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A POESIA DE COMBATE AO APARTHEID NAS MÚSICAS DO OLODUM

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Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 5 | Nº. 2 | Ano 2019

Ellen dos Santos Oliveira

A POESIA DE COMBATE AO APARTHEID

NAS MÚSICAS DO OLODUM

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RESUMO

Este trabalho é uma análise das poesias contidas nas músicas do Olodum no século XX, “Madagascar Olodum” do LP homônimo

Madagasar Olodum (1987), e o “Nkosi Sikelel I & Africa poema

da liberdade & Aiyndeô”, “Olodum Alicerce Negro”, e “Olodum Resistência”, do LP Do Nordeste do Saara ao Nordeste

Brasilei-ro (1989). Através de uma análise comparada, conclui-se que

es-sas poesias constituem uma lírica de protesto contra o apartheid e demonstra o engajamento político-cultural do grupo artístico nas lutas dos povos da África do Sul, bem como as relações de apoio e solidariedade dos negros brasileiros com os negros africanos. Unindo as duas nações pela mesma história de luta e resistência.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada; Música e Literatura; Apartheid;África do Sul; Olodum.

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ABSTRACT

This work is an analysis of the poems contained in Olodum songs in the 20th century, "Madagascar Olodum" from the LP of the same name Madagascar Olodum (1987), and the “Nkosi Sikelel I & Africa poem of freedom & Aiyndeô”, “Olodum Black Founda-tion”, And “Olodum Resistência”, from LP From Northeast Saha-ra to Northeast BSaha-razil (1989). Through a compaSaha-rative analysis, it is concluded that these poems constitute a lyric protest against apartheid and demonstrates the politico-cultural engagement of the artistic group in the struggles of the peoples of South Africa, as well as the relations of support and solidarity of the Brazilian blacks With African blacks. Uniting the two nations by the same story of struggle and resistance.

KEY-WORDS: Comparative Literature; Music and Literature;

Apartheid; South Africa; Olodum.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br

capoeira.revista@gmail.com

Editores

Marcos Carvalho Lopes

marcosclopes@unilab.edu.br

Pedro Acosta-Leyva

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A poesia de combate ao apartheid mas músicas do Olodum

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A POESIA DE COMBATE AO APARTHEID NAS

MÚSICAS DO OLODUM

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Ellen dos Santos Oliveira2

Introdução

Em uma sociedade onde o preconceito racial está enraizado na história da humanidade, a luta do negro para conquistar seu espaço é uma batalha árdua, sofrida e de muita resistência que vai além das fronteiras nacionais. É uma luta que exige união daqueles que lutam em busca de uma sociedade mais justa e igualitária para todos os povos e todas as nações. Uma dessas lu-tas foi travada pelos negros da África do Sul em busca pela democracia no século XX, que con-tou com a união dos povos de origem africana em vários cantos do mundo. Dentre eles, se desta-cam o grupo artístico cultural e de resistência negra, Olodum, daqui do Brasil, do estado da Ba-hia, que cantou em busca de liberdade para o povo africano e para Nelson Mandela, reconhecido na História oficial como maior líder antiapartheid do mundo.

Assim sendo, o objetivo do trabalho foi analisar as letras da música do Olodum do sécu-lo XX, que revelam uma lírica de protesto contra o apartheid, a fim de entender o engajamento político-cultural do grupo artístico com as lutas dos povos da África do Sul, bem como as rela-ções de apoio e solidariedade dos negros brasileiros com os negros sul-africanos. Para o que se propôs foi necessário: entender o que era e como foi instituída a política do Apartheid na África; conhecer sobre o movimento negro na Bahia do século XX; conhecer a história da formação do grupo Olodum para entender seu forte engajamento político-cultural no combate ao apartheid no século XX; e, por fim, através da análise das poesias, compreender o engajamento do Olodum na luta dos negros africanos em busca de liberdade para a Nação e para seu líder Nelson Mandela.

O corpus analisado foram as músicas dos dois LP’s da década de 90, no século XX que fazem referência direta ao Apartheid e ao líder antiapartheid Nelson Mandela, que são “Mada-gascar Olodum” do LP homônimo Madagasar Olodum (1987), e o “Nkosi Sikelel I & Africa

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –

Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

2 Doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Mestra em Letras pela mesma universidade.

Membro do Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos Épicos da UFS (CIMEEP – UFS) e do Núcleo de Estudos de Cultura da UFS (NEC). Especialista em Cultura e Literatura pelo Centro Universitário Barão de Mauá (CUBM). Graduada em Letras Português / Literaturas pela Faculdade São Luís de França (FSLF). E-mail:

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poema da liberdade & Aiyndeô”, Olodum Alicerce Negro, e Olodum Resistência, do LP Do Nordeste do Saara ao Nordeste Brasileiro (1989).

A metodologia utilizada foi a análise comparada, entendendo a Literatura Comparada como um método de investigação que, conforme orienta Carvalhal (2006) e Nitrini (1997), cor-responde a um procedimento que faz parte da estrutura de pensamento do homem e da organiza-ção de sua cultura. Assim, valer-se da comparaorganiza-ção é hábito generalizado em diferentes áreas do saber humano, e, quando a comparação é empregada como recurso preferencial no estudo crítico e se converte na operação fundamental da análise, ela passa a tomar ares de método, logo se co-meça a pensar que tal investigação é um “estudo comparado”. Assim, “a comparação, mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim” (CARVALHAL, 2006; NITRINI, 2010).

Nesse caso, a comparação se dará entre o texto histórico e a poesia das canções do Olo-dum, assim sendo, tal estudo se enquadra nos estudos da canção, que é uma tendência de análise em voga no Brasil, em que os críticos literários aproveitam de nossa tradição cultural e se dedi-cam a confrontar não apenas questões de temas, mas questões formais entre literatura e música aplicando às análises categorias temporais comuns tanto à literatura quanto à música, tais como ritmo, cadência, métrica, bem como outros aspectos que a literatura e a música partilham entre si. Tentaremos compreender como as poesias do Olodum constituem como uma lírica de protesto e combate contra o apartheid, no século XX.

