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"O que eles pensam?! Eu não sou... Eu sou um ser humano!": sentidos de estudantes diagnosticados com deficiência intelectual acerca de suas vivências escolares

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Academic year: 2021

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1 Ruthie Bonan Gomes

"O QUE QUE ELES PENSAM?! EU NÃO SOU… EU SOU UM SER HUMANO!"

SENTIDOS DE ESTUDANTES DIAGNOSTICADOS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL ACERCA DE

SUAS VIVÊNCIAS ESCOLARES

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do Grau de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Prof.ª Drª Marivete Gesser

Florianópolis 2018

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5 À todos que lutam por vidas mais dignas, a todos os que estão cansados de lutar pela dignidade de suas próprias vidas, e a todos que ainda não sabem que são capazes de lutar.

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7 AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Marivete Gesser, pelo acolhimento, carinho e disponibilidade durante esses dois anos de pesquisa. Pelas orientações presenciais e por Skype, pelas conversas filosóficas ao telefone ou na UFSC e por compartilhar com tanta gentileza e humildade sua sabedoria e experiência.

Aos meus pais, Gilda e Rogério, pelas orações, por acreditarem tanto em mim, por investirem nos meus sonhos e por me acolherem e me apoiarem nesses dois anos de mudanças, (in)certezas, medos, alegrias e realizações.

Ao meu companheiro, que ao longo dessa caminhada ganhou status de marido, Denis, por todo apoio incondicional, por escutar meus choros, minhas crises e estar sempre interessado e envolvido nos meus movimentos enquanto psicóloga e pesquisadora.

À todos participantes do NED - UFSC (Núcleo de Estudos sobre Deficiência), em especial Adriano, Karla, Geisa, Paula, Pati, Sol e Fernanda pelo compartilhamento de suas sabedorias, pelas discussões tão potentes e potencializadoras, e pelo carinho compartilhado nos momentos de militância e encontros festivos.

Às participantes deste trabalho, por aceitarem o meu convite à pesquisa, por me ensinarem tanto e por me mostrarem a importância da minha/nossa luta.

Às professoras Ciriane e Nedi, que tanto me auxiliaram e me apoiaram para realização deste trabalho.

Às minhas amigas “do mestrado pra vida”: Mel, Ina, Ana, Pati, Aline, Nati e Mari por terem sido minha família durante estes dois anos e por compartilharem comigo o universo da pesquisa, e a todxs da família “Mestrandxs”.

Aos servidores e funcionários da UFSC, em especial do PPGP, por terem sido tão prestativos nos momentos em que precisei de ajuda.

Ao CAPES, pelos dois anos de bolsa, sem a qual dificilmente esta pesquisa seria realizada.

A família Surf Sem Fronteiras – ASSF, em especial ao Fidel, por terem me dado suas mãos, acreditarem no meu

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8 sonho e por estarem caminhando comigo na busca pela alegria e liberdade do outro como força política de transformação social.

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9 RESUMO

Este trabalho de pesquisa objetiva compreender os sentidos dos estudantes diagnosticados com deficiência intelectual, que estudam em turmas comuns de escolas regulares, acerca das suas vivências escolares. Para isso, procurei identificar os sentidos que estes estudantes atribuem à escola, enquanto lugar de circulação e pertencimento social; os sentidos que estes estudantes atribuem ao aprender (aprendizagens escolares, conhecimento científico); e os sentidos que estes estudantes atribuem às relações que estabelecem com os envolvidos no processo educativo. Trata-se de uma pesquisa empírica e exploratório-descritiva que considerou o discurso de duas estudantes regularmente matriculadas na rede regular de ensino. Utilizar o discurso de estudantes diagnosticados com deficiência intelectual dentro da escola como meu território de pesquisa se coloca dentro de uma postura micropolítica, em que a luta pela polissemia da expressão se une à necessidade de construção de novos territórios educacionais que viabilizem novas formas de ser e estar no mundo e acolham a diversidade, valorizando as experiências individuais e a singularidade de cada processo. Para o levantamento de informações, utilizou-se observações participantes com registros em diário de campo, entrevistas semi-estruturadas em profundidade e um procedimento projetivo. As informações foram analisadas através do método de Análise de Discurso com base em Vigotksi. As participantes da pesquisa relataram vivenciar processos frequentes de invisibilização e negação, quando associados aos processos de ensino e aprendizagem; e de exclusão, decorrentes da ausência de cuidado/cooperação nas relações interpessoais no ambiente escolar. Associados a tais processos, emergiu muito sofrimento, apontando para a importância de se considerar o discurso de estudantes diagnosticados com deficiência intelectual para o questionamento e construção de novas práticas frente o seus processos de escolarização.

Palavras-chave: Deficiência Intelectual, Escola, Inclusão, Vivências Escolares

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11 ABSTRACT

This research aims to understand the senses of the students diagnosed with intellectual disability, who study in common classes of regular schools, about their school experiences. For this, I tried to identify the meanings that these students attribute to their schools, as a place of circulation and social belonging; the meanings these students attribute to learning (school learning, scientific knowledge); and the meanings these students attribute to the relationships they establish with those involved in the educational process. This research work qualifies as being empirical and exploratory-descriptive and considered the discourse of two students regularly enrolled in the regular network of education. Using the discourse of students with intellectual disability within the school as my research territory is placed within a micropolitical posture, in which the struggle for polysemy of expression joins the need to construct new educational territories that enable new forms of being in the world and welcoming diversity, valuing the individual experiences and the uniqueness of each process. To collect information, participant observations were used with field diary records, depth semi-structured interviews and a projective procedure. The information was analyzed using the Speech Analysis method based on Vigotksi. The participants of the research had experienced frequent processes of invisibility and negation, when associated with teaching and learning processes; and exclusion, due to lack of care / cooperation in interpersonal relationships in the school environment. Associated with these processes, a great deal of suffering emerged, pointing to the importance of considering the discourse of students diagnosed with intellectual disability to question and construct new practices in relation to their schooling processes.

Key-words: Intellectual Disability, School, Inclusion, School Experience

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13 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AAIDD - Associação Americana para as Dificuldades Intelectuais e Desenvolvimentais

AAMD - Associação Americana de Deficiência Mental AAMR - Associação Americana de Retardo Mental AEE - Atendimento Educacional Especializado CA - Colégio de Aplicação

CDPD - Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência

CID - Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde

CNE/CEB: Diretrizes Curriculares para Educação/Câmara de Educação Básica

CNPq – Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico

DSM - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais

DUA - Desenho Universal para Aprendizagem EDE - Estudos da Deficiência na Educação

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros

PIBIC – Programa Institucional de Bolsas para Iniciação Científica

PNEI - Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva

PPDI – Pessoas diagnosticadas com deficiência intelectual PPP – Plano político pedagógico

QI - Quoeficiente de Inteligência SC - Santa Catarina

TDAH - Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade

UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina

UPIAS - União dos deficientes físicos contra a segregação MEC - Ministério da Educação

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15 LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Caracterização das estudantes participantes da pesquisa...58

Tabela 2: Temas e subtemas da dissertação emergentes das análises dos discursos...71

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17 SUMÁRIO

1. Introdução ... 20 1.1 Traçando aproximações: do primeiro contato com a

deficiência intelectual a uma dissertação....21 1.2 Traçando práticas: a deficiência intelectual como

categoria de análise em Psicologia Social....27 1.3 Traçando uma dissertação: caminhos do trabalho...31 2. Revisão de literatura ... .33

