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Vera Lúcia Marques da Silva. Da espetacularização à agenda política: uma leitura política do Movimento LGBT. Dissertação de Mestrado

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Vera Lúcia Marques da Silva

Da espetacularização à agenda política:

uma leitura política do Movimento LGBT

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC–Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Paulo Mesquita d’Avila Filho

Rio de Janeiro Agosto de 2008

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Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

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Vera Lúcia Marques da Silva

Da espetacularização à agenda política:

uma leitura política do Movimento LGBT

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Paulo Mesquita d'Avila Filho Orientador Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio

Profa. Ingrid Piera Andersen Sarti UFRJ

Profa. Angela Maria de Randolpho Paiva Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio

Profa. Sonia Maria Giacomini Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio

Prof. Nizar Messari Coordenador Setorial do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2008

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Vera Lúcia Marques da Silva Graduou-se em Comunicação Social na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em 1992. Cursou Comunicação e Espaço Urbano na UERJ em 1996 e Sociologia Política e Cultura no CCE/PUC-Rio em 2005. Após ocupar cargos de chefia em grandes multinacionais, tornou-se servidora pública concursada na Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), sendo membro do Comitê Gestor do Programa de Gestão da Qualidade dessa instituição. Atualmente, seu foco de pesquisa refere-se às imbricações entre sistema de representação política e participação social.

Ficha Catalográfica

Silva, Vera Lúcia Marques da

Da espetacularização à agenda política : uma leitura política do movimento LGBT / Vera Lúcia Marques da Silva ; orientador: Paulo Mesquita d’Avila Filho. – 2008.

126f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Sociologia e Política)– Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Inclui bibliografia

1. Sociologia – Teses. 2. Política. 3. Partidos políticos. 4. Agenda política. 5. Movimento LGBT. I. d’Avila Filho, Paulo Mesquita. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Sociologia e Política. III. Título.

CDD: 301

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Para meus queridos filhos, Thiago e João Paulo,

e pais, Maria Esperança e José.

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Este é um momento em que as palavras frágeis e limitadas não são capazes de dar conta dos sentimentos que quero expressar. Esta dissertação corporifica a realização de um sonho por muitos anos acalentado. Por isso, minha gratidão e amizade a todos que de uma forma ou de outra participaram desta concretização serão eternas.

À PUC-Rio, pela bolsa de isenção das taxas escolares; À CAPES, por ter me concedido bolsa de estudos;

Ao professor Ricardo Ismael, que, ao aprovar-me para o Curso de Especialização em Sociologia Política e Cultura, permitiu que esta história se iniciasse;

Aos professores Eduardo Raposo, Roberto DaMatta, Valter Sinder, Marcelo Burgos, Paulo Jorge e Gisele Araújo, por efetivamente me iniciarem nas Ciências Sociais;

Aos professores Ingrid Sarti, Sonia Giacomini e Angela Paiva, por suas considerações e sugestões que nortearam esta pesquisa;

A Ana Roxo e Mônica Gomes, pelo carinho, orientação e apoio constante na condução da secretaria do Mestrado e do Departamento;

À minha querida chefe Leila Mello, por dividir comigo um mesmo sonho e permitir que eu o realizasse;

Aos amigos, próximos ou distantes: que cada um a seu modo faz parte desta história;

Ao professor Paulo d’Avila, meu orientador e mestre, pelos risos, pelas lágrimas, pela tensão, pela tranqüilidade, pelas provocações intelectuais, pelos conselhos, enfim, por caminhar comigo neste empreendimento e me fazer ser melhor;

Aos meus pais, pelo exemplo diário de vida, amor, sabedoria, luta e determinação; Ao meu filho Thiago, pelo incentivo, pelos “ouvidos”, por ser, além de filho, um amigo;

Ao meu filho João Paulo, que ainda em meu ser compartilhou comigo aulas de mestrado, leituras, angústias e alegrias;

À vida, a Deus.

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Resumo

Silva, Vera Lúcia Marques da; d’Avila Filho, Paulo Mesquita (Orientador). Da espetacularização à agenda política: uma leitura política do Movimento LGBT. Rio de Janeiro, 2008. 126p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Sociologia e Política. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Este trabalho aborda a questão da capilaridade do sistema de representação política, particularmente dos partidos políticos, ao contexto no qual se observa uma explosão de demandas políticas provenientes das múltiplas novas subjetividades. Nesse sentido, apresenta-se o Movimento LGBT como estudo de caso, assinalando duas dimensões de sua luta. Uma dimensão marcada por um poder difuso, que atravessa a ordem cultural e se expressa em disputas discursivas que pretendem determinar “a” verdade e, portanto, os padrões de aceitabilidade, normalidades sociais. A Parada do Orgulho LGBT, evento que objetiva dar visibilidade ao Movimento por meio da festa, do espetáculo, é uma das estratégias políticas contidas nessa dimensão. Por outro lado, tem-se uma luta territorializada que requer, em nome da igualdade, o acesso a certos recursos – os direitos, já previamente fixados e direcionados a heterossexuais –, bem como à implementação de novos direitos pelo viés do reconhecimento da legitimidade de suas diferenças. Essas dimensões implicam-se mutuamente em uma dinâmica que pode ser percebida no âmbito partidário. As regras que regem os partidos políticos enquanto território institucionalizado empreendem uma agenda universalista e em conformidade com anseios sociais generalizados, não sinalizando capilaridade a demandas específicas, como as LGBT. Por outro lado, seus políticos apresentam interlocução com o Movimento, o que ressalta um cálculo político individual.

Palavras-chave

Política; partidos políticos; agenda política; Movimento LGBT

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Abstract

Silva, Vera Lúcia Marques da; d’Avila Filho, Paulo Mesquita (Advisor). From spectacularization to political agenda: a political approach of LGBT Movement. Rio de Janeiro, 2008. 126p. MSc. Dissertation – Departamento de Sociologia e Política, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This research deals with the issue of political representation system capillarity, particularly of political parties in a context in which it is possible to observe an explosion of political demands from multiple new subjectivities. In this sense, the GLBT Movement will be presented as a case study, in two dimensions of their struggle. On one hand, a dimension marked by a diffuse power, which crosses the cultural order, and is expressed in disputes discursive that want to determine “the” truth, and therefore the standards of acceptability, social normality. The LGBT Pride Parade, a festive event that aims to give visibility to the Movement, is an example of political strategy in this dimension. On the other hand, it has been a territorial struggle that requires in the name of equal access to certain features – the rights, already fixed and targeted to heterosexual – as well as the implementation of new rights by the recognition of the legitimacy of their differences. These dimensions are mutually involved in a dynamic that can be seen under political party. The rules, that govern political parties as institutionalized territory, undertake a universal agenda in accordance with widespread social aspirations, not signaling the capillarity to specific demands, such as GLBT. However, their politicians dialogue with the Movement, what emphasizes an individual political calculation.

Keywords

Politics; political parties; political agenda; LGBT Movement

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Sumário

1. A luta LGBT e os partidos políticos 11

2. A construção histórica da identidade 16

2.1. Do “indivíduo-em-relação-com-Deus” ao “indivíduo-no-mundo”. Da universitas à societas.

Dois caminhos de um mesmo percurso 16

2.2. Do sujeito cartesiano ao sujeito moderno: as implicações

do poder-saber na constituição do indivíduo 20

3. Identidade e poder 28

3.1. Um jogo em duas dimensões: de posições marcadas

ao poder difuso (e vice-versa) 28

3.2. Cada identidade, uma “verdade” 38

3.3. O Movimento LGBT e sua luta por redistribuição

e reconhecimento 46

3.3.1. A Parada do Orgulho LGBT:

visibilidade estratégica por reconhecimento afirmativo 51

4. A causa LGBT nos meandros do Poder Público 57

(10)

4.1. Os termos de um debate: crise ou adaptação partidária 57

4.2. Dos símbolos à atuação: congruências e discrepâncias 70

4.2.1. Uma análise dos partidos políticos como instituições 70

4.2.2. A atuação parlamentar 74

4.2.2.1. A união suprapartidária como estratégia de

enfrentamento do jogo político 80

4.2.2.2. Em contraponto: ações do Governo Federal e

legislação em vigor 89

5. Conclusão 98

6. Referências bibliográficas 110

7. Apêndices

A – Relação dos partidos políticos brasileiros

em novembro de 2007 123

B – Listagem de proposições relacionadas à causa LGBT

na Câmara Federal até novembro de 2007 124

(11)

“A cada dia que vivo me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.”