O apartheid na África do Sul

O apartheid refere-se a um regime de separação racial que foi implantado pelo governo do Partido Nacional na África do Sul cujo objetivo era impedir que a maioria dos habitantes exercessem seus direitos civis. Tal regime fazia separação entre os habitantes, dividindo-os em grupos raciais, considerando as seguintes etnias: brancos, negros, de cor e indianos. Em seguida era feito o isolamento residencial, removendo moradores quase sempre de forma forçada. Atra-vés dessa divisão os negros foram privados de exercer sua cidadania, pois lhes eram oferecido um serviço público inferior em relação ao oferecido aos brancos. Com isso eles viviam em pés-simas condições de saúde, moradia, educação, etc., pois essa política era excludente e favorável apenas à elite branca, marginalizando cada vez mais os negros, mestiços e indianos.

Conforme explica Pereira (2010), essa situação foi fruto de um processo colonial desi-gual na África do Sul que viveu uma relação peculiar, no que diz respeito à renda, à terra e ao trabalho. A autora explica que o processo colonial na África do Sul se deu de três maneiras:

Primeiramente, criou estruturas políticas e econômicas que permitiram a superioridade dos co-lonizadores em relação às populações nativas. Em segundo lugar, os coco-lonizadores restringiram o acesso desses grupos à terra, à água e ao gado. Por fim, os diversos grupos nativos e, posteri-ormente, também estrangeiros, foram transformados em força de trabalho. Esses fatores

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rege-A poesia de combate ao apartheid mas músicas do Olodum

________________________________________________________________________________________________________________________________ ram o colonialismo na África do Sul da metade do século XVII até o fim do século XX. Assim, o poder político, econômico e militar da minoria branca determinou o destino da sociedade sul-africana por quase 350 anos (PEREIRA, 2010, p. 34-35).

Assim, foram 350 anos determinantes na triste história de opressão, sendo 250 anos de escravidão e 100 anos de exploração, graças aos colonizadores holandeses que, entre séculos XVII e XVIII, instituíram o sistema mercantil, e aos britânicos que instituíram o sistema capita-lista, destruindo o mercantilismo dos holandeses, e tornando um sistema cada vez mais agressi-vo, principalmente após a descoberta do ouro em 1866 e de diamantes em 1867. O que estava ruim ficou ainda prior com a transição do sistema britânico por uma espécie de “colonialismo interno” dominado por políticos afrikaners “que criou um sistema de opressão institucionalizada contra a maioria negra, e em menor medida, mestiça e asiática” (PEREIRA, 2010, p. 35).

Pereira (2010) afirma que o regime de Apartheid tem origem em 1948, mas reconhece que há quem afirme que o regime teve início bem antes, desde o século XIX. Os afrikaners eram sustentados pela ideologia de superioridade branca e discriminação racial, pois praticavam um regime agrário mantido pela exploração e escravidão que era uma barreira na ascensão social e econômica dos negros (PEREIRA, 2010, p.36).

E o cenário só piorava: com a Constituição da União Sul-Africana, a população negra foi privada de voto e direito à terra; enquanto que nas reservas negras sobreviviam com uma agricultura de subsistência, as demais áreas havia uma forte exploração capitalista intensiva da terra; o negro passou a ser assalariado e controlado por medidas policiais, e várias proibições in-clusive casamento (PEREIRA, 2010, p.37-38).

Após a Segunda Guerra Mundial e a instauração do Capitalismo de Estado, composto pelos nacionalistas da extrema direita e a burguesia urbana, há um aparente “milagre econômico” passageiro, pois no final de 1920 uma crise é anunciada, o que empurra o Partido Nacional para uma reconciliação com a elite pró-britânica. Segundo Pereira, foi a partir dessa aliança, e com a vitória do Partido Nacional nas eleições de 1948, com o slogan Apartheid, que foi instituído o período do Apartheid, e

O que caracterizou o novo período foi a dissociação entre poder político e poder econômico; a população de origem inglesa manteve o poder econômico, enquanto os afrikaners passaram a deter o poder político. Assim, a institucionalização do Apartheid tornou-se um dos pilares do novo surto de desenvolvimento (PEREIRA, 2010, p.39).

De fato, tal aliança favorecia cada vez mais a elite branca, e cada vez menos os negros. No entanto, engana-se quem pensa que tal regime foi aceito de forma pacífica. Desde 1912 que foi criado um Congresso Nacional Africano (CNA), primeira organização política dos negros sul-africanos, que, a princípio, buscou discutir com os afrikaners os conteúdos injustos das leis de segregação racial, acreditando ser possível uma negociação com os britânicos, mas foi em vão. Na década de 40 a CNA adotou uma estratégia de resistência, em relação às leis de

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segrega-Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 27

ção racial, e em 1955 conseguiram ampliar a frente antirracista através de uma “Carta da Liber-dade”, que denunciava o apartheid, discutia a sua abolição e falava sobre uma redistribuição de riquezas. Durante a Segunda Guerra Mundial a mobilização social foi intensa, registrando 300 greves com 58 mil trabalhadores negros e 60 mil brancos, indo contra a política dos afrikaners de separação racial. Com as greves se destaca um setor mais radical liderado por Nelson Mande-la e Oliver Tambo, que aos poucos vão assumindo posições de comando dentro da organização. A partir de 1960 houve grandes manifestações e muitas repressões ao ponto de o PAC, o CNA e o Partido Comunista serem considerados ilegais (PEREIRA, 2010, p.47 a 49).

O período de transição do apartheid até o regime democrático foi marcado por muitas lutas e sofrimento, de um povo que não aceitava aquela situação imposta pela elite branca. Foi um período de revoltas e manifestações, acarretando em violência e muita resistência interna, criando prejuízos comerciais para a África do Sul. Consequentemente houve uma crescente ma-nifestação popular e diversos protestos que culminaram em prisões dos opositores ao regime dos líderes antiapartheid. No entanto a violência e as revoltas só aumentavam. Foi um período de in-tensas lutas e mobilizações sociais, e os negros sul-africanos não estavam sozinhos na missão em busca de liberdade, igualdade e paz. Aqui no Brasil, por exemplo, na década de 80 um Movi-mento Negro começa a se destacar pela sua resistência ao preconceito racial que estava presente não apenas na África, mas em todo mundo, inclusive no Brasil, na Bahia, onde havia, nessa uma espécie de apartheid implícito que marginalizava e excluía os negros brasileiros.

