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Experiência e Natureza: a Teoria da Gestalt entre a ciência e a fenomenologia (Experiência e Natureza no Gestaltismo)

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Experiência e Natureza: a Teoria da Gestalt entre a

ciência e a fenomenologia (Experiência e Natureza no

Gestaltismo)

JONAS FORNITANO CHOLFE

Departamento de Psicologia

Universidade Metodista de Piracicaba PIRACICABA, SP

jonasfch@ig.com.br

Resumo: Apresentamos neste artigo uma leitura da Teoria da Gestalt que enfatiza o papel da

investigação fenomenológica na fundamentação de seus conceitos centrais e na construção de uma nova noção de natureza que permitiria a integração das diferentes disciplinas científicas. A essência de nossa argumentação consistiu numa análise da obra “O lugar do valor num mundo de fatos” de Wolfgang Köhler, em que a noção de demanda e a descrição da experiência de transcendência transfenomenal se articulam na refutação do fenomenalismo, indicando o caminho para um dualismo epistemológico que implicaria um conceito de natureza como exterior à consciência, mas, ao mesmo tempo, mais próxima do mundo vivido – implicação que consideramos a mais importante da hipótese do isomorfismo. Esse isomorfismo mostrou-se uma das condições de possibilidade da mesma ciência que nega a participação de valores e demandas na natureza que lhe serve de objeto.

Palavras-chave: Fenomenologia. Gestalt. Isomorfismo.

Experience and Nature: the Gestalt Theory between science

and phenomenology (Experience and Nature on Gestaltheory)

Abstract: We present in this text a review of the Gestalt Theory that emphasizes the role of the phenomenological inquiry in the development of its central concepts and in the construction of a new notion of nature by which it seems possible the integration of usually separate scientific fields. Our argument was guided by the analysis of Wolfgang Köhler’s work, “The place of value in a world of facts”, where the notion of requiredness and the transphenomenal transcendence experience description contribute to the refutation of ‘phenomenalism’, pointing to an epistemological dualism that implies at the same time a notion of nature as exterior to the conscience and similar to the life world – implication that we consider the most important concerning the hypothesis of isomorphism. It was revealed that this

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isomorphism is, in fact, a condition of possibility of the same science that denies the participation of values and demands of the nature that is its very object.

Keywords: Phenomenology. Gestalt. Isomorphism.

Desde as primeiras apresentações da Teoria da Gestalt da Escola de Berlim, Köhler, Koffka e Wertheimer, seus fundadores, esforçaram-se em ressaltar que a amplitude das novas idéias ultrapassava a ciência psicológica. Tratava-se de fundar uma nova psicologia, sem dúvida, mas uma psicologia que estabeleceria os fundamentos de uma nova forma de pensarmos a lógica, a ciência e a natureza. A defesa da psicologia como ciência orientadora de um movimento filosófico não era, obviamente, uma novidade na história do conhecimento. Entretanto, a releitura dos dados da experiência a partir do conceito descritivo “Gestalt” estabelece uma via nova de pensarmos a ordem característica dos dados psicológicos, ordem sobre a qual se erigem todas as realizações da mente humana, das suas crenças ingênuas até as mais altas construções científicas e culturais.

O estudo das idéias gestaltistas no Brasil encontra-se num impasse importante. Por um lado, temos uma leitura do gestaltismo como um movimento científico-filosófico de inspiração fenomenológica, que teria sido decorrente do fato dos gestaltistas terem sido discípulos de Husserl, considerado o pai da fenomenologia (Donzelli, 1980). Por outro lado, temos os trabalhos de Engelmann (2002), focados na base experimental e psicológica da Teoria da Gestalt, considerando os argumentos fenomenológicos uma contribuição menos importante desses teóricos (Engelmann, introdução à coletânea de textos de Köhler organizada em 1978).

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que estudos mais recentes apontam que os gestaltistas da Escola de Berlim nunca foram discípulos de Husserl (Toccafondi, 2002; Ash, 1998). Na verdade, os três fundadores dessa escola foram discípulos de Stumpf enquanto realizavam pesquisas no instituto de Berlim, o qual era amigo de

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Husserl e seu colega nas aulas ministradas por Franz Brentano. Um contato entre os gestaltistas e Husserl é apontado por Ash (1998) em relação a Wertheimer. O gestaltista teria lido as “Investigações Lógicas” de Husserl, considerando especialmente relevante a terceira investigação, sobre a relação entre o todo e as partes. Entretanto, Wertheimer teria encontrado nessa investigação uma reflexão ontologicamente incompleta acerca do problema da forma, opinião cujo motivo revelaremos em seguida.

Uma das idéias por trás da reflexão fenomenológica gestaltista já estava presente na filosofia de Brentano e mesmo na filosofia empirista, trata-se da noção de que os dados da experiência consciente são os únicos objetos científicos diretamente acessíveis, fato que concede à psicologia descritiva um privilégio em relação às outras ciências, cujos objetos são transcendentes. Todo método fenomenológico, além dessa idéia básica, carrega o esforço de empreender uma suspensão da atividade judicativa diante dos fenômenos, tentando apreendê-los em sua originalidade, isto é, tal como aparecem à nossa apreensão. Assim, no âmbito dos fenômenos, o “aparecer” equivale ao “ser”.

Não temos experiência do que verdadeiramente existe, em e por si mesmo, e aquilo que não experienciamos não é verdadeiro. A verdade dos fenômenos físicos, como dizem, é apenas uma verdade relativa. Já os fenômenos da percepção interna são outra questão. Eles são verdadeiros em si mesmos. Eles são, na realidade, justamente o que eles parecem ser, um fato que é atestado pela evidência com a qual eles são percebidos. Quem poderia negar, então, que isso constitui uma grande vantagem da psicologia sobre as ciências naturais? (Brentano, 1995/1874, p. 20).