2.1 Contextualizando a deficiência intelectual...33 2.1.1 A deficiência intelectual e seus modelos

explicativos normativos ... 33 2.1.2 Problematização das definições e terminologias da deficiência intelectual ... 36 2.2 Modelo social da deficiência...42

2.2.1. Contribuições da primeira geração do modelo social da deficiência ... 42 2.2.2 Segunda geração do modelo social da deficiência: as contribuições dos estudos feministas ... 45 2.2.3. A (des)construção da normalidade como discussão central do modelo social ... 50

2.3 Inclusão escolar de estudantes diagnosticados com deficiência intelectual...55

2.3.1. Contextualizando o paradigma da educação inclusiva ... 55 2.3.2. Estudos da deficiência na educação e a

ressignificação da educação inclusiva ... 61 3. Método ... 67

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3.1 Delineamento...67

3.2 Caracterização do contexto de pesquisa...68

3.3 Apresentação das participantes da pesquisa...72

3.3.1 Gabriela ... 73

3.3.2 Luísa ... 76

3.4 Levantamento de informações...78

3.5 Analise das informações...81

3.6 Questões Éticas...84

4. Resultados e discussão ... 85

4.1 Análise e discussão das informações...85

4.1.1 Sentidos atribuídos ao ensino ... 86

4.1.1.1 “Fico assim sem entender” ... 87

4.1.1.2 “Eu nunca sinto assim [ouvida]” ... 99

4.1.2 Sentidos atribuídos à aprendizagem ... 101

4.1.2.1 “Eu to cansada, eu não aguento mais” ... 101

4.1.2.2 “Eu tenho que estudar um monte pra me formar e não sei o que” ... 104

4.1.3 Sentidos atribuídos às relações interpessoais ... 111

4.1.3.1 “Eu pedi alguém pra me ajudar e ninguém me ajudou” ... 111

4.1.3.2 “Cada um que chega em mim, esbarra em mim e não dá desculpa” ... 115

4.1.3.3 “Bem triste. Porque ninguém… é… se importa, sabe?” ... 120

5. Considerações finais ... 124

ANEXOS ... 127

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19 APÊNDICES ... 128 APÊNDICE A...128 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA .. 128 CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ... 128 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ... 128

APÊNDICE B...133 Referências bibliográficas ... 135

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21 1. Introdução

1.1 Traçando aproximações: do primeiro contato com a deficiência intelectual a uma dissertação

Se, conforme Skliar (2012), a experiência inaugura o pensamento, entendo como essencial para dar início a este trabalho de pesquisa contextualizar-me e localizar-me discursivamente. Conforme Rich (2002), localizar-me no meu corpo significa reconhecer esta posição social da qual venho, os lugares aonde ela me tem levado, os lugares aonde ela tem me impedido de ir. Para estar aqui, parto de uma localização social privilegiada, a qual me possibilitou ocupar um lugar próximo ao conhecimento. Tão próximo a ponto de me permitir, através da pesquisa, movimentá-lo e produzi-lo. Reconhecendo a responsabilidade e a força política que existe nestas movimentações e produções, intenciono com ela o rompimento de visões fatalistas e a busca por possibilidades que respeitem toda forma de ser.

Ampliando minha localização, recordo a minha trajetória como acadêmica do curso de Psicologia e as experiências que me possibilitaram falar deste lugar. Realizei, por aproximadamente dois anos, de 2013 ao final de 2014, o trabalho como monitora de um estudante diagnosticado1 com deficiência intelectual severa numa escola regular. Este trabalho levou-me ao envolvimento com o assunto e a oportunidade de mergulhar na compreensão desta forma de vida - até o momento nova para mim - que se apresenta de

1 A utilização do termo “com” neste diagnosticado trabalho de pesquisa emerge como um cuidado e recusa ao essencialismo existente na categorização de identidades e também para marcar que existe uma relação de poder que produz enquadramentos, colocando os sujeitos em determinadas categorias sociais. Além disso, as pessoas participantes desse trabalho de pesquisa não se identificam como sendo “pessoas com deficiência intelectual”, e em função disso, o termo “diagnosticado com” também emerge nesse trabalho de pesquisa em respeito à percepção delas sobre si.

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22 maneira tão complexa dentro das relações de poder em nossa sociedade.

Deste envolvimento, surgiu a possibilidade de fazer parte, como bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq, em um projeto de pesquisa sobre educação inclusiva. Neste, pude desenvolver um subprojeto, no qual analisei os desafios e as estratégias frente à inclusão de estudantes diagnosticados com deficiência intelectual em escolas comuns. Em função disso, apropriei-me de conceitos e práticas relacionadas à educação, como por exemplo, políticas públicas inclusivas, história da educação inclusiva, modelos e paradigmas da deficiência e práticas psicopedagógicas voltadas à inclusão de estudantes diagnosticados com deficiência intelectual.

Esta compreensão macropolítica, possibilitada pela pesquisa a respeito dos estudantes diagnosticados com esta deficiência em ambiente inclusivo, influenciou o meu desejo de compreender mais profundamente a deficiência intelectual dentro da multiplicidade de relações que a compõem. Sendo assim, optei em continuar os estudos relacionados a ela junto aos saberes disponibilizados pela linha de concentração concernente aos estudos sobre os processos de subjetivação, gênero e diversidades, dentro da área de concentração sobre práticas culturais e processos de subjetivação, do curso de pós-graduação (mestrado) em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

Além de objetivar ampliar minha contribuição para a deficiência, a inserção neste mestrado inclui o desejo de transformação e subversão da lógica acadêmica de pesquisa científica onde os sujeitos são tomados como objetos passivos, considerando os sujeitos diagnosticados com deficiência intelectual como os próprios produtores dos saberes a respeito deles mesmos e de seus processos. Acredito, que dessa forma, consigamos respeitar academicamente o apelo emergente dos movimentos sociais de pessoas que se identificam como “pessoas com deficiência” de que nada seja dito sobre eles sem eles.

Parto do pressuposto vigotskiano de que a constituição do sujeito deve ser entendida como um processo complexo e multifacetado, no qual se inter-relacionam as dimensões materiais, culturais, sociais e históricas (Vigotski, 1999).

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23 Neste processo, o sujeito se constitui mediado pelas determinações sociais e também pode ressignificar valores e práticas sociais, transformando a si e o contexto em que vive. Tal pressuposto caracteriza o papel ativo do homem e da cultura e auxilia com o rompimento da ideia de um sujeito passivo às determinações sociais.

Por apropriar-se dos conceitos do materialismo histórico dialético de Marx, a perspectiva Histórico-Cultural desenvolvida por Vigotski, é também uma opção para o questionamento da incapacidade do sujeito nos parâmetros do capital. Baseado nas concepções de Karl Marx e Friedrich Engels, Vigotski enfatizava o papel crítico do trabalho e dos instrumentos na transformação da relação entre os seres humanos e o contexto. Tal abordagem requer a compreensão do papel ativo da história no desenvolvimento psicológico humano (John-Steiner & Souberman, 1999).

Visto que para Vigotski (1991), o sentido das palavras depende conjuntamente da interpretação do mundo de cada qual e do seu processo de subjetivação e objetivação, a partir do qual os sujeitos apropriam-se dos significados que são coletivos (Zanella et al., 2005), questiono quais os sentidos que os estudantes diagnosticados com deficiência intelectual atribuem às suas vivências escolares?