Carlos Drummond de Andrade

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A LUTA LGBT E OS PARTIDOS POLÍTICOS

Em um contexto marcado pela explosão de novas subjetividades, percepções da sexualidade e padrões de conjugalidade que vêm produzindo novas agendas políticas no espaço público, adensando o escopo do debate político no Brasil, este trabalho pretende pensar sobre a capilaridade dos partidos políticos brasileiros às demandas sociais contemporâneas, haja vista um recorrente pessimismo quanto à sua capacidade de interlocução com os novos atores sociais, em face de interesses tão plurais e distantes da clássica disputa capital/trabalho.

Nesse sentido, e pretendendo aprimorar o foco da questão que me norteia, elejo o Movimento LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros1 – e sua interface com os partidos políticos como estudo de caso. Para tal, apresento os partidos em dois níveis de análise: o institucional, no qual o estatuto, o programa e a estrutura organizativa serão perscrutados, e o da atuação parlamentar, privilegiando a Câmara de Deputados Federais.

A escolha do Movimento LGBT no Brasil justifica-se por ser um movimento de projeção mundial, que possui um ethos muito próprio, na medida em que “brinca” com os padrões sociais para denunciá-los. No entanto, difere-se

1

No Brasil, o primeiro grupo de ativistas homossexuais foi o Somos, em São Paulo, formado no final da década de 1970. Esse grupo congregava tanto homossexuais masculinos quanto femininos. Entretanto, alguns meses depois de sua formação, grande parte das mulheres que o compunham decidiu formar um novo grupo apenas de lésbicas. Foi com o movimento feminista que elas mais se identificaram, embora de início, tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo, este tenha relutado em recebê-las. Em 1980, a Ação Lésbico-Feminista é formada. Nesse quadro, na década de 1980, José Wilson Richetti, delegado de polícia, iniciou uma “limpeza” no centro da cidade de São Paulo, buscando “eliminar” prostitutas e homossexuais. A brutalidade e ilegalidade com que agia levaram o movimento homossexual a realizar uma passeata, que, juntamente com prostitutas, membros dos movimentos negro, estudantil e feminista, mobilizou quase mil pessoas em protesto. Com palavras de ordem do tipo “Agora já, queremos é fechar”, “ABX, libertem os travestis”, entre outras, o evento foi o precursor das Paradas do Orgulho Gay que se notabilizaram a partir de 1995, quando foi realizada a primeira do Brasil no Rio de Janeiro. Dez anos depois, ocorreu o primeiro Congresso da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros) em Curitiba. Durante o evento, ficou decidido que a partir de então, nos documentos oficiais do Movimento, não seria mais utilizada a categoria “homossexual” (por ser considerada patologizante), e sim “gay”, “lésbica”, “bissexual” e “transgênero”, este último englobando “transexual” e “travesti”. Embora o Movimento LGBT se constitua de forma descentralizada, essa decisão acabou por marcá-lo decisivamente, uma vez que a ABGLT congrega mais de 200 grupos. O Movimento como um todo é formado por setoriais de partidos políticos, ONGs – Organizações Não Governamentais –, grupos assistencialistas e alguns de iniciativa religiosa.

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do americano e do europeu, uma vez que no Brasil não há leis que criminalizam a homossexualidade. Em tais lugares, a luta prioritária foi no sentido da descriminalização, enquanto no Brasil se dá contra um preconceito que é difuso e escorregadio. Outro fator instigante no Movimento é englobar sob uma mesma bandeira – a do Arco-íris – diversas identidades que têm demandas específicas, mas que, como movimento, se expressam através de uma agenda política comum.

Minha primeira percepção que perpassa este trabalho é que o exercício do poder apresenta duas dimensões, apenas analiticamente distintas: uma centrada no território, ou seja, nas disputas de grupos excluídos de certos recursos sociais, e a outra difusa, que atravessa tudo e todos, contida nas representações culturais, nos discursos de verdade, que alimentam as disputas territoriais e por elas são alimentados.

Sob essa perspectiva, e procurando entender quais processos históricos conduziram à contemporânea explosão de novas subjetividades e identidades, apresento no primeiro capítulo a ascensão do individualismo moderno, perscrutando seu caráter histórico e mesmo político. Do individualismo dos primeiros cristãos ao individualismo dos tempos atuais, uma série de mudanças socioeconômicas, releituras teóricas e descentramentos do sujeito ocorreram, até a atual experiência de multiidentidades ou de identidades móveis, reflexivamente fundamentadas e organizadas em torno de uma biografia continuamente ressignificada.

No segundo capítulo, abordo a construção das identidades LGBT como sujeitos políticos, por meio de uma matriz teórica que tem o constructo

outsiders/estabelecidos2 de Norbert Elias e a idéia de microfísica do poder esboçada por Michel Foucault como categorias analíticas que iluminam as dimensões do poder propostas anteriormente. O prisma de Elias ilumina o escopo da luta LGBT, uma vez que outsiders e estabelecidos disputam um determinado território marcado pela exclusão dos outsiders em face da “boa sociedade”, representada pelos estabelecidos. Da mesma forma, o conflito LGBT dá-se pela legitimação de identidades que destoam de um determinado padrão que hegemoniza o homem, branco, heterossexual. A batalha por legitimação requer a valorização da diversidade, por um lado, e, por outro, o reconhecimento da igualdade diante de certos direitos já concedidos aos heterossexuais. Por esse

2

Conforme tradução de Vera Ribeiro (Elias, 2000).

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ângulo, tem-se uma disputa territorializada, em que alguns, neste caso os grupos LGBT, estão excluídos do acesso a certos bens, da ordem do direito, já compartilhados pelos heterossexuais, certamente ainda representantes, em um certo nível ou dimensão, da “boa sociedade” contemporânea. No entanto, as disputas dão-se também no âmbito dos discursos, da luta LGBT por determinar uma verdade, a sua própria verdade, manejando, portanto, elementos difusos de uma “microfísica do poder”.

Apresento, em seguida, o processo de legitimação de certas identidades dentro do próprio movimento. A constituição da sigla LGBT não se deu por acaso: ela é fruto do debate político e de disputas de e por poder, cuja matriz teórica esboçada pretende iluminar em sua complexidade. Dessa luta, uma agenda política comum foi constituída e pode ser pensada por meio do dilema reconhecimento e redistribuição proposto por Nancy Fraser. Uma análise da Parada do Orgulho LGBT ganha espaço nesse capítulo como uma importante estratégia política empreendida pelo Movimento para, por meio da conquista de visibilidade, interagir no campo das disputas, das representações culturais.

Realizado o percurso histórico que nos conduz ao sujeito contemporâneo e às disputas de poder que dão sustentação à formação das identidades LGBT como atores políticos, donos de seu próprio discurso e de uma agenda política específica, exponho no terceiro capítulo minha pesquisa de campo. Faço isso matizando-a com os contornos de uma suposta crise partidária, que parece indicar o distanciamento dos partidos políticos às novas demandas sociais, tão plurais e distantes das disputas capital/trabalho. Novamente, minha percepção caminha em um outro sentido: acredito que exista alguma capilaridade entre o Movimento LGBT e os partidos políticos, uma vez que estes ainda detêm o monopólio legislador e aquele requer em sua luta o reconhecimento de direitos a serem estabelecidos em leis.

Além da pesquisa bibliográfica, o trabalho de campo foi realizado em duas etapas. A primeira focou os partidos políticos como instituições. Sendo assim, por meio de consultas à Internet, procurei acessar e analisar os estatutos, programas e estruturas organizacionais de cada um dos 28 partidos brasileiros.3 Privilegiei o

site do Tribunal Federal Eleitoral, por considerá-lo detentor de dados oficiais.

