que as críticas ao observacionalismo passam ao largo da dificuldade especial envolvida na descrição e explicação de fatos que se destacam por portarem uma compreensão de si mesmos. Como sublinha PITKIN (1972, p. 261), “a ação é dual na medida em que consiste tanto naquilo que o observador externo pode ver quanto na compreensão dos atores do que estão fazendo; e essa dualidade distingue a ação e gera problemas especiais para as ciências sociais”. O objetivismo indutivista desconsidera essa argumentação alegando, como faz de DURKHEIM (1973 [1893], p. 35), que “as propriedades essenciais de uma coisa são aquelas que observamos em todos os lugares em que essa coisa existe e que pertencem apenas a ela”. Para Durkheim, a explicação antropológica ou sociológica só é ‘objetiva’ se for possível construí-la com base em ‘fatos’, ou ‘dados’ suscetíveis de generalização por meio de leis universais. Disso resulta que procedimentos como mensuração, testagem, análise estatística, explicações nomológicas etc. são adequados e suficientes ao estudo dos fatos sociais.

Não concordamos com os que defendem - caso de MILL (1949, p. 564) – que os objetos sociais são mais complexos apenas porque seu estudo envolve considerar um número maior de variáveis. A principal fonte de complexidade

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deriva, a nosso juízo, de serem os fatos sociais pré-interpretados no sentido de que se apresentam impregnados de ideias, significados e regidos por regras. Aprendemos com RUSSELL (2009 [1927], p. 71-2), entre outros, o quanto é difícil separar percepção de inferência. Não se observa, por exemplo, a raiva e sim expressões faciais, tons de voz, trejeitos corporais etc. como sinais que nos levam a inferir que alguém está irado. Não se observa o fogo na floresta distante, mas a fumaça densa que sobe juntando-se aparentemente às nuvens. Além de fazer inferências sobre o que observa, de usar uma teoria que impregna o observável e um jargão ontologicamente discriminador, o cientista social precisa saber o que fazer com fatos que contêm uma compreensão, ainda que falsa, de si mesmos. Mesmo porque a carga interpretativa presente no que se investiga não pode ser posta de lado simplesmente porque não é cientificamente elaborada.

A oposição entre fatos objetivos e opiniões subjetivas é problemática quando os primeiros, longe de serem meras ocorrências, se misturam ontologicamente com as segundas. Nesse caso, as opiniões subjetivas não podem ser sumariamente descartadas como faz Platão com as doxai. Daí HAYEK (1979 [1952], p. 47) sublinhar que “o objeto ou os ‘fatos’ das Ciências Sociais também são opiniões – não as opiniões do estudioso dos fenômenos sociais, mas as opiniões daqueles cujas ações produzem o objeto do cientista social”. Como fazem parte do objeto de estudo os modos com que os fatos da vida social são percebidos e pensados pelas pessoas, SEARLE (1996, p. 1) contrasta ‘fatos institucionais’ a ‘fatos brutos’, assinalando que “há porções do mundo real, fatos objetivos no mundo, que são fatos apenas por concordância humana, que há, em certo sentido, coisas que existem apenas porque acreditamos que existem”. Dá como exemplos dinheiro, propriedade, governos e casamentos, sem deixar de sublinhar que “muitos fatos concernentes a essas coisas são fatos ‘objetivos’ no sentido de que não são uma questão de minhas ou suas preferências, avaliações ou atitudes morais”. Antes de Searle, HAYEK (1948, p. 60) defendera que “nas ciências sociais as coisas são o que as pessoas pensam que são; dinheiro é dinheiro, palavra é palavra, cosmético é cosmético, se e porque se pensa que são”:

Qual é a ontologia do social e do institucional? Como pode haver uma realidade objetiva que é o que é apenas porque pensamos que é o que é? [...] Nosso principal problema é explicar como pode existir uma realidade

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social epistemologicamente objetiva em parte constituída por um conjunto de atitudes ontologicamente subjetivas. (SEARLE, 1998, p. 113)

Contra o observacionalismo e o fisicalismo, RYLE (1971, p. 494-6) dá o exemplo de dois meninos contraindo rapidamente as pálpebras de seus olhos direitos. Ambos piscam o olho. Em um deles trata-se de tique involuntário; noutro, de um sinal – uma piscadela – querendo comunicar alguma coisa. Enquanto movimentos, os dois são idênticos e a simples observação não nos permite estabelecer uma distinção entre eles. Mesmo porque a mera observação não revela qual deles é um tique nervoso, qual uma piscadela, ou se ambos são tiques nervosos ou piscadelas. E, no entanto, a diferença entre eles é enorme. Aquele que pisca está se comunicando e de um modo preciso, deliberado e especial na medida em que se dirige a alguém em particular para lhe transmitir uma mensagem específica e com base em um código socialmente estabelecido.