O esforço para compreender os dados da percepção por si mesmos, portanto, implica a superação do realismo científico. Para compreendermos a originalidade da Teoria da Gestalt, é preciso entender como surge o conceito “Gestalt”, o método que permite sua

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revelação e as implicações extraídas pelos seus defensores relativas às outras ciências e seus objetos.

Deixem-nos, portanto, tentar outro método, e, retornando aos simples fatos, sem pressuposições, olharmos diretamente os dados subjacentes a todas estas teorias. Qual é a minha experiência quando eu vejo que este cinza é mais claro do que aquele, esta linha maior, ou este som mais alto, do que aqueles? (Koffka, 1922, p. 539).

A importância epistemológica da Gestalt

O que caracteriza o método gestaltista como um método fenomenológico corresponde à inversão do movimento empreendido por outras psicologias da época. Empreendia-se, no final do século XIX, um grande esforço na busca das sensações correspondentes aos estímulos físicos aos quais eram expostos os participantes das experimentações. A relação entre uma sensação e um estímulo deveria manter-se constante, tanto quanto à qualidade (azul, verde, doce, salgado, um som específico, etc), como quanto à intensidade, isto é, o aumento da intensidade do estímulo deveria ser acompanhado pelo aumento da intensidade da sensação (segundo a célebre lei de Fechner-Weber). Na passagem da psicofísica para a psicologia, orientada pela idéia de uma relação pontual entre estímulo e sensação, instituiu-se, assim, um realismo que opunha a experiência efetiva e a experiência real.

Ora, não vemos cores, sons, cheiros, sabores e texturas isolados uns dos outros, as dimensões de nossa experiência se interpenetram, constituindo objetos e contextos organizados. O azul participa do céu, é um “imenso azul”, é o fundo homogêneo de fronteiras indefinidas sobre o qual as nuvens se movem suavemente, coloridas de um branco que chega a ter uma textura visual macia. Tal imensidão, suavidade, são qualidades transmitidas pelos objetos e dimensões da experiência, chegam a nós e nos afetam. Entretanto, ao

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tomarmos a experiência de uma perspectiva realista, somos levados a dizer que toda a vivacidade e riqueza da sensibilidade é um atributo posterior, decorrente da mera repetição arbitrária de eventos semelhantes (simultaneidade de sensações táteis e visuais, por exemplos) ou do advento da atividade judicativa (como quando julgamos constante um processo que, “na verdade”, se constitui como uma variação). A própria conservação das qualidades sensíveis em objetos integrados e constantes é posterior e estabelecida por relações contingentes entre sensações, a princípio indiferentes entre si. A nossa experiência efetiva, isto é, os objetos constantes e as qualidades globais (instabilidade, estabilidade, suavidade, conflitos, quebras no campo, etc), corresponde a um misto de sensações, juízos e associações, mesmo que pareça ser uma organização espontânea, própria aos fenômenos e independente de nossa atividade intelectual.

O problema colocado pelos gestaltistas a tal estratégia reflexiva corresponde à justificativa do conceito de “sensação”. Afinal, como afirma Donzelli, “elementos sensoriais não existem, senão enquanto produtos de análises provocadas pela escolha arbitrária de separar e isolar, portanto, não existem senão enquanto resultado de percepções artificiais” (1980, p. 9). Ora, nunca percebemos um dado sensorial isolado de um contexto, mesmo as experimentações que visavam a um único processo exigiam o aparecer de um dado sobre um fundo (Köhler, 1947/1929, capítulo 3). O papel do contexto deveria ser considerado em todas as circunstâncias, não apenas em situações cotidianas, mas também experimentais, pois transformar o fundo da percepção num campo homogêneo não significa excluí-lo da percepção. O que estava por trás da noção de sensação não era, ao que tudo indica, a experiência efetiva, mas sim a psicofísica estabelecida pela comunhão da física e fisiologia do século XIX, única base encontrada pela psicologia para se constituir como uma ciência natural àquela época (Gurwitsch, 2002/1936).

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Ao tomarmos a experiência em si mesma, simplesmente observando-a e descrevendo-a, temos objetos destacados de um espaço comum, que se movem, aproximam-se, sobrepõem-se, articulando-se de tal maneira que mesmo a ausência de partes devido à sobreposição nos dá a impressão de continuidade dos fenômenos, uns por trás dos outros1, o que corresponde ao fato de que nossa experiência é em si

uma organização que busca a maior coerência e estabilidade possível. Assim, nascem a partir da observação da experiência ingênua (desprovida do crivo dos pressupostos científicos) tanto a noção de Gestalt como a lei que determinará os eventos da experiência, isto é, o princípio da Pregnância (Wertheimer, 1938a/1923).

Se toda a experiência sensível deve ser entendida como uma organização espontânea (Gestalt) que visa à coerência (pregnância), o conceito de sensação, assim como as concepções estruturalistas de associação e imagem (Titchener, 1898) deixam de ter sentido na psicologia. Ora, a noção de sensação impregnava a psicologia do século XIX e início do século XX, assim como a filosofia, até mesmo as obras iniciais de Husserl e de Brentano. A ordem era imposta à sensibilidade por uma atividade mecânica do sistema nervoso, ou pelo advento de uma atividade significativa do sujeito, não nascia dos próprios dados sensíveis. Portanto, mesmo que a revelação do problema da Forma (a existência de dados sensoriais que não se adequavam a soma dos elementos presentes) tenha sido realizada por Ehrenfels na psicologia experimental e por Husserl na filosofia (Gurwitsch, 2002/1936; Ash, 1998), apenas com as reflexões da Escola de Berlim tal conceito alcançou sua radicalização ontológica, isto é, seu estabelecimento como entidade real e básica da percepção.

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A própria segregação de uma figura sobre um fundo, que implica a continuidade do fundo por trás da figura e a independência relativa da figura, é uma evidência dessa tendência à organização mais estável, pois quebra um campo homogêneo cada vez mais instável devido à presença de uma diferenciação, dividindo-o em dois processos mais coerentes.

