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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS JANE SILVEIRA DE OLIVEIRA

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Academic year: 2021

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DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

JANE SILVEIRA DE OLIVEIRA

Martha Graham e a dança moderna

na linha de frente do movimento progressista

VERSÃO CORRIGIDA

São Paulo

2020

(2)

Martha Graham e a dança moderna

na linha de frente do movimento progressista

VERSÃO CORRIGIDA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como requisito para obtenção do título de Doutora em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Marcos César de Paula Soares

São Paulo

2020

(3)

Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

O48m Oliveira, Jane Silveira de Martha Graham e a dança moderna na linha de frente do movimento progressista. / Jane Silveira de Oliveira; Orientador Marcos César de Paula Soares. São Paulo, 2020.

182 f.

Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Letras Modernas. Área de concentração: Estudos Linguísticos e Literários em Inglês.

1. dança moderna. 2. história da dança. 3. história dos Estados Unidos. 4. Martha Graham. 5. Documento Americano. I. Soares, Marcos César de Paula, Orient. II. Título.

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ENTREGA DO EXEMPLAR CORRIGIDO DA TESE Termo de Ciência e Concordância do orientador

Nome da aluna: Jane Silveira de Oliveira Data da defesa: 23/abril/2020

Nome do Prof. orientador: Marcos César de Paula Soares

Nos termos da legislação vigente, declaro ESTAR CIENTE do conteúdo deste EXEMPLAR CORRIGIDO elaborado em atenção às sugestões dos membros da comissão Julgadora na sessão de defesa do trabalho, manifestando-me plenamente favorável ao seu encaminhamento e publicação no Portal Digital de Teses da USP.

São Paulo, 22 de junho de 2020.

(5)

Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em Letras. Aprovada em: Banca Examinadora Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________ Instituição: _________________________ Assinatura: _________________________ Julgamento: ___________________________________________________________ Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________ Instituição: _________________________ Assinatura: _________________________ Julgamento: ___________________________________________________________ Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________ Instituição: _________________________ Assinatura: _________________________ Julgamento: ___________________________________________________________ Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________ Instituição: _________________________ Assinatura: _________________________ Julgamento: ___________________________________________________________

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dança no Departamento de Letras Modernas, pelas aulas desafiadoras desde a graduação, por ter feito as perguntas certas nas horas certas, pelas conversas todas, pela paciência e, sobretudo, por ter usado todas as técnicas de persuasão necessárias nos momentos difíceis. Qualquer forma de agradecimento ainda será pouco, mas mesmo assim, muito obrigada.

Ao Professor Marcos Fabris, pela leitura e comentários na qualificação, por me apoiar e me fazer pensar mais e melhor sempre.

À Professora Ana Paula Pacheco, pela leitura atenta na qualificação, pelas sugestões de leitura e análise.

À Professora Helena Katz pela leitura generosa na qualificação e por ter me incentivado a fazer o texto dançar.

À Professora Holly Cavrell pela leitura cuidadosa do meu texto e por dividir comigo e com os professores da banca de defesa um pouco da sua valiosa experiência no universo da dança moderna norte-americana.

À Professora Ana Cristina Teixeira pela disponibilidade e pelas diversas considerações e apontamentos apresentados durante a defesa dessa tese.

À Professora Patrícia Kruger, que esteve por perto colaborando em vários momentos dessa jornada, pelas diversas trocas, pelo olhar atento e pelas sugestões produtivas apresentadas durante a defesa.

A Elizabete Ribas, do IEB, que me ensinou como um arquivo funciona.

À minha mãe, dona Áurea, que sempre me apoiou e acreditou em mim e que está me cobrando esse doutorado há duas décadas. Ele também é seu.

À minha amiga, parceira e mestra Claudia de Souza, que me ensinou (e ainda ensina) tanto sobre Martha Graham, o corpo e o movimento.

Aos amigos, professores e alunos do NUMI – Núcleo Movimento Integrado Claudia de Souza, pelo amor e apoio diário.

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Aos meus professores, amigos e colegas da Pós-Graduação, pelas aulas, pelo incentivo, pelas conversas, pelo apoio e pelas dicas de textos, filmes e peças. Esse doutorado durou mais do que o normal, foram muitas fases, disciplinas e grupos de estudos. Tenho medo de listar nomes e esquecer alguém, mas a verdade é que o contexto, como vocês bem sabem, faz toda a diferença. Gratidão a todos que fizeram parte dessa história.

Aos funcionários do DLM, pela ajuda e suporte durante a minha pesquisa.

Aos funcionários da Dance Collection, da unidade do Lincoln Center da New

York Public Library, por separarem e disponibilizarem os valiosos materiais de arquivo.

Aos funcionários do departamento de Arquivos e Recursos da Martha Graham Dance

Company, sobretudo a Oliver Tobin, que me recebeu e organizou o material para

consulta.

Aos professores e amigos da Martha Graham School, pela experiência sensível compartilhada.

À CAPES, pela bolsa recebida para o desenvolvimento desse estudo no Brasil.

À Flavia, pela paciência infinita, pelo apoio, pelas inúmeras correções e formatações, por cuidar de tudo enquanto eu estava pesquisando, por acreditar em mim mais do que eu e, sobretudo, por dar sentido a tudo isso. Essa tese também é meio sua.

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do movimento progressista. 2020. 182 f. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

Documento Americano foi um dos primeiros grandes sucessos da carreira da coreógrafa norte-americana Martha Graham. Produzida em 1938, a dança era estruturada em episódios e utilizava recursos emprestados dos shows de menestréis e do teatro épico para apresentar um panorama dos principais eventos da história dos Estados Unidos. A partir da análise de um conjunto de documentos de arquivo a respeito dessa e de outras danças relacionadas, buscamos revelar as condições de possibilidade para o surgimento das principais técnicas, formas e procedimentos de composição da dança moderna norte-americana e seu envolvimento com o movimento da Frente Popular. Nossa pesquisa sugere uma relação de aliança entre a dança moderna e a classe trabalhadora de Nova Iorque durante a segunda metade da década de 1930. Acreditamos que o protagonismo que essa arte do movimento conquistou na cultura de esquerda durante aquele período esteja diretamente ligado ao desejo de representar na cena os grupos e questões sociais da contemporaneidade e às experiências didáticas de organização e ensaio do movimento político coletivo através da dança.

Palavras-chave: Dança Moderna. História da Dança. História dos Estados Unidos. Martha Graham. Documento Americano.

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OLIVEIRA, J. S. Martha Graham and the modern dance in the front line of the progressive movement. 2020. 182 f. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

American Document was one of the first major achievements in the career of the American choreographer Martha Graham. Produced in 1938, the dance was structured in episodes and employed procedures borrowed from minstrel shows and epic theater to present an overview of the main events in the history of the United States. From the analysis of a set of archival documents regarding this and other related dances, we seek to reveal the conditions of possibility for the emergence of the main techniques, forms and procedures of composition of American modern dance and its involvement with the Popular Front movement. Our research suggests an alliance between modern dance and the New York working class during the second half of the 1930s. We believe that the key role that this art of the movement performed in leftist culture during that period is directly linked to the desire to represent contemporary social groups and issues on stage and to the didactic experiences of organizing and rehearsing the collective political movement through dance.

Keywords: Modern Dance. Dance History. History of the United States. Martha Graham. American Document.