Através de tal questionamento, este trabalho de pesquisa objetiva compreender os sentidos dos estudantes diagnosticados com deficiência intelectual, que estudam em turmas comuns de escolas regulares, acerca das suas vivências escolares. Para isso, procurarei identificar os sentidos que estes estudantes atribuem à escola, enquanto lugar de circulação e pertencimento social; os sentidos que estes estudantes atribuem ao aprender (aprendizagens escolares, conhecimento científico); e os sentidos que estes estudantes atribuem às relações que estabelecem com os envolvidos no processo educativo.

Considerando os discursos dos próprios agentes deste processo, subverte-se a lógica de alguns métodos de pesquisas em ciência, que têm sido fortemente marcados pelo ato de “falar por”, possibilitando a emergência de uma nova construção da realidade através da prática do “falar com” (Moraes, 2010). Tal fato justifica a relevância desta proposta

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24 de pesquisa, na medida em que abre a possibilidade para que os sujeitos diagnosticados com deficiência intelectual sejam interpelados não como sujeitos dóceis, passivos às intervenções ditas inclusivas, mas possuindo um papel ativo na cultura. Gesser (2013) também ressalta a importância deste tipo de estudo. A autora afirma que “não se pode perder a singularidade dos sujeitos em meio à coletividade. Devemos aprender a ouvir suas experiências, identificações, desejos e necessidades, buscando a complexidade dos elementos que o constituem: acolher os sujeitos em suas singularidades” (p. 74).

Dentro da perspectiva de escutar os próprios sujeitos com deficiência, não podemos deixar de reconhecer o importante papel que os estudos feministas queer 2 desempenham. A tomada da palavra pelos próprios sujeitos, segundo Preciado (2011), é “um advento não tanto pós-moderno como pós-humano: uma transformação na produção, na circulação dos discursos nas instituições modernas e uma mutação dos corpos” (p. 17) e permite com que as múltiplas expressões de existência emerjam de forma singularizada.

Ademais, a emergência dos “feminist disability studies3” a partir da entrada de autoras feministas no campo de estudos da deficiência, ampliaram ainda mais as possibilidades de se pensar a deficiência. Tal modelo, por problematizar a importância da compreensão do que significa viver em um corpo deficiente ou lesado e por ampliar as noções de identidade para garantir a viabilização de políticas públicas que considerem as diversas formas de ser e estar no mundo, faz-se chave para auxiliar a compreensão da deficiência intelectual neste trabalho de pesquisa.

De forma complementar, os estudos de Butler (2004) e Kittay (2015) recebem relevância neste trabalho de pesquisa, visto que evidenciam como nossas tentativas discursivas emergem para humanizar certas vidas e silenciar outras, e

2 Termo utilizado para designar estudos e pessoas que não seguem o modelo de heterossexualidade ou do binarismo de gênero.

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25 como isto acaba por perpetuar a violência normativa que privilegia algumas vidas sobre as outras.

Ainda é incipiente a quantidade de pesquisas que escutam as pessoas diagnosticadas com deficiência intelectual no ambiente educacional inclusivo, comparada com as que teorizam a respeito dela (Pletsch & Glat, 2012). Tal fato nos mostra que, para a ciência, a pessoa diagnosticada com deficiência intelectual parece ainda não ter um discurso legítimo, que possa falar de si e de suas reais necessidades. Esta negação do discurso do outro pode ser entendida a partir das teorias feministas de Butler (2004), Kittay (2015) e Scott (1998) e da analogia com os conceitos abordados na compreensão das relações de produção, aprofundadas por Spivak (2010).

Para Spivak (2010), o fenômeno da deficiência intelectual se apresenta de forma tão heterogênea quanto as redes de poder/desejo/interesse. A sua redução a uma narrativa coerente pode ser considerada contraproducente, cabendo aos intelectuais, portanto, criticarem as formas de produção do conhecimento científico, devendo tentar revelar e reconhecer o discurso do outro na sociedade. A banalização do discurso do outro sinaliza uma negação que deve ser atentada e questionada (Spivak, 2010).

A autora também argumenta que a negação da voz da pessoa diagnosticada com deficiência intelectual caracteriza-se como a reprodução da submissão à ideologia dominante4. Ou seja, quando os artigos científicos não consideram as palavras das pessoas diagnosticadas com deficiência intelectual, acabam reproduzindo um sistema dominante, massivamente criticado pelos próprios autores. Tais deslizes tornam-se a regra em vez da exceção, e esta falta de cuidado, influenciada pelo poder de um discurso centralizado, acaba por preencher o espaço vazio do agente (Spivak, 2010). Pode-se pensar que, no caso da deficiência intelectual, em que a pessoa é vista como socialmente incapaz de falar por si, o discurso científico acaba por fornecer mais um espaço de alienação deste sujeito a um discurso alheio, de sorte a

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26 reproduzir as relações de produção que marcam sua invisibilidade.

Frente a isso, considerar o discurso das pessoas diagnosticadas com deficiência intelectual em pesquisas empíricas possui relevância social, visto que contribui para subversão da ideia da deficiência intelectual como falta ou incapacidade. Moraes (2010) afirma que a subversão e a resistência se fazem nas práticas: justamente ali onde são tecidas, encenadas as múltiplas concepções de deficiência. Para a autora, fazer existir a diferença, a multiplicidade, e a singularidade em meio à coletividade é um modo de resistir à normalização, aos processos que fazem existir a deficiência como falta.

A relevância social deste trabalho de pesquisa fica evidente também se pensarmos no contexto analisado a partir da perspectiva dos estudantes diagnosticados com deficiência intelectual: o ambiente escolar. Como sabemos, tal contexto opera de maneira homogeneizante e ratificadora de uma marcha capitalista que teve início há muito tempo, que exclui aqueles que não se enquadram na lógica produtiva e disciplinadora de ensino. Utilizar o discurso de estudantes diagnosticados com deficiência intelectual dentro da escola como meu território de pesquisa se coloca dentro de uma postura micropolítica, em que a luta pela polissemia da expressão se une à necessidade de construção de novos territórios educacionais que viabilizem novas formas de ser e estar no mundo e acolham a diversidade, valorizando as experiências individuais e a singularidade de cada processo.

O falar permite o movimento de circulação de novas ligações, ideias, sentimentos e ações, que podem influenciar nos potenciais criadores e na manutenção de espaços de autonomia que ativem novas formas de subjetivação. O ouvir e o questionar, como objetos de pesquisa, podem levantar questões que estas pessoas nunca estiveram autorizadas a pensar, podendo fazer com que cidadãos com potência criadora, participativos e implicados com a construção de outra realidade emerjam, viabilizando alternativas aos impasses educacionais inclusivos.

No que se refere à relevância científica deste trabalho de pesquisa, ela se justifica pela necessidade de transformação

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27 da lógica científica de produção do conhecimento sobre deficiência, na qual as pessoas diagnosticadas com deficiência são muito mais objetos de análise e de intervenção do que pessoas com voz e protagonismo. Nesse sentido, Gesser (2013) afirma que a Psicologia, como campo de pesquisa e de atuação profissional deve ter como horizonte ético a potencialização do sujeito – tanto na busca por seus direitos sociais quanto na sua capacidade de resistir à normalização - e a compreensão da sua dimensão subjetiva nas dimensões do pensar, sentir e agir, considerando os múltiplos atravessamentos presentes no seu processo de constituição.