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Com tal reviravolta em relação aos sistemas psicológicos, tornou-se possível uma inversão de ideais que já era exigida por teóricos tais como Ernst Mach, Hering e Müller, em oposição a fisiologistas fundamentais na história da psicologia, como Helmholtz (Ash, 1998, capítulo 4). Trata-se do primado da psicologia em relação à fisiologia. Ao recusar a noção de sensibilidade que apoiaria o organismo mecanicista da fisiologia do século XIX (cujas vias periféricas reciprocamente isoladas constituíam a causa das sensações), os gestaltistas abrem espaço para uma nova concepção de organismo, baseado na riqueza revelada pela própria experiência sensorial. Podemos dizer que tal empreendimento se justifica pela idéia já presente em Brentano, ou mesmo em Descartes, como aponta Husserl (1970/1938), de que os objetos da consciência são auto-evidentes, verdadeiros enquanto tais, sendo, portanto, uma base segura para sustentar a estrutura do conhecimento. A novidade da Teoria da Gestalt corresponde à identificação de uma objetividade espontânea no âmbito da sensibilidade, substituindo a passividade das sensações por estruturas intrinsecamente ordenadas: as Gestalten.

“Parece haver um único ponto de partida para a psicologia, exatamente como para todas as outras ciências: o mundo como encontramos, ingenuamente2 e sem crítica” (Köhler, 1947/1929, p. 7).

Não há, segundo os gestaltistas, outra base possível para o conhecimento senão nossa experiência original, ingênua, a ordem tal como nos é revelada pelo mundo fenomenal. Tal ordem é justamente o que pretende descrever o termo Gestalt, constituindo-se como o conceito básico sobre o qual será estruturada a epistemologia do gestaltismo.

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O termo “ingenuidade” na Teoria da Gestalt refere-se à consideração da experiência tal como nos aparece, sem preconceitos teóricos. Difere, portanto, do sentido de “ingenuidade” em Husserl, relativo à aceitação de pressupostos não elucidados.

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Primeiramente os conceitos descritivos que simplesmente apresentariam o que é imediatamente observado e constatado devem ser estabelecidos. Conclusões funcionais, tanto de natureza psicológica como fisiológica, são derivadas desses conceitos. Assim, estabelecem-se conceitos funcionais que se estendem para além dos dados intuitivamente observados, conceitos que serão as ferramentas necessárias da explicação teórica (Gurwitsch, 2002/1936, p. 279).

Segundo Ash (1998), ao fundamentar a ciência na intuição3 de

uma ordem intrínseca à experiência, a Teoria da Gestalt segue uma linha científica oposta ao tecnicismo que freqüentemente se insinuou à epistemologia da psicologia. Trata-se da oposição a uma ciência cujo objetivo final é o controle da natureza, tendo a possibilidade de previsão como medida da verdade. Para os gestaltistas, a ciência deve revelar as estruturas que concedem inteligibilidade aos processos naturais, tendo como fundamento as organizações diretamente reveladas pela experiência. A medida da verdade passa a ser a possibilidade de apreendermos um processo enquanto nos revela seu fim, isto é, a Gestalt que suas partes realizam ou tendem a realizar por si mesmas.

Os teóricos da Gestalt procuraram por princípios invariantes de ordem e sentido considerados inerentes aos fenômenos tais como são experienciados sob condições particulares de estímulos e não relações correlacionais ou outras relações funcionais contingentes entre variáveis dependentes e independentes. Com tal ênfase na ordem e sentido inerentes, a experimentação da Gestalt expressava uma oposição fundamental em relação às concepções tecnológicas da mente (Ash, 1998, p. 222).

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O termo “intuição” deve ser compreendido em nosso trabalho como o contato direto com algo em nossa experiência, contato que assegura a auto-evidência de um dado e justifica sua representação num conceito.

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Podemos pensar, no âmbito da percepção, em um círculo imperfeito ou levemente interrompido por um intervalo. Percebemos uma tensão nas partes “fora do lugar”, assim como, no âmbito da física, as forças num processo macroscópico (como a distribuição da água num sistema de canos, ou da corrente elétrica num sistema de fios) tendem a devolver a um sistema seu equilíbrio, ou estado de menor energia potencial, o qual corresponderia, segundo Gurwitsch (2002/1936), à manifestação física das “boas Gestalten”, isto é, das configurações nas regiões de pregnância.

O “aprender a ver”, bem como o esforço em “trazer à luz” os processos intrinsecamente ordenados da percepção e da natureza são os aspectos da ciência gestaltista que levam Mitchell G. Ash (1998) a identificar nesta uma orientação estética. Podemos acrescentar, considerando a reflexão de Koffka no primeiro capítulo de “Princípios da Psicologia da Gestalt” (2001/1935), que tal orientação científica tem como objetivo final a compreensão do lugar do homem na natureza, o que confere um papel secundário à dominação da última, concedendo uma relevância ética à atividade científica.

Resumindo: a aquisição do conhecimento verdadeiro deve nos ajudar a reintegrar nosso mundo que foi despedaçado; deve nos ensinar a evidência das relações objetivas, independentes dos nossos desejos e prejuízos, e deve nos indicar nossa verdadeira posição em nosso mundo e dar-nos respeito e reverência às coisas animadas e inanimadas ao nosso redor (Koffka, 1955/1935, p. 10).

A partir do momento em que a noção de causalidade passa a se referir a leis de organização, os fatos tornam-se relacionados significativamente, isto é, passam a ter sentido num contexto, sendo mutuamente necessários e inteligíveis com base na configuração que tendem a realizar. Ora, os processos fenomenais e naturais não são, portanto, arbitrários ou meramente correlacionados, eles nos revelam

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uma ordem e um fim, são problemas que exigem a compreensão de seu sentido e não apenas a constatação de sua repetição. Com base em tais argumentos, temos uma identificação, na Teoria da Gestalt, entre explicação e compreensão, e a última implicação que gostaríamos de apontar em relação à epistemologia gestaltista, isto é, a superação da fronteira entre as ciências naturais (guiadas pela noção de explicação), e as ciências humanas (guiadas pela noção de significação) (Koffka, 1955/1935, capítulo 1; Köhler, 1959/1938, capítulo 10).