O Olodum e o Movimento Negro na Bahia no século XX

O século XX foi um período de grande efervescência, lutas, resistência do movimento negro que começou a se manifestar com mais vigor na Bahia, em especial a partir da década de 60. Podemos dizer que, nessa época, Salvador não era uma cidade tranquila, e refletia uma eco-nomia que favorecia cada vez menos aos negros. Segundo Ficher (1993), Salvador, na década de 60, seguia um caminho desenvolvimentista desordenado na direção do Polo Petroquímico de Camaçari e durante a década de 70, há uma revitalização do turismo. Nessa época, devido às de-sigualdades sociais cada dia mais presente na realidade dos negros baianos, havia na Bahia uma forte necessidade de se lutar para fazer cumprir as políticas públicas (apud, OLIVEIRA, 2015, p.42).

Foi um período marcado pelo preconceito e discriminação racial que acabava se asseme-lhando a um apartheid implícito, pois acaba alienando e marginalizando os negros. Diante dessa triste realidade, e com o intuito de fazer cumprir as políticas públicas que acabassem com a dis-criminação racial, passa-se a intensificar, na Bahia, a ideia de um fortalecimento de uma tradição

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A poesia de combate ao apartheid mas músicas do Olodum

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cultural que valorizasse a africanidade. E de fato, conforme explica Ficher (1993), essa valoriza-ção passa a ser vista nos cabelos, nas tranças, em contas e tecidos. Enfim, surge uma estética moderna que se conecta às produções globais da word music, a fim de formular uma consciência diaspórica por meio da criatividade na valorização de sua africanidade (apud, OLIVEIRA, 2015, p.43).

Essa consciência diaspórica surge decorrente do processo de globalização, em que as identidades nacionais são forçadas, ou motivadas, a resistirem à imposição cultural externa. Se-gundo Stuart Hall (2001), essa resistência é, de fato, um resultado do processo de globalização e, nesse processo, ocorre a desintegração das identidades nacionais – devido ao crescimento de homogeneização cultural e do pós-moderno global – criando uma resistência das identidades nacionais e de outras identidades locais ou particularistas que, ao resistirem à globalização, aca-bam sendo reforçadas, e com isso as identidades nacionais caem em declínio, fazendo surgir no-vas identidades, identidades híbridas que acabam tomando lugar das identidades nacionais (HALL, 2001, p. 69).

Essa resistência identitária vem, também, através da música. Segundo Ficher (1993), nas décadas de 70 a 80, há uma difusão da música negra norte-americana que constitui componentes fundamentais para que os negros fossem em busca de uma identidade, sendo uma forma de estra-tégia política-cultural de resistência. No contexto de 1974, na passagem do blak para o afro, sur-ge o bloco Ilê Ayê que acabou catalisando as tendências que se intercruzam no sentido estético e político-cultural, que contribui para o progresso do movimento negro intelectualizado e para o suprimento das necessidades de socialização e cidadania ao ocupar um espaço público através do carnaval engajado no projeto de valorização da raça e da cultura negra, associando festa, música e religiosidade (apud, OLIVEIRA, 2015, p.42).

Com isso, refloresce um “afrocarnaval” que acabou intensificando a criação de outros di-versos blocos afros e afoxés, o que proporcionou a criação do samba-reggae como música oficial baiana, representada pelo Olodum e Timbalada na década de 80. Nessa época o Movimento Ne-gro começa a ganhar destaque, e a militância negra passou a questionar a história da abolição, que engrandeceu, muito mais, a imagem bondosa e caridosa da princesa Isabel que a luta dos es-cravos em busca da liberdade. Os negros passaram a não ver sentido em comemorar a abolição, já que a população negra continuava sujeita às péssimas condições de vida. O engajamento dos negros foi tão grande que as lutas do Movimento Negro alcançaram repercussão política, e uma das conquistas em 1988 foi o fato de a Constituição Federal passar a prever a prática de racismo como crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão, impossibilitando que um criminoso por racismo seja solto com pagamento de fiança, podendo ser preso a qualquer mo-mento, não importando a data de ocorrência do crime. Outra conquista do Movimento Negro foi

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o fato de a cor dos brasileiros ser questionada pelo censo, abrindo espaço para uma discussão importante para compreender e superar as desigualdades em que o país se dividia (FICHER, 1993).

Na década de 80, novas propostas culturais passam a agitar a cidade. Nessa época, a in-dústria cultural passa a valorizar a negritude vinculada através blocos afros. O samba-reggae passa a ser valorizado, e torna-se alvo de investimentos das rádios e da indústria fonográfica. O bloco Aro Ilê-Aiyê, originado nos anos 70, contribuiu para “afirmar a identidade étnica através do resgate da herança africana”, e isso também foi incorporado por outros grupos, inclusive, pelo Olodum. A valorização das heranças africanas foi de crucial importância nesse período, uma vez que da população baiana 77% são negros. E como diagnosticado, os negros despontam com altos índices em pesquisas sobre desigualdade racial, e muitos têm suas vidas marcadas pelos reflexos da escravidão no Brasil. No país, os negros são os que geralmente possuem o menor nível de es-colaridade, mais dificuldades de ingresso no mercado de trabalho, e são os mais privados de saú-de, moradia e lazer. De acordo com o senso 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geogra-fia e Estatísticas (IBGE), a Bahia apresenta o maior número percentual de negros em sua popula-ção, com 14,4% negros e 64,4% pardos (IBGE, 2010).

Assim, na década de 80, a juventude negra passa a se engajar no crescimento e na moder-nização de Salvador. A esse respeito, Caetano nota que "Os negros começaram a delinear a cara de Salvador e afirmar que, com sua maioria populacional, sua cultura não pode ser admitida ape-nas ao nível do já cristalizado, como capoeira, maculelê, samba de roda etc...” (apud. FICHER, 1993).