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1.1 Na linha de frente do movimento progressista ... 10

1.2 Estamos no Brasil, na Universidade de São Paulo, em 2020 ... 13

1.3 História construída e memória evanescente ... 15

1.4 Martha Graham antes de Martha Graham ... 18

1.5. Estruturas móveis ... 21

1.6 Vestígios do efêmero ... 22

1.7 Programas e fichas técnicas ... 25

1.8 Alianças e aproximações ... 26

1.9 Transições ... 29

1.10 Danças modernas ... 31

1.11 Uma nova dança de concerto ... 34

1.12 Breve relato da ascensão e queda da dança alemã ... 36

1.13 Dança como ferramenta revolucionária ... 38

1.14 A incubadora ... 39

1.15 O corpo docente ... 42

1.16 Mentores intelectuais ... 44

1.17 Desenhando relações ... 45

2 AMERICANOS... QUEM SÃO OS AMERICANOS? ... 46

2.1 Cena nova-iorquina ... 49

2.2 A dança e o Partido Comunista ... 52

2.3 A dança é uma arma na luta de classes ...57

2.4 Intersecções ... 62

2.5 Organização e divulgação ... 64

2.6 Procurando outra sintonia ... 67

2.7 Um novo acordo ... 69

2.8 Quanto mais, irmãos? ... 74

2.9 A dança e a Frente Popular ... 76

2.10 A Guerra Civil Espanhola ... 78

2.11 1938 ... 84

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3.1 Comunidades inventadas ... 92

3.2 Aqueles que sacodem ... 94

3.3 Oficinas de dança ... 96 3.4 Espirais humanas ... 97 3.5 Mensagem na garrafa ... 101 4 A TERRA PROMETIDA ... 104 4.1 Declaração ... 105 4.2 Figura Nativa ... 108 4.3 O Puritano ... 111 5 ANDANDO EM VOLTA ... 120

5.1 A dança dos escravos ... 123

5.2 Os menestréis ... 126

5.3 Uma palavra profunda ... 128

5.4 Novas formas de escravidão ... 134

5.5 Documentos e documentários ... 139

5.6 Nós esquecemos demais ... 141

5.7 O desfile, de novo ... 144

6 MOVIMENTO COLETIVO ORGANIZADO ... 146

6.1 Segure firme! ... 147

6.2 O não lugar da utopia ... 153

6.3 Movimento coletivo organizado ... 154

REFERÊNCIAS ... 159

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1 PANORAMA

1

É preciso tornar-se o que se é. Como a forma da dança é governada pelas condições sociais, o ritmo americano é afiado e angular, despido de elementos não essenciais.

Martha Graham, 1933, em Martha Graham, de Merle ARMITAGE (1968, p. 101)2

Martha Graham (1894-1991) começou a estudar dança em Los Angeles, por volta dos 19 anos de idade. Aos 30, ela foi selecionada numa audição para apresentar alguns números em um espetáculo de variedades chamado Greenwich Village Follies, na cidade de Nova Iorque. Dois anos depois, em 1926, Graham criou sua própria companhia de dança, dando início a uma carreira extraordinária que durou mais de seis décadas. No final da década de 1930 ela já era considerada a mais importante artista da dança de concerto norte-americana. Nesse trabalho, iremos investigar essa primeira fase de sua carreira como coreógrafa e artista independente, que coincide com o período formativo da dança moderna norte-americana.

1.1 NA LINHA DE FRENTE DO MOVIMENTO PROGRESSISTA

No dia 12 de outubro de 1938, o jornal New York Daily Worker3 publicou uma resenha a respeito da apresentação do Martha Graham and Company, ocorrida alguns dias antes no Carnegie Hall4. O texto começava assim:

1 Panorama é o nome de uma coreografia produzida por Martha Graham em 1935 para um

grupo de mais de 30 estudantes que frequentaram uma oficina de dança moderna do curso de verão da Bennington College, em Vermont. É também uma referência ao livro Panorama do Rio Vermelho (2001), da professora Iná Camargo Costa, que trata do teatro político norte-americano e nos serve de referência e inspiração.

2 No original por completo: “One has to become what one is. Since the dance form is

governed by social conditions, so the American rhythm is sharp and angular, stripped of inessentials. It is something related only to itself, not laid on, but of a piece with that spirit which was willing to face a pioneer country.” A citação foi obtida do capítulo Affirmations do

livro de Merle Armitage. Esse foi o primeiro livro publicado sobre a artista, em uma edição de mil cópias, em novembro de 1937 e reeditado nos anos 1960. Merle Armitage (1893-1975) foi um importante empresário de teatro, colecionador de arte e designer de livros.

Nota: Todas as traduções publicadas nesse trabalho foram feitas pela autora, com algumas exceções devidamente apontadas.

3 New York Daily Worker, que começou a circular em 1924, era um importante jornal

editado pelo Partido Comunista.

(13)

Quem perdeu este evento de dança perdeu um marco triunfante na história da dança americana. Em primeiro lugar, a primeira aparição da temporada de Martha Graham, seu novo trabalho de dança “American Document” e a bandeira da New Masses formam uma combinação imbatível para atrair multidões entusiasmadas. Além disso, a principal bailarina de concertos da América e o semanário mais progressista da América se mostraram em perfeita harmonia, cada um lutando à sua maneira nas linhas de frente do movimento progressista.

"American Document" é importante, tanto porque tem uma mensagem clara e inequívoca, quanto porque estabelece um novo patamar nas formas de dança teatral. É apresentado em um estilo brilhante e divertido destinado a atrair massas de pessoas. Esta é a maior prova de uma artista socialmente consciente.5

Margery DANA, para o New York Daily Worker (12 out. 1938)

Com base nesse relato, podemos inferir que em apenas doze anos de trabalho independente Graham já havia conquistado uma posição de destaque. Além disso, a coreógrafa acabara de estrear uma obra que, segundo a jornalista, constituía “um novo patamar nas formas de dança teatral”. Os comentários de Dana estavam em sintonia com os de outros críticos dos jornais e revistas da época. Na coluna do dia 16 de outubro para um jornal de Springfield, Massachusetts, Elizabeth McCausland destacava o panorama histórico que Graham havia construído em American Document6 e elogiava a abordagem crítica e socialmente consciente da obra. Além de parabenizar a New Masses pelo evento, a jornalista também aprovava o tom de esperança do episódio final:

5 No original: “Anyone who missed this dance event missed a triumphant milepost in the

history of American dancing. Martha Graham’s first appearance of the season, her new dance work “American Document”, and the banner of the New Masses make an unbeatable combination for drawing enthusiastic crowds, in the first place. Added to that, America’s foremost concert dancer and America’s most progressive weekly were found to be in perfect accord, each battling in his own way in the front lines of the progressive movement.

‘American Document’ is important both because it bears a clear and unequivocal message and sets a new high in theatrical dance forms. It is presented in a brilliant and entertaining style destined to appeal to masses of people. This is the greatest proof of a socially conscious artist.”

A palavra ‘bailarina’ é uma tradução ruim, mas quase inescapável, para dancer. Traduzir

dancer como ‘dançarina’ seria, entretanto, um problema. Em português, pelo menos no

Brasil, dançarina poderia sugerir uma corista, representando assim o trabalho alienado na dança, enquanto a bailarina seria a artista. A maioria das pessoas, entretanto, entende como bailarina alguém que dança balé, e não dança moderna. Então, por falta de opção, manteremos o uso do termo bailarina, mesmo sabendo que não há uma equivalência total no sentido.

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Mas, apesar dos erros, também existem os acertos, como aponta o discurso do interlocutor. Há uma nova palavra para o país que amamos, diz ele, e essa nova palavra é "democracia". Numa época em que a paz do mundo é ameaçada pelas nações antidemocráticas, é quase um milagre encontrar a nossa maior bailarina viva se colocando de pé corajosamente diante do mundo e afirmando esta verdade.7

Elizabeth McCAUSLAND, para o Springfield Republican (16 out. 1938)

Vários periódicos da época anunciaram o evento ou publicaram comentários sobre a nova dança. No dia 03 de setembro do mesmo ano, uma reportagem do The

Nation descrevia American Document nos seguintes termos:

É a mais importante criação estendida em dança realizada por um americano vivo, e se houve outra em qualquer outra época mais importante, não há registro dela.8

Autor não identificado, para o The Nation (03 set. 1938)

Levando em conta que a dança moderna era uma forma de arte completamente nova, como foi possível para a artista construir uma carreira meteórica como essa em um país sem nenhuma tradição nessa arte da cena? E por que a revista New Masses, que representava um dos principais periódicos da esquerda9 norte-americana, tinha interesse em patrocinar um evento de dança? Essas são algumas das questões que motivaram essa pesquisa a respeito de American Document e do momento de formação da dança moderna norte-americana.