O naturalismo gestaltista como pressuposto

Segundo alguns filósofos, tais como Merleau-Ponty (2006/1942; 1980/1965), mesmo com toda a beleza do projeto dos gestaltistas, eles não teriam levado seu projeto até o fim. Mesmo que tal filósofo tenha amenizado as críticas dirigidas por Husserl à Teoria da Gestalt, ou seja, de que os mesmos pressupostos psicologistas do empirismo estavam presentes em suas bases (a concepção da experiência como parte do mundo, e a não redução do mundo ao mundo vivido), e reconhecido o valor da noção de estrutura (Chauí, 1983), ainda acreditava que esses teóricos mantinham-se submissos ao realismo científico. Tal realismo se manifestaria nas idéias gestaltistas através da redução das estruturas biológicas e humanas às estruturas físicas, o que implicaria a perda da originalidade das primeiras.

De fato, alguns textos da Teoria da Gestalt nos dão a impressão de que o mundo físico se insere em suas idéias como um pressuposto, forçando os gestaltistas a aderirem à tese do isomorfismo, segundo a qual as estruturas do mundo físico (organismo e objetos físicos exteriores) seriam semelhantes às estruturas da experiência direta (presentes imediatamente à consciência). Um exemplo corresponde ao primeiro capítulo da obra “Psicologia da Gestalt” (1947/1929) de Köhler, no qual o autor nos apresenta a experiência direta como

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geneticamente subjetiva, isto é, defendendo a dependência dos fenômenos em relação aos processos orgânicos. Outro exemplo corresponde ao segundo capítulo da obra “Princípios da Psicologia da Gestalt” (1955/1935), no qual Koffka nos apresenta o meio comportamental – o ambiente dado fenomenalmente –, e o mundo geográfico – o mundo físico do qual participam tanto os objetos exteriores ao organismo como o próprio organismo – numa relação em que o primeiro depende causalmente do segundo.

É verdade que o mundo físico, mesmo que seja a título de estímulo ao qual o organismo está exposto, sempre aparece nos textos gestaltistas, sugerindo uma espécie de dualismo. O caráter problemático desse dualismo entre mundo físico e mundo da experiência deve-se à inacessibilidade direta do último. O mundo físico permanece sempre como um construto (Koffka, 1955/1935). Entretanto, se todo construto define-se pela presença daquilo que pretende descrever na experiência direta, como defender a validade do conceito “mundo físico”, uma realidade acessível apenas indiretamente? Tendo em mente tal problema, temos duas opções: ou condicionamos as contribuições da Teoria da Gestalt a uma purificação que deteria suas críticas e revelações fenomenológicas, excluindo seus prejuízos objetivistas, ou aceitamos o desafio de buscar nas idéias dos gestaltistas uma solução para a paradoxal relação entre as teses que afirmam a base fenomenal última dos conceitos e a existência de uma realidade transfenomenal, a qual nos poderia revelar uma nova maneira de pensar a objetividade.

Merleau-Ponty constitui-se como um bom representante da primeira via. A afirmação de que “é preciso não se deixar influenciar pelas hipóteses fisiológicas dos gestaltistas, pela explicação cerebral das estruturas da consciência” (Merleau-Ponty, 1973/1958), assim como a aproximação, em “Estrutura do Comportamento” (2006/1942, capítulo 3), da Teoria da Gestalt em relação ao materialismo, mostram que o filósofo condiciona a contribuição filosófica da Gestalt a uma certa

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purificação da teoria. De fato, o fenomenólogo pensa conduzir mais fielmente o projeto que os gestaltistas “nunca levaram muito adiante”, radicalizando à sua maneira a noção de estrutura, ou Gestalt (Chauí, 1983).

O mesmo movimento é realizado por Gurwitsch, que, por sua vez, inspira o artigo “A lei da Gestalt na perspectiva fenomenológica” de Embree (1979). Segundo Embree, é preciso distinguir as “descrições” das “explicações” oferecidas pelos gestaltistas, sendo que a “exploração fenomenológica” da Teoria da Gestalt se pautaria por um refinamento de suas descrições e revelaria contribuições às leis de essência da experiência. Entretanto, pretendemos seguir a segunda via, apoiando-nos na defesa de Ash (1998) de que o naturalismo gestaltista, longe de se constituir como um pressuposto assumido ingenuamente, constitui-se como uma verdadeira filosofia da natureza. Acreditamos que a reflexão de Köhler no quarto capítulo – “além da fenomenologia” – de “O lugar do valor num mundo de fatos” (1959/1938) basta para integrarmos a perspectiva fenomenológica e a perspectiva naturalista da Teoria da Gestalt num mesmo projeto filosófico.

A filosofia da natureza na Teoria da Gestalt

O gestaltismo se encaixa, segundo Köhler (1959/1938), numa perspectiva dualista epistemológica do conhecimento. Aliando-se às idéias de diversos físicos, tais como Arthur Eddington e Max Planck, a Teoria da Gestalt defende a existência de duas objetividades cognoscíveis, uma diretamente, denominada de “experiência direta” ou “mundo mental”, e outra indiretamente, denominada “natureza”, “transfenomenalidade” (termo de Köhler), que se constitui como objeto visado pelas ciências naturais. Embora os físicos, como Eddington e Einstein, geralmente compreendam a “realidade física” como qualitativamente diferente da “realidade fenomenal” (Eddington,

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1947/1934, capítulo 1) 4, sendo a transposição de uma a outra mediada

pelos conceitos matemáticos, os gestaltistas defendem que não seria possível transcender uma objetividade em direção à outra se não houvesse uma equivalência estrutural entre ambas (tese do isomorfismo). Tal divergência nos mostra como a física passa pelo crivo fenomenológico da Teoria da Gestalt, não sendo simplesmente assumida de antemão.