Ficher (1993) ao fazer um resgate da história do bairro Maciel/Pelourinho afirma que nas décadas de 20 e 30, os antigos moradores do Maciel/Pelourinho começaram a se mudar para ou-tros bairros como Barra, Graça, por que não queriam mais morar ali. EM seguida vieram os pri-meiros árabes, turcos, espanhóis e se instalaram no Pelourinho para ganhar dinheiro com ativida-des comerciais, em seguida os negros, adultos, foram chegando e ficando, depois vieram pessoas de outros bairros e de cidade do interior da Bahia. João Jorge atribui o crescimento do Olodum à origem histórica do bairro Maciel/Pelourinho, e diz:

Aqui foi uma área de muita resistência contra a escravatura e agora, mesmo que se tenha aca-bado a história disso, nós no fundo somos descendentes dessas pessoas que lutaram. Nosso po-vo aqui foi encontrando os pedaços de nossa história, a consciência negra extremamente bem definida, e isso foi aos poucos se consolidando". (apud FICHER, 1993)

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A poesia de combate ao apartheid mas músicas do Olodum

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Foi no dia 25 de Abril de 1979, que se fundou na cidade da Bahia, um bloco Afro conhe-cido como “Olodum” 3, que surgiu como uma ONG (Organização Não Governamental) do

mo-vimento negro no Brasil. Segundo o Grupo, sua luta está pautada nos objetivos de: desenvolver ações de políticas públicas em combate à discriminação social; promover a autoestima, valoriza-ção e orgulho dos Afro-brasileiros; defender e lutar para garantir os direitos civis e humanos dos indivíduos marginalizados na cidade da Bahia e também em todo o Brasil. Tem como produto básico a cultura enquanto expressão de origem, história e cotidiano da população negra do Maci-el / PMaci-elourinho, bairro localizado no Centro Histórico da Cidade de Salvado, no estado da Bahia, e que passou a ser conservado pela ONU como patrimônio da humanidade (FICHER 1993).

No entanto, como informa Tânia Ficher (1993), quando o Olodum surgiu foi alvo de vá-rios preconceitos, pois muitos o viam “como um aglomerado de prostitutas, drogados, gays e tra-ficantes”, só depois o Olodum foi considerado uma ONG e um forte movimento cultural com o objetivo de lutar pela restauração e valorização do negro e do pelourinho. Passando de um antigo bloco de carnaval e se transformando em “um Centro de reflexões sobre a cultura negra e multi-mídia internacional”. Dessa forma, o grupo Olodum defende que, enquanto ONG, faz cultura, política e presta diversos serviços sociais de caráter não assistencialista. Assim sendo, desde sua origem contribuiu fortemente para a construção de traços de identificação dos moradores com a cidade de Salvador; cenário urbano que tem suas raízes e tradições reinventadas através da mo-dernidade (FICHER, 1993).

A banda “Olodum” fundada em 1979 estreou no Carnaval de 1980, e conquistou quase dois mil associados. A fim de promover a resistência ao racismo e também favorecer a valoriza-ção cultural das origens Afro, o “Olodum” passa a abordar temas históricos referentes às culturas africanas e brasileiras, na tentativa de criar uma narrativa de valorização histórico-cultural. Em 1987 foi gravado o primeiro LP da banda, com o título de “Egito, Madagascar”. Com esse LP, o grupo pretendeu homenagear e valorizar as raízes do grupo e ao mesmo tempo apresentar ao Brasil a “Mamma África”, assim como o som e as influências dos Deuses africanos na cultura afro, como forma de resistência. E em 1989 lançam o segundo LP da banda, Do Saara ao

Nor-deste brasileiro, em que além da valorização do negro, buscaram fortalecer o sentimento de

per-tencimento ao nordeste brasileiro, e parece que continuaram mais forte na militância de combate ao apartheid, que tem um duplo sentido, no âmbito internacional e nacional, ou seja: o Olodum buscou combater o apartheid, política de segregação racial implantado na África do Sul, e exigir

3 Os principais membros fundadores do Olodum foram: Carlos Alberto Conceição do Nascimento, como Presidente;

Geraldo Miranda, como Vice-Presidente; José Carlos Conceição do Nascimento, como Secretário; José Luiz Souza Almeida, também como – Secretário; Francisco Carlos Souza Almeida, como Diretor de Som; Antônio Jorge Souza Almeida, como Tesoureiro; Edson Santos da Cruz, nas Relações Públicas.

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a libertação do maior líder antiapartheid; e também se engajaram na luta de combate ao

apartheid, implícito através do preconceito racial e da discriminação dos negros no Brasil.

Dessa forma, o Olodum acaba se engajando numa luta de classes e fazem de suas músicas - poesias de protesto e combate – a voz de toda uma classe de excluídos, os negros. O Olodum, ao dar voz e falar pelos negros, faz o que Spivak (2010), explica, ou seja, ao dar voz a esses in-divíduos, faz com que o que era considerado invisível passe a ser visto (SPIVAK, 2010, p.61).

Em suma, as músicas do Olodum são composições híbridas que são, ao mesmo tempo, poesia, história, canto e protesto. Dá voz ao negro e fala por ele, pois tem intenção, desejo e po-der para tal.

A poesia de combate ao apartheid, nas músicas do Olodum

O Olodum abraça a luta dos povos da África do Sul, até porque sente que faz parte dela, por isso se opõe e dá seu grito de protesto, através de suas músicas cuja poesia é o grito de um eu-lírico que simboliza todo o povo negro que resiste e luta contra o apartheid 4 na África do Sul

e o apartheid implícito no Brasil. Como vimos, tanto lá como cá o preconceito era o mesmo e causava a marginalização dos negros, pois as políticas públicas existentes eram favoráveis ape-nas à elite branca. Na crescente e incontrolável manifestação popular, o Olodum se fez presente, cantando e dando voz aos negros brasileiros e africanos que diziam “Não ao apartheid”. Veja-mos uma das músicas do primeiro LP, Madagascar Olodum, em que já se percebe o engajamento do grupo nessa luta de resistência:

Criaram-se vários reinados/O ponto de imerinas ficou consagrado/Ranbosalama o vetor saudá-vel/Ivato cidade sagrada

A rainha Ranavalona destaca-se/Da vida e da mocidade/Magestosa negra soberana da socieda-de/Alienado pelos seus poderes Rei Radama

