• Nenhum resultado encontrado

O RÁDIO COMO LUGAR DE LAZER, SOCIABILIDADE E IMAGINÁRIO: A EXPERIÊNCIA DA RÁDIO EDUCADORA EM BRAGANÇA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O RÁDIO COMO LUGAR DE LAZER, SOCIABILIDADE E IMAGINÁRIO: A EXPERIÊNCIA DA RÁDIO EDUCADORA EM BRAGANÇA"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

O RÁDIO COMO LUGAR DE LAZER, SOCIABILIDADE E IMAGINÁRIO: A EXPERIÊNCIA DA RÁDIO EDUCADORA EM BRAGANÇA

RAFAELLACONTENTE PEREIRA DA COSTA1

MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO GALVÃO SIMÕES2

RESUMO

Este trabalho situa-se no contexto social do município de Bragança/Pa na década de 1960, onde foi fundada a primeira mídia via rádio da região, a Rádio Educadora, que se caracterizava por ser uma emissora religiosa e católica. Esta rádio teve a incumbência de levar estudos religiosos e científicos, além do lazer para a população local, em especial para as comunidades e vilas que faziam parte da Diocese a que estava atrelada. A pesquisa então busca compreender, por meio das narrativas orais, as formas vivenciadas de lazer e sociabilidade a partir da implantação dessa mídia, assim, explorar o cotidiano dos sujeitos junto à Rádio Educadora em frente a estruturas globais de comunicação que envolvem fronteiras e culturas, bem como os modos de circulação das narrativas dentro da perspectiva dos elementos narrativos e dos modos de contar. Para tal perspectiva foram coletadas narrativas orais na cidade de Bragança e nas vilas e comunidades que integram a mesma. Em Bragança, na década de 60, a cultura da escrita/letrada passa a conviver no mesmo tempo e espaço com um cotidiano no qual a oralidade/saberes da natureza são valorizados e onde nenhum sentido trabalha isolado.

PALAVRAS-CHAVE: Narrativas orais. História Oral. Rádio Educadora. Mitos. 1 INTRODUÇÃO

Fundada em 1960, em Bragança, pela congregação de padres Barnabitas, a Rádio Educadora se tornou um veículo de ligação entre as comunidades do município e de toda a região. A emissora tem características locais bastante marcadas, mesmo veiculando notícias, músicas e radionovelas (na década de 1960/1970) de cunho nacional. Tem características locais, pois adotou radialistas da cidade e, muitas vezes, já conhecidos dos moradores, fez política de valorização das festas do município e tinha cunho social, não somente pela educação, mas pelos recados dados para as comunidades de terceiros. Assim, conta fatos próximos dos moradores em suas programações, entretanto, rompeu fronteiras levando e deixando mensagens de maneira global. O contar no rádio tinha características muito próprias do local (sotaque, histórias e formas de narrar), mesmo que a fala seja produzida para o consumo de ideias, carrega semelhanças com o narrador de mitos, lendas e causos locais, fato que acabou diminuindo a fronteira entre a emissora radiofônica e os ouvintes.

1Doutoranda de estudos literários do PPGL – Universidade Federal do Pará (UFPA) e Professora da

Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).

(2)

Essa mídia atingiu de forma variada os sujeitos, por meio do fluxo de informações. As notícias chegavam mais rápido até as pessoas, esses poderiam acompanhar os objetos de consumo do momento, assim como os inseriam no cotidiano e adaptavam formas de comportamentos na realidade local. As notícias chegavam e poderiam ser contadas e recontadas, como nas narrativas míticas. A adaptação dos sujeitos com o rádio foi rápida, já que eram ouvintes e narradores de suas próprias histórias. O som, a palavra, a voz e a musicalidade reproduzem o universo a que estavam adaptados.

Toda essa convivência na década de 1960 é contada pelos moradores de Bragança de forma bastante peculiar nas formas de narrativas orais que envolvem não somente suas histórias de vida, mas com seres míticos. Assim, observa-se a tão interessante e necessária associação entre literatura e história.

Os textos literários e outras manifestações artísticas estavam fora do campo de investigação do historiador por muito tempo, assim como era observada a clara divisão entre ciência e ficção, isto é, entre história e literatura. Porém, a partir da concepção da história como reconstrução da memória, principalmente no século XX, foram acontecendo reflexões sobre cultura nos debates científicos, pois “a história é a narrativa que presentifica uma ausência do tempo, a memória recupera pela evocação, imagens do vivido” (PESAVENTO, 2008, p.15).