7 No original: “But despite the wrongs, there have been the rights, too, as the interlocutor’s

speech points out. There is a new word for the country we love, he says, and that new word is “democracy”. At a time when the peace of the world is threatened by the antidemocratic nations, it is almost like a miracle to find our greatest living dancer standing up courageously before the world and stating this truth.

8 No original: “It is the most important extended dance creation by a living American, and if

there has been another in any other time more important, there is no record of it”. Autor não

identificado.

9 Estamos chamando de esquerda “a tradição de movimentos radicais democráticos para

transformação social”. DENNING, Michael. The Cultural Front: the laboring of American culture in the twentieth century (2010).

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1.2 ESTAMOS NO BRASIL, NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, EM 202010

Martha Graham e Grupo em Primitive Mysteries (1931)11.

Fotografia de Barbara Morgan.

A aula começava no chão – isso era uma novidade. Que aula de dança antes disso começava com os alunos sentados no chão?12

Gertrude Shurr, bailarina e coreógrafa, recordando as aulas de Martha Graham na John Murray Anderson School

for the Dramatic Arts, por volta de 1927, em Martha Graham: the evolution of her dance theory and training,

de Marian HOROSKO (2002, p. 21)

O conjunto de materiais de arquivo consultados sugere que Graham foi uma bailarina extraordinária, uma professora dedicada e uma coreógrafa corajosa e inovadora, que teve uma carreira longuíssima e é hoje considerada uma das artistas norte-americanas mais importantes do século XX. Para além do âmbito da dança moderna, Graham influenciou diversas áreas da cultura como a moda, o teatro, o cinema e a escultura. Ainda assim, sua obra é quase desconhecida no Brasil e a bibliografia disponível em português é escassa e frequentemente superficial. Mesmo entre artistas e estudantes da dança, na cidade de São Paulo, pouco se conhece sobre seu trabalho coreográfico. Geralmente, o que se conhece - quando se conhece - é a técnica de dança criada por ela e codificada pelas gerações que a seguiram, que

10 American Document começava com o interlocutor situando a ação num teatro, naquele

dia, nos Estados Unidos da América. Da mesma forma, acreditamos que a justificativa desse trabalho deve levar em conta o local e o momento de sua produção e publicação.

11 Em português: Mistérios Primitivos.

12 No original: “The class started on the floor – this was a first. What dance class began

(16)

foi incorporada como ferramenta de treinamento aos cursos de formação aqui e em diversas partes do mundo, mas que hoje é considerada por muitos como ultrapassada, engessada ou, até mesmo, pouco democrática.

É importante lembrar que Graham, mesmo no fim da vida, sempre enfatizou que a sua intenção não era criar uma escola de movimentos, com vocabulário fixo e imutável. O que ela quis e fez foi criar um tipo de aula com exercícios específicos para flexibilização e fortalecimento de certas partes do corpo e preparação para o uso criativo do instrumento expressivo que é o corpo humano. Para que a técnica funcione dessa maneira é preciso um trabalho de percepção sutil do corpo, que faz com que o bailarino seja capaz de entender e se conectar com os mecanismos mais profundos de mobilização articular. Infelizmente, quando as sequências coreográficas da aula tradicional de Graham são repetidas sem o foco na consciência corporal e na organização interna, a experiência do aluno torna-se dolorosa e frustrante e a forma ganha precedência sobre a experiência. Nesse trabalho, vamos tentar ressaltar os princípios inovadores que atraíram para suas aulas gerações de bailarinos e atores e ajudaram a abrir caminho para algumas das principais conquistas da dança contemporânea.

Apesar de bailarinos terem estudado respiração e fluxo de movimento antes dela, Graham foi mais longe, dando dinâmica e impulso à respiração. Os músculos que controlavam o riso ou a tosse eram ativados para criar o gesto. Essas ações causavam espasmos no diafragma, que ela chamava de contrações, e desencadeavam outras reações no organismo, produzindo outras formas. Esses espasmos de força percussiva agiam como um chicote, ricocheteando em todo o corpo e indo, a partir do tronco, em direção às extremidades. O que emergia não eram mais belas formas e dinâmicas do corpo, mas a forma angular, as linhas quebradas e uma cândida tensão sexual. Era movimento saído de seu corpo, às vezes uma torturante surra emocional e, em outros momentos, uma respiração delicada e gestos suspensos.

Holly E. CAVRELL, em Dando corpo à história (2015, p. 128)

Essa é uma parte importante do nosso trabalho porque nos parece haver algo muito potente que foi descoberto logo no início do desenvolvimento da dança moderna norte-americana, não só por Graham, mas por um grupo de artistas que se dedicou fortemente à pesquisa de linguagem e ao desenvolvimento de procedimentos de

(17)

ensino e composição em dança. Essa potência vinha do desejo de libertar as pessoas de padrões artificiais de movimento e de desenvolver a capacidade de perceber de maneira consciente a relação dinâmica do corpo no espaço. As novas práticas propostas pelos pesquisadores do corpo eram democráticas e acessíveis para pessoas comuns, o que não significava que não exigissem esforço e dedicação. Além disso, a dança moderna dos anos 1930 descobriu a potência política e o prazer da experiência compartilhada do movimento, experiência essa que foi fortemente desvalorizada pela crítica nas décadas que se seguiram. Aqui e agora, neste nosso momento político de ataque à cultura, à educação e ao pensamento crítico, nos parece importante resgatar os elementos progressistas dessa história coletiva.

1.3 HISTÓRIA CONSTRUÍDA E MEMÓRIA EVANESCENTE

A dança – na medida em que dispõe de corpos em ação no presente, processos coletivos, transmissibilidade, citabilidade entre corpos e obras, testemunhos, repertórios, arquivos, notações e narrativas documentais – exige uma historicidade insuflada pelos traços movediços da memória e uma memória com autoridade histórica. Do contrário, o binarismo que separa tais formulações em polaridades oponentes poderia alvitrar julgamentos acerca dos modos de produção de pensamento sobre danças, regulando não só as bibliografias – como habilitadas ou não a tratar de determinados objetos histórico-memoriais — como os próprios objetos (como assuntos de memória ou assuntos de história).

Andréia NHUR, em Proposta cartográfica para balizar pesquisas em dança (2017)

Sessenta e seis anos de carreira é bastante tempo. O corpo muda, as ideias mudam, o mundo muda. Como artista, Graham viveu muitas vidas e evidentemente não pretendemos aqui tratar de todas elas. Para facilitar nossa discussão, vamos começar imaginando a carreira da coreógrafa dividida em três grandes fases: uma fase inicial, que nos interessa diretamente, marcada pela experimentação, pela luta pelo reconhecimento e pela participação ativa na cena política; uma segunda fase na qual ela se estabelece como uma artista reconhecida e compõe as suas obras mais famosas; e uma última fase, na qual Graham passa a coreografar, não mais a partir do movimento de seu corpo, mas exclusivamente através dos corpos dos bailarinos e bailarinas de sua companhia. Nessa última fase, a artista coreografou ainda algumas obras extraordinárias, mas em menor quantidade e certamente com menor frequência.

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O envelhecimento e as lesões naturais do ofício têm efeitos diretos no trabalho dos coreógrafos. Coreografar usando o próprio corpo é muito diferente de coreografar usando outros corpos. É, talvez, como ter que escrever ditando. Isso faz com que os modos de composição do artista mudem naturalmente com o envelhecimento.