Foi considerado um verdadeiro meui/Que levava seu reino a bailar/Bantos, indonesios, ára-bes/Integram-se a cultura Malgaxe

Raça varonil alastrando-se pelo Brasil/Sankaravatolay faz deslumbrar toda naçao Merinas povos tradição/E os mazimbas foram vencidos pela invencao

Ihêihêihê/Sakalavasoná é/iháiháihá/Sakalavasoná á

Madagascar ilha/ilha do amor/E viva Pelourinho/Patrimonio da humanidade/ É Pelourinho, Pe-lourinho/Palco da vida e nas negras verdades

Protestos, manifestações/Faz Olodum contra Aphartheid/juntamente com Madagás-car/Evocando igualdade liberdade a reinar

(OLODUM, 1987)

A música Madagascar Olodum foi gravada em fins de 1987, e cantada, aqui no Brasil, no carnaval da década de 80. Ela integra o primeiro Lp do grupo, que faz um resgateda história do negro desde suas origens africanas, fazendo uma contextualização da luta e da resistência do

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A poesia de combate ao apartheid mas músicas do Olodum

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movimento negro pelo mundo. Assim como outras músicas desse LP, “Madagascar Olodum” é um poema de caráter narrativo que faz referências diretas ao processo de colonização da ilha de Madagascar, que faz parte da região subsaariana da África. O eu lírico inicia fazendo resgate his-tórico das origens dos povos africanos, considerada como uma totalidade que engloba o conti-nente africano e as ilhas vizinhas, como é o caso da Ilha de Madagascar. Com uma voz poética militante na busca de União dos povos africanos em prol de luta pela liberdade (OLIVEIRA, 2015, p. 47).

Em seguida, há referência à contribuição do continente africano para a formação étnica dos povos Malgaxes, que tem sua dupla origem lembrada na letra. Também são citados os povos que contribuíram para a colonização de Madagascar, esses povos foram: Bantu, Indonésios e Árabes. Assim, resumidamente, a letra é composta por uma narrativa que remete ao processo his-tórico referente desde o período pré‑ bantu (com a chegada dos árabes), passando pelos perío-dos bantu (com a chegada perío-dos africanos), anterior a Era Cristã, período indonésio pré‑ merino (com a chegada dos povos indonésios). E ainda, é importante observar que a Ilha de Madagascar era conhecida apenas pelos gregos e árabes, os europeus só souberam de sua existência através dos portugueses em 1500, período que coincide com o início da colonização brasileira (OLIVEIRA, 2015, p. 47).

Nesse poema narrativo, o eu lírico faz esse resgate da memória histórica para unir a histó-ria da África à do Brasil, através de uma narrativa do passado até o presente as históhistó-rias de lutas do negro. Com isso, o eu-lírico traz para o “palco da vida” a realidade ao qual se encontram os negros, já unindo a voz do africano à voz do Olodum na poesia que é canto “contra o apartheid” e em busca de liberdade. No poema, a junção da história e da voz permite uma comparação do

apartheid explícito sofrido pelos povos africanos com o apartheid implícito sofrido pelos negros

na Bahia, onde apesar da maior parte da população ser negra, havia um alto índice de preconcei-to racial. Fazendo com que o canpreconcei-to pela liberdade fosse um coro de resistência e de luta.

Tanto no primeiro quanto o segundo LP percebe um forte caráter de engajamento políti-co-cultural do Olodum diante daquele período de grandes manifestações e revoltas que se alas-travam do continente africano pelo mundo afora, chegando ao Brasil. Vale ressaltar, que desde 1970 um grande líder antiapartheid, Nelson Mandela, encontrava-se preso, condenado à prisão perpétua. Por esse motivo, durante a década de 70 a 90, só se ouvia nas manifestações: “Liber-tem Nelson Mandela” ou “Apartheid não!”.

O segundo LP do Olodum, Do Nordeste do Saara ao Nordeste Brasileira, de 1989, traz um eu-lírico que milita ainda mais forte nessa tentativa de unir a história do negro brasileiro à dos povos da África do Sul que lutam contra o regime do apartheid, tão violento e opressivo na época.

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A canção “Nkosi Sikelel’i Afrika & poema da liberdade & Aiyndeô”, desse LP, apresenta uma letra híbrida que melhor representa a união das vozes líricas dos negros africanos com a voz do eu-lírico brasileiro. Ambos invocando a paz e a liberdade através do fim do apartheid e da libertação do líder Antiapartheid Nelson Mandela. A música inicia com a voz do eu-lírico afri-cano que canta o Hino da África do Sul “Nkosi Sikelel’i Afrika”, cuja letra é híbrida em sua com-posição, pois é escrita com trechos em cinco idiomas mais falados na África do Sul (Xhosa, Zu-lu, Sessoto, Africâner e Inglês). Por cima da voz que canta o hino africano temos a voz do eu-lírico brasileiro que declama em português o “Poema da Liberdade”. Depois da declamação do poema volta a voz do eu-lírico africano que finaliza com um ritmo nigeriano cantando

“Ai-yndeô”. Para o trabalho analítico, as letras foram separadas, diferente de como são quando

canta-das. Assim, começamos por “Nkosi Sikelel’i Afrika”:

Nkosi Silkelel'i Afrika / Maluphakanyisw 'uphondo Iwayo (Xhosa) Yizwa imithandazo yethu / Nkosi sikelela, Nkosi sikelela (Zulu) Nkosi Silkelel'i Afrika /Maluphakanyisw'uphondo Iwayo (Xhosa) Yizwa imithandazo yethu / Nkosi sikelela, Thina lusapho Iwayo (Zulu)

Morena boloka setjhaba sa heso,/O fedise dintwa la matshwenyeho,/O se boloke, O se boloke setjhaba sa heso,/Setjhaba sa South Afrika - South Afrika(Sessoto)

Uit die blou van onse hemel,/Uit die diepte van ons see,/Oor ons ewige gebergtes,/Waar die kranse antwoord gee,(Africâner)

Sounds the call to come together,/And united we shall stand,/Let us live and strive for free-dom,/In South Africa our land (Inglês)

[…] (OLODUM, 1989)5

Senhor abençoe a África/Levante chifre seu/ Ouça nossas orações Senhor contribua, Senhor contribua