A produção do conhecimento pelas pessoas com o diagnóstico de deficiência intelectual amplia também sua visibilidade e possibilidade de participação num espaço onde o desempenho intelectual é a condição de acesso, e onde a pregnância da lógica racional como ponto de ordenamento da experiência obstaculiza nossa capacidade de atribuir valor aos enunciados dos sujeitos que se colocam a partir de outras lógicas.

1.2 Traçando práticas: a deficiência intelectual como categoria de análise em Psicologia Social

As concepções dos modelos da deficiência atravessam as nossas dinâmicas culturais e promovem implicações que marcam trajetórias. Os modelos médico e religioso marcaram a deficiência em lugar de desvio, de desgraça, de problema individual e inferioridade. A busca incansável pela transformação da sociedade para ultrapassar uma visão caritativa e organicista e encarar os desafios de incluir as pessoas com deficiência como uma questão de direitos humanos emerge como a força dos movimentos sociais e políticos das pessoas com deficiência. Esses movimentos surgiram para questionar os paradigmas que historicamente se fazem presentes nos modelos explicativos que permeiam a experiência da deficiência. Termos genéricos como “inválidos”, “incapazes”, “aleijados” e “defeituosos” foram amplamente utilizados até meados do século XX,

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28 indicando a percepção dessas pessoas como um fardo social, inútil e sem valor. Ao se organizarem como movimento social, as pessoas com deficiência buscaram novas denominações que pudessem romper com essa imagem negativa que as excluía, dando origem assim, ao modelo social da deficiência.

A primeira geração do modelo social concebeu a deficiência como um processo de opressão social. A segunda geração do modelo social incorporou concepções dos estudos feministas à ideia da deficiência como opressão, para pensar nas diversas dimensões que a experiência da deficiência pode materializar. Todas essas compreensões serão discutidas de forma aprofundada na revisão de literatura deste trabalho de pesquisa. O que precisamos compreender, por ora, é que o modelo social da deficiência nos oferece a possibilidade de compreender o fenômeno da deficiência como uma experiência relacionada ao ciclo de vida humano, ou seja, uma experiência inerente à condição humana (Diniz, 2007).

Dentro dessa condição, quando a deficiência intelectual se entrecruza com outros marcadores sociais da opressão, tais como classe social, gênero e geração, ela produz discriminação e opressão social. De forma complementar, Kittay (2015) afirma que, ao contrário de muitas condições de deficiência, a deficiência intelectual não é simplesmente uma construção social em que a remoção das barreiras atitudinais e físicas garantem sua autonomia e participação social. Muitas das pessoas diagnosticadas com deficiência intelectual não poderiam sobreviver, muito menos prosperar, sem constante vigilância e atenção. Não são os rótulos negativos ou barreiras físicas que criam a dependência das pessoas com esse diagnóstico - embora saibamos que o cuidado e a acessibilidade tornam essas vidas mais dignas, mas a própria condição da deficiência intelectual em si. Entretanto, embora a deficiência intelectual não seja algo socialmente construído, a visão de que ela é um "problema" e não um possível resultado da fisiologia humana ainda existe. O não reconhecimento dessas necessidades tem, segundo Diniz e Santos (2010), impactos significativos sobre as oportunidades, capacidades e liberdades que endossam uma compreensão ética sobre o justo.

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29 Sendo assim, a deficiência intelectual se torna uma importante categoria de análise nos estudos/pesquisas e prática em Psicologia Social. Quando articuladas, podem ampliar os questionamentos dos discursos relacionados à deficiência como categoria homogênea, contribuindo com o rompimento de perspectivas naturalizantes e a-históricas, as quais obstaculizam a garantia dos direitos humanos dessa população. De forma complementar, ouvir os sujeitos marcados por essa relação de opressão dentro de pesquisas em Psicologia Social, pode contribuir para o fortalecimento dos movimentos sociais de pessoas com deficiência e para efetivação das políticas públicas voltadas às suas reais necessidades. A consideração da dimensão subjetiva, a potencialização do sujeito e a promoção da participação social portanto, emergem como essenciais no trabalho da Psicologia junto às políticas públicas (Guesser, 2013).

Entretanto, vemos que a Psicologia tem um longo caminho pela frente no que tange assuntos relacionados à deficiência intelectual. A análise dos currículos de graduação em Psicologia mostra que a relação entre as duas ainda está baseada num modelo de individualismo moral, atravessada por concepções da deficiência advindas do modelo médico (Goodley, 2010). Tal perspectiva marca ainda mais sua marginalização e influencia o discurso acadêmico a não considerar o discurso da pessoa diagnosticada com deficiência como válido (Olkin & Pledger, 2003). Muitas vezes, a pessoa diagnosticada com deficiência é apresentada como “vítima” e os problemas enfrentados por elas são justificados pela sua lesão (Asch & Mccarthy, 2003). Além disso, as pesquisas em Psicologia tradicionalmente só consideram a deficiência a partir de fatores biológicos, psicológicos e sociais e esquecem de incorporar a família e a esfera política.

Ademais, o estudos sobre a representações sociais da deficiência intelectual na relação entre psicologia e educação (Gomes & Lhullier, 2017) também evidenciam uma visão normatizadora das pessoas diagnosticadas com deficiência intelectual, influenciada pela supremacia do modelo médico baseado em concepções organicistas, que se apresenta, em especial, nas práticas dos contextos educacionais e laborais. Todavia, evidencia também que a utilização das concepções

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30 sócio-históricas de Vigotski no discurso frente à deficiência intelectual é utilizada por psicólogos para criticar essa visão normativa de sujeito, evidenciando um tensionamento existente entre a prática com os sujeitos com deficiência intelectual e a produção do saber (tanto política quanto acadêmica) a eles destinada.

Partindo desse evidente distanciamento, também verificado nos estudos de Kassar (2011), Souza (2013) e Pletsch e Glat, (2012), a perspectiva Histórico-Cultural e a noção da dimensão subjetiva desenvolvida por Sawaia (2002) nos oferecem importantes argumentos que afirmam a necessidade de compreensão do processo de inclusão dos estudantes diagnosticados com deficiência intelectual a partir das perspectivas dos próprios sujeitos. A partir do relato destes estudantes acerca das experiências por eles vividas na escola, é possível apreender elementos descritivos de seus mundos subjetivos, dando assim, visibilidade a uma dimensão da realidade que é extremamente necessária para que a produção do saber e as práticas junto a pessoas diagnosticadas com deficiência superem seus tensionamentos.

Frente a essa realidade, faz-se necessária uma reflexão sobre as formas em que a deficiência deve ser trabalhada e apresentada noes estudos em Psicologia no meio acadêmico, visto que irão influenciar a forma com que profissionais da área irão atuar frente a ela. Asch e Mccarthy (2003) sugerem que as pessoas diagnosticadas com deficiência não devem ser apresentadas de forma categorizada como “anormais" ou "excepcionais", porque tal colocação perpetua mitos e estereótipos. Ao invés disso, sugerem que a academia deve incluir a deficiência como um fato presente em muitas vidas ou um simplesmente como um aspecto da diversidade (Asch & Mccarthy, 2003).