Por outro lado, sabemos que a documentação da dança é sempre problemática. Naturalmente, a quantidade e a qualidade do material de arquivo referentes a cada uma dessas fases da carreira da coreógrafa variam bastante. Ao mesmo tempo que a tecnologia necessária para a documentação melhorou ao longo do século XX, a obra de Graham teve também momentos de maior ou menor interesse da parte de artistas de outras áreas. Além disso, devemos levar em consideração que a memória - sempre mais frágil que os documentos - é um elemento fundamental para a construção da história da dança por conta da natureza efêmera das práticas e das obras que só se materializam no corpo em movimento. Exatamente porque na dança memória e história estão sempre muito emaranhadas, a lembrança coletiva que temos a respeito de Martha Graham tem mais a ver com a última fase de sua carreira. Mesmo as obras mais famosas produzidas anteriormente, como Night Journey ou Errand into the Maze (ambas de 1947)13, chegam a nós como remontagens, em novos corpos e novas versões. Há ali algo da ideia original, mas há também uma série de camadas de matéria histórica que foram sendo absorvidas para dentro da obra a cada nova produção, e não há como ser de outra forma. Dança é movimento e estudar a sua história é farejar os vestígios do efêmero.

Dançar é uma arte muito viva. É essencialmente do momento, embora seja uma arte muito antiga. A arte de um bailarino é vivida enquanto ele dança. Nada resta de sua arte, exceto fotos e as lembranças - - - quando seus dias de dança terminam. O que ele tem que contribuir para a soma total da experiência humana deve ser feito através da dança. Não pode ser transmitido em nenhum outro momento, de nenhuma outra maneira.14

Martha Graham, 1936, em Martha Graham, de Merle ARMITAGE (1968, p. 107)

13 Em português: Jornada na Noite e Ida ao Labirinto.

14 No original: “Dancing is a very living art. It is essentially of the moment, although a very

old art. A dancer’s art is lived while he is dancing. Nothing is left of his art except pictures and the memories --- when his dancing days are over. What he has to contribute to the sum total of human experience must be done through the dance. It cannot be transmitted at any other time, in any other way.”

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Devemos lembrar também que a tecnologia de filmagem evoluiu muito durante o século XX e, com ela, o registro da dança. Temos muito mais material filmado e de melhor qualidade dos anos 1960 do que dos anos 1930. Por isso, é mais fácil lembrar de Graham como uma senhora muito maquiada e com artrite do que da grande bailarina que um dia foi. Além disso, Graham demorou muitos anos para aceitar a ideia de registrar suas coreografias em filme, de maneira que os registros mais famosos foram feitos quando ela estava com mais de 60 anos de idade. Para o público de dança interessado em virtuosismo, esse material desperta pouco interesse.

Mesmo assim, durante toda a sua carreira, Graham sempre teve uma legião de seguidores, fãs, amantes da dança e do modernismo, que queriam aprender, apreender e entender os segredos da sua arte. Foram eles, seus discípulos de muitas gerações, os principais responsáveis pela preservação da técnica, das coreografias e das histórias. O problema é que, no intuito de preservar a dança, muitas vezes, as pessoas se limitam a repetir os mesmos movimentos, sem questioná-los ou atualizá-los. Como já sugerimos, as aulas de Martha Graham eram consideradas incríveis não apenas porque o vocabulário era potente, mas porque o entendimento dela a respeito de como realizar cada movimento ajudava os alunos a entender melhor os seus corpos. Sabemos que preservar o vocabulário, que está na superfície da técnica, é mais fácil que investigar seus fundamentos. Por outro lado, é incoerente tentar preservar a dança sem aceitar a transformação, que é a própria natureza do movimento. Hoje temos em circulação várias versões da técnica e da obra de Graham. Resgatar a história do trabalho dessa artista em conexão com o tempo histórico no qual a obra se originou é também uma tentativa de nos reaproximarmos dos princípios norteadores que mudaram os paradigmas da dança cênica ocidental.

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1.4 MARTHA GRAHAM ANTES DE MARTHA GRAHAM

Martha Graham, fotografada por Imogen Cunningham (1931).

No início dos anos 1930, época da Depressão e de agitação social, Martha criou danças de conteúdo social que expressavam o protesto, a angústia, a frustração e o estado de espírito daqueles tempos - a angularidade, a intensidade dinâmica, a batida dos ritmos e movimentos de seu corpo e a busca pelo retorno ao primitivo fizeram parte desse período. Martha podia sentir essas coisas e, em suas danças, ela dava voz às tensões e sentimentos que atraíam o público ansioso e receptivo.15

May O’Donnell, bailarina da companhia de Martha Graham de 1932 a 1938 e de 1944 a 1953, em Martha Graham: the evolution of her dance theory and training, de Marian HOROSKO (2002, p. 37)

Martha Graham foi, de certa forma, canonizada pela crítica e muitos livros importantes e bastante informados escritos sobre a sua vida e sua carreira, como por exemplo, a biografia escrita por Agnes de MILLE (1991) publicada originalmente em 1956 ou o livro Deep Song, de Ernerstine STODELLE (1984) que conta a história das danças da coreógrafa, dão a impressão de que ela foi uma espécie de gênio solitário. Não é raro os autores se referirem a Graham como a “mãe da dança moderna”. Mesmo no início de sua carreira, durante as primeiras décadas de trabalho

15 No original: “In the early 1930s, the time of the Depression and social unrest, Martha created

dances of social content that expressed the protest, anguish, frustration, and mood of the times – the angularity, the dynamic intensity, the beat of her body rhythms and movements, the search for the return to the primitive, were part of this time. Martha could sense those things and in her dances she gave voice to those tensions and feelings that attracted the eager and responsive audience.”

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independente, diversos críticos buscaram classificá-la como uma artista individualista. Entretanto, não é exatamente isso que o material de arquivo consultado indica. Graham era certamente uma artista com personalidade forte, determinada e segura de suas escolhas. Porém, por mais que ela tenha assumido um certo protagonismo a partir da década de 1940, as fontes históricas demonstram que a arte que chamamos de dança moderna foi construída, na verdade, por um grupo de artistas, críticos e produtores culturais, cheio de disputas e conflitos internos, mas ainda assim empenhado como grupo na pesquisa, produção e divulgação de um novo tipo de dança. Usando o trabalho de Graham como eixo central, tentaremos reconstruir um pouco da história desse grupo, responsável pela criação do conjunto de práticas e procedimentos da dança moderna norte-americana.

Anúncio de um dos primeiros concertos de Martha Graham como artista independente.

Muitos fatores parecem ter contribuído para que a primeira fase da carreira de Graham tenha sido a mais inventiva em termos de pesquisa de movimento e composição. Em primeiro lugar, como já sugerimos, a artista estava na sua máxima potência física, trabalhando sem o peso da celebridade que ela eventualmente se tornaria. O que mais nos interessa, entretanto, são os fatores externos que formaram as condições de possibilidade para, de um lado, o desenvolvimento criativo e o reconhecimento público de Martha Graham e, de outro, o surgimento da dança moderna como uma prática de treinamento corporal para bailarinos e uma arte da cena respeitada no cenário cultural norte-americano. Nos parece importante investigar a formação de um grupo significativo de artistas da dança dedicados ao que hoje chamamos de pesquisa de linguagem e o surgimento paralelo de um grupo de críticos,

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compositores e produtores culturais empenhados em criar espaços para prática, divulgação e discussão acerca dos rumos da dança moderna.

Nossa pesquisa busca demonstrar que além do trabalho de artistas como Martha Graham, Doris Humphrey, Charles Weidman, Helen Tamiris e Hanya Holm, outros três grupos também contribuíram para a pesquisa do movimento e para a formação de um público interessado nas artes experimentais da cena. São eles: os críticos de jornal e revista, muitos deles mais acostumados a escrever sobre teatro ou música, que passaram a comentar e divulgar também os eventos de dança; os professores de dança envolvidos na militância política, que davam aulas para grandes grupos de trabalhadores em locais como sindicatos ou organizações comunitárias; e, por fim, os grupos e escolas de teatro que, além de abrir espaço para coreógrafos e bailarinos, também popularizaram e apresentaram ao público e aos bailarinos recursos não-dramáticos emprestados do teatro moderno europeu16.