Apenas quando a informação pesquisada nesse site necessitava de

3

Para conhecer a relação dos 28 partidos, vide Anexo A.

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complementação é que consultei os sites dos partidos. Ainda assim, algumas dificuldades foram enfrentadas e ficaram sem solução, como a não-disponibilização em nenhum dos dois endereços eletrônicos dos dados almejados e, no caso do partido PAN – Partido dos Aposentados da Nação –, a impossibilidade completa de acesso, já que este não possui um endereço na Internet.

A segunda etapa deste trabalho procurou mapear a atuação dos parlamentares da Câmara Federal, por meio de seu banco de dados virtual. Assim, foram consultados os discursos proferidos e as proposições apresentadas ao longo do tempo a respeito das demandas LGBT. No intuito de qualificar esses dados, algumas correlações foram feitas com a atuação nas duas frentes parlamentares constituídas, em torno de tais demandas, a saber, Frente Parlamentar Mista pela Livre Expressão Sexual e Frente Parlamentar Mista pela Cidadania LGBT. Algumas entrevistas e informações outras obtidas em sites LGBT subsidiam ainda a análise, finalizada, por contraponto, com uma explanação a respeito da atuação do Governo Federal diante das reivindicações LGBT e com a consolidação de um representativo quadro formado por diversas legislações já em vigor em Estados e Municípios brasileiros.

Ao elaborar o quarto capítulo, chego ao fim deste trabalho. O fim retoma a inspiração inicial com a qual dialogo de posse de minha própria análise. O impasse provocador e inspirador foi encontrado na percepção de Wanderley Guilherme dos Santos, que sugere uma certa atomicidade política da sociedade brasileira e um distanciamento entre os partidos políticos e os conflitos sociais. Essa percepção insere-se em um debate maior, em nível mundial, a respeito de cultura cívica e do papel dos partidos políticos no mundo contemporâneo. Se, por um lado, sob a perspectiva da luta de classes, parece haver o hiato, por outro, diante da explosão de demandas que acontece nas últimas décadas do século XX, outros autores, como, por exemplo, Vera da Silva Telles, percebem um florescimento político, com o aparecimento de novos atores sociais, entre eles as Organizações Não Governamentais (ONGs) e os “novos” movimentos sociais. Essa dinâmica é protagonizada por uma crescente consciência de que se tem direito a ter direitos, que parece trazer em si a possibilidade de gerar uma gramática social diferente da atual. Esse é o marco a partir do qual minha pesquisa se desenvolveu.

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Dos movimentos “de superfície” denunciados por Wanderley Guilherme à possibilidade de construção de uma nova gramática social por esses mesmos movimentos, defendida por Vera Telles e Evelina Dagnino, apresento a leitura de um diálogo possível e real entre partidos políticos e Movimento LGBT, cuja habilidade de organização estratégica e fluidez em face dos canais democráticos têm angariado, minimamente falando, um número considerável de políticos favoráveis e engajados com a sua causa, ao mesmo tempo que têm extraído políticas em seu benefício.

Minha expectativa é de que, dada a contemporaneidade desta abordagem na ciência política, novas pesquisas e discussões a respeito sejam suscitadas, aprofundando o debate em torno da democracia brasileira. Afinal, a realidade aqui retratada já se encontra modificada, uma vez que o conhecimento produzido acaba por alimentar a própria realidade, alterando-a.

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A construção histórica da identidade

Este capítulo aborda de forma sucinta o percurso histórico que molda o sujeito tal qual o conhecemos hoje, procurando sinalizar que a concepção de indivíduo é um constructo histórico e que, portanto, implica uma dimensão política. Nesse intuito, apresento a gênese do individualismo moderno sob a ótica de Louis Dumont (1985) a partir da religião cristã e do contexto social próprio da Idade Média. Em seguida, delineio os cinco grandes desenvolvimentos da teoria social e das ciências humanas, ocorridos na segunda metade do século XX, que, segundo Stuart Hall (2003), corroboram o descentramento final do sujeito cartesiano, o que delineia o perfil do sujeito contemporâneo. Ilumino sua análise abordando Michel Foucault quanto à relação da individualidade com a sujeição do corpo.

2.1.

Do “indivíduo-em-relação-com-Deus” ao “indivíduo-no-mundo”. Da universitas à societas. Dois caminhos de um mesmo percurso

Em sua leitura sobre a gênese do individualismo a partir da religião cristã, Louis Dumont (1985) reconhece, logo de início, que a concepção de individualismo de então se diferencia da atual, na medida em que o homem era entendido como um em-relação-com-Deus”, portanto, um “indivíduo-fora-do-mundo”. Tal indivíduo obedecia às regras deste mundo e as reconhecia, porém fazendo-o apenas em função de Deus, subordinado a ele, o que significava a relativização da ordem mundana por sua subordinação aos valores absolutos.

No século VIII, no entanto, há uma transformação dramática nessa concepção do “indivíduo-fora-do-mundo”, à medida que a Igreja decide reinar direta ou indiretamente sobre o mundo, arrogando-se um poder temporal supremo, a partir do rompimento com Bizâncio. Essa mudança insere decisivamente o cristão no mundo, alterando ao longo do tempo a concepção de individualismo prevalecente em um processo que se concluiu, segundo Dumont, apenas com o

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calvinismo, ainda que outros fatores, como as seitas, o Iluminismo e a Reforma Luterana, tenham dele participado.

A teocracia calvinista representou a ruptura com a dicotomia hierárquica de antagonismo entre Deus e o mundo, lançando o homem definitivamente neste, ainda que o mantendo completamente impotente diante da onipotência divina. Isso quer dizer que sua salvação era uma graça determinada pela insondável vontade de Deus. Cabia ao eleito, por conseguinte, trabalhar no mundo pela glorificação divina.

Alterando o foco – do cristianismo para a sociedade medieval –, Dumont percebe o enfraquecimento ao longo do tempo da concepção de universitas, ou seja, do corpo social como um todo, em que os homens são apenas partes do mesmo, em detrimento da societas, isto é, associação pura e simples. Nesse percurso, Guilherme de Occam, escolástico franciscano que viveu no século XIV, é apresentado pelo autor como o arauto do estado de espírito moderno. Occam expunha sistematicamente o nominalismo em face do realismo de Santo Tomás de Aquino. Enquanto Santo Tomás defendia que os seres particulares, como Pedro e Paulo, eram “substâncias primeiras”, ou seja, entidades auto-suficientes da primeira espécie, os “universais”, como o gênero, as classes de seres, etc., eram “substâncias segundas”, uma vez que existentes em si mesmos. Contudo, para Occam, era necessário separar as coisas dos sinais, das palavras, dos universais, uma vez que as coisas só podiam ser “simples”, “isoladas”, sendo seres únicos. De acordo com essa concepção, na pessoa de Pedro, por exemplo, só existia Pedro. As classes, as idéias não deviam ser coisificadas, como o fez Aquino.

Uma das conseqüências dessa percepção diz respeito a mudanças na forma de entendimento da lei natural. Esta não podia mais ser deduzida de uma suposta ordem ideal das coisas, afinal, nada existia além da lei real estabelecida por Deus ou pelo homem por delegação divina: a lei positiva, expressão em sua totalidade da vontade ou do poder do legislador. Da mesma forma, o direito deixou de ser visto como uma relação justa entre seres sociais para reconhecer o poder do indivíduo.

Ainda que sobre Occam não se possa dizer que influenciou diretamente o desenvolvimento do direito moderno, como assinala Dumont, ao abordar o nominalismo, o subjetivismo e o positivismo jurídicos, ele subsidiou o nascimento do indivíduo na filosofia e no direito. Afinal,

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(q)uando nada mais existe de ontologicamente real além do ser particular, quando a noção de “direito” se prende, não a uma ordem natural e social mas ao ser humano particular, esse ser humano particular torna-se um indivíduo no sentido moderno do termo (Dumont, 1985, p. 79).