Senhor, salva nossa nação/Elimine os conflitos e sofrimento/Proteja-nos, proteja nossa nação, nossa nação,/África do Sul - África do Sul

Do azul dos nossos céus,/Das profundezas dos nossos mares,/Sobre nossas montanhas eter-nas,/Quando os penhascos ressoarem,

Soa o chamado para virmos juntos,/E unidos nós vamos ficar,/Vamos viver e lutar por liberda-de/Na África do Sul, a nossa nação. (Tradução minha)

A poesia do atual Hino Nacional Africano foi feita a partir da junção de dois hinos ante-riores da África “Nkosi Silkelel'i Afrika” e “Die Stem van Suid-Afrika”. A unificação se deu pelo CNA no governo de Nelson Mandela para servir como hino de protesto contra a política do

Apartheid. A voz do eu-lírico desse poema é uma voz híbrida, pois representa toda uma nação, a

África do Sul. É uma voz coletiva que suplica, em orações, pela intervenção de uma divina - “Nkosi”, “Morena”. Quando o eu lírico diz “Maluphakanyisw 'uphondo Iwayo”, pedindo que seja levantado o chifre, é possível interpretar com um duplo sentido: “uphondo”, chifre pode estar fazendo referência a um símbolo de religião afro que significa força da humanidade, ou pode es-tar se referindo a outras nações africanas do Chifre da África que se junes-taram e fundaram a

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A poesia de combate ao apartheid mas músicas do Olodum

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ão Africana e com isso “levantaram forças” em combate ao apartheid. O sentido ambíguo pode se justificar pela opressão em que viviam os africanos sob a dominação de um regime separatista. Tal ambiguidade pode ser um pedido de socorro implícito dos negros da África do Sul aos ir-mãos africanos, nesse caso “Nkosi” e “Morena” podem fazer referência a um povo, ou povos, de uma localização superior, acima, no sentido geográfico, ou seja, que no mapa da África estão localizados acima da África do Sul.

Essa interpretação se reforça através da força dos semas repetitivo “Nkosi sikelela, Nkosi

sikelela”, invocando duas vezes seguidas “Senhor contribua, Senhor contribua”. Um movimento

duplo também é percebido na terceira estrofe, onde temos duas forças manifestas, uma em “azul do nosso céu” que se opõe a outra em “profundezas dos nossos mares”. O mesmo acontece em “montanhas eternas” e “penhascos” que ressoam. Essas antíteses representam dualidades divi-no/humano e branco/negro. Os primeiros -divino/branco- com a ideia de superioridade e grande-za, e os segundos -humano/negro- com ideia de inferioridade, mas com força e capacidade de ressoar, isto é, produzir som forte que pode ser um grito, um canto ou uma poesia de protesto. Essa antítese reforça a ideia de separação, a ideia do apartheid, e pode se tratar de uma denúncia implícita sobre essa política que causa separação na natureza humana. Uma denúncia sob a for-ma de hino, e escrita em cinco idiofor-mas diferentes, o que dificulta um pouco a interpretação.

Na quarta estrofe, o eu-lírico completa a estrofe anterior revelando que o som forte se re-fere a um “chamado” que invoca por união dessas duas forças em prol da busca pela liberdade para “our land”, dessa vez dita apenas uma única vez, já não dividida. E dita em Inglês pode significar nação, país, terra. De fato, a luta contra o apartheid foi vencida quando grande parte da população branca se juntou à população negra, houve uma humanização e a maioria entendeu que tal regime era um crime contra a dignidade humana.

Por cima do Hino da África é declamado um “Poema da Liberdade”, que soa como res-posta de um eu lírico que conhece as lutas dos povos africanos, é solidário e acredita que eles conquistarão a liberdade. Respondendo em tom firme e forte, mostrando de que modo eles irão conquistar e que se solidariza e no final canta junto por liberdade. Vejamos a letra abaixo:

Ele está preso

Porém, simboliza a liberdade para seu povo Ele não pode falar

Porém todo povo ouve a sua voz Ele não pode ser fotografado ou filmado Porém, todo povo sente sua presença Ele vai conquistar a liberdade

Através da luta, da organização e da força de seu povo Seu nome Nelson Mandela,

Presidente do Congresso Nacional Africano Libertem Mandela!

(OLODUM, 19896)

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Em relação à forma e ao conteúdo, podemos ver como os versos livres caem muito bem para uma poesia cujo significado está preso ao contexto histórico e que busca a liberdade para o sujeito nela representado. Os seis primeiros versos do poema apresentam a condição de um su-jeito “ele” que “está preso” que “não pode falar” e “não pode ser fotografado ou filmado”, ou seja, trata-se de um sujeito privado de sua liberdade, de seu poder de falar e se revelar. O “ele” pode remeter a um duplo significado, a do negro africano, no sentido coletivo, e da figura do Nelson Mandela, no sentido individual. Nesses versos temos o embate marcado pela conjunção adversativa que se repete três vezes sempre após apresentar a condição do sujeito “ele”, o que revela uma força intrínseca do eu-lírico que busca resistir e lutar contra a situação imposta pelo sistema.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p.02) o três designa os níveis da vida humana: material, racional, espiritual ou divino, assim como as três fases da evolução mística: purgativa, iluminativa e unitiva (apud. PEREIRA, 2015, p. 31). Assim, o poema acaba estabelecendo um diálogo com o hino ao trazer essa possibilidade de interpretação através da santíssima trindade, em que o sentido de resistência está na materialização da representação simbólica da liberdade, na racionalização da voz que mesmo impedida de falar é ouvida pelo povo, e na representação de uma imagem que está impedida de se revelar, mas cuja presença é sentida de forma espiritual por todo o povo.