Roger Chartier (2008), ao relatar sobre história cultural e fazendo um estudo sobre as formas simbólicas e as sociais, propõe relações entre áreas, como a do antropólogo e a da literatura, que levaria os historiadores compreender, de forma mais simbólica, os comportamentos sociais. Ao pensamento do autor, adiciona-se a história oral como um procedimento metodológico que busca registrar, por meio de narrativas, testemunhos e versões sobre a história vivida (DELGADO, 2006).

Baseia-se na representação, então, ponto central onde essa vertente da história se relaciona com as demais disciplinas, como a antropologia, sociologia, literatura e linguística. A literatura mostra-se um campo rico para a história relatando as visões de cada grupo, deixando de perceber apenas as fontes cultas e eruditas, como as fontes escritas, para olhar também para as manifestações populares, em sua maioria oral. Para Chartier (1990, p.17):

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de um grupo que as forjam. (...) As percepções da realidade não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégicas e práticas (sociais, escolares,

(3)

políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa dos outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.

As relações de poder, tratadas por Focault (2008), antes da prática, ocorrem no campo simbólico, dessa forma, os lugares ocupados pelos sujeitos socialmente depende da representação de uma sociedade. Para Jacques Le Goff (1996), o contar nas narrativas orais mostra a função social da memória, onde se forma a identidade de um grupo e quando se constitui a memória étnica, por exemplo, que reproduz comportamentos nas sociedades humanas. Um depoimento oral não é a realidade total de uma sociedade, são partes, pedaços e retalhos, assim, um acontecimento narrado é formado de lembranças e esquecimentos, ligados a subjetividade dos sujeitos.

As fontes orais permitem perceber como grupos diferentes podem olhar para o mesmo acontecimento de forma diversa. Neste sentido, para Paul Ricoeur (1994), a mesma reúne fragmentos e atribui sentido à diversidade, pois como atividade literária, oferece efeitos de coesão e torna possível o relato histórico reconhecendo novos significados.

Entende-se, portanto, que há fontes históricas muito além do que as palavras de um documento ou depoimento, há história nos discursos, nas representatividades de personagens e no imaginário. Ao falar sobre o passado, relata-se sobre memória, e o ato fundamental da mesma é a narrativa, pois pela sua função social de narrar ao outro o que aconteceu, pode-se perceber a representação de um acontecimento de forma específica.

2 A RÁDIO EDUCADORA NA AMAZÔNIA

A ocupação da Amazônia trouxe consigo várias e diferentes fases, porém, todas com o intuito de explorar suas riquezas naturais e dominá-la culturalmente, sendo observado nos diferentes fluxos migratórios e formas de colonizações. Na Amazônia paraense, com enfoque nas que trouxeram maior contraste com a modernidade: a exploração da borracha (Belle Époque), a estrada de ferro Belém-Bragança, a rodovia Belém-Brasília e a criação e expansão de mídias, com os jornais impressos, a Rádio Clube e a Rádio Educadora de Bragança, observa-se a expansão da comunicação como um elemento importante da cultura amazônica.

A Rádio Educadora de Bragança foi idealizada e fundada pela congregação dos padres Barnabitas com o intuito de evangelização e educação de toda a Prelazia do Guamá. O ideal da congregação era de evangelização, assim, foi visto a necessidade em adentrar, de forma

(4)

ainda mais forte, o interior de toda região onde os padres não poderiam ir ou ir com frequência.

No contexto da fundação, toda a zona bragantina passava por transformações políticas e sociais com a chegada de uma mídia local. O rádio começou a fazer parte do imaginário dos sujeitos, mostrando novas formas de cotidiano pautado em um certo requinte de formas artísticas, consumismo e costumes diferentes do local, mostrados pelas rádio novelas, pelas novas músicas inseridas no cotidiano dos sujeitos através dos programas de músicas e pelos novos saberes compartilhados pelas aulas radiofônicas.

Os moradores da região bragantina estabeleceram uma relação particular com o rádio. Para estes, não é somente um objeto ou uma mídia, mas educação, informação e diálogo com o outro lado. Entretanto, ressalto que essa relação foi construída historicamente e culturalmente com os festivais e festas organizadas pela emissora de rádio, que integravam vilas e comunidades; com a educação nas escolas radiofônicas; com a geração de emprego tanto na rádio quanto por meio da qualificação oferecida pela mesma; nas melhorias nas plantações, pois as aulas integravam ciência e os saberes locais e na saúde, com o esclarecimento e prevenção de doenças.