A conseqüência imediata dessa visão foi a ênfase que passou a ser atribuída ao poder, equivalente à idéia de ordem e hierarquia modernas. Assim, ainda que Occam não tenha abordado a política propriamente dita, ele iluminou as noções de soberania do povo e de contrato político, segundo Dumont. Desse momento, a liberdade do indivíduo que Occam estendeu da vida mística à vida em sociedade suplantou a idéia de comunidade. Isso representou, ainda que implicitamente, a passagem da vida em comunidade para a vida em sociedade.

Voltando à Reforma, a sociedade global transformou-se em Estado individual, no qual o poder laico é supremo e santo, haja vista a teoria do direito divino dos reis, e a religião teria seu santuário no interior de cada indivíduo cristão. Em um Estado de homogeneidade religiosa como o alemão, essa concepção foi empreendida sem problemas. Mas em outros Estados em que havia a coexistência de confissões diversas, uma nova mudança prosseguiu. Diante das guerras religiosas que tinham espaço nesses Estados, os políticos inseridos nos mesmos passaram a recomendar a tolerância religiosa quando esta fosse benéfica para o Estado. A partir do direito de resistir à perseguição de um tirano – baseado na idéia de contrato entre governantes e governados, concepção proposta pelos teóricos jesuítas do direito natural ao desenvolverem a teoria moderna, na qual o Estado está alicerçado em um contrato social e político, em que Igreja e Estado se constituem em sociedades distintas e autônomas –, esse fenômeno levaria à afirmação do direito individual de liberdade de consciência. Assim sendo, a igualdade passou a ser um imperativo existencial, de forma que a autoridade só podia ser exercida por delegação ou representação. Dessa forma, a questão da associação e da subordinação esteve no cerne das três grandes filosofias do contrato que se desenvolveram entre os séculos XVII e XVIII, a saber, as escolas de Hobbes, Locke e Rousseau.

O triunfo do indivíduo é marcado para Dumont em um sentido quando da promulgação da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Nesta, o direito de liberdade de consciência foi essencial para a constituição dos demais direitos do homem.

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Todo esse processo de ascensão do individualismo moderno acabou por ser golpeado pela Revolução Francesa. Considerada marca de triunfo do individualismo, ela deixou, no entanto, um grande vácuo relacionado, muito pelo contrário, ao seu fracasso. É esse vazio herdado pelos românticos que determinou fortemente uma volta à universitas, visando à regeneração da sociedade. Das discussões teóricas desenvolvidas a partir da Revolução, tem-se que os pensadores franceses da primeira metade do século XIX foram levados a

considerar o homem como ser social, a insistir nos fatores sociais que constituem a matéria-prima da personalidade, e explicam, em última instância, que a sociedade não é redutível a uma construção artificial na base de indivíduos. (...) Nesta perspectiva, o Estado moderno corresponde apenas a uma parte da vida social, e não existe descontinuidade absoluta entre a política autoconsciente dos modernos e outros tipos de sociedade que o filósofo político é propenso a colocar abaixo do limiar da humanidade adulta (Dumont, 1985, p. 119-120).

Tem-se, portanto, um retorno a alguns elementos holistas (universitas), que foram anteriormente dominados, mas não extintos ao longo da ascensão do individualismo. Isso aproxima, em certa medida, as sociedades tradicionais e moderna. O surgimento do socialismo e da sociologia, datado dessa época, evidencia tal “encontro”. Para o autor, “(a) sociologia apresenta, no plano de uma disciplina especializada, a consciência do todo social que se encontrava no plano da consciência comum nas sociedades não individualistas” (Dumont, 1985, p. 120).

Já no socialismo tem-se a redescoberta do todo social ao mesmo tempo em que há a conservação de certos aspectos da Revolução. Não ocorreu um retorno completo ao holismo, uma vez que a hierarquia foi negada; porém, por outro lado, o individualismo fragmentou-se, já que foi mantido em alguns aspectos e negado em outros.

Dumont soube delinear com clareza as transformações pelas quais o “indivíduo-em-relação-com-Deus” do início da era cristã foi paulatinamente se transformando no “indivíduo-no-mundo”, totalmente submetido à vontade de Deus. Da universitas à societas, tem-se a conquista do direito de liberdade de consciência, que acaba por inspirar outros direitos estabelecidos na Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão. A igualdade torna-se um imperativo

existencial, de forma a inviabilizar qualquer autoridade exercida de outra forma que não por delegação. Está-se, portanto, diante de um Estado constituído a partir

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de um contrato entre governante e governados. Ao fim de sua narrativa, Dumont ressalta o retorno da societas a alguns aspectos da universitas, mediante o fracasso da Revolução Francesa e o surgimento do socialismo e da sociologia.

2.2.

Do sujeito cartesiano ao sujeito moderno: as implicações do poder-saber na constituição do indivíduo

Até o século XVII, Stuart Hall (2003) entende que ainda era possível pensar os processos da vida moderna como centrados no “sujeito da razão”. Entretanto, com a complexificação das sociedades, a vida foi se tornando mais coletiva e social. As estruturas do Estado-nação, das grandes massas da democracia moderna e as formações de classe do capitalismo moderno impuseram às teorias e leis clássicas reformulações. Surge, então, uma concepção mais social do indivíduo, que passa a ser visto, localizado e “definido” no interior das grandes estruturas modernas. Hall nomeia-o como o sujeito sociológico, formado e modificado continuamente pelas interações sociais. Adquire-se a consciência de que o núcleo interior do sujeito não era tão autônomo e auto-suficiente como se pensava, mas se constituía na relação com outros. Dessa forma, a identidade preenchia o espaço entre o mundo privado e o público. Era, portanto, a identidade que “costurava” o sujeito à estrutura social (Hall, 2003, p. 12). As leituras darwinianas – que tornaram o sujeito um ser biológico – e o surgimento das ciências sociais contribuíram para a articulação de um conjunto de fundamentos que deram base ao sujeito sociológico. A teoria da socialização, por exemplo, defendeu a concepção de haver a internalização do exterior pelo indivíduo e a externalização de seu interior.

Posteriormente, avanços na teoria social e nas ciências humanas ocorridos no pensamento na segunda metade do século XX, ou que sobre ele tiveram seu principal impacto, provocaram para os defensores da fragmentação da identidade moderna o descentramento final do sujeito cartesiano. Foram cinco os descentramentos apontados por Hall:

1. dá-se pela releitura, na década de 1960, do pensamento marxista, que atrela a ação humana às condições históricas dadas;

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2. ocorre graças à teoria freudiana quanto à formulação do inconsciente. A análise que pensadores como Lacan fazem dessa teoria propõe a identidade como uma construção realizada ao longo da vida, tendo por base processos psíquicos e simbólicos inconscientes;

3. diz respeito à teoria de Saussure, que afirma a língua como um sistema social, anterior a nós e através do qual nos expressamos, sem, portanto, qualquer autoria sobre as afirmações ou os significados do que expressamos. Soma-se a isso o fato de que os significados das palavras também variam na medida em que se relacionam por similaridade e/ou diferença com outras palavras. Hall cita a “noite”: sabemos o que é a “noite” porque sabemos o que é o “dia”. O “eu” também é conhecido em contraposição ao “outro”. O significado, portanto, é “inerentemente instável”: apesar de buscar o fechamento (a identidade), é freqüentemente questionado pela diferença;

4. dá-se a partir da teoria do poder disciplinar de Foucault, que afirma a construção do corpo, do indivíduo, para controlá-lo – normatizando, disciplinando e corrigindo. Trata-se de um corpo dócil. Os métodos punitivos são considerados sob o prisma da tática política; e

5. por fim, o feminismo, não só como movimento, mas como crítica teórica, na medida em que traz para o debate categorias como o privado e o público; politiza a subjetividade, questionando a formação das identidades sexuais e de gênero.1 Surgiu nos anos 1960 juntamente com outros “novos movimentos sociais”, por exemplo, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas e as lutas pelos direitos civis. A especificidade de tais movimentos diz respeito ao apelo à identidade social de seus articuladores – a mulher, os pacifistas, os negros, dentre outros, o que posteriormente foi chamado de política de identidade, ou seja, cada movimento defende uma identidade específica.