Em 1938 (1959/1938, capítulo 5), Köhler defende que, dado que os aparatos experimentais são entidades perceptivas, sendo a configuração de suas conexões o fator determinante dos significados dos números presentes nos instrumentos de medida, e dado que é com base nas experimentações que são testadas as inferências sobre o mundo físico, pode-se concluir que a ausência de uma semelhança estrutural, ao menos a nível macroscópico, tornaria a atividade do cientista um empreendimento ininteligível. Em suma, o sentido da mensuração depende de características essenciais do contexto perceptivo constituído pelo aparato experimental, cuja equivalência com o arranjo macroscópico do mundo físico faria com que tais mensuração pudessem ser consideradas válidas ao estudo dessa realidade remota.

Como em toda fenomenologia, temos, portanto, um movimento que exige uma justificação das ciências abstratas, como a matemática e a lógica, no âmbito dos dados intuitivamente apreendidos, tendência manifestada aqui pela defesa de Köhler de que os números observados nos instrumentos de medida são absolutamente cegos se desconsiderarmos o contexto perceptivo estruturado no qual se

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Nos termos de Eddington, opõem-se a história familiar contada pela mente sobre as coisas, a qual deve ser reduzida aos simples dados fornecidos pelos instrumentos de mensuração, e a história contada pela ciência, constituída por tais dados reduzidos somados às teorias, que dariam uma estrutura inteligível ao conjunto de mensurações.

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inserem. Investigações sobre a relação entre os conceitos básicos da matemática e da lógica e as articulações originais da experiência podem ser encontradas em dois artigos de Wertheimer, “Números e conceitos numéricos em povos primitivos”, de 1912, e “O silogismo e o pensamento produtivo”, de 1925, ambos presentes na coletânea organizada por Ellis em 1938.

A defesa de uma equivalência entre as ciências abstratas que mediariam a relação entre a mente e a natureza acaba, assim, por fazer equivaler a própria natureza às estruturas mentais. Tal semelhança estrutural obriga o cientista a preservar as “características óbvias” dos dados fenomenais, compromisso defendido vigorosamente pelo gestaltismo, como nos mostra a citação escolhida por Henle (1979), do artigo “Valor e Fato” de Köhler, para representar a postura fenomenológica dessa filosofia.

Provavelmente há de chegar o dia em que, em Psicologia e Filosofia, será princípio de método que as características óbvias dos dados primários de observação serão respeitadas pelo valor que representam, qualquer que seja sua relação com preconceitos gerais. Reconhecer-se-á, então, que não nos é permitido interpretar o preto como realmente branco ou que determinado lugar seja realmente outro lugar, a menos que sejamos forçados a fazer isso devido a observações posteriores convincentes (Köhler, 1978/1944, p. 115).

É verdade que os gestaltistas tentarão ampliar o conhecimento sobre a experiência direta através de processos cerebrais transfenomenais – a subjetividade genética da experiência. Entretanto, a fenomenologia gestaltista proíbe a redução dos dados fenomenais a dados neurofisiológicos funcionalmente mais pobres, como ocorria com a psicologia das sensações. Conserva-se, dessa forma, o sentido e o valor das vivências efetivas.

Temos, portanto, dois conjuntos de problemas a tratar: a justificação de uma objetividade cognoscível apenas indiretamente e as

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implicações de uma concepção estrutural isomórfica de natureza para a ciência.

Uma justificativa para a transfenomenalidade

Dada a tese de que o sentido último dos conceitos repousa no âmbito fenomenal, sustentada desde as investigações sobre a percepção, seria uma contradição importante a coexistência das noções de “subjetividade genética” da experiência e da dependência da ciência em relação ao mundo fenomenal na Teoria da Gestalt, se não houvesse a defesa da necessidade, no âmbito da própria realidade fenomenal, de pensarmos a subjetividade como parte de uma realidade que compreende uma região exterior. A genialidade do argumento de Köhler (1959/1938), que apresentaremos em seguida, consiste justamente em encontrar um fenômeno que implique uma existência transfenomenal como condição de sua significação, um processo anfíbio que esteja entre a mente e o mundo exterior.

O exemplo crucial de tal “ponte” na experiência é apresentado na defesa, desenvolvida por Köhler, do dualismo epistemológico em relação às críticas dos fenomenalistas. O “fenomenalismo” corresponde à postura filosófica que nega a existência das “coisas em si”, ou a possibilidade de serem conhecidas. Tal doutrina, assim, opõe-se à possibilidade de transcendermos, na atividade científica, a multiplicidade fenomenal. Dessa forma, a própria noção de natureza, a comunidade das coisas em si mesmas, não teria sentido algum.

Segundo o fenomenalismo, o objeto de estudo das ciências naturais não seria outra coisa senão um recorte na multiplicidade fenomenal. Tal recorte, orientado pelos interesses práticos do cientista, implica uma concepção instrumentalista da ciência, concepção que aparece no pensamento de Ernst Mach, sendo alvo constante de psicólogos como Brentano, Ehrenfels, Stumpf e de físicos da escola de Max Planck (Ash, 1998). Aqui Köhler se posicionará ao lado do que

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poderíamos denominar “tendência racionalista”, seguindo seus mestres (Stumpf e Planck) em oposição à escola dos novos empiristas que, diante de um eminente ceticismo, partem para a defesa de uma concepção técnica de ciência. Ash (1998, p. 182) denomina a postura comum a Planck, Stumpf e Köhler – a defesa da existência de um mundo exterior que não é dado na experiência em nenhuma instância – de “realismo crítico”. É importante ressaltar, no entanto, que não se trata, pelo menos no caso de Köhler, de recusar a experiência a título de “aparência”, pois o mundo fenomenal corresponde ao único conhecimento direto possível. A questão central no “realismo crítico” do gestaltismo refere-se à compreensão das duas realidades, a mental e a física, e da possibilidade da transcendência da primeira em direção à segunda.