Esse grande coletivo de artistas, críticos, produtores e público interessado se formou gradualmente a partir da metade da década de 1920 e a dança moderna conquistou uma certa centralidade na cultura nova-iorquina ao longo da década de 1930. Os efeitos desse fermento cultural se espalharam para outras partes dos Estados Unidos quando a Bennington College de Vermont começou a promover os cursos de verão em dança. Os alunos, sobretudo das turmas dos cursos que aconteceram entre 1935 e 1938, eram basicamente professores e estudantes de educação física de diversas partes do país. Na Bennington School of the Dance eles tinham a oportunidade de aprender um pouco da teoria e da prática da dança moderna e ainda assistir de perto aos artistas que estavam na vanguarda da nova arte. Para os artistas e críticos, os verões em Vermont eram numa espécie de retiro criativo, onde havia espaço e incentivo para a colaboração, discussão e a experimentação artística. O presente trabalho tem como objetivos apresentar um pouco dessa história de trabalho e pesquisa coletivos para os leitores de língua portuguesa, discutir como esse ambiente possibilitou a criação de obras como Panorama e American Document e investigar como esse contexto aparece em algumas das obras de Graham produzidas na segunda metade da década de 1930.

16 Estamos chamando de recursos não dramáticos o conjunto de procedimentos e

estratégias do teatro épico e do teatro de agitação e propaganda, que comentaremos nos próximos capítulos.

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1.5 ESTRUTURAS MÓVEIS

O deslocamento do peso força o corpo a assumir a posição relativa.17

Martha Graham, em Graham: the evolution of her dance theory and training, de Marian HOROSKO (2002, p. 246)

Martha Graham em Frontier (1934)18.

Fotografia de Barbara Morgan.

A técnica criada por Martha Graham nos servirá como inspiração metodológica. Segundo os princípios dessa técnica, o eixo do corpo humano, que é a coluna vertebral, deve ser flexível e móvel. Flexível porque o espaço entre as vértebras permite que coluna se dobre para frente e para trás mas, sobretudo, permite que ela se movimente em espiral. Móvel, porque esse eixo pode se inclinar em diversas direções, de maneira que o bailarino passa a enxergar o mundo de novos ângulos e descubre assim novos pontos de vista. Para a dança moderna, o movimento não é só forma estética e expressão pessoal. Ele é também experiência sensível de estranhamento de si e comunicação suprapessoal. Nesse trabalho, buscamos espelhar alguns desses princípios na construção da análise dos documentos disponíveis a respeito das obras e práticas do período que nos interessa. Usando a

17 Era assim que Graham explicava como mover o eixo do corpo a partir do deslocamento

de peso nos exercícios de elevação de perna feitos no centro, sem ajuda da barra. A ideia de posição relativa indica que o objetivo do exercício é perceber a sensação interna provocada pelo movimento e não perseguir uma forma final, ideal.

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estrutura de American Document como um eixo móvel e flexível, iremos apresentar e discutir os procedimentos e as informações sobre os modos de produção que os documentos históricos nos deixam entrever. Antes de iniciar a análise, iremos apresentar brevemente os principais materiais que serviram de base para essa pesquisa.

1.6 VESTÍGIOS DO EFÊMERO

American Document ficou no repertório da companhia de Martha Graham apenas de 1938 até 1942, foi remontado ainda uma vez em 1944 e depois ficou esquecido até a década de 1980. Em 1989, ano no qual a queda do muro de Berlim marcou o fim da Guerra Fria, a artista criou uma nova obra coreográfica com o mesmo nome, tendo o bailarino russo-americano Mikhail Baryshnikov como solista. Só a partir da década seguinte a obra original começou a despertar o interesse da crítica norte-americana. Nos anos 1990, foram publicados dois artigos importantes: o de Maureen Needham COSTONIS, Martha Graham’s American Document: A Minstrel Show in

Modern Dance Dress (1991) e o de Ellen GRAFF, Dancing red: art and politics (1994).

Em 1999, GRAFF lançou o livro Stepping Left: Dance and Politics in New York City,

1928-1942, no qual ela desenvolve uma análise mais detalhada dessa obra. Já no

início dos anos 2000, Susan MANNING publicou no livro Moving Words: Re-writing

Dance (2005) um capítulo chamado American Document and American Minstrelsy. No

seu livro Modern Dance, Negro Dance: Race in Motion (2004), MANNING retoma a análise de American Document. Em 2012, Mark FRANKO lançou um livro de grande fôlego analítico e investigativo, Martha Graham in Love and War, que é talvez a bibliografia crítica mais interessante que temos disponível sobre essa fase do trabalho coreográfico de Graham. No livro, Franko discute em profundidade quatro trabalhos coreográficos, começando com American Document e terminando em Voyage, de 1953. Nosso escopo abrange um período mais curto, mas muitas das questões apresentadas por Franko nos servem como ponto de partida.

Cada um desses autores buscou, de alguma maneira, reconstituir textualmente a estrutura de American Document a partir dos materiais de arquivo disponíveis, a saber, dois filmes silenciosos em preto e branco, ambos bastante curtos e fragmentados, um libreto que contém o texto-base falado na cena, publicado na

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revista Theater Arts Monthly em setembro de 1942 (ver anexo B), recortes com resenhas e críticas de jornais e revistas da época e as fotografias de Barbara MORGAN, do livro Martha Graham: Sixteen Dances in Photographs, publicado em 1941 e reeditado em 1980. O libreto, alguns programas de espetáculos, algumas fotografias e um número considerável de artigos de jornais e revistas estão disponíveis para consulta no arquivo online da Biblioteca do Congresso norte-americano19. O conjunto de materiais indica que American Document foi se transformando a cada temporada e, por conta disso, durante o nosso processo de análise nos pareceu mais produtivo aceitar esse movimento interno do que tentar descrever a obra em um formato fixo ou definitivo.

Reimpressão da capa de um artigo do jornal The Nation (03 set. 1938). Martha Graham em Native Figure.

Fotografia de Barbara Morgan.

Os filmes estão disponíveis na Biblioteca e Museu de Artes Performáticas do

Lincoln Center, que é uma unidade da Biblioteca Pública de Nova Iorque. Em 2017,

realizei uma visita de aproximadamente dois meses à Coleção de Dança desse arquivo, onde foi feita grande parte da descrição desses filmes. Por sorte, em julho de 2018, um deles foi publicado no YouTube pelo canal do Helen McGehee

Choreography Arquive com o nome Martha Graham Dances and a Denishawn solo (Silent Films) e até a presente data encontra-se disponível20. Provavelmente

19 Todos os materiais digitalizados do fundo de arquivo de Martha Graham (Martha Graham

Collection) da Biblioteca do Congresso norte-americano estão disponíveis para pesquisa

em: www.loc.gov.

20 Helen McGehee foi bailarina da Martha Graham Dance Company de 1944 até 1972. Além

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produzido na Bennington College em 1938, esse fragmento de filme apresenta partes da coreografia (possivelmente um ensaio de palco), e o que parece ser, por conta da iluminação e da repetição de sequências específicas, uma sessão de fotos de um dueto dançado por Martha Graham e Erick Hawkins. O segundo filme, que pode ser acessado apenas in loco, na Coleção de Dança, foi supostamente gravado durante um ensaio com figurino no Opera House de Chicago em 193921.