A abordagem de Michel Foucault (1987), como sinalizado, aponta para a constituição do indivíduo ligada ao surgimento da institucionalização das normas e disciplinas, com foco no corpo, empreendida por sistemas especializados. O

1

Embora a categoria gênero só tenha sido criada como instrumento metodológico na década de 1980, conforme Rose Marie Muraro (2001), por intelectuais mulheres para dar conta da entrada das mulheres no domínio público. De início, seu uso está associado a apontar a discriminação que as mesmas sofriam em todos os âmbitos sociais. Muraro conclui que a categoria soma-se e complementa a categoria classe social para apontar a existência de diversas opressões ao longo da história.

(23)

autor afirma que a disciplina inverte o que denominou “eixo político da individualização” (Foucault, 1987, p. 160). Nas sociedades de até então, a individualização estava ligada ao poder. Ou seja, quanto maior o poder ou privilégio de um homem, mais individualizado ele se apresentava. E isso se fazia por meio de rituais – coroamento do rei, por exemplo –, discursos sobre as proezas realizadas, construção de monumentos pós-morte, entre outros. Por outro lado, em um regime disciplinar, a individualização dá-se por meio de fiscalizações e de comparações entre “norma” e “desvio”. Em outras palavras, o

momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo (Foucault, 1987, p. 161).

Hall chama a atenção para o fato de que esse poder é produto das novas instituições coletivas e de grande escala da contemporaneidade. Suas técnicas individualizam o sujeito e seu corpo proporcionalmente à sua organização e ao aspecto coletivo, de forma que quanto mais organizada e coletiva for, maior será o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito.

Voltando a Foucault, este também ressalta a constituição do corpo relacionada às mudanças econômicas provocadas pelo capitalismo, que provocou a socialização do corpo para transformá-lo em força de trabalho. Dessa forma, foi necessária a criação de um sistema de sujeição que o tornasse produtivo, ao mesmo tempo que submisso. Têm-se, entre outras ações, a rotinização do processo produtivo com sua cronometrização, a construção de diversos conceitos e campos de análise – subjetividade, consciência, personalidade, psique – para falar da alma, porém, visando ao controle do corpo: “Uma ‘alma’ o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo” (Foucault, 1987, p. 29).

E a própria criação do dispositivo da sexualidade. O termo “dispositivo” tem para Foucault três dimensões: uma diz respeito ao conjunto de discursos, instituições, leis, enunciados científicos, proposições filosóficas, entre outros, ou seja, o dispositivo é a rede que abarca esses elementos, que podem ser ou não

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discursivos. A segunda dimensão é a da natureza dessas relações, na forma de jogo, em que mudanças de posições, de funções, podem ocorrer. A terceira trata da função estratégica dominante relacionada a um determinado momento histórico, em que um dispositivo tem por função principal responder a uma urgência.

O dispositivo é, portanto, para o autor, um conjunto de estratégias de relações de força que sustenta tipos de saber e é por eles, da mesma forma, sustentado.

Para Foucault, a sexualidade define-se da seguinte forma:

é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder (Foucault, 1985, p. 100).

Logo, o dispositivo da sexualidade tem por finalidade “não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais global” (Foucault, 1985, p. 101), constituindo-se na verdade do sexo e de seus prazeres. Uma verdade que, por se esconder do indivíduo, precisa ser perscrutada através das confissões que, de prática religiosa, acabam por se tornar prática científica.

Dessa forma, a partir do século XVIII é possível delinear quatro grandes grupos estratégicos que desenvolvem dispositivos de saber e poder a respeito do sexo. São eles:

a) histerização do corpo da mulher: processo tríplice, pelo qual o corpo da mulher tornou-se um “corpo integralmente saturado de sexualidade”, sob o efeito de patologia intrínseca a ele e em comunicação com a sociedade, cuja fecundidade foi regulada com o espaço familiar, no qual deve ser elemento substancial e funcional, e com a vida das crianças, que deve produzir e garantir. Assim, “a Mãe, com sua imagem em negativo que é a ‘mulher nervosa’, constitui a forma mais visível desta histerização” (Foucault, 1985, p. 99);

b) pedagogização do sexo da criança: a criança torna-se um ser sexual liminar – ao mesmo tempo aquém e já no sexo, sobre uma linha de demarcação perigosa. Caberá aos educadores, familiares, médicos e, posteriormente, psicólogos zelar;

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c) socialização das condutas de procriação: controle/regulamentação da sexualidade;

d) psiquiatrização do prazer perverso: a partir do isolamento do instinto sexual como instinto biológico e psíquico autônomo, realizou-se o mapeamento clínico de todas as formas de anomalias que poderiam abatê-lo, definindo padrões de normalidade e patologia e uma respectiva tecnologia corretiva para as anomalias. Esses novos discursos a respeito das sexualidades periféricas originam uma nova especificação dos indivíduos: enquanto o praticante de sodomia era nos antigos direitos civil ou canônico um sujeito jurídico, no século XIX ele se transforma em detentor de uma história, uma anatomia e, por vezes, uma fisiologia misteriosas. Logo, indivíduo e sexualidade tornam-se indissociáveis. Na prática, isso quer dizer que, enquanto o sodomita era considerado um reincidente, o homossexual se converteu em uma espécie.

Em síntese, Foucault pontua que a “colocação do sexo em discurso” (Foucault, 1985, p. 24) remonta à tradição ascética e monástica. Afinal, o cristianismo forjou o sexo como o núcleo no qual a verdade do sujeito humano está inserida. Por meio das confissões, dos exames de consciência, a sexualidade foi colocada no centro da existência e da salvação, para a qual o domínio de seus movimentos obscuros se faz necessário. No entanto, a partir do século XVII, a prática da confissão generaliza-se e massifica-se, implicando uma acelerada “fermentação discursiva” (Foucault, 1985, p. 23) a respeito do sexo,2 no próprio âmbito do exercício de poder, pelo incitamento institucional para se falar do sexo, um falar sempre mais e com mais detalhes. Esse incitamento objetiva a análise, a categorização, a especificação do sexo por meio de pesquisas científicas que se sobrepõem aos discursos morais relacionados à Igreja, a fim de o inserir, de forma regulada, em sistemas de utilidade para o bem de todos. Ainda que o casal heterossexual, cuja sexualidade é chamada por Foucault de regulada, tenha sido

2

É nesse período, entre os séculos XVIII e XIX, conforme citação de Rohden (2004) ao trabalho de Laqueur (1992), que surge a noção de dois sexos biológicos distintos. Até então, segundo tal autor, o modelo sexual predominante, herdado dos gregos, entendia a existência de apenas um sexo biológico e pelo menos dois gêneros. Homem e mulher eram biologicamente iguais, sendo na mulher internos o pênis e os testículos. Os gêneros eram, então, incutidos social e culturalmente. Ainda segundo Laqueur, esse modelo vigorou até o Renascimento, quando uma série de fatores vai propiciar a construção do modelo de dois sexos. Um desses fatores, por exemplo, de cunho epistemológico, dá-se a partir da observação dos “atos” determinantes da biologia. Para mais informações a respeito da constituição dos saberes sobre o sexo e da elaboração da noção de diferença sexual, ver ainda Fabíola Rohden (2005).

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até certo ponto preservado nesse processo pela aliança legítima (a matrimonial), tendo direito a uma maior discrição, a medicina penetrou em seus prazeres, “inventando” patologias orgânicas, funcionais e mesmo mentais a partir das práticas sexuais “incompletas”, e relacionando-os ao “desenvolvimento” e às “perturbações” do instinto; enfim, gerindo-os.