A pergunta guia da reflexão de Köhler no quarto capítulo de “O Lugar do valor num mundo de fatos” (1959/1938) pode ser resumida da seguinte forma: podemos transcender a experiência imediata em direção à transfenomenalidade? De acordo com o fenomenalismo (Köhler, 1959/1938), o mundo físico seria um pressuposto injustificado, já que a transfenomenalidade que o define não passa da união artificial de dois termos fenomenalmente justificados, o termo “trans” referindo-se à diferença entre duas regiões fenomenais quaisquer, como o presente e o passado, e o termo “fenomenal” referindo-se a um índice geral da experiência. Para que o fenomenalismo seja refutado diretamente é preciso que encontremos uma experiência que implique a transcendência a uma transfenomenalidade, ou seja, o fenômeno que justifique o último termo.

Se tal proposta parece paradoxal, já que todo dado é fenômeno, a partir da noção de Gestalt, segundo Köhler, o paradoxo se desfaz. Precisamos, nos pede o teórico, superar a visão sobre o mundo dos fatos que restringe nosso olhar às coisas isoladas e posicionadas no espaço em mútua indiferença.

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Na verdade, é uma experiência absolutamente comum que uma coisa “refira-se” à outra coisa, ou que a primeira “aponte” para a segunda; sendo tais fenômenos tão dignos de nossa atenção quanto as “coisas” em questão (Köhler, 1959/1938, p. 114).

O gestaltista se refere aqui ao que podemos denominar de estruturas de relação. Dentre os diferentes tipos de estruturas, encontramos relações que transcendem uma parte em direção à outra, de forma que os termos implicam a presença um do outro na medida em que têm aquele sentido. São estruturas desse tipo, por exemplo, relações comparativas em que temos um objeto maior e um menor, uma figura mais clara e outra mais escura. Nesses casos, dependendo da proximidade das partes, as figuras são apreendidas imediatamente em relação, a qual constitui uma característica dinâmica do contexto5. As

características contextuais dependem da existência das partes, embora as últimas possam existir, mantendo uma unidade característica, quando não estão em relação. Um objeto ainda é um objeto mesmo que não seja mais “o objeto menor em relação ao objeto maior”. Outro aspecto fundamental dessas estruturas é que a relação sustenta-se em características específicas dos termos, tais como tamanho, clareza, etc. É a partir dessas estruturas que Köhler elucida o que chama de “transcendência”, ainda no âmbito fenomenal, pois, podemos dizer, a relação “transcende” uma parte do contexto visando à outra.

Outro tipo de estrutura importante (um tipo especial de “estrutura de relação”) corresponde às relações de demanda, ou valor,

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O artigo introdutório de Koffka sobre a teoria da Gestalt (1922) nos apresenta diversos exemplos de características dinâmicas em contextos perceptivos, especialmente em relações comparativas. O gestaltista

discrimina, nesse artigo, a experiência de dois objetos independentes (como a percepção de pisos de uma escada) e a experiência de “gradações” (como a percepção dos degraus de uma escada), isto é, como dois momentos de um contexto.

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em que um determinado objeto aparece como demandado ou rejeitado por um contexto incompleto, segundo suas características específicas (Köhler, 1959/1938, capítulo 3). Temos como exemplo uma pessoa com sede e um copo d’água, ou, para citarmos um exemplo objetivo, a relação entre uma determinada figura incompleta e diferentes complementos possíveis. O caráter de “demandado” do termo implica que este possui as características exigidas para o fechamento do contexto. Tanto nas relações comparativas quanto nas relações de valor os termos implicam-se mutuamente, pois é na presença de um que o outro se define. É importante ressaltarmos que a defesa da relação entre a demanda e as características específicas da parte demandada diferencia tais contextos de relações estabelecidas por entidades exteriores ao contexto (associações por repetição, relações hipotéticas impostas pelo juízo, etc.).

Os contextos de demanda podem ocorrer tanto entre fenômenos subjetivos como entre fenômenos objetivos, isto é, tanto em experiências que envolvam o “eu fenomenal”, como independentes deste6 (Köhler, 1959/1938). Lembremos que as pesquisas gestaltistas

referentes aos processos perceptivos (Wertheimer, 1938a/1923; Koffka, 1922) apoiaram a idéia de que a Gestalt pode legitimamente ser considerada um processo objetivo, dada a independência de algumas organizações em relação à atividade subjetiva (julgamento, atenção, memória, etc.). Temos como exemplos de contextos objetivos de demandas melodias incompletas, arranjos de figuras e mesmo arranjos de idéias. Na medida em que algumas idéias referem-se mutuamente, constituindo um tema comum (determinando o valor das partes como “certos”) ou dando-nos a impressão de não “combinarem” entre si (determinando certas partes como “inadequadas” ou “falsas para aquele contexto”), podemos dizer que constituem contextos objetivos.

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Para uma apresentação detalhada da redefinição das noções de objetividade e subjetividade na Teoria da Gestalt, consultar o primeiro capítulo de “Psicologia da Gestalt” (Köhler, 1947/1929).

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Testemunhamos tal objetividade muito adequadamente em situações em que desejamos com todas as nossas forças que algo seja verdadeiro (forças situadas no eu fenomenal), mas nossas idéias teimam em nos dizer que não se encaixam num conjunto de relações sabidamente adequadas.

A identificação de uma relação transcendente que implique seus termos nos contextos de comparação e de demanda será crucial à formulação do argumento que justificará a transfenomenalidade, pois torna possível a hipótese de uma experiência em que o termo fenomenal implique a existência de outro termo, exterior à experiência direta, na medida em que possui um sentido relacional.