Como salienta Ryle, aquele que piscou de modo intencional executou duas ações – contrair a pálpebra e piscar – enquanto o portador de tique nervoso apenas uma: contrair a pálpebra. Um fato psicossocial não pode ser abordado como se fosse do mesmo tipo que uma mera contração da pálpebra. O fato social tem no mínimo a complexidade da piscadela. O sentido dado pelas pessoas ao que fazem, as visões que têm sobre o que outras fazem, é fundamental para que alguns tipos de fato ocorram (de determinados modos), gerem efeitos e possam ser qualificados de psicológicos e/ou sociais.

Exemplos como o de Ryle mostram que as Ciências Sociais precisam ir além do que ele chama de thin description. Mesmo porque uma thin description apenas reporta fatos ao enxergá-los separados das intenções da ação e das circunstâncias que a cercam. Só elaborando thick descriptions, os estudos psicossociais se habilitam a explicar tudo que de essencial está envolvido em uma ação – desde o contexto em que se desenrola, o processo do qual faz parte, até os significados e as intenções que a motivaram. A forma de vida monacal e o relacionamento entre os monges e a maneira com que interagem com o mundo exterior são superficialmente apreendidos caso se fique preso à descrição de ‘exterioridades comportamentais’. Uma thick description não deixa de levar em conta as ideias, principalmente religiosas, que acompanham as ações dos monges e que servem para justificar o tipo de vida que levam.

Em busca de descrições densas o cientista social não pode se limitar a identificar regularidades e uniformidades ou comprovar tendências. Como

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assinala MACINTYRE (1978, p. 28), se questões sobre motivos e razões não são respondidas, generalizações causais não podem ser consideradas autênticas explicações em Ciências Sociais. Isto porque constituem um fato adicional a também demandar explicação:

Para as ciências exatas da natureza, as “leis” são tanto mais importantes e valiosas quanto mais sua validade é universal. Para o conhecimento da base concreta dos fenômenos históricos, as leis gerais, por serem as mais desprovidas de conteúdo, são frequentemente as menos valiosas. Isso se deve ao fato de que quanto mais vasto é o domínio de validade de um conceito de espécie tanto mais se afasta da realidade concreta. Para poder abarcar o elemento comum do maior número possível de fenômenos, deverá ser necessariamente o mais abstrato possível e, por extensão, pobre de conteúdo. O conhecimento do geral jamais tem valor por si próprio nas ciências culturais. (WEBER, 1974 [1904], p. 95)

A generalização irrestrita ou categórica “todas as sociedades humanas têm tabus de incesto” não configura uma explicação. Uma tentativa de explicação consiste em propor, por exemplo, uma teoria funcionalista que atribui ao tabu valor adaptativo considerando-o possuidor do poder de minimizar os conflitos no interior da família ao deslocar a busca de parceiros sexuais, e a competição que isso envolve, para fora do círculo restrito da família. Esboço de explicação é encarar o casamento exogâmico como propiciando a aproximação de grupos rivais – eventualmente distantes uns dos outros e com propensão à beligerância – estendendo a rede de cooperação para fora dos muros familiares.

5. A inobservabilidade tanto da função manifesta quanto da latente: um estudo de caso

Para o teórico social, as justificações para desmerecer as ‘teorias’ falsas que indivíduos apresentam para suas ações não podem ser as mesmas para desqualificar as razões, igualmente falsas, invocadas por uma comunidade inteira para execução de determinadas atividades. Diferentemente de se estivesse implantada no coração da vida coletiva, a crença irracional – e a derivada ilusão de eficácia instrumental da ação – situada no plano da

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consciência individual pode ser condenada sem gerar qualquer ‘constrangimento antropológico’. Visto ser complicado descartar ‘teorias’ longevas – com toda a aparência de irracionais – quando coletivamente professadas, alguns cientistas sociais defendem que mesmo a ação baseada em crença epistemicamente injustificada desencadeia efeitos que não são visados ou reconhecidos pelas pessoas e pela comunidade.