A implantação da rádio significava, dessa forma, novos incrementos culturais no cotidiano, na medida que a programação possibilitava a difusão da informação, música e outros serviços de utilidade pública. A grade de programação na década de 1960 era composta por missas, novenas e programas de evangelização, os quais eram comandados pelos padres e freiras; programas musicais (incluindo festivais de época, como os juninos e de natal), de notícias, esportes e infantis, feitos por radialistas, padres e freiras; radionovelas nacionais e as aulas, ministradas por professores.

Para Calabre (2004), o rádio revolucionou a relação das pessoas com os acontecimentos, dando aos fatos novas significações e velocidade. Quando as pessoas começaram a partilhar das mesmas fontes de notícias, começaram a se sentir mais integradas e com repertórios comuns para conversas, assim, as relações sociais adquiriram novas características, sobretudo da influência da radiodifusão dentro e fora do contexto familiar.

Compreender a cultura amazônica, a partir da abordagem da linguagem, da narrativa e dos mitos, pontos importantes na identidade e fortalecedores de entrelaçamentos culturais das comunidades, revelam conhecimentos ao mostrar que não é somente utilizando a razão,

(5)

com abordagens lógicas, que se pode tratar de questões gerais e universais, mas que é possível compreender a realidade por meio da emoção de quem viveu certo momento ou ouviu de alguém um relato, do imaginário e das histórias de sujeitos que, em decorrência de grupos hegemônicos, têm seus discursos marginalizados.

Para Loureiro (2015), as narrativas são uma forma de encantamento, mas pode ser de conhecimento. O encantamento não está só nas estórias, mas segundo Zumthor (2010), na performace, na forma de contar de cada narrador. As formas de vida, os modos de ser, os mistérios da existência, o contraponto biografia e história e os mitos, por exemplo, são conhecimentos. A vivência dos sujeitos, seus trabalhos e os espaços em que circulam instigam a criatividade e a chegada de uma mídia, os mistérios e a curiosidade sobre a mesma também deram às mentes locais esse universo simbólico transformado em tantas histórias.

A voz que narra traz várias memórias, em uma junção de categorias, sendo elas a narradora (de caráter mais literário) e a de testemunho (com características mais autobiográficas), assumindo muitas vezes a postura de narrador homodiegético, ou seja, o narrador insere-se como personagem, não tendo assim um total distanciamento, como o narrador em terceira pessoa. Dessa forma, ficando mais claro aos ouvintes suas emoções.

3 A NARRATIVA COMO GUARDIÃ DA MEMÓRIA

No espaço é possível perceber objetos cada vez mais tecnicistas e ações antes não praticadas no lugar, mas que se fixam naquela paisagem a partir da vontade dos sujeitos misturados com plantação, rio, igarapé e mangue. São espaços por onde as vozes do rádio são ouvidas.

Para além do comportamento e do espaço, para Thompson (1998), as sociedades contemporâneas são dominadas pelo conceito cronológico, isso significa que a modernidade pode ser compreendida como o domínio do tempo cronológico sobre o espaço. O movimento da lua, a direção e variação dos ventos e a chuva determinavam o tempo naquele lugar. Com a chegada da Rádio Educadora, os horários começaram a ser marcados também pela programação, por exemplo, as reuniões do grupo não mais aconteciam em decorrência de algo natural e apenas vontade própria, mas em favor de uma programação pré-estabelecida que marcava a hora das aulas.

No aspecto do entretenimento, há outro ponto relacionado às narrativas de mitos e lendas: a de divertir e passar o tempo. A integração do rádio à vida cotidiana era fácil e total,

(6)

pois não se fazia necessário saber muito para manusear, já que era sintonizado somente em uma emissora. Dessa forma, enquanto eram feitos os afazeres domésticos e na roça, caso a pessoa já possuísse o objeto rádio, poderia acompanhar as programações infantis ou musicais.

A escuta também poderia ser feita de forma coletiva, nas capelas das vilas, nas associações comunitárias ou na casa de alguém apontado pela comunidade para ganhar o aparelho3 e receber as pessoas para ouvir a programação. Assim, as pessoas se encontravam para escutar as missas, para ouvir e se divertir com as programações musicais e para estudar em grupo nas aulas radiofônicas.