Köhler (1959/1938, p. 117) cita um primeiro exemplo de experiência de transcendência transfenomenal: a experiência de uma lembrança iminente. Pensemos numa situação em que tentamos lembrar um nome ouvido num determinado contexto. Há uma ponte entre o contexto incompleto e o termo que “está lá”, além de nossa apreensão, termo que aparece com uma característica qualidade de “certo”. Ora, se aquele termo desconhecido aparece como certo é por que possui as características que fecham o contexto, as quais também não estão presentes fenomenalmente. Justamente por isso “sabemos que sabemos a resposta”, de tal forma que somos capazes de sentir a aproximação e o afastamento desse termo exterior. Para tornarmos mais evidente a especificidade desse termo, basta que pensemos em diversos nomes possíveis. Os nomes que sugerimos ao termo exterior podem nos aparecer com as qualidades de “completamente errado”, “quase lá”, “indeterminado”, até que reconhecemos o nome certo, como se encaixasse imediatamente com o que “já sabíamos”. De onde vem a medida comparativa? Segundo Köhler, vem do termo transfenomenal do contexto.

O segundo exemplo citado de uma experiência que implicaria a transfenomenalidade corresponde ao caso das comparações sucessivas

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(Köhler, 1959/1938, p. 269). Pensemos na comparação sucessiva do peso de dois objetos. Ao pesarmos o segundo objeto, sentindo-o mais leve ou mais pesado, o primeiro objeto já não se apresenta fenomenalmente, contribuindo ao sentido do segundo a partir do exterior da experiência. O mesmo ocorre com comparações de intensidade de brilhos e sons.

Nos dois tipos de experiência, temos a implicação de um termo exterior devido ao sentido do termo presente. Se X é menor do que Y, estando o último ausente do mundo fenomenal, é necessário que Y exista na transfenomenalidade, dada a evidência fenomenológica do sentido relacional de X. Teríamos encontrado, portanto, uma experiência que justificaria a existência de uma transfenomenalidade7.

A partir dessa elucidação, é possível compreender o dualista epistemológico quando afirma que o cérebro, o organismo e o mundo físico são entidades transfenomenais, pois se torna inteligível a existência de algo que transcenda a experiência, que não seja diretamente dado, sendo apenas eventualmente implicado em contextos fenomenais ou, melhor dizendo, anfíbios. É certo que a experiência da transcendência transfenomenal não implica que o segundo termo seja uma entidade neural, seguindo os preceitos da fisiologia e da física. Entretanto, a partir desse argumento, o mundo físico deixa de ser um simples pressuposto injustificado e passa a ser um conceito que

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O argumento da lembrança iminente já foi utilizado por alguns

psicanalistas para justificar a existência do inconsciente. Acreditamos que a noção de Gestalt, ou contexto relacionado internamente, concede mais força ao argumento, embora, como veremos, a estrutura final da

transfenomenalidade fique em aberto. Acreditamos que os gestaltistas não seguiriam a estratégia psicanalítica, como sugerem as críticas de Koffka à elaboração do sistema inconsciente e à noção de projeção, a última compartilhada por Köhler (Koffka, 1955/1935, capítulo 8; Köhler, 1956/1938, capítulo 3). Entretanto, trata-se de um tema interessante para novas pesquisas.

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pretende revelar as características da realidade transcendente que controla pelo menos parte de nossa experiência.

Sobre o mundo físico e a transfenomenalidade, podemos resumir a conclusão de Köhler na tese de que há certamente uma transfenomenalidade para além do mundo fenomenal, sendo o mundo físico, ou o arsenal teórico das ciências naturais, um conjunto de hipóteses já em desenvolvimento que poderão ser aproveitadas para a construção da roupagem conceitual dessa realidade transcendente, a qual nunca será, por uma questão de princípio, diretamente cognoscível. Lembremos, no entanto, que tal construção teórica deverá respeitar o preceito básico da fenomenologia gestaltista, isto é, não poderá reduzir o mundo fenomenal a uma realidade funcionalmente inferior.

Ora, desconsiderando por um momento todo o conhecimento científico que acreditamos ter adquirido, podemos notar que a primeira característica da transfenomenalidade é justamente a possibilidade de participar de uma relação intrínseca, necessária, entre partes de um contexto. Portanto, a escolha dos conceitos e hipóteses científicas mais viáveis à compreensão da natureza deverá ser guiada justamente pelas noções de sentido e valor – intrínsecas à noção de Gestalt –, as quais foram, há muito tempo, isoladas no escopo das ciências humanas, que, por sua vez, expulsaram a problemática da natureza do seu campo teórico.

O sentido e o valor na transfenomenalidade

Dado que a transfenomenalidade participa da experiência numa relação de sentido, em que as partes significam-se mutuamente, o mundo físico precisa ser compatível com esse tipo de relação. Trata-se de uma interessante sugestão do isomorfismo entre mundo fenomenal e mundo físico, em que o primeiro sempre terá o privilégio na definição do segundo, devido a sua auto-evidência. O naturalismo gestaltista,

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portanto, além de justificar-se fenomenalmente, aponta para a Gestalt como conceito chave para pensarmos a natureza – o mundo transfenomenal.

Se, como afirmava Husserl, o problema do naturalismo científico corresponde à negação da necessidade das leis lógicas, devido à explicação das mesmas através da referência a fatos antecedentes, extrínsecos (Husserl, 1970/1950), a partir do momento em que a estrutura dos processos físicos é a mesma dos fatos fenomenais, temos uma natureza em que o valor e o sentido são características essenciais, assim como o são nas leis lógicas.

A denúncia merleau-pontiana de um “materialismo” gestaltista, por sua vez, deixa de fazer sentido na medida em que a própria noção de matéria, como um elemento real absoluto, é substituída pela noção de estrutura, uma configuração significativa que pode se realizar através de diferentes substratos.

O termo matéria, por exemplo, para o qual não há lugar na física, não deveria ser utilizado em conexão com nossa investigação. Mas se pudéssemos evitar, também, as palavras “física” e “físicos”, tanto melhor... O que pretendemos investigar pode ser chamado de “o mundo das estruturas funcionais que não são diretamente acessíveis”. Pode alguém se contrapor a uma investigação que almeja o entendimento de tais estruturas funcionais em sua relação com a vida mental? (Köhler, 1959/1938, p. 408).