Olkin e Pledger (2003) também oferecem reflexões a esta questão, e afirmam que, para evitar visões universalizantes ou estigmatizantes, a exploração de um assunto complexo como a deficiência exige um trabalho interdisciplinar. Os estudos sobre a deficiência na perspectiva do modelo social, portanto, apresentam-se como fundamental base teórica para este estudo, visto que organizam os conhecimentos básicos sobre a deficiência, espalhados nas

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31 diversas disciplinas, incorporando interesses de diversas áreas do conhecimento. Por ser uma área interdisciplinar, que legitima o estudo da deficiência como uma condição humana e critica concepções práticas e políticas individualizadoras e homogeneizadoras, os estudos sobre a deficiência na perspectiva do modelo social servem de amparo aos estudos sobre deficiência nas áreas sociais e humanas (Olkin & Pledger, 2003). Autoras dos estudos feministas da deficiência, como Garland-Thomson (2002), por exemplo, também reforçam a importância de utilizarmos os estudos sobre a deficiência na perspectiva do modelo social, afirmando que são a matriz das teorias, pedagogias e práticas sobre deficiência.

Sendo assim, estudos sobre a deficiência na perspectiva do modelo social se apresentam como uma base teórica sólida, com pressupostos teórico-metodológicos de atuação profissional consistentes, para que a Psicologia trabalhe numa perspectiva ético-política e que tenha como horizonte ético, como afirma Gesser (2013), o questionamento dos dispositivos normalizantes, o acolhimento das diversidades dos modos de ser, a potencialização do sujeitos, e o incentivo da participação dos sujeitos na produção de saber a ele destinadas. Ou seja, uma Psicologia que seja capaz de reconhecimento a humanidade das pessoas diagnosticadas com deficiência.

1.3 Traçando uma dissertação: caminhos do trabalho Uma vez exposta as compreensões que perpassam os olhares dados aos estudantes dessa pesquisa e que vão orientar as problematizações frente aos seus relatos, passamos para uma apresentação deste trabalho de pesquisa de forma sintética.

A revisão de literatura inicialmente apresenta, no item 2.1 uma contextualização da deficiência intelectual, apresentando os modelos explicativos normativos a ela relacionados, a saber: o modelo religioso e o modelo médico. Após, faz-se uma problematização dos conceitos e

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32 terminologias da deficiência intelectual, dentro de um domínio amplo de perspectivas.

No item 2.2 faz-se uma apresentação do modelo social da deficiência, apontando as contribuições da primeira geração do modelo social da deficiência e as contribuições dos estudos feministas da segunda geração do modelo social. Após, apresenta-se uma discussão a respeito da (des)construção da normalidade, processo este que centraliza as discussões da deficiência dentro da perspectiva do modelo social.

No item 2.3 faz-se uma discussão sobre a inclusão escolar de estudantes diagnosticados com deficiência intelectual, apresentando seus aspectos históricos e seus impactos para a manutenção da perspectiva inclusiva do sistema escolar atual. Após faz-se uma discussão sobre as recentes contribuições dos estudos da deficiência na educação, para se pensar em formas alternativas de inclusão.

Feita essa retomada teórica fundamental, adentramos para a descrição do método utilizado nesta pesquisa: o seu delineamento no item 3.1, a caracterização do contexto de pesquisa no item 3.2, a apresentação das participantes da pesquisa item 3.3, o levantamento de informações no item 3.4, a análise de informações no item 3.5 e as questões éticas da pesquisa no item 3.6.

Após, no item 4, faz-se a análise dos resultados obtidos na pesquisa, apresentando um texto que dialoga com os relatos de forma crítica junto às teorias aqui trabalhadas.

Por fim, no item 5, apresentam-se as considerações finais desse trabalho de pesquisa, descritas a partir de um momento reflexivo intenso com base no que foi evidenciado e analisado nos relatos apresentados.

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33 2. Revisão de literatura

2.1 Contextualizando a deficiência intelectual

2.1.1 A deficiência intelectual e seus modelos explicativos normativos

Partindo do pressuposto de que a deficiência intelectual se articula com as construções discursivas nas relações sociais, faz-se necessário que as experiências das pessoas diagnosticadas com deficiência sejam analisadas, ao menos em parte, com marcadas por uma relação de opressão e exclusão. Ou seja, deve-se historicizar a “experiência” da deficiência intelectual. Visto que a linguagem é o campo na qual a história se constitui, a explicação histórica não pode deixar de envolver a experiência e deixar de considerar todas as categorias de análise como contextuais, contestadas e contingentes: qual seu status fundador e os efeitos de suas articulações (Scott, 1998).

Baseadas nas condições de possibilidades existentes em cada tempo e espaço, as experiências produzem subjetividades e marcam trajetórias de desenvolvimento que norteiam práticas sociais nas diversas relações existentes. Analisando os discursos que atravessaram e atravessam a deficiência intelectual, podemos compreender as representações a ela associadas e de que forma contribuíram para que as práticas de exclusão e opressão se tornassem tão marcantes neste campo de estudo. Estes discursos emergem a partir de concepções presentes em três modelos explicativos: o religioso, o médico e o social.

Apresentá-los numa sequência linear nos auxiliará a compreender a deficiência de forma ampla e contextualizada, contudo, tais eventos não podem ser considerados marcos deterministas, pois transformam-se dentro de si mesmos. Eles emergem de uma forma que estabelece certo controle sobre a temporalidade, mas diversas temporalidades emergem no decorrer de suas interações. Diante disso, não podemos toma-los como bases explicativas que justificam ações normativas, mas devemos utiliza-los para contestar o poder determinante destas produções.

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34 O modelo religioso remonta às sociedades primitivas, que encontravam nas causas sobrenaturais, nos mitos e nas crenças em espíritos maléficos ou benévolos, a explicação para o surgimento das doenças e deficiências e para sua cura. Assim, a deficiência era entendida como um castigo ou maldição, e, naquele contexto, os deficientes eram exterminados ou excluídos da sociedade (Pereira, 2006).

Com o fortalecimento do cristianismo ao longo da Idade Média a deficiência passou a ser considerada um déficit e as pessoas diagnosticadas com deficiência eram vistas como dignas de pena por serem vítimas da própria incapacidade (Lanna Júnior, 2010). A deficiência era, portanto, permeada por um olhar caritativo e, embora esta visão caritativa tenha vigorado até o século XV e tenha sido superada por outras concepções, ela ainda é presente na nossa sociedade de forma residual, sendo percebida no sentimento de culpa desencadeado pela deficiência (quando estas são associadas a castigos); na segregação por motivações religiosas; nas crenças sobrenaturais da origem da deficiência (ainda presentes em grupos neopentecostais) e na esperança da cura por meio de milagres.

Outro modelo que emerge para explicar a deficiência é o modelo médico. Esse novo olhar foi possibilitado quando as explicações sobrenaturais da concepção religiosa da deficiência foram confrontadas por explicações mais humanas e organicistas.

No final do século XIX, o psiquiatra francês Philippe Pinel utilizou o termo idiotismo para designar um tipo de alienação mental de base orgânica, caracterizado pela falta de desenvolvimento das faculdades intelectuais (Pereira, 2006). Porém, a sua teoria não deixou claro o que diferenciava a demência ou loucura do idiotismo, permitindo uma confusão entre os termos e associações errôneas (Pereira, 2006).