Em suma, Hall evidencia as conseqüências que o desenvolvimento das teorias sociais e das ciências naturais desencadeou sobre a concepção de indivíduo contemporâneo. A percepção agora é de um indivíduo que se constitui ao longo da vida a partir de processos inconscientes e de contraposição aos “outros”, cujas ações estão atreladas às condições históricas. Um corpo dócil, no entanto, politizado. Em função das análises de Foucault, essa afirmação pôde ser feita e Hall reconheceu nelas os dois últimos descentramentos do sujeito cartesiano. Foucault apresenta o processo de individualização via sujeição do corpo ao poder disciplinar e particularmente ao dispositivo da sexualidade. Das confissões religiosas às práticas científicas, tem-se uma explosão de discursos sobre o sexo que guarda um segredo fugidio ao próprio sujeito e que, por isso, precisa ser investigado. Um segredo que contém o cerne do indivíduo. Se até o século XVII existia apenas a carne, no século XVIII há a constituição de uma sexualidade, e a partir do século XIX, um sexo, em um corpo dócil, disciplinado. No entanto, os mesmos dispositivos de verdade que se impõem aos indivíduos, especialmente à mulher histerizada e aos homossexuais pervertidos, fornece os elementos com os quais esses indivíduos poderão empreender um contradiscurso em sua defesa. Isso culmina, por exemplo, com os movimentos feminista e LGBT. Finalizo este percurso de apresentação da constituição do sujeito como um constructo histórico perpassado por estratégias de poder, traçando em linhas bem gerais o cenário atual.

Além da medicina, como apresentado anteriormente, outros sistemas especializados substituíram, na contemporaneidade, o conhecimento proporcionado pela tradição, transmitido de geração em geração, e passaram a difundir conhecimento técnico independentemente de quem faria uso do mesmo. Permeando todas as esferas da vida social, seja em relação aos remédios que se tomam, à casa que se manda construir, ao carro que se dirige, ou ao terapeuta que se procura na busca do autoconhecimento, dentre muitos outros, esses sistemas

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são marcados pela reflexividade,3 conforme conceituada por Anthony Giddens (2002), que mina as certezas do conhecimento. A ciência passou a se basear no princípio metodológico da dúvida, ciente de que novos conhecimentos poderão surgir, conhecimentos esses que alterarão ou mesmo anularão uma determinada doutrina científica já aceita. Em termos existenciais, esse contexto traz em si um ceticismo generalizado associado à razão providencial4 e a consciência de que o bem e o mal estão contidos na ciência e na tecnologia; portanto, tanto podem trazer risco e perigo para a humanidade quanto benefícios.

Vale ressaltar que a dúvida institucionalizada torna o papel do especialista, que o é apenas na sua área de atuação, fundamental no processo de reflexividade, na medida em que é referência para as práticas sociais, e alimenta a ideologia da inovação e da marcha adiante, como afirma Zygmunt Bauman (1998).

Tem-se, portanto, um quadro perturbador: a vida é enquadrada por sistemas especializados que, ao mesmo tempo, não contêm a verdade única. Em meio a um caos organizado, os parâmetros que constituíram o sujeito até então também se alteraram e deram a ele a experiência de multiidentidades ou identidades móveis. A identidade contemporânea passa a ser: “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (Hall, 2003, p. 13).

Soma-se essa explosão de identidades à excessiva reflexividade institucional, às incertezas de uma vida em constante mudança, a vetores de poder, e surge um sujeito como projeto de sua própria reflexividade, dono de uma biografia que é ressignificada continuamente.

Em suma, as transformações que marcam a contemporaneidade conduzem à fragmentação das identidades de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado haviam fornecido aos indivíduos claras localizações sociais. Tais mudanças colocaram em dúvida “a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados” (Hall, 2003, p. 9). Essa dupla descentração dos sujeitos, tanto do seu lugar no mundo social e cultural como de si mesmos, gerou uma “crise de identidade”, que aponta para a possibilidade de novas articulações – novas identidades, por vezes até contraditórias. Nesse percurso,

3

Giddens conceitua a reflexividade institucional da seguinte forma: “a reflexividade da modernidade, que envolve a incorporação rotineira de conhecimento ou informação novos em situações de ação que são assim reconstituídas ou reorganizadas” (Giddens, 2002, p. 223).

4

Crença de que, quanto maior o conhecimento a respeito da natureza das coisas, mais segura será a existência humana.

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Beck (1997) assinala o processo de individualização, no qual a antiga “biografia padronizada” do sujeito iluminista tornou-se uma biografia ressignificada, ou, nas palavras de Giddens, uma “biografia reflexiva”, que lança o ser humano em um estado de incerteza permanente não limitado à própria sorte, mas que se estende à futura configuração do mundo e aos critérios de erro e acerto exigidos para se viver nele.

Está dada, portanto, a grande virada histórica: do discurso único da verdade às múltiplas verdades das ciências e dos corpos. É nesse cenário que o Movimento LGBT,5 objeto de minha pesquisa, se insere, tendo ele mesmo se organizado em torno de múltiplas identidades: os gays, as lésbicas, os bissexuais e os transgêneros, esta última aglutinando outras duas: os travestis e os transexuais. Para se delimitarem tais identidades, no entanto, um caminho precisou ser percorrido, não o da mera criação de novos nomes, mas o da formação de conceitos e simbolismos inerentes que estabelecerão quem tem o poder hegemônico, cujas crenças sociais o reiterarão. Esse é o tema do próximo capítulo.

5

Segundo Castells (2001), a origem do movimento de lésbicas está associado ao movimento feminista. Em uma visão simplista, o autor crê que a identificação do homem como “inimigo de classe” permite que o lesbianismo latente em algumas mulheres venha à tona. Quanto ao movimento gay, ele identifica três fatores: o clima de rebelião provocado pelos movimentos questionadores da década de 1960; o impacto do feminismo sobre o patriarcalismo, uma vez que ao questionar a categoria mulher, questiona por extensão a categoria homem; e a repressão violenta contra a homossexualidade. Ele assinala ainda três outros fatores que contribuíram para o surgimento de ambos os movimentos – lésbico e gay: um menor controle sobre o indivíduo no mundo do trabalho graças a uma economia informacional que fez surgir novos tipos de empregos e uma rede de negócios mais flexível; a popularidade da liberação sexual tão propalada pelos movimentos da década de 1960; e a própria separação física e psicológica entre homens e mulheres. Castells reconhece que essa afirmação é controversa e esclarece que, embora homossexualidade e heterossexualidade possuam uma existência e um padrão de desenvolvimento independentes, a profunda cisão provocada pelo discurso feminista e a incapacidade da maioria dos homens de lidar com a perda de privilégios acabaram por gerar redes de amizade e apoio entre pessoas do mesmo sexo, em que foi possível a vivência de diversas formas de expressão do desejo.

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Identidade e poder

Neste capítulo, abordarei a construção política das identidades LGBT, considerando-a perpassada por duas dimensões do exercício do poder: uma territorial, que nesse caso envolve a disputa institucional por direitos, e a outra, completamente difusa, em que as disputas se dão no campo das representações culturais, dos discursos de “verdade”. Essa distinção é puramente analítica. Na prática, tais dimensões implicam-se mutuamente em um jogo completamente fluido. Para o entendimento dessas dimensões, utilizo o constructo

outsiders/estabelecidos de Norbert Elias (2000) – iluminado pela abordagem de

Mary Douglas (1976), Erving Goffman (1988) e Michel Foucault (1985) – e a idéia de microfísica do poder preconizada por Foucault (1979) como chaves teóricas.

Sob tal perspectiva, apresentarei as disputas de poder constitutivas das identidades LGBT como sujeitos políticos, detentores da verdade acerca de sua própria identidade e de reivindicações específicas, ainda que obtenham consenso em torno de uma “grande” agenda política. Em seguida, balizada por Nancy Fraser (2001), enfocarei a luta LGBT e suas demandas por reconhecimento e redistribuição. No escopo dessa batalha, perpassada continuamente pelas dimensões de poder anteriormente propostas, detalharei a Parada do Orgulho LGBT como uma das estratégias políticas utilizadas pelo Movimento para angariar visibilidade e reconhecimento. Claros os objetivos e o percurso deste capítulo, exponho as chaves teóricas que alicerçam minha análise.

3.1.