Observa-se que novos motivos para integrar a comunidade foram criados com a Rádio Educadora, possibilitando momentos de criação de laços e estreitamento identitário. A sociedade está em constante transformação, desenvolvimento, criação de laços e rupturas. Para Raymond Williams (2015), a sociedade se constrói e reconstrói com a formação do modo individual de pensar, este é o aprendizado das formas, dos propósitos e dos significados revestidos nos modos de trabalhar, observar e se comunicar.

Abaixo, mostra-se o contar do povo bragantino sobre a Rádio Educadora em O bicho no rádio:

Tinha uma moça lá no Montenegro, que nós morava lá, né? E ... aí ... então tinha um rádio tocando, né? Aí aquele rádio tava tocando muito aí botaram ... não tem aquele microfone, né? Ele falava lá ... Aí ela foi e disse:

- Mas aonde que fala este homem dentro desse rádio, hein? A moça lá da colônia. Ela era assim do interior ... bem ...

- Dá onde é que fala esse homem? Isso é um homem ou um bicho que fala dentro, hein?

Aí o pai dela disse:

- Não minha filha, isso é rádio. É um rádio que ele toca, ele fala.

-Mas pai, dentro desse rádio pra falar tudo isso? Falando Alô, alô, alô, alô seu Valdemar. Alô, alô seu Antônio. Alô, alô seu Luís, como é que tá você? Mas como é que vai falar, papai?

Ele disse:

-Não minha filha é porque ele tem um microfone que eles falam no microfone e sai na rádio [..]4

3 A Rádio Educadora dava um (1) aparelho de rádio para cada vila ou comunidade.

4Narrativa contada por D. Socorro111, mora em Bacuriteua e tem 69 anos. Coletada em 2016

(7)

A partir da narrativa, compreende-se um fato da cultura amazônica, a expansão da comunicação. Observa-se que os elementos que compõe esse fenômeno são importantes para a compreensão desse fato histórico na linguagem e logo, no cotidiano e nos saberes.

Na narrativa acima, percebe-se a transformação imaginária do rádio para um bicho, mostrando o processo de transformar o inusitado, o diferente, a mutação de uma natureza para outra e a mudança de realidade diante do que não se conhece. Observa-se como o rádio transformou a realidade existente e os sentimentos diante desse objeto diferente. Os mitos são respostas, de várias formas, às necessidades mentais, de existência de um grupo. Eles são um dos elementos que constituem a identidade, por meio da memória presente nessas narrativas. Ressalta-se e relaciona-se à analise da narrativa que existem inúmeras outras que envolvem a transformação presentes na literatura e narrativas orais: a mulher que vira porca, a que vira matinta, entre outros.

Segundo Coelho (1999), imaginário é o conjunto de imagens e relações de imagens construídas pelo homem a partir de formas universais e invariantes geradas em contextos particulares historicamente. Neste sentido, as narrativas conseguem dar melhor visibilidade às tensões existentes por meio da análise dos discursos. A importância de trabalhar com narrativas é o da própria oralidade, a literatura oral e a cultura que permitem a compreensão de características fundamentais de um período, que revelam a visão dos sujeitos perante a realidade.

Na narrativa também observa-se a valoração dada à personagem quando se conta que morava em uma vila afastada “A moça lá da colônia. Ela era assim do interior ... bem ...” remetendo que a moça não conhecia a modernidade de cidades maiores por ser de um lugar longe. O valor dado anteriormente às moças do interior de ingenuidade relacionado à pureza, na narrativa, é visto como falta de inteligência e conectividade com o mundo. Além disso, não é arbitrário o processo de inclusão de outros significados nas tramas das narrativas contadas pelos moradores de Bragança e vilas, por exemplo, a valoração dos personagens e suas ações ou as características de espaço da narrativa, mostrando as novas relações de sociabilidade do lugar.

A inserção do rádio com ritmo e sonoridade peculiar influenciava em palavras, sons e ritmos ao considerar as infinitas possibilidades do uso de conteúdos nas narrativas. Se percebe esses fatos quando a personagem imita o radialista “Falando Alô, alô, alô, alô seu Valdemar. Alô, alô seu Antônio. Alô, alô seu Luís, como é que tá você?”. Assim, a

(8)

personagem é uma configuração esquemática no sentido físico e psíquico, sendo a moça que escuta o rádio considerada boba ou sem informação diante de uma novidade tecnológica e que insere um mito para explicar uma situação.