Após os estudos de Pinel, o clínico e ortofrenista Jean Etienne Esquirol modificou o termo idiotismo para idiotia e o caracterizou pela existência de um déficit de inteligência generalizado e definitivo, de origem congênita. Diferente de Pinel, Esquirol esboçou uma diferenciação entre os conceitos de idiotia e demência. Ele não considerava a idiotia uma doença, mas uma condição mental, que implicava no precário

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35 desenvolvimento das faculdades intelectuais e impossibilitava a educação formal. Embora tenha procurado distinguir a idiotia (amência) da loucura (demência), Esquirol, tanto quanto Pinel, enfatizou na primeira o caráter deficitário, o que passaria a ser uma marca distintiva das definições posteriores de deficiência intelectual (Pessotti, citado em Dias & Oliveira, 2013).

No final do século XIX, Kraepelin propôs um sistema de classificação que compreendia a debilidade mental como um estado de fraqueza psíquica que poderia levar a diversos graus de deterioração mental. Nas sua classificação, se referia às pessoas com deficiência intelectual como “pessoas em cujo cérebro não ocorrem muitas coisas”. Inicialmente, entendia a debilidade mental como um subgrupo da psicose crônica, e posteriormente passou a ser considerada uma psicose degenerativa, caracterizada por inibição do desenvolvimento psíquico (Pessotti, citado em Dias & Oliveira, 2013), o que permitiu associações entre deficiência como um estado patológico.

Pereira (2006) explica que o conhecimento médico e científico compõe os fundamentos do modelo médico e que o elo entre o médico e paciente é o saber médico, a ciência e a razão. Nesse sentido, faz uma analogia entre o elo sobrenatural entre o sacerdote e o doente existente na visão religiosa e afirma que, em ambos os modelos, o deficiente é visto como doente e dependente de cuidados.

A partir do avanço da ciência e de uma nova visão de mundo, não mais centrada na palavra da igreja, o corpo humano começou a ser considerado e tratado como uma máquina. A partir dessa nova abordagem, as deficiências ou excepcionalidades passaram a ser interpretadas como uma disfunção em alguma parte dessa máquina chamada corpo e, desde então, o padrão de normalidade começou a guiar as práticas médicas (Pereira, 2006). O Positivismo e a afirmação do saber possibilitaram, portanto, o surgimento de um modelo no qual as pessoas diagnosticadas com deficiência passaram a ser compreendidas por terem problemas orgânicos que precisavam ser curados (Lanna Junior, 2010). A pessoa diagnosticada com deficiência, por ser vista como incapacitada, deveria reabilitar-se para alcançar ao máximo

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36 possível os padrões de normalidade. Neste modelo, o saber está nos profissionais, que são os principais protagonistas do tratamento, cabendo aos pacientes cooperarem com as prescrições que lhes são estabelecidas (Lanna Junior, 2010). Em função disso, acreditava-se que a reabilitação só poderia ser realizada em instituições especializadas, o que desencadeou um grande número de institucionalizações de pessoas diagnosticadas com deficiência.

Analisando a história da deficiência intelectual nas perspectivas religiosa e médica, percebe-se que sua constituição se deu por uma ampla variação de definições e significações baseadas em abordagens normativas do desenvolvimento humano, que foram sendo reforçadas umas pelas outras, sem que superassem as representações negativas e estigmatizantes associadas a ela. Tais abordagens, além de colocar a deficiência numa categoria inumana, atuam como estratégias biopolíticas, alocando a vida e seus mecanismos no domínio dos cálculos explícitos, e fazendo do poder-saber um agente de transformação da vida humana (Foucault, 1988). Pode-se dizer, nas palavras do autor, que “o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver a morte” (Foucault, 1988, p. 130). Todavia, para Foucault (1988), a vida escapa continuamente do domínio das técnicas que tentam dominá-la. As mudanças constantes nas terminologias e definições da deficiência intelectual são exemplo disso, e serão aprofundadas a seguir.

2.1.2 Problematização das definições e terminologias da deficiência intelectual

No século XX, sob influência do modelo médico e da necessidade de avaliar a educabilidade escolar das crianças que deveriam frequentar classes especiais, a deficiência intelectual passou a ser entendida a partir de uma estimativa de um potencial intelectual através do Quoeficiente de

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37 Inteligência (QI)5. Ou seja, foi perspectivada como um déficit intelectual, no qual o QI era a expressão numérica de caráter incurável e inalterável (Belo, Caridade, Cabral & Sousa, 2008).

Durante a década de 1970, novas perspectivas foram adotadas, e em todo mundo surgiram sistemas de classificações interessadas em regulamentar estes conceitos e terminologias, como por exemplo: o sistema de Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (CID6); o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM7); e a classificação de retardo mental da Associação Americana de Deficiência Mental (AAMD).

Este sistema referia-se à deficiência intelectual como retardo mental, e era compreendida como um funcionamento intelectual inferior à média, acompanhado de déficit no comportamento adaptativo, manifestado durante o período de desenvolvimento (Grossmann, 1983). Segundo esta definição, o critério de funcionamento intelectual significativamente inferior à média corresponde a um QI menor ou igual a 70, sendo que este valor deverá ser considerado como uma

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Conceito de Quociente Intelectual (QI) para deficiência intelectual segundo Binet e Simon: Débeis mentais: 50 – 75; Imbecis: 25 – 50; Idiotas: inferior a 25.

6 Deficiência intelectual segundo classificação do CID 10: “Deficiência mental é uma condição de parada ou incompleto desenvolvimento mental, que é caracterizado principalmente por redução das habilidades manifestada durante o período de desenvolvimento, que contribui para uma redução global do nível de inteligência, i.e., habilidades sociais”. Organização Mundial da Saúde. (1994). CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças com disquete Vol. 1. Edusp.

7 Transtorno do Desenvolvimento Intelectual tem com características essenciais: Critério A: limitações nas habilidades mentais gerais. Critério B: dificuldade no funcionamento adaptativo em comparação com indivíduos pareados por idade, gênero e condição sociocultural. Critério C: início no período de desenvolvimento, antes dos dezoito anos. American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de

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38 aproximação sujeita a avaliação clínica. Além disso, Belo et al. (2008) afirmam que a grande inovação desta definição foi a introdução do critério de déficit no comportamento adaptativo como um critério de diagnóstico para a deficiência intelectual. Dessa forma, houve um deslocamento da importância do QI para os aspectos sociais na compreensão da deficiência intelectual.

Em 1992, a até então AAMD, passou por uma reformulação de nome, passando a se chamar Associação Americana de Retardo Mental (AAMR) e por uma reformulação na sua definição. Um dos aspectos que foram modificados nesta definição foi o limiar superior do QI da deficiência intelectual, agora um QI de 70 a 75. Outro aspecto diz respeito aos déficits globais no comportamento adaptativo, que deram lugar a limitações em duas ou mais áreas de competências adaptativas entre as dez previstas - comunicação, cuidados pessoais, autonomia em casa, competências sociais, utilização de recursos comunitários, iniciativa e responsabilidade, saúde e segurança, aptidões acadêmicas funcionais, lazer e trabalho - de modo a especificar as noções de comportamento adaptativo (Belo et al., 2008).