Um jogo em duas dimensões: de posições marcadas ao poder difuso (e vice-versa)

Por meio de uma etnografia realizada na cidade industrial de Winston Parva (nome fictício), Elias objetivou delinear as propriedades gerais que compõem uma

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relação de poder. Primeiramente, entende que estabelecidos e outsiders são os dois vértices de uma mesma relação. Assim, denomina aqueles que têm o poder usando o termo inglês established e os que estão à margem desse poder com o termo oposto, ou seja, outsiders. Logo de início, chama a atenção o fato de os primeiros serem designados por um termo no singular e os segundos, no plural. Isso não acontece sem motivo. Elias entende established como um grupo homogêneo, marcado por laços sociais intensos e que detém prestígio e poder baseado no fato de ser um modelo moral para a sociedade. Combina três ingredientes importantes em sua identidade social: tradição, autoridade e influência, o que o faz ser reconhecido como uma “boa sociedade” (Elias, 2000, p. 7). É dessa forma que esse grupo se autopercebe também.

Porém, uma “boa sociedade” só se constitui em comparação com uma “outra sociedade”, entendida como má. Essa “sociedade”, a dos outsiders, é formada por aqueles que estão fora da “boa sociedade”. Os outsiders de Wiston Parva não são um grupo, pois são difusos e não há homogeneidade entre si, nem mesmo laços sociais muito intensos. Daí a utilização do termo no plural.

Entre tais “grupos” há um equilíbrio de poder instável. Quanto mais segura for a posição dos estabelecidos na sociedade, maior será a eficácia da estigmatização imposta aos outsiders. Esse estigma acaba por entranhar-se na auto-estima dos outsiders, de forma a enfraquecê-los. No entanto, quando diminuem as disparidades de poder, é possível que os “grupos” outsiders até retaliem os estabelecidos, apelando para uma contra-estigmatização.

Vale observar que a posição idealizada dos estabelecidos é a de minoria dos que são os melhores, enquanto a dos outsiders tende a se caracterizar como a minoria dos que são os piores. Para tal, crenças de sujeira, poluição e perigo entram em “jogo”, sedimentando/reiterando tais posições.

Mary Douglas, em seu livro Pureza e perigo, muito esclarece a respeito dessas crenças. Entre outras questões, a autora apresenta uma leitura sobre a sujeira como sistema de ordenação simbólica da sociedade. Logo de início, deixa claro que a sujeira relaciona-se diretamente com a desordem. Evita-se a sujeira não por algum tipo de medo, mas porque ela “ofende” a ordem. Logo, eliminá-la objetiva reorganizar o ambiente. Os discursos de perigos que pairam em torno da sujeira e que ameaçam os transgressores visam a manter a ordem ideal da sociedade e se relacionam também com a moral.

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Admitindo-se que a desordem estraga o padrão, ela também fornece os materiais do padrão. A ordem implica restrição; de todos os materiais possíveis, uma limitada seleção foi feita e de todas as possíveis relações foi usado um conjunto limitado. Assim, a desordem por implicação é ilimitada, nenhum padrão é realizado nela, mas é indefinido seu potencial para padronização. Daí por que, embora procuremos criar ordem, nós simplesmente não condenamos a desordem. Reconhecemos que ela é nociva para os modelos existentes, como também que tem potencialidade. Simboliza tanto perigo quanto poder (Douglas, 1966, p. 117).

Tais padrões precisam ser relativizados. Becker (1977) salienta que não existe “o” desvio, porém acusações de desvio. Com isso, o que é desviante em uma cultura pode ser o padrão em outra.

Outro ponto que precisa ser ressaltado é que a desordem estraga o padrão, porém também fornece os materiais do mesmo. Dessa forma, viabilizaram-se, por exemplo, nos atuais debates a respeito de gênero, propostas de se pensar a masculinidade não mais como uma unicidade, mas várias masculinidades (Almeida, 2001).

Sendo assim, Douglas afirma que nenhuma cultura pode ignorar as anomalias que produz sob pena de perder sua confiança, uma vez que o poder que representa um perigo para aqueles que se descuidarem está relacionado com a estrutura de idéias, de forma que através dele a estrutura se protege. Talvez por isso as culturas apresentem uma série de normas para lidar com as anomalias e ambigüidades. Tais regras acabam por reiterar as normas-padrão, reforçando a conformidade. Afinal, “(a)tribuir perigo é uma maneira de se colocar um assunto acima de discussão” (Douglas, 1966, p. 56).

José Carlos Rodrigues (2006) reforça esse pensamento ao dizer que a sociedade tem necessidade dos fenômenos que repele, pois é através deles que ela se expressa positivamente, se faz significar a si própria e cujos conteúdos adquirem sentido pela oposição.

No âmbito da moral, pode-se perceber a importância das regras de poluição, por exemplo. Muito provavelmente, quando não há sanções práticas contra o ultraje moral, crenças de poluição suplementam essa falta, proporcionando uma espécie de punição, ainda que impessoal, que visa a conservar o sistema moral vigente.

Nas palavras de Mary Douglas, “se uma pessoa não tem lugar num sistema social, sendo, por conseguinte, marginal, toda precaução contra o perigo deve

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partir dos outros. Ela não pode evitar sua situação anormal” (Douglas, 1966, p. 121).

A atribuição de um estigma social a um grupo outsider tem o poder pernicioso, entre outros efeitos, de afetar sua auto-imagem, enfraquecendo o grupo, ou seja, o próprio grupo acaba por auto-reforçar o estigma. Esse é um viés de análise. Um outro possível e que se contrapõe à idéia de enfraquecimento é o de que é provável que alguns grupos se prevaleçam da condição de marginais para se beneficiar de alguma forma, seja da solidariedade individual, seja de políticas públicas.

O contato com grupos outsiders pode causar constrangimento aos estabelecidos. Para Goffman (1988), a raiz desse sentimento

encontra-se (n)o medo do contato com um grupo que, aos olhos do indivíduo e de seu semelhante, é anômico. Seus membros infringem normas que ele está obrigado a observar e de cuja observância dependem seu auto-respeito e o respeito dos semelhantes. Disso também depende a participação do indivíduo na graça e virtude especiais, no carisma de seu grupo (Goffman, 1988, p. 49).

Isso se explica pelas crenças que envolvem os outsiders e os mantêm isolados.

Voltando o olhar para o objeto de estudo desta pesquisa, sumarizo: mesmo se a prática ocorrida nos campos de concentração hitlerista de marcar os gays com um triângulo rosa não mais se aplica no mundo, da mesma forma que a homossexualidade não é considerada, pelo menos no Brasil, um crime na legislação em vigor passível de punição judicial, as crenças de poluição, o medo de ser confundido com um deles ainda reiteram uma certa ordem, mantendo indivíduos estabelecidos distantes dos homossexuais outsiders. Ou, por outro lado, conservando estes últimos distantes de diversas vias de competição. Afinal, como bem pontua Dagnino (2000), relações de poder desiguais implicam acessos diferenciados aos diversos recursos disponíveis e, às vezes, escassos de bens materiais, culturais e até mesmo políticos.

Na interseção entre poder e crenças, Goffman chama a atenção para o fato de que é possível que o estigmatizado tenha uma falsa impressão de ser bem aceito pela sociedade. Entretanto, isso, para o autor, vincula-se apenas à não-pressão dos estigmatizados sobre os “normais”. De que forma?

(33)

Espera-se que os estigmatizados ajam cavalheirescamente e não force(m) as circunstâncias; eles não devem testar os limites da aceitação que lhes é mostrada, nem fazê-la de base para exigências ainda maiores. A tolerância, é claro, é quase sempre parte de uma barganha (Goffman, 1988, p. 132).

Assim, cabe a idéia do “bom ajustamento” (Goffman, 1988, p. 132), que requer que o estigmatizado se perceba como igual aos normais, mas, ao mesmo tempo, se ausente de situações em que seja difícil para os normais encararem o estigma com naturalidade.

Reiterando esta afirmação, no livro O homossexual visto por entendidos, de Carmen Dora Guimarães (2004), tem-se o seguinte relato de um dos entrevistados:

Houve uma época em que era muito engraçado fazer “frescura”, “viadagem” em bando – porque veado só anda em cacho, em alcatéia, entendeu, minha querida? Hoje em dia não tenho mais paciência para isso, não. Você é homossexual, isto é um problema seu – uma opção sua, uma escolha sua. Que você não deve impingir aos outros, entendeu? Eu, hoje em dia, me dou com gente absolutamente normal (Guimarães, 2004, p. 58).