Diante de crença epistemicamente injustificada, é comum cientistas sociais resgatarem as ações dela decorrentes apontando os (pretensos) efeitos sociais – involuntários – que geram. Trata-se de maneira inventiva de evitar julgar pré-lógica toda uma comunidade que se dedica a regulares atividades baseadas em crenças irracionais e instrumentalmente ineficazes. DURKHEIM (1968 [1912], p. 3) rejeita as teorias que encaram a religião como fruto da alienação, como fuga da realidade, considerando “um postulado essencial da sociologia que uma instituição humana não teria como se assentar no erro e na mentira, e ainda assim perdurar; se não estivesse fundada na natureza das coisas, teria encontrado nas coisas resistências que a teriam impedido de triunfar”.

MERTON (1964, p. 60-4) distingue a função manifesta entendida como o conjunto das consequências objetivas – pretendidas e reconhecidas pelos participantes que contribuem para seu ajustamento ou adaptação ao sistema – da função latente, que engloba as consequências que não são pretendidas nem reconhecidas. A distinção é introduzida para explicar comportamentos coletivos que à primeira vista se mostram racionalmente injustificáveis. Ao menos na superfície são irracionais e manifestamente ineficazes em alcançar o propósito declarado. É o caso, por exemplo, do comportamento dos hindus de adoração das vacas. A avaliação externalista, acusável de etnocentrismo, desqualifica visões e condutas desse tipo como supersticiosas, irracionais, ‘primitivas’, pré-lógicas ou simplesmente como fruto da “mera inércia da tradição”.

MERTON (1964, p. 63) destaca ser expressiva a quantidade de estudos sociais que distinguem as disposições pessoais e subjetivas – que se materializam sob a forma de necessidades, interesses ou propósitos – das consequências que, a despeito de funcionais e objetivas, não são assim reconhecidas por não serem identificáveis pela consciência. Isso quer dizer que prestam um ‘serviço à sociedade’ sem pretendê-lo. SUMNER (1906, p. 3-4), um dos tantos que estabelecem a distinção entre fim visado e consequências

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objetivas, advoga que “das necessidades recorrentes surgem hábitos para o individuo e costumes para o grupo, mas que esses resultados são consequências nunca conscientes, antevistas ou pretendidas”. MACIVER (1917, p. 156-7) é ainda mais preciso:

Esses efeitos diretos das instituições são, pelo menos em algum grau, pretendidos quando os homens as criam, mas há ulteriores efeitos que, em termos de controle, se situam fora dos propósitos diretos dos homens [...] trata-se de um controle que pode, a despeito de não ser pretendido, prestar enorme serviço à sociedade. É um dos principais agentes de promoção da solidariedade social.

Caracterizando a dança cerimonial dos hopi como prática voltada para fazer chover com o fito de melhorar a colheita, WHORF (1956 [1939], p. 152, 155) a descreve como uma atividade “que se repete milhares de vezes, hora após hora [...] que exibe elevada carga simbólica e é executada com grande intensidade e empenho, mas sem muito movimento ou swing”. Segundo MERTON (1964, p. 64-7), a dança da chuva dos hopi cumpre função latente por ser um tipo de cerimonial que se mostra essencial para a unidade do grupo, a expressão dos sentimentos do grupo e o fortalecimento dos laços entre seus membros. A despeito de nem a função manifesta, declarada, ter como ser observada – só se fica sabendo por que há uma dança coletiva perguntando aos participantes – o teórico social postula a existência da função latente, que sequer é (indiretamente) acessível pelo conhecimento de como as pessoas encaram o que fazem, de como dão significado a suas ações.

O estudioso não pode ignorar a ‘teoria’ presente no que observa, tendo em vista que é a única maneira de ficar sabendo que os envolvidos (pensam que) dançam para que chova, e que consideram isso fundamental para as boas colheitas. O objetivo que as pessoas pensam perseguir é crucial para que ajam do jeito que fazem, pois, do contrário, careceriam de qualquer princípio de movimento situável no plano de suas consciências. Acreditando que o alegado não é a causa da dança, e sabendo que o resultado pretendido não tem como ser alcançado da maneira propalada, o cientista pretende determinar o que faz com que a dança realmente ocorra. Precisa, no entanto, partir da ‘teoria’ das pessoas “de que dançam para que chova” mesmo que seja para rejeitá-la em nome de uma explicação (pretensamente) científica.

Referências

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