O vídeo disponível no YouTube contém, na verdade, vários fragmentos de filme, incluindo um trecho de Panorama (1935), que vamos analisar brevemente. Há uma relação de conteúdo entre as duas obras, pois os temas dos três movimentos de Panorama reaparecem de outra forma em American Document. Além disso, as duas obras foram produzidas durante os cursos de verão da Bennington College, uma na primeira e outra na última oficina comandada por Martha Graham no período da

Bennington School of the Dance, que vai de 1935 a 1938. Acreditamos que a produção

de Panorama foi quase um ensaio para a produção de American Document, pois a oficina e o curso de verão tinham um formato novo e experimental. Em quatro anos, o projeto cresceu muito e ganhou uma visibilidade provavelmente inesperada. Por isso, talvez a análise de Panorama nos ajude a entender melhor a construção de American Document.

Uma diferença importante, entretanto, é a quantidade de material escrito sobre cada uma das obras. Panorama, no seu formato original, foi apresentado apenas uma vez, no festival de Vermont de 1935. Não pudemos localizar nenhum comentário de revista ou jornal da época sobre essa estreia e tanto os livros sobre a obra de Graham como a crítica contemporânea também dão pouca atenção a essa dança. Esperamos contribuir ao menos para estimular essa discussão.

coreografias de Graham, a saber, Punch and the Judy (1941), Panorama (1935), Eye of

Anguish (1950), além da versão original completa de Herodiade (1944) e de um solo

possivelmente coreografado por Ruth St. Denis, dançado por Martha Graham. Disponível em: https://www.YouTube.com/watch?v=yoaiVueLIyM. Acesso em: 2 fev. 2018.

21 Decifrar esses registros é uma tarefa difícil: as imagens são precárias, a câmera muitas

vezes não filma o palco inteiro e os registros de som e cores fazem muita falta. Além disso, os conteúdos dos dois registros têm pouca sobreposição e existem diferenças gritantes nos cenários e nos figurinos.

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1.7 PROGRAMAS E FICHAS TÉCNICAS

O livro de Barbara Morgan descreve algumas das obras que não aparecem nas fotografias. O texto diz que Panorama tinha três movimentos e fornece as seguintes descrições:

Panorama:

1. Tema da Dedicação é baseado nessa intensidade do fanatismo inicial com a qual nossos Pais Puritanos cantaram seu hino de dedicação para um novo mundo.

2. Tema Imperial escolhe uma localidade do Sul onde se encontraria a expressão mais marcante de um povo escravizado e dominado por superstições e medos estranhos.

3. Tema Popular é sobre o povo e seu despertar da consciência social na cena contemporânea.22

MORGAN, Barbara.

Martha Graham: sixteen dances in photographs (1980, p. 160)

O fragmento de filme que iremos analisar foi descoberto nos anos 1990 e contém apenas um trecho do que seria supostamente o terceiro movimento. Segundo o programa documentado por McPHERSON (2013), a música foi composta por Norman Lloyd, com direção musical de Louis Horst, móbiles de Alexander Calder, luz e cenário de Arch Lauterer. Panorama foi encenada apenas uma vez no State Armory de Vermont em 15 de agosto de 1935, com um elenco que incluía as bailarinas da companhia – Anita Alverez, Bonnie Bird, Dorothy Bird (Villard), Ethel Butler, Lil Liandre, Marie Marchowsky, Sophie Maslow, Lilly Mehlman, May O’Donnell, Florence Schneider, Gertrude Shurr e Anna Sokolow – e as alunas da oficina ministrada por Graham no curso de verão da Bennington School of the Dance daquele ano – Miriam Blecher, Prudence Bredt, Nadia Chilkowsky, Evelyn Davis, Jane Dudley, Nancy Funston, Alice Gates, Mildred Gassberg, Mary Anne Goldwater, Marie Heghinian, Merle Hirsch, Gusie Kirshner, Edith Langbert, Naomi Lubell, Mary Moore, Helen Priest

22 No original, na íntegra: “PANORAMA - The first workshop production of the Bennington

School of Dance, Panorama endeavors to present three themes which are basically

American. Theme of Dedication is based on that early intensity of fanaticism with which our Puritan Fathers sang their hymn of dedication of a new world. Imperial Theme chooses a Southern locale where was to be found the most striking expression of a people in bondage ridden by superstitions and strange fears. Popular theme is of the people and their

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(Rogers), Pearl Satlien, Kathleen Slagle, Muriel Stuart, Maxine Trevor, Marian Van Tuyl, Florence Verdon, Theodora Wiesner e Collin Wilsey.

American Document era uma obra com uma estrutura mais complexa. Ela era dividida em cinco episódios, cujos títulos listaremos a seguir, mais uma entrada e uma finalização. Os episódios tinham uma ou duas danças, que dialogavam com a fala de um ator (Houseley Stevens Jr.) no papel de interlocutor. Segundo o programa, a obra era ‘baseada livremente’ na estrutura dos shows de menestréis.

American Document:

۔ Entrada: Walk Around; Cross-Fire ۔ Primeiro Episódio: Declaration ۔ Segundo Episódio: Occupation ۔ Terceiro Episódio: The Puritan ۔ Quarto Episódio: Emancipation ۔ Quinto Episódio: Hold Your Hold!

A música, a qual infelizmente não tivemos acesso, foi composta por Ray Green, com base em ritmos e estilos norte-americanos, e Louis Horst fazia a direção musical. Os figurinos eram de Edythe Gilfond, a luz e o cenário eram de Arch Lauterer. Na estreia realizada no State Armory de Vermont em 06 de agosto de 1938, o elenco incluía as bailarinas da companhia – Anita Alverez, Thelma Babitz, Ethel Butler, Jane Dudley, Nina Fonaroff, Natalie Harris, Marie Marchowsky, Sophie Maslow, Marjorie G. Mazia, May O’Donnell e Gertrude Shurr – e os alunos da oficina da Bennington

College, que naquele ano havia sido renomeada para Programa Profissional – Muriel

V. Brenner, Jean Erdman, Erick Hawkins, Virginia Hall Johnson, Jane Lee Perry, Helen Priest (Rogers), Kaya Russell, Elaine Scanlan, Margaret Strater, Claire Strauss, Eleanor Struppa (McPHERSON, 2013).

1.8 ALIANÇAS E APROXIMAÇÕES

A Frente Popular foi o movimento social insurgente forjado a partir da militância trabalhista da incipiente CIO [Congresso das Organizações Industriais], a solidariedade antifascista com a Espanha, a Etiópia, a China, os refugiados de Hitler e as lutas políticas da ala esquerda do New Deal. Nascida das convulsões sociais de 1934 e coincidindo com o período de maior influência do Partido Comunista

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na sociedade americana, a Frente Popular tornou-se um bloco histórico radical que unia sindicalistas industriais, comunistas, socialistas independentes, ativistas comunitários e antifascistas emigrados em torno da social-democracia trabalhista, do antifascismo e da oposição aos linchamentos.23

Michael DENNING, em The Cultural Front: The Laboring of American Culture

in the Twentieth Century (2010, p.4)

Desde sua estreia, American Document despertou o interesse dos críticos por conta de algumas inovações formais. Em primeiro lugar, essa foi a primeira coreografia na qual Graham usou um texto falado em cena, o qual foi montado em colaboração com o professor Francis Fergusson, do departamento de Artes Cênicas da Bennignton College, com a inclusão de citações de diversos documentos históricos. A segunda novidade foi a inclusão de dois homens – um ator e um bailarino - no elenco, que até então era constituído exclusivamente de mulheres. Ambas as inovações eram bastante ambiciosas para uma obra que foi projetada originalmente como apresentação final de uma oficina em um curso de verão. O sucesso que a peça teve na primeira turnê nacional da companhia de Graham sugere que o público e os críticos aprovaram as novidades.