Recusada a noção de matéria, ainda resta a acusação de que a Teoria da Gestalt reduziria as estruturas humanas às estruturas físicas. Podemos afirmar, no entanto, que o primado da experiência direta tem como implicação fundamental que, se não houver um correlato equivalente à determinada estrutura fenomenal no corpo teórico da física, torna-se necessária uma mudança na teoria da física, não da psicologia. A psicologia, portanto, pode contribuir com outras áreas científicas, como a física e a biologia, através da elaboração de

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perguntas de alto valor epistemológico, sendo que as últimas poderão responder com hipóteses e investigações alternativas aos processos não observáveis diretamente, mas implicados no funcionamento da mente, como a permanência e alterações das vivências no decorrer do tempo, isto é, em relação aos processos da memória.

A defesa de uma reciprocidade entre as disciplinas científicas torna-se possível devido à compatibilidade do conceito de Gestalt com os processos macroscópicos da mente, da vida e da natureza, como coloca Koffka em “Princípios de Psicologia da Gestalt” (1955/1935). Os problemas ontológicos decorrentes da idéia de natureza

A defesa de uma região transfenomenal que justifica o dualismo epistemológico acabaria por implicar um dualismo ontológico? Temos dois posicionamentos possíveis. Tomando o primeiro posicionamento, poderíamos assumir o dualismo ontológico, redescobrindo o velho problema cartesiano da relação entre as diferentes regiões da realidade, ao que, talvez, a tese do isomorfismo estrutural entre ambas poderia contribuir com novas idéias. Ou poderíamos buscar um conceito de realidade que compreendesse a consciência como dimensão legítima, caindo, assim, numa perspectiva naturalista. Acreditamos que podemos atribuir aos gestaltistas uma tendência à segunda alternativa, dada a condição levantada por Köhler para que possa haver uma relação entre o fenomenal e o transfenomenal, a saber, de que ambas as regiões participem do mesmo reino de existência. Entretanto, o próprio gestaltista esquiva-se de um posicionamento final, já que o esforço dos fundadores da Teoria da Gestalt referia-se mais ao levantamento de novas bases epistemológicas e hipóteses que permaneceram em aberto, do que à construção de um sistema filosófico.

Dentre as hipóteses gestaltistas, podemos ressaltar a teoria do isomorfismo entre natureza e mundo fenomenal como a mais polêmica e de implicações mais relevantes. É no estudo do conjunto de

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suposições que compõem essa teoria que Köhler deposita a esperança de uma resolução ontológica acerca da transfenomenalidade (1959/1938, 1978/1960). A esperança na confirmação dessa teoria, uma parte essencial do projeto a que dominamos Teoria da Gestalt, é reforçada pelos argumentos de que o isomorfismo é condição para que a atividade do cientista natural seja inteligível. Preocupação que, obviamente, só tem sentido na medida em que nos afastamos de uma visão instrumentalista de ciência. Se o conhecimento da verdade significa a revelação da ordem intrínseca aos processos fenomenais e naturais, a investigação da possibilidade do isomorfismo entre mente, cérebro e natureza torna-se uma demanda do mais alto valor científico e filosófico.

Ora, defender a inserção do valor no interior dos processos naturais não corresponde a uma antropomorfização da natureza? Trata-se de outra questão solucionada pela teTrata-se de que todo conceito guarda uma referência última ao âmbito fenomenal, ou, em outras palavras, de que a inteligibilidade do empreendimento científico depende da sua sustentação nas estruturas da experiência humana. Se o problema da postulação de uma natureza antropomórfica é a arbitrariedade do projeto, podemos afirmar que, seguramente, a natureza da Teoria da Gestalt não se encaixa nessa classificação.

A constituição do mundo físico deve ser descrita em termos que têm, fundamentalmente, um sentido fenomenal, ou, nesse sentido, “humano”. Se todos esses sentidos pertencem exclusivamente à experiência humana, se nenhum, ao mesmo tempo, se aplica aos fatos físicos, então a física permanecerá eternamente um delírio antropomórfico (Köhler, 1959/1938, p. 376).

A coexistência de acusações de tendências tão incompatíveis entre si na Teoria da Gestalt, como a tendência “materialista” e a “antropomorfização da natureza” reflete uma característica dessa teoria que acreditamos ser-lhe essencial. Trata-se de um pensamento que se

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situa no intercâmbio entre filosofia e ciência, entre as pretensões de fundar um sistema coerente de pensamento, concedendo respostas últimas às questões essenciais do ser humano, e o rigor dos métodos e exigências de imparcialidade e parcimônia teórica. A psicologia gestaltista, por sua vez, pretende manter a relevância filosófica que tal área do conhecimento detinha em suas origens, enquanto disciplina da filosofia. Embora os manuais de história da psicologia insistam em condicionar o surgimento da “ciência psicológica” ao afastamento, ou libertação, em relação à filosofia, acreditamos que nada melhor para destruir a cientificidade de uma disciplina do que o afastamento em relação aos problemas filosóficos. Apartando-se da filosofia, a ciência – aqui concordamos com Husserl – torna-se técnica, perde sua justificação e sujeita-se ao relativismo dos modismos culturais. Portanto, a importância da reflexão fenomenológica, tanto em Husserl, como na Teoria da Gestalt, deve-se justamente a tal preocupação em fazer do conhecimento um empreendimento legítimo e capaz de alcançar as mais altas pretensões do homem.

Podemos concluir que a fenomenologia é uma parte essencial do projeto da Teoria da Gestalt, assim como a idéia de uma natureza transfenomenal, sendo a união dessas teses o que compõe a originalidade e a riqueza desse movimento cientifico-filosófico. No entanto, é preciso que a aplicação de tal fenomenologia seja compreendida com base nos próprios gestaltistas, como nos mostra a análise de Henle (1979), de forma a afastar a idéia de que a Teoria da Gestalt é uma fenomenologia mal feita, que teria se deixado influenciar por um realismo nocivo.

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