Para os “normais”, esse “bom ajustamento” dos estigmatizados protege-os:

a) de ter de enfrentar a dor destes;

b) da percepção de quão limitada é sua tolerância; e

c) de uma possível contaminação pelo contato com o estigmatizado.

Dessa forma, ficam preservadas as crenças dos “normais” referentes à identidade.

Por outro lado, pensando a representação social da identidade homossexual, Guimarães nota que a aproximação do estigmatizado com o normal permite que o primeiro tenha sua identidade considerada positiva e normal, ainda que sua prática social não se altere.

Um outro lado sombrio do estigma, percebido por Goffman, diz respeito a uma comum insensibilidade do estigmatizado a outros tipos de estigma, apesar de sofrer a dor e a injustiça de também carregar um estigma. Isso se dá, segundo o autor, porque são os papéis sociais que estão em interação, e não os indivíduos concretos. Afinal,

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o estigma envolve não tanto um conjunto de indivíduos concretos que podem ser divididos em duas pilhas, a de estigmatizados e a de normais, quanto um processo social de dois papéis no qual cada indivíduo participa de ambos, pelo menos em algumas conexões e em algumas fases da vida. O normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro (Goffman, 1988, p. 148-149).

Em um relato do livro O homossexual visto por entendidos, por exemplo, percebe-se tal fato claramente na tentativa do entrevistado em distinguir o homossexual da “bicha”:

“O homossexual se caracteriza pelo requinte. Aquela coisa de gostar de cozinhas, de cozinhar muito bem, gostar de música, de poder discutir arte, de entender, de ter uma certa curiosidade das coisas.”

Então perguntei:

“E a bicha, o que você acha?” A resposta:

“Uma bicha não pode ter requinte. Porque ela, pela própria atitude, já é o anti-requinte.”

Em seguida coloquei a seguinte questão: “Mas a bicha é homossexual também, não é?” Com voz guaguejante, respondeu:

“É, mas aí... porque... ao meu ver... tá entendendo...? Sei lá, ah... Esse tipo de gente eu atualmente encaro como patológica. Inclusive são pessoas doentes, doentes de cuca. Porque uma pessoa que chega ao desajuste que chega a uma tal necessidade de agressão de fazer isso, de só fazer isso, é realmente porque tem uma coisa que não tá certa” (Guimarães, 2004, p. 98).

Sérgio Carrara (2005) reconhece os afeminados como o subgrupo mais vulnerável dentro do grupo homossexual, ainda que uma outra faceta em tais relações também se apresente: a da desestabilização do paradigma do sexo invertido.1 Esse pensamento está em consonância com Peter Fry (1982) quando de sua percepção de emergência de um sistema de relações simétricas e, portanto, igualitárias entre parceiros homossexuais da classe média nas grandes cidades brasileiras.

Para entender esse sistema, Fry propõe duas matrizes de classificação da sexualidade masculina, a partir da análise do estigma do passivo,2 conforme apresentado por Michel Misse (1979): o sistema hierárquico e o sistema simétrico ou igualitário. De acordo com o sistema hierárquico vigente, segundo o autor,

1

Propõe a homossexualidade masculina como a expressão de uma suposta alma feminina aprisionada em um corpo de homem.

2

O estigma do passivo está associado ao “papel” de ativo ou passivo que um homossexual assume na prática sexual, sendo o papel de passivo relacionado à condição feminina e, por isto, estigmatizado.

(35)

principalmente entre as camadas mais baixas da população e nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, os homens dividem-se em “machos” e “bichas”. Os “machos” são aqueles que penetram, dominam a “bicha” – a dominada, portanto. Essa matriz expõe o poder hierarquizante entre não iguais em uma relação sexual: um ativo, dominador, que permanece com seu status de homem, e um “bicha”, inferior, feminino, passivo. Quem penetra é, de certa forma, vencedor de quem é penetrado, como bem percebeu Fry. Esses papéis parecem ser claramente definidos, uma vez que Fry conta ainda que também os “bichas” desejavam relações com “machos”, ridicularizando as relações entre duas “bichas”, utilizando termos do tipo “quebra-louça” ou “lesbianismo”. Fica evidente, portanto, que a lógica heterossexual também oferecia um padrão para as relações homossexuais.

Dessa forma, Fry nota que embora a “bicha” seja, sob o prisma heterossexual/homossexual, um homem desviante, no sistema hierárquico, o desvio está contido nas relações sexuais entre pessoas do mesmo gênero. Isto se dá uma vez que a regra fundamental baseia-se na hierarquia entre os diferentes papéis de gênero.3

Fry relaciona o sistema hierárquico aos setores da sociedade brasileira, em que a organização social se dá através da hierarquia e que o papel principal é o do “homem”, sendo considerado como socialmente superior à mulher.

Já o sistema simétrico ou igualitário ganha espaço nas camadas médias urbanas das grandes metrópoles brasileiras, particularmente Rio de Janeiro e São Paulo, a partir da década de 1960, quando nasce o “entendido” como uma nova identidade sexual.

A concepção dessa nova identidade está relacionada ao fato de que, conforme relato de Marshall, referendado por Fry, nas décadas de 1940 a 1960, tanto psiquiatras quanto psicólogos minimizaram gradualmente a distinção entre “atividade” e “passividade”, entre papéis de gênero feminino e masculino, desencadeando uma nova concepção de “homossexual”, baseada na orientação sexual. Tem-se, então, uma radical mudança na sociedade: enquanto no século XIX o mundo se dividia entre homens e mulheres, homossexuais ativos e passivos

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Fry define papel de gênero como relacionado “especificamente ao comportamento, aos traços de personalidade e às expectativas sociais normalmente associadas ao papel masculino ou feminino” (Fry, 1982, p. 90-91). Para o autor, esses papéis são determinados culturalmente, e não em função do sexo fisiológico, sendo cabível, portanto, de acordo com a cultura, que um homem adote o papel de gênero feminino ou vice-versa.

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(deslocamento da matriz heterossexual à homossexualidade), tem-se, a partir de fins da década de 1960, o mundo masculino dividido entre “heterossexuais”, “homossexuais” e “bissexuais”.

No sistema igualitário, a figura do “entendido” expressa igualdade entre os parceiros sexuais, envolvidos em uma relação homoerótica. O “entendido” relaciona-se sexualmente com outro “entendido”. Fry afirma que esse termo é equivalente ao gay dos Estados Unidos.

Reiterando tal análise, lembro Douglas (1976), ao afirmar que

padrões de perigo sexual podem expressar simetria ou hierarquia. Não é plausível interpretá-los como expressão de alguma coisa sobre a relação real dos sexos. Sugiro que muitas idéias sobre perigos sexuais são melhor interpretadas como símbolos da relação entre partes da sociedade, como reflexos de projetos de simetria ou hierarquia que se aplicam ao sistema social mais amplo (Douglas, 1976, p. 14).

Em suma, diante do que foi exposto, concluo que a luta entre outsiders e estabelecidos é perpassada por disputas de poder, contidas em discursos estigmatizadores, de perigo, e nos contradiscursos, conforme conceituação de Foucault (1987) consagrada pela expressão “microfísica do poder”.

O autor pretende descobrir quais são as relações de poder mais locais, mais imediatas que estão em jogo nos discursos sobre o sexo e nas formas, que denominou, de extorsão da verdade, atuantes ao longo da história e em determinados lugares – no corpo da criança, no sexo da mulher, nas práticas sexuais incompletas, no sexo “pervertido”, etc. Além disso, objetiva também entender por meio de que mecanismos o exercício desse jogo vai modificando as próprias relações nele contidas de forma a, por exemplo, reforçar certos termos e enfraquecer outros, como relatado anteriormente em relação às identidades sexuais e aos papéis de gênero. Mediante tal objetivo, o autor impõe certas regras metodológicas:

a) Regra de imanência:

Se a sexualidade constituiu-se como domínio a conhecer, foi a partir de relações de poder que a instituíram como objeto possível; e em troca, se o poder pôde tomá-la como alvo, foi porque se tornou possível investir sobre ela através de técnicas de saber e de procedimentos discursivos (Foucault, 1985, p. 93).

Referências

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