No sétimo verso, temos uma firmação de que o sujeito “vai conquistar a liberdade”, e o oitavo verso, iniciado pelo advérbio de modo “através”, diz como essa conquista será alcançada, isto é, somente “através da luta, organização e força do seu povo”. Ou seja, o eu-lírico afirma a vitória e mostra o modo como ela será alcançada, com “luta”, “organização” e “força”. Logo após, no nono e no décimo versos - após a exposição da condição do eu-lírico diante das adver-sidades impostas, sua resistência e, após apresentar a certeza de conquista de liberdade através vinda da luta, organização e força – o eu lírico revela o sujeito, na imagem de “Nelson Mande-la”, que representa um sujeito histórico considerado capaz de unificar os povos e combater o apartheid, pois representa um ser místico que ao passar pela prisão, que simboliza o purgatório, acaba sendo purificado através da luta pela causa em busca da liberdade e da paz. No último ver-so do poema, o eu lírico manifesta-se através de uma voz injuntiva se colocando no poema e exi-gindo a libertação do líder antiapartheid. Essa é, portanto, a voz do Olodum que canta junto com os povos africanos.

O poema é finalizado com o refrão “Aiyndeô” seguido de versos que ficam se repetindo. Segundo as informações do álbum, se refere a um folclore da Nigéria, país com mais de 511 idi-omas não oficiais. Vejamos abaixo a transcrição do canto, seguida de uma possível tradução, já que a letra desse correspondente ao fragmento não está no álbum, apenas na música cantada:

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A poesia de combate ao apartheid mas músicas do Olodum

________________________________________________________________________________________________________________________________ Ayin deô, Ayin deô ô / Ayin deô, Ayin deô ô

Ayin deô, Ayin deô ô /Ayin deô, Ayin deô ô Olua maja a im /End you co, Majhalá End you co / Bad a majhala / Bad a majhala End you co / Majhala, End you co7

(OLODUM, 1989)8

O fragmento que encerra a música parece ser formado com pedaços de palavras de idio-mas diferentes. Observa-se que essas palavras que compõem o texto híbrido e de difícil tradução parece referir-se a alguém, um intermediário, que marca o fim de um mal. Talvez seja uma refe-rência seja ao líder antiapartheid Nelson Mandela que simbolizou a esperança e a liberdade para o seu povo.

Resistência foi o canto poético do Olodum que, como e com seus irmãos africanos não aceitavam que o negro, idôneo, fosse injustiçado, e sua luta não podia ser em vão, por isso em sua música “Olodum Alicerce Negro”, gravada em 1989, ele exalta o negro que resiste e luta até o fim, tal como fez Mandela. Como pode-se ver no trecho da música, transcrito abaixo:

Olodum idôneo /Pois tem razão / Os negros não vivem em vão / Cantem, apartheid não Pois vencerá a negra cor / Pois tem a dor que sofreu no pelô / Olodum, alicerce da cultura / afro-negra

Preconceito não/Pois a razão/ Temos que lutar / Que lutar contra a opressão Na hora H no dia D / Somos negros / E temos que vencer

Que passou Olodum / Do Pelourinho ioiô / Que passa envolvendo / A massa a cantar

Do Pelourinho / Olodum se expandiu / Levou cultura da Bahia ao Brasil / Não temem a dor pu-jante lutador

Místico movimento negro em Salvador / Refletindo paz e quer mais e mais / A toda nação/Que diz assim

(Olodum Alicerce Negro. In. OLODUM, 1989.)

Esse poema traz uma carga melódica muito forte e trabalha bastante os recursos mnemô-nicos, como rima, assonâncias e repetições, para ampliar ideias e sentidos. Percebe-se uma inten-ção explícita de consagrainten-ção da figura do Olodum como alicerce da cultura negra. Nesse poema, o eu-lírico inicia apresentando o Olodum como sujeito identitário com idoneidade, ou seja, capa-cidade de representar o negro, e que “tem razão” nessa sua missão. Já o negro por sua vez é apre-sentado como um sujeito condicionado historicamente “a não viver em vão”, perpetuando a ideia de que a sua vida estivesse atrelada à luta e à resistência.

A linguagem poética explora as rimas para dar ênfase às ideias do eu-lírico militante na busca pelo engajamento dos negros na luta e na resistência: na primeira estrofe a assonância marca a insistência da rima “ão” em “razão”, “vão”, “não” reforçam o a ideia de resistência ne-gra ao apartheid; na segunda estrofe, a sonoridade do “ô” em “cor”, “dor”, “pelô”, “afro”, refor-ça a ideia de dor e sofrimento por algo ocorrido no passado, “no pelô", mas que ainda é lembrado

7 Aiyndeô: Ayin (Turco)- ritual / deô (Ioruba) – pedaços /Olua maja a im: Olua maja (Havaiano) - Você marca / a im (Inglês): eu sou / End you co: acabar com você / You End: Você terminar – fim / Bad a (Inglês): um mau, mal / Majhalá(Hindi): intermediário.

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pela “cor” e pela cultura afro-negra da qual o Olodum é colocado, pelo eu lírico, como alicerce, base, fortaleza; na terceira estrofe a rima “ão” insiste novamente, dessa vez em “não” “razão”, e “opressão” reforçando sentido de resistência contra o sistema opressor, a palavra “razão” repeti-da pela segunrepeti-da vez é a apelação que o eu-lírico faz aos negros para que esses façam repeti-da resistên-cia e da luta razões de sua existênresistên-cia, aliás, quando o eu lírico diz “temos que lutar/que lutar” ele se coloca no poema buscando a ação de lutar em dobro e que deve ser praticada pelos dois sujei-tos subentendido no verbo conjugado na primeira pessoa do plural “temos”, assim o eu lírico e os negros têm que lutar num dia e hora já previsto, e têm que vencer; na quarta estrofe o verbo “passou”, “passa”, remetem à passagem do Olodum que não passa só, mas “arrasta a massa”.

A exploração dos recursos mnemônicos e das repetições nas letras das músicas configura-se como uma resistência da memória do eu – lírico engajado em agregar à sua causa coletiva o maior número de negros por meio da rápida aprendizagem do canto poético. Nas duas últimas estrofes, o poema enfatiza nas conquistas do movimento negro na Bahia e na expansão do Olo-dum pelo Brasil, ideia absorvida nos semas “expandiu” e “Brasil”, exaltando o grupo como um movimento místico que “quer mais e mais”. Nota-se que novamente o eu lírico recorre à repeti-ção e dessa vez para ampliar o desejo, o querer do grupo artístico-cultural, e dos negros por ele representado, buscando a consagração do Olodum como entidade movida por “interesse, desejo e poder” para falar e cantar pelos negros.