No entanto, a grande modificação desta definição se refere ao sistema de classificação a ser utilizado. O foco nos graus de deficiência intelectual foi modificado pelo foco na necessidade de apoio intermitente, limitado, extensivo ou persistente ao nível de diversas dimensões do funcionamento - intelectual, adaptativa, emocional e física. Sendo assim, a deficiência intelectual deixaria de ser vista como um déficit de natureza individual e passaria a ser considerada na interação entre o sujeito e o meio (Belo et al., 2008).

Em 2007, a até então chamada AAMR, passou a se chamar Associação Americana para as Dificuldades Intelectuais e Desenvolvimentais (AAIDD), que propõe a utilização da terminologia “dificuldades intelectuais e desenvolvimentais” para se referir à deficiência intelectual. Nesta nova proposta, removem o termo deficiência pelo seu caráter estigmatizante e o termo intelectual substitui o mental, pelo fato de que a avaliação da deficiência intelectual foca os

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39 aspectos intelectuais (fatores verbais, numéricos, etc.) (Belo et al., 2008).

Na definição proposta pela AAIDD, a deficiência intelectual é caracterizada por limitações significativas tanto no funcionamento intelectual - raciocínio, aprendizagem, resolução de problemas - e no comportamento adaptativo, que ocorrem antes dos 18 anos de idade. Os comportamentos adaptativos contemplam três habilidades: habilidades conceituais, caracterizadas pela noção de linguagem e alfabetização, dinheiro, noções de tempo e números, e auto-direção; habilidades sociais, caracterizadas por habilidades interpessoais, responsabilidade social, autoestima, ingenuidade (no que se refere à cautela), resolução de problemas sociais, a capacidade de seguir regras, obedecer às leis, e evitar ser vitimado; e habilidades práticas, que envolvem atividades da vida diária (higiene pessoal), qualificação profissional, saúde, viagens/transporte, horários/rotinas, segurança, uso do dinheiro, uso do telefone

(http://aaidd.org/intellectual-disability/definition#.V9gS6IWcHIU, recuperado em 13 de setembro de 2016). Tal proposta é utilizada como referência em diversos documentos oficiais, o que evidencia a força que a visão biomédica ainda tem para reduzir os sujeitos com deficiência a uma categoria identitária.

Foucault (2001) contribui para o entendimento desse processo de compreensão da deficiência intelectual no campo da psiquiatria. O autor destaca que a psiquiatria emergiu inicialmente como um saber especializado responsável pela higiene pública. Antes de ser uma especialidade da medicina, a psiquiatria se institucionalizou como domínio particular da proteção social, contra todos os perigos que a doença, ou de tudo que se possa assimilar direta ou indiretamente a ela, pode acarretar para sociedade. Contudo, ela não necessita mais de alienação para funcionar. Ela pode, segundo Foucault (2001) tornar psiquiátrica toda conduta sem se referir à alienação. A psiquiatria se desalienaliza e, a partir do momento em que não há mais essa referência a relação com a verdade, a psiquiatria vê finalmente se abrir diante de si o domínio inteiro de todas as condutas possíveis (Foucault, 2001).

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40 A deficiência intelectual não é uma entidade clínica homogênea, ou seja, não há um padrão que caracterize os sujeitos. Ela se apresenta, conforme Carlson (2001), de maneira diferenciada das outras categorias de deficiência, emergindo de maneira tão complexa que, enquanto classificação, ela só pode ser analisada em termos dos seguintes conceitos: heterogeneidade, instabilidade, estereótipos e relações de poder, tanto interna quanto externamente. Ela é extremamente heterogênea em termos de etiologia, características comportamentais, necessidades educativas, etc., - assim como qualquer ser humano.

A definição da deficiência e sua redução a uma categoria pode ser entendida, em termos Foucaultianos como uma tecnologia biopolítica, destinada a produzir corpos normais. O questionamento e a problematização da forma com que são construídas tais categorias torna-se um ato político essencial para promover, como afirma Preciado (2011), uma “desterritorialização” dos corpos para resistir aos processos normalizadores para que possamos construir novos enquadramentos que tornam estas vidas mais inteligíveis. Contudo, por se articular em territórios normativos nos quais as categorias são necessárias para criação de políticas públicas, não podemos desconsiderá-la enquanto tal.

A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) das Nações Unidas (Brasil, 2008), baseada numa perspectiva do modelo social da deficiência, foi um marco fundamental para que novas formas de pensar sobre a deficiência pudessem ser implementadas. A partir desta convenção, a deficiência passou a ser cada vez mais considerada uma questão de direitos humanos.

Construída a partir da ótica de que as próprias pessoas diagnosticadas com deficiência são as que sabem o que é melhor para elas e por isso devem ser ouvidas em todas as ações que as envolvam, o lema “nada sobre nós sem nós” concede ao CDPD uma compreensão da dimensão real do que as pessoas diagnosticadas com deficiência são capazes ou precisam de fato (Brasil, 2008). A CDPD tem como propósito proteger e assegurar as condições de igualdade dos direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas diagnosticadas com deficiência, por isso, torna-se um forte

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41 instrumento de ação política na medida em que agrega ao seu arcabouço jurídico, um instrumento de pesquisa, conhecimento e ação (Brasil, 2008).

O Preâmbulo da CDPD reconhece que a deficiência, de formo generalizada, é “um conceito em evolução”, mas realça também que a deficiência resulta da interação entre pessoas diagnosticadas com deficiência e barreiras comportamentais e ambientais que impedem sua participação plena e eficaz na sociedade de forma igualitária (Brasil, 2008). Dessa forma, o progresso na melhoria da participação social pode ser realizado lidando com as barreiras que afetam pessoas diagnosticadas com deficiência na vida diária.

Além disso, a partir da CDPD, a deficiência deixa de ser vista como uma condição restritiva e passa a ser entendida como uma possibilidade de desenvolvimento, que se constrói no entrelaçamento dialético entre as condições ambientais, histórico-culturais e as condições subjetivas da pessoa que um dia recebeu o diagnóstico de deficiência intelectual (Dias & Oliveira, 2013).

Contudo, mesmo reconhecendo a importância que a CDPD teve na construção de um novo olhar associado à deficiência como um todo, não podemos tomá-la como base para compreensão da deficiência intelectual sem, também, problematizá-la. Como vimos na introdução desse trabalho de pesquisa, a deficiência intelectual se diferencia de outras condições da deficiência no sentido de que, em muitos casos, a remoção das barreiras sociais não são suficientes para garantir a autonomia e a participação social desses sujeitos (Kittay, 2005).

A deficiência intelectual se coloca num lugar complexo, dinâmico e multidimensional. A partir dela, pode-se pensar questões éticas, que articulam o coletivo e o singular, que não só tornam os estudos sobre a deficiência mais amplos as diversidades que emergem na deficiência enquanto categoria de análise, mas na vida como um todo. Tal fato mostra a importância de que ela seja apropriada por diferentes saberes, não se colocando numa área específica, tornando-se um tema complexo, que, para sua compreensão, é necessário um domínio amplo de perspectivas.

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42 A experiência da deficiência se mostra de forma tão heterogênea e interseccional que acaba por colocá-la em constante transformação. As pessoas diagnosticadas com deficiência possuem diversos fatores pessoais com diferenças em termos de gênero, idade, status socioeconômico, sexualidade, etnia, ou herança cultural e cada uma delas tem suas preferências e respostas pessoais para lidar com a deficiência. Esta redefinição dos múltiplos significados de habitar um corpo é discutida de maneira mais aprofundada pelos estudos de gênero, feministas e antirracistas, oferecendo assim importantes reflexões e problematizações sobre a influência dos padrões normativos sobre os processos de subjetivação de pessoas diagnosticadas com deficiência.