Para entender essa relação entre a dança, o público e a crítica, é preciso primeiro inserir American Document no seu contexto histórico. Seguiremos aqui um caminho que a crítica já vem, aos poucos, desbravando, que busca revelar as relações entre os movimentos políticos da Frente Popular e os movimentos artísticos da dança moderna de Nova Iorque. Imaginamos que as nossas contribuições mais relevantes para esse campo de estudo já iniciado são as análises formais das estruturas organizadoras da obra, a saber, o papel do interlocutor e o walk-around.

Um outro assunto que nos interessa é como aconteceu a formação do público da dança moderna. Uma hipótese de trabalho utilizada aqui, e que se mostrou produtiva, foi de que antes dessa forma se constituir como uma arte reconhecida, o

23 No original: “The Popular Front was the insurgent social movement forged from the labor

militancy of the fledging CIO, the anti-fascist solidarity with Spain, Ethiopia, China, the refugees from Hitler, and the political struggles of the left wing of the New Deal. Born out of the social upheavals of 1934 and coinciding with the Communist Party’s period of greatest influence in US society, the Popular Front became a radical historical bloc uniting industrial unionists, Communists, independent socialists, community activists, and émigré anti-fascists around laborist social democracy, anti-fascism and anti-lynching.”

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público da cidade de Nova Iorque foi apresentado a uma série de experimentos de cena, realizados por grupos de teatro ou dança, envolvidos com a luta da classe trabalhadora. Como buscaremos relatar, esses grupos usavam procedimentos do teatro de agitação e propaganda (agitprop) e do teatro épico, e conquistaram uma grande popularidade. Os periódicos ligados à política da esquerda e ao próprio Partido Comunista (PC) tiveram papéis importantes na organização da cultura dos anos 1930 e foram fundamentais para divulgação dos espetáculos da novíssima dança moderna. Artistas importantes da dança de Nova Iorque estabeleceram vínculos com as atividades do PC e com os grupos de teatro mais experimentais. Já no final da década de 1920, a dança havia conquistado espaço como prática política e, no início da década seguinte, várias bailarinas que iriam contribuir para a formação da dança moderna começaram a dar aulas em espaços como sindicatos e organizações comunitárias, com objetivo específico de despertar a consciência de classes nos trabalhadores.

Supreendentemente, essas mesmas artistas também foram trabalhar diretamente com os principais coreógrafos e precursores da dança moderna: Martha Graham, Hanya Holm, Doris Humphrey e Charles Weidman. Acreditamos que as experiências coletivas que essas aulas de dança para trabalhadores proporcionavam despertavam nas pessoas um interesse ou, no mínimo, uma curiosidade pela nova forma de dança cênica que começava a povoar os teatrinhos de Nova Iorque. O fato de os artistas que compunham as principais companhias de dança da época serem os mesmos que dançavam nos concertos promovidos pelo PC ou por organizações ligadas à luta sindical e que davam aulas nos sindicatos e nos centros comunitários facilitou a divulgação dos espetáculos para o público da classe trabalhadora. Por outro lado, os artistas da vanguarda da dança moderna acabaram também incorporando em seu trabalho alguns procedimentos e temas do teatro de agitprop e da dança política. A partir da análise de American Document, vamos tentar demostrar como a dança moderna norte-americana incorporou estruturalmente essa relação dialética entre arte moderna e arte engajada.

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1.9 TRANSIÇÕES

(...) não se pode subestimar o peso do que poderíamos chamar política da crítica, especializada em se fingir de morta desde a guerra fria.

Iná Camargo COSTA, em Panorama do Rio Vermelho (2001, p. 142)

Os movimentos políticos e culturais da época na qual Graham atingiu sua maturidade como artista não só ajudaram no desenvolvimento de sua obra, como também moldaram vários dos materiais com os quais ela trabalhou, desde os corpos dos bailarinos da companhia até as estruturas coreográficas utilizadas. Quando investigamos a história da dança nos Estados Unidos, precisamos lembrar que a pesquisa em dança dentro das universidades norte-americanas começou apenas na década de 1950, durante o período do macartismo24. Nessa época, qualquer relação com qualquer coisa que lembrasse a luta de classes, a esquerda ou o PC era vista como perigosa. Como resultado, o empenho coletivo e a relação entre dança e política, que acreditamos terem sido fundamentais para o surgimento e o reconhecimento da validade artística da dança moderna nos anos 1930, foram solenemente apagados e esquecidos. No seu lugar, foi construída uma narrativa com foco no esforço individual, tingida com os tons do imperialismo da Guerra Fria. Walter TERRY, no livro The Dance in America (1956) escreveu:

O sangue de dez gerações de americanos é sua herança corporal, o osso da terra em que ela vive fornece o esqueleto de suas danças; inseparáveis, eles vivem em Martha Graham. Os elementos podem mudar, as características da superfície podem variar em diferentes danças, os temas podem ser estrangeiros ou universais, mas o sangue puritano e o osso americano são tão irremovíveis de suas danças quanto de seu próprio ser.25

24 Joseph R. McCarthy foi senador Republicano no período entre 1947 e 1957. O período foi

marcado por uma política paranoica e repressora de delação e perseguição aos comunistas.

25 No original: “The blood of ten generations of Americans is her bodily heritage, the bone of

the land in which she lives provides the skeleton of her dances; inseparable they live in Martha Graham. Features may change, surface characteristics may vary in different dances, themes may be foreign or universal, but the Puritan blood and the American bone are as irremovable from her dances as they are from her own being.

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Essa ideia de que o sangue puritano, que ecoa o mito do herói individualista e solitário, se perpetuou na história da dança de Martha Graham. Em um livro bem mais recente, por exemplo, encontramos a seguinte comparação:

Em 1928, outros dois membros da Denishawn Company começaram a trabalhar por conta própria: Doris Humphrey e Charles Weidman. Embora ambos fossem solistas fortes, suas peças se concentravam no trabalho de grupo, em oposição às explorações de Graham a respeito do indivíduo heroico.26

Margareth FUHRER, em American Dance:

the complete ilustrated history (2014, p.93)

Nosso objetivo é convencer o leitor de que esse tipo de narrativa desconsidera grande parte das obras mais importantes do início da carreira de Graham, como Heretic (1929), Primitive Mysteries (1931), Celebration (1934), Chronicle (1936) ou mesmo Deep Song (1937) e Immediate Tragedy (1937). Mesmo que ela revele algo sobre a carreira de Graham pós-Segunda Guerra, ela omite a riqueza e pluralidade de recursos, materiais e procedimentos que Graham mobilizou na sua obra técnica e coreográfica, a partir da experiência coletiva do turbilhão cultural e político da Nova Iorque na década de 1930. Além disso, descrições como essa ignoram os conteúdos de crítica social, incluindo a crítica ao puritanismo, que são centrais para obras como, por exemplo, American Document (1938). Por isso, acreditamos que uma maneira produtiva de contestar essa narrativa hegemônica seja tentar reescrever a história a partir dos documentos originais e dos relatos de quem viveu o momento inicial de formação da dança moderna norte-americana.

Entretanto, antes de tratarmos da análise mais detida dos documentos sobre a obra coreográfica de Graham, precisaremos esclarecer o que exatamente estamos chamando de dança moderna. Para tanto, buscaremos apresentar alguns dos princípios norteadores adotados pela comunidade da dança de Nova Iorque em oposição às outras referências de dança cênica disponíveis à época.

26No original:In 1928 two other members of the Denishawn Company struck out on their

own: Doris Humphrey e Charles Weidman. Though both were strong soloists, their pieces focused on group work, as opposed to Graham's explorations of the heroic individual.

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1.10 DANÇAS MODERNAS

Coristas no Radio City Hall de Nova Iorque, no início dos anos 1940.

Os figurinos do balé, embora reveladores pelo modo como se agarram ao corpo (corpetes apertados, meias, saias curtas e tutus), contrastavam com a imagem de castidade que ainda ressoava no balé como uma espécie de volúpia camuflada. Os Music Halls eram mais diretos em seu apelo sexual e, sob a orientação de produtores do sexo masculino, a mulher se tornou uma mercadoria comercializável, um ligeiro nível acima ou mesmo em pé de igualdade com as prostitutas.