A melodia do poema segue no ritmo da resistência, no ritmo do Olodum, no ritmo do ali-cerce negro. E sem exagerar na exploração dos recursos melódicos, o eu -lírico ora usa a lingua-gem injuntiva para que “cantem”, ora apela à racionalização, para fazer os negros entenderem a sua “razão” da luta. É, também, um poema de canto, de luta e de resistência contra qualquer for-ma de apartheid, seja o explícito na África do Sul, seja implícito na Bahia. E por assim ser, traz uma associação de dupla significação para as lutas dos negros africanos e para as lutas dos ne-gros brasileiros, ambos unidos pelo eu lírico desse poema em busca de um mesmo ideal, o fim do

apartheid.

Nesse mesmo LP, há outra música cuja poesia é de resistência e de luta contra o

apartheid, é a Olodum Resistência, em que demonstra que o Olodum não aceitava o sistema que

era opositor a seu povo, a sua raça. E o discurso demonstra a intenção de unir força para comba-ter o apartheid, e assim combacomba-ter a desigualdade racial que afligia seus irmãos africanos. E as-sim o Olodum canta demonstrando resistência:

Olodum resistente/Contra o sistema reacionário/E a força do imaginário Formando os laços da união

Devastando a desigualdade/Obstando o apartheid/O seu dinamismo cria evoluções/O seu di-namismo cria evoluções

Ele surgiu no pelourinho/Com seu canto profético/Lançando um desafio /Que abrange o uni-verso/Que abrange o universo

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A poesia de combate ao apartheid mas músicas do Olodum

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Nesse poema o eu lírico apresenta duas forças antagônicas: de um lado “Olodum resisten-te”, que tem duplo sentido, o primeiro diz respeito ao grupo e o segundo, considerando uma me-tonímia, e Olodum é usado para significar todos os negros ao qual representa; de lado oposto te-mos um “sistema reacionário”, ou seja, que oprime e vai contra a liberdade humana. Ambos es-tão ligados semanticamente pelo verbo “contra” que significa a ação de ir contra, lutar em dire-ção oposta, e oposidire-ção. Paralelo a essa condidire-ção de oposidire-ção e luta, temos “a força do imaginá-rio”, que traduz a força de um apego às memórias, ao sentimento de pertencimento a um grupo ou nação afro que “formam laços de união”, tal como os países Africanos, o Brasil e outros que se uniram contra o sistema opressor e em busca de liberdade.

Na estrofe seguinte, após a união da força do imaginário temos a devastação da desigual-dade, o fim do apartheid e uma evolução a partir do dinamismo cultural dos negros. Consideran-do que, quanConsideran-do foi gravada e cantada a música, em 1989, o apartheid ainda era uma realidade na vida dos negros da África do Sul, e a desigualdade se fazia presente na sociedade, trata-se de um eu lírico profético, uma vez que prevê a vitória das lutas e resistência negra, conforme enfatiza no canto seguinte, onde ele enfatiza que a resistência é um desafio “que abrange o universo”.

As lutas e manifestações começaram a ter resultados por volta de 1990, quando o presi-dente Frederik Willem iniciou as negociações para por fim ao apartheid e exigiu a libertação de Nelson Mandela, que mesmo preso se comunicava através de cartas com o CNA. E em 1994, passam a serem realizadas eleições multirraciais e democráticas dando a vitória ao Congresso Nacional Africano, liderado por Nelson Mandela. Também, nesse mesmo ano, logo após o regi-me de Apartheid, foi adotada uma nova bandeira na África, com um “Y” que simboliza a con-vergência de uma só nação, com as cores vermelha – simbolizando o sangue – a cor preta sim-boliza os negros e a cor branca simsim-boliza os brancos – a cor azul simsim-boliza o céu- a cor verde – simbolizando a terra – a cor amarela simboliza o ouro. Vale observar que, as cores preta, verde e amarela – representam as cores da bandeira do CNA, e as cores vermelha, azul e branca – repre-sentam as cores dos países que colonizaram a África. E, coincidentemente, a bandeira traz a cor da bandeira brasileira e a cor do reggae. Uma harmonia de cores e significados de luta, resistên-cia e união entre os povos.

Vejamos a bandeira abaixo:

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E em 2001, na Conferência de Durban, realizada pela ONU, o apartheid passa a ser te-ma duramente condenado, como observa OGOT:

A Conferência de Durban ocorreu em 2001 em um contexto mundial diferente daquele que mo-tivou as duas primeiras conferencias organizadas pela ONU sobre o tema da discriminação ra-cial e do racismo: em 1978 e 1983 em Genebra, na Suíça, o alvo da condenação era o

apartheid.

A conferência de Durban em 2001 tratou de um amplo leque de temas, entre os quais vale des-tacar a avaliação dos avanços na luta contra o racismo, na luta contra a discriminação racial e as formas correlatas de discriminação; a avaliação dos obstáculos que impedem esse avanço em seus diversos contextos; bem como a sugestão de medidas de combate as expressões de ra-cismo e intolerâncias. (OGOT, 2010 - grifo do autor original)

Com o fim da política do apartheid, na África do Sul, o Olodum continua firme e forte na luta contra o apartheid implícito na sociedade brasileira e no mundo, pois essa é uma luta mais difícil de ser vencida, que é a luta contra o preconceito racial que, ainda, continua a margi-nalizar os negros.

Considerações finais

A partir das discussões e análises aqui apresentadas, conclui-se que o Olodum pretendeu criar uma consciência coletiva de luta e resistência, através de suas músicas, cujas composições híbridas traz a poesia, a história, o canto e o protesto de toda uma nação negra que se reconhece através do imaginário e história de luta, uma nação que vai além das fronteiras geográficas e que milita na pretensão de abranger o universo. As músicas do grupo cultural aqui analisadas refle-tem uma identidade de nação afro que invoca as forças divinas e humanas e resiste pela força do imaginário, sonhando com uma evolução no pensamento da humanidade, para que essa compre-enda que todos temos direitos à liberdade, pois só assim, a partir dessa evolução, seremos todos livres do preconceito e da discriminação racial.

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A poesia de combate ao apartheid mas músicas do Olodum

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