A seguir, outra narrativa em que houve a presença dos mitos, intitulada: O rádio e a matinta.

Um fato que marcou Bragança foi a chegada do rádio. A gente tinha a Rádio Clube aqui, meu pai escutava assim... quando dava, mas quando a Rádio Educadora chegou tu tinha que vê... a aula no rádio ajudou muita gente a pelo menos saber escrever o nome. Pode perguntar pra eles.

Eu era monitora e tinha meus aluno tudinho que vinham e sentavam pela sala, pelo pátio... eles vinham proseando na canoa até chegar em casa, contavam de coisas que escutavam, né? Assombração, a mãe d’água, o Ataíde e a matinta. Uma vez quando acabou a aula eles estavam lá sentando ainda e acabou a luz da lamparina. Nisso a gente escuta uns passo, uns barulho de asa e adivinha? Era a matinta porque a gente escutou...fiiiiiiiit matinta pereraaaa. E eles tudo com medo, se agarrando no outro (risos). Eu chamei foi o povo de casa. Eles tudo ouviro na cozinha. Meu pai disse: vem pegar tabaco amanhã. E nós escutando aquela zuada de asa batendo e o fiiiiiiittttttt.

Isso quando acabou a aula. Durante a aula no rádio não aparecia porque era cedo ainda. A matinta só aparece tarde da noite, por isso ela apareceu quando acabou a aula. No outro dia uma vizinha apareceu perguntando as coisas pro papai e ele gritou: sai daqui matintaaaa. Tu que vira matinta. Tu que vira.5

O trecho da narrativa evidencia a memória, que segundo Halbwachs (2004), lembra dos fatos vividos com outros indivíduos, apresentando o ponto de vista individual, por mais que a memória esteja baseada na memória coletiva. A questão do testemunho também condiz a esse tópico, sendo um recurso presente nas narrativas orais.

Percebe-se também a relação de simbiose entre homem e natureza apresentada na fala do caboclo ao criar e recriar palavras e significações. Ao relatar a escuridão, pela falta de lamparina; as asas e o rio, ao tratar sobre canoa, ela faz ligação entre o homem e a floresta e mostra a relação próxima desses dois elementos. Pelo viés literário, para Todorov (2010), se trata de narrativas fantásticas, pois relatam acontecimentos que parecem sobrenaturais, mas que ao final tem-se uma explicação racional.

Pode-se perceber que a chegada do rádio provocou mudanças nos hábitos sociais, pois o mesmo começou a ser companheiro das horas de trabalho e na formação de grupos regionais que promoviam a conexão entre pessoas de comunidades diferentes. Na narrativa de Dona

5

(9)

Sabá, há a clara junção de pessoas para compartilhar as escutas no rádio, e não a audição solitária, o que relaciono às reuniões para a escuta das narrativas contadas sobre os mitos e lendas da região.

Era costume juntar um grupo de pessoas nas frentes das casas ou ao redor de algo, seja de uma cadeira, onde o narrador se instala para o contar, seja embaixo de uma árvore para ter sombra ou nas próprias casas. Dessa mesma forma estética ou física eram feitas as escutas do rádio. A voz do que era diferente, aos poucos, tornou-se próxima como qualquer um da comunidade. A educação e a informação com todo o seu grau de cientificidade, não limitou ou ocasionou o fim dessas contações, fato que comprovamos pelos dias de hoje, mas trouxe um olhar diferente sobre como compreender o mundo.

A narrativa a seguir, foi contada pelo seu Carlos Soares, morador da cidade de Bragança6.