Holly E. CAVRELL, em Dando corpo à história (2015, p.87)

Nesse trabalho consideramos como dança moderna norte-americana um conjunto de práticas de treinamento corporal, pesquisa do movimento e composição coreográfica criados e difundidos por um grupo de artistas, críticos e produtores na cidade de Nova Iorque, durante o período que durou da metade dos anos 1920 até o final da década de 1930. Esse grupo de pessoas, notoriamente liderado por mulheres, incluia bailarinos, coreógrafos e professores de dança como Martha Graham, Doris Humphrey, Hanya Holm, Helen Tamiris, Charles Weidman, Martha Hill, Anna Sokolow, Jane Dudley e Sophie Maslow, mas também outros profissionais e críticos como o músico Louis Horst, o empresário Lincoln Kirstein e o crítico do The New York Times, John Martin.

O papel da crítica e dos críticos que atuavam em jornais e revistas da época divulgando, discutindo e participando ativamente desse movimento artístico não deve ser subestimado. Em uma série de quatro conferências proferidas entre 1931 e 1932 na New School for Social Research27, Martin, o primeiro crítico de dança do jornal The

27 A New School for Social Research foi fundada em 1919 por um grupo de professores

progressistas dissidentes da Columbia University, que incluía os historiadores Charles Beard e James Harvey Robinson, o economista e sociólogo Thorstein Veblen e o filósofo e

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New York Times, buscou explicar para os seus ouvintes o que era a dança moderna.

Só o fato dessas conferências terem acontecido numa instituição dedicada à pesquisa social e terem sido publicadas em livro no ano seguinte já sinaliza que algo novo estava surgindo na arte da cena e que era preciso, se não definir, ao menos propor seus limites e horizontes. Tanto o texto de Martin como outros textos da época procuram explicar a nova dança indicando ou sugerindo o que essa dança não era. Dito de outra forma, o que esse grupo de artistas e críticos estavam propondo era uma dança do seu tempo, ligada às questões, formas e ritmos da vida contemporânea e, para defender essa ideia e ainda manter aberto o campo de experimentação era preciso demonstrar que o repertório de formas de dança da cena disponíveis à época estava antiquado ou, no mínimo, não dava conta de expressar as pulsões da vida social naquela cidade e naquele momento histórico.

Caricatura de Martha Graham ao lado da estrela burlesca Sally Rand produzido por Miguel Covarrubias para a revista feminina Vanity Fair (1934)28.

É importante reconhecer que a dança das coristas não apenas representava a eficiência do trabalho, mas constituía em si mesma a eficiência do trabalho na dança.29

Mark FRANKO, em The work of dance: labor, movement,

and identity in the 1930s (2002, p.30)

28 O artista, Miguel Covarrubias, foi um pintor, caricaturista, ilustrador, etnólogo e historiador

de arte mexicano. A proposta de suas ilustrações de ‘Entrevistas Impossíveis’ era retratar dois contemporâneos opostos em uma situação em que provavelmente nunca seriam

encontrados. No artigo satírico publicado na Vanity Fair de 1934, Martha Graham e a estrela burlesca Sally Rand se envolvem em uma ‘Entrevista Impossível’, onde as duas divas se enfrentam ao dividir o palco.

29No original: It is important to recognize that chorus dancing not only represents labor

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Esse repertório que deveria ser superado incluía basicamente o balé de origem europeia, a chamada dança romântica da geração anterior e as produções de dança burlesca do teatro mais comercial da Broadway. Em seu livro sobre trabalho e dança, Mark FRANKO (2002) demostra como as linhas de coro características dos musicais e filmes da crescente indústria cultural norte-americana na década de 1930 não só representavam na cena o ritmo do trabalho industrial serializado, mas eram também um exemplo vivo do trabalho produzido por trabalhadoras alienadas. A objetificação do corpo feminino para a contemplação de um público masculino e a alienação do bailarino em relação ao seu trabalho iam totalmente contra o projeto das artistas da dança moderna, que acreditavam que o movimento nascia do impulso subjetivo e que, como agentes criadoras, não pretendiam se submeter aos desejos do sexo oposto. Por isso, era necessário estabelecer uma distinção clara.

Os teatros da Broadway ficavam disponíveis logo imediatamente após a performance do sábado à noite. O último show era desmontado e o novo montado em seguida. Então, lá pelas duas ou três da manhã, os bailarinos eram admitidos no palco para ensaiar. Eles ensaiavam até às quatro, retornavam às nove da manhã e permaneciam até a hora de as cortinas se abrirem.

Holly E. CAVRELL, em Dando corpo à história (2015, p.132)

Durante aquele período, a dança moderna era muitas vezes tratada como uma dança de concerto30. Essa denominação claramente buscava aproximar a dança moderna da música clássica e, portanto, do universo da chamada “arte elevada” ou do que Martin chamaria de “belas artes”. Essa aproximação, que hoje soa elitista, foi muito importante para que a dança moderna conquistasse respeito entre os críticos e pudesse ocupar certos espaços de trabalho. Em 1930, por exemplo, a coreógrafa Helen Tamiris comandou um movimento para conseguir autorização da prefeitura para usar os teatros de Nova Iorque aos domingos. Por lei, musicais e outras formas de entretenimento estavam proibidos no dia de descanso religioso. Por isso, a maior parte dos teatros da Broadway ficavam vazios e os preços de aluguel eram bem mais baratos. Como descrito por CAVRELL (2015), os artistas da dança moderna

(36)

costumavam alugar os teatros para se apresentar apenas aos domingos, mas às vezes, os fiscais da prefeitura impediam essas apresentações e, com o aumento do número de espetáculos, os conflitos foram ficando mais frequentes. Eventualmente, o grupo de artistas comandado por Tamiris conseguiu convencer as autoridades de que a dança moderna era uma arte de respeito e acabou conseguindo permissão para realizar os seus “concertos” e apresentar as suas “composições” aos domingos nos teatros da cidade.

1.11 UMA NOVA DANÇA DE CONCERTO

Em um passado relativamente recente, entendia-se por dança o balé, e por balé, o ballet d’action. Este era constituído de um arremedo de enredo entremeado por números coreográficos, da mesma forma que a comédia musical é entremeada por canções. Essa classe de representação inseria-se na categoria das produções teatrais e era julgada pelos críticos de teatro. Quando Isadora Duncan e o movimento romântico surgiram, dando ênfase bem maior à música que ao drama, a dança como acompanhamento coreográfico tornou-se assunto dos críticos de música. Com o detornou-senvolvimento da dança moderna, em que a dança é o principal, e música e enredo são por vezes secundários, a confusão impera.

John MARTIN, 1933, na revista Pró-posições (2007)31

Como apontado por Martin no ciclo de conferências que mencionamos, um dos objetivos dos artistas da dança moderna era criar uma nova forma de dança de concerto, distinta das danças clássica e romântica. Da dança clássica, a dança moderna negava o uso de um vocabulário fixo, que precisava ser executado de maneira prescritiva, aparentemente sem esforço. Para os modernos, as poses abstratas e as narrativas que tratavam da vida de princesas e cisnes não faziam mais sentido no mundo contemporâneo, assim como também não fazia sentido desumanizar o corpo que dança, escondendo o esforço e a relação natural do corpo com a gravidade. Os bailarinos da dança moderna queriam se mover a partir de impulsos internos e se comunicar de maneira mais direta com o público. Segundo

31 As conferências proferidas por John Martin em 1931/32 na New School of Social

Research foram publicadas na forma de livro em 1933 pela Princeton Book Company. Em

2007, elas foram traduzidas por Márcia Strazzacappa para o português e publicadas na revista Pró-Posições. O excerto citado acima foi obtido dessa tradução.

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