2.2 Modelo social da deficiência

2.2.1. Contribuições da primeira geração do modelo social da deficiência

Como vimos, o modelo médico, restrito à dimensão biológica, reduz a abrangência da deficiência em todo seu sentido e necessita de um diálogo com as áreas humanas e sociais para subverter sua lógica. Diante dessa necessidade e crítica, emergiu o modelo social da deficiência. No Reino Unido, nos anos 1960, Paul Hunt, um sociólogo deficiente físico, iniciou os primeiros escritos para compreender a deficiência como um fenômeno sociológico. Em 1972, publicou sua obra marco, uma carta remetida ao jornal inglês The Guardian que questionava a institucionalização dos deficientes e os convidava para formarem um grupo que debatesse essas condições junto ao parlamento britânico (Diniz, 2007).

A partir da repercussão desta carta, diversas pessoas se mobilizaram e começaram a argumentar política e intelectualmente sobre a deficiência na sociedade, emergindo um movimento crucial para o modelo social: a primeira organização política chamada Union of Physically Impaired

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43 Against Segregation (UPIAS 8 9 ). De acordo com sua declaração política, adotada em dezembro de 1974, o objetivo do UPIAS foi substituir facilidades segregadas por oportunidades para pessoas diagnosticadas com deficiência, para que pudessem participar totalmente na sociedade, vivendo de maneira independente, ocupando trabalhos produtivos e tendo completo controle sobre suas próprias vidas (Shakespeare, 2006).

O principal objetivo da UPIAS era, portanto, redefinir a deficiência em termos de exclusão social. A deficiência, que era até então compreendida em termos biomédicos, passou a ser compreendida como uma forma particular de opressão social. Para esta argumentação, os estudiosos do modelo social aliaram-se aos conceitos do materialismo histórico, que compreendia a deficiência como o resultado do ordenamento político capitalista, que pressupunha um tipo de ideal de sujeito produtivo (Diniz, 2007). Além desta argumentação, estes estudiosos se utilizaram de uma estratégia de desconstrução simbólica da deficiência, aproximando este conceito a todos aqueles que sofrem algum tipo de opressão social: negros, mulheres, idosos (Diniz, 2007). A partir disso, a deficiência não poderia mais, de nenhuma forma, reduzir-se a causas orgânicas.

Além da UPIAS, outro grupo ativista em relação à deficiência surgiu e foi chamado de Liberation Network of People with Disabilities10. Este grupo elaborou o projeto de “política de libertação”, publicado em 1981, e argumentou que, embora a base das divisões sociais na sociedade fosse econômica, elas foram sustentadas por crenças psicológicas de inferioridade e superioridade, e podemos afirmar aqui, por representações sociais relativas às discrepâncias econômicas. Suas estratégias de libertação incluíam integrar pessoas diagnosticadas com deficiência e sem deficiência, para que elas pudessem juntas criar uma comunidade inclusiva de

8 Tradução: “União dos deficientes físicos contra a segregação”. 9 Union of the Physically Impaired Against Segregation (UPIAS). Fundamental Principles of Disability. London: Union of the Physically Impaired Against Segregation; 1976.

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44 suporte mútuo. Além disso, defendiam a abolição de toda segregação, do controle sobre a representação da deficiência na mídia e a elaboração de uma política econômica justa (Shakespeare, 2006).

Para compreensão do modelo social é necessário fazer uma diferenciação entre lesão e deficiência: a lesão seria um dado corporal isento de valor e a deficiência seria o resultado da interação de um corpo com lesão em uma sociedade discriminatória. Frente a essa diferenciação Shakespeare (2006) afirma que a real prioridade social é aceitar as incapacidades (lesões) e remover a deficiência (opressão). Nesse sentido, o modelo social determina que a sociedade é responsável pela remoção de barreiras e pela criação de leis antidiscriminação, favorecendo uma vida independente e menos oprimida. Direitos civis, ao invés de caridade ou pena, são os caminhos, segundo o modelo social, para solucionar o problema da deficiência (Shakespeare, 2006).

Compreende-se, portanto, que para este modelo, os problemas enfrentados pelas pessoas diagnosticadas com deficiência são resultados da opressão social e exclusão e não de seus déficits individuais. Isso coloca a responsabilidade moral na sociedade para remover o peso que tem sido imposto, e autorizar pessoas diagnosticadas com deficiência a participarem igualmente em sociedade. Ou seja, o problema da deficiência é retirado do individual, para as barreiras e atitudes que a limitam. A responsabilidade é vista como da sociedade, e não da pessoa diagnosticada com deficiência, portanto a sociedade que deveria “reabilitar-se” e não o sujeito. A expressão da opressão do corpo levou os teóricos da primeira geração à criação de um neologismo chamado: disablism11. Ele pode ser entendido, segundo Diniz, Barbosa e

11 As palavras ableism e disablism foram construídas com os seguintes componentes: able (o capaz) ou disabled (o incapaz) e o sufixo ism (doutrina, sistema, teoria, tendência, corrente etc., com sentido pejorativo). Portanto, a tradução dessas duas palavras para a língua portuguesa brasileira deveria seguir as terminologias da época, resultando em: ableism = capacitismo; disablism = deficientismo. [...] No disablism está focalizado nas supostas limitações das pessoas com deficiência como referência

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45 Santos (2010), como o resultado da cultura da normalidade, em que os impedimentos corporais são alvo da opressão e discriminação.

2.2.2 Segunda geração do modelo social da deficiência: as contribuições dos estudos feministas

Após 20 anos de hegemonia, a premissa da independência como um valor ético do modelo social começou a sofrer alguns questionamentos, que, por sua vez, foram influenciados pela entrada das abordagens pós-modernas e de críticas feministas nos anos 1990 e 2000. A partir disso, definiu-se uma nova concepção do modelo: a segunda geração do modelo social. Esta nova geração de autores, na sua maioria mulheres, sendo algumas delas mães de crianças diagnosticadas com deficiência, introduziu novos conceitos que consideravam os papéis de gênero, a interdependência e a experiência do cuidado, desestabilizando algumas premissas do modelo social (Diniz, 2007).

Os primeiros argumentos, portanto, organizaram-se frente à contextualização dos estudiosos do modelo social: homens, intelectuais, em sua maioria, portadores de lesão medular, que rejeitavam o modelo médico curativo da deficiência e negavam toda perspectiva caritativa perante ela. Ou seja, princípios como o do cuidado ou os benefícios compensatórios para a pessoa diagnosticada com deficiência não eram levados em consideração, pois se entendia que essa seria tão produtiva quanto a sem deficiência caso as barreiras sociais obstaculizadoras de sua participação social fossem removidas (Diniz, 2007).

Nesse sentido, as teóricas feministas foram as primeiras a apontar os paradoxos que envolviam as principais para mostrar as supostas capacidades das pessoas sem deficiência. No disablism, a ênfase é colocada na suposta anormalidade das pessoas com deficiência, as quais constituem uma minoria populacional. (Sassaki, em Anahi,, 2016, p. 3267).

Referências

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