Escutei muito a Rádio Educadora de Bragança, lembro que nos interiores era comum moradores se assentarem ao pé das árvores e postes onde havia sempre uma caixa de som. Nos locais de reunião dos moradores havia também aparelho de rádio para transmitir as missas radiofônicas, assim como notícias em geral, principalmente as notícias católicas comunicando de transferência de padres de um município para o outro. Dom Elizeu Corolli foi o criador e maior incentivador do uso do rádio como forma de propagação religiosa. As muitas historinhas locais relacionados à mitos foram aos poucos somadas às histórias da vida de santos, como o de Santa Terezinha, que atraiu muitos jovens para o convento. Lembro do padre Catel, um religioso que era responsável pelo perfeito funcionamento do rádio. Ele consertava todos os aparelhos, pelo o que eu sei o mesmo foi funcionário da RAI, empresa de rádio e televisão da Itália. Ele era de família de nobres italianos que ao determinado momento largou a vida de leigo e entrou para a Congregação dos Clérigos Regulares de São Paulo, conhecidos no mundo como padres Barnabitas. As histórias regionais sempre eram propagadas nas rodas de conversas e sempre tinham um cunho de verdade, porque foram repassadas de pai para filhos, sempre alguém presenciou: - Eu vi com meus próprios olhos que a terra há de comer ... (falou mudando um pouco a voz, como se estivesse repetindo a fala de alguém). - A matinta pereira assoviou em frente a minha casa e na manhã seguinte já tinha uma velhinha pedindo tabaco ... (entonação diferente como se estivesse imitando alguém). Nos contavam sobre o seu Ataíde ... até era dito: - Não vá ao mangue sozinho, pois o seu Ataíde só tá de botuca ... (imita outra voz). A Rádio Educadora de Bragança também fomentava o interesse de alunos nas participações de peças e teatros radiofônico, lembro que fui convidado para participar da história de Santa Terezinha desempenhando o papel de advogado.

6

(10)

O rádio proporcionou uma maior circulação de informações de outras culturas, porém como foi observado, há também as vozes ativas do público, que nesse caso, não somente fazem a escuta, mas dão suas vozes quando participam das aulas e da interação feita nos programas, sendo calouros nos festivais, sendo os artistas nas apresentações de dança e música, mandando mensagens nas programações e na cotação de narrativas sobre mitos e lendas. É a tradição sendo transformada e reinventada sob alguns aspectos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fundação de uma rádio local na cidade de Bragança-Pa deu aos moradores um meio de comunicação rápido e de fácil acesso para a difusão de informações, entretenimento, cultura, lazer e tantas outras formas de integrar um território vasto e rico culturalmente. Estruturada com programação religiosa, musical, educacional e jornalística a emissora oferecia aos ouvintes novos produtos culturais e de consumo.

A literatura é mais que um objeto estético, é uma manifestação cultural a qual oferece uma constante tensão entre identidade narrativa e discurso histórico. Dessa forma, o cruzamento com diferentes fontes documentais é necessário para o diálogo com as fontes orais, agregando assim uma interdisciplinaridade, que soma para resultados de pesquisa muito mais profundos e complexos.

REFERÊNCIAS

CALABRE, Lia. A era do rádio. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:Memória e Sociedade, 1990.

COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo:Iluminuras, 1999. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

(11)

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém: Cultural Brasil, 2015.

PESAVENTO, Sandra. História cultural: caminhos de um desafio contemporâneo. In:Projeto história.Santos,M; ROSSINI, M. (orgs). Narrativas, imagens e praticas sociais. Porto Alegre:Asterisco, 2008.

WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança. São Paulo: Editora Unesp, 2015;

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, tomo I. Campinas, SP: Papirus, 1994.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petropolis, RJ: Vozes, 1998.

(12)

Referências

Documentos relacionados

Para entender o supermercado como possível espaço de exercício cidadão, ainda, é importante retomar alguns pontos tratados anteriormente: (a) as compras entendidas como

Portanto, mesmo percebendo a presença da música em diferentes situações no ambiente de educação infantil, percebe-se que as atividades relacionadas ao fazer musical ainda são

Biogeografia de Ilhas: A atenção às ilhas como local de estudo para se entender a diversidade foi dada por Charles Darwin, quando formulou sua hipótese sobre a evolução das

segunda guerra, que ficou marcada pela exigência de um posicionamento político e social diante de dois contextos: a permanência de regimes totalitários, no mundo, e o

b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

A análise avançada é definida, no contexto da AS4100 (1990), como uma análise inelástica de segunda ordem muito precisa em que são incluídos os aspectos importantes (curvatura

Os resultados são apresentados de acordo com as categorias que compõem cada um dos questionários utilizados para o estudo. Constatou-se que dos oito estudantes, seis

5.8 A convocação constando, a data, o horário e o local de cada etapa será enviada por e-mail, para o endereço eletrônico cadastrado, pelo candidato, no ato de