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A Arte Rupestre No Brasil

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Academic year: 2021

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MaDu Gaspar

A Arte Rupestre no Brasil

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Sumário

Introdução Arte nas sociedades simples Diferentes maneiras de perceber a arte rupestre Breve histórico do estudo da arte rupestre no Brasil Os primeiros artistas Caracterização e distribuição espacial dos grafismos brasileiros Estudo dos grafismos através do tempo Contextualização dos grafismos por associação com vestígios de solo Conclusão Referências e fontes Sugestões de leitura Agradecimentos Sobre a autora Ilustrações (entre p.48-49)

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Conta o arqueólogo André Prous que a pesquisadora francesa Anette Laming-Emperaire costumava dizer que a arte rupestre parecia o campo mais fácil de ser estudado na arqueologia: o “aficcionado” não tem dificuldade em discursar sobre vestígios — tão visíveis sem precisar de escavação, e tão mudos que aceitam qualquer interpretação —, mas acrescentava que, na realidade, trata-se de seu capítulo mais complexo, e no qual se cometem os maiores erros.

Introdução

O que é atualmente o território brasileiro está repleto de testemunhos arqueológicos que guardam importantes evidências da história da colonização humana em nosso continente. São os sítios arqueológicos com vestígios dos caçadores que iniciaram a ocupação da América do Sul, os monumentais sambaquis do litoral, as inúmeras aldeias de grupos ceramistas dispersas por todo o país que contêm informações sobre o passado do que é hoje o território brasileiro e a diversidade cultural que foi, passo a passo, aqui se instalando. Um tipo especial de manifestação, em decorrência de seu apelo estético, destaca-se entre as demais. São as pinturas e gravuras que foram feitas nas paredes de grutas, abrigos, blocos, lajes e costões por diferentes grupos sociais, em vários períodos. Caçadores, pescadores e horticultores deixaram belas marcas de sua presença; já no Brasil Colônia tanto os europeus expressaram suas crenças religiosas nesses suportes como os africanos e seus descendentes mantiveram a forte tradição existente em seu continente, deixando suas próprias sinalações. Mais recentemente, o comércio e a política também divulgaram mensagens nos morros, garantindo alta visibilidade para seus reclames. Atualmente, no espaço urbano, grupos de jovens grafitam suas marcas e quadrilhas de traficantes assinalam sua presença em muros e prédios. São sinalações que transmitem mensagens pertinentes ao grupo que as realizou e a seus contemporâneos. Muitas vezes, esses grafismos fazem referência ao território, às práticas e às condutas de seus autores, bem como indicam locais importantes e de forte apelo emocional. O hábito de perpetuar mensagens em pedras e paredões tem longa duração e diferentes significados.

Este livro enfoca os grafismos pré-históricos que, na medida do possível, serão correlacionados a outros aspectos da vida cotidiana dos grupos que os confeccionaram. Apresentarei, inicialmente, uma breve discussão sobre a arte em sociedades ditas “simples”. Depois, um histórico das pesquisas realizadas no Brasil. Caracterizarei as principais tradições arqueológicas de grafismos, tanto no espaço como no tempo, e apresentarei as principais descobertas e os estudos mais interessantes sobre o tema.

Arte rupestre não tinha sido, até então, um tema de meu interesse científico, mas sempre me fascinaram a beleza, todo o trabalho envolvido na confecção de sinalações, a diversidade e a perenidade dessas marcas. Escrevo com a viva lembrança da primeira vez que vi um painel com pinturas. Integrava uma equipe de estagiários do Museu Nacional que realizava prospecções no interior da Bahia, e nenhum de nós havia visto pinturas rupestres. Ao me deparar pela primeira vez com o lindo painel repleto de figuras em vermelho que configura a “Pedra Escrita”, a realidade superou minha imaginação. Não podia imaginar que no Brasil existissem pinturas mais bonitas que as de Lascaux e Altamira e é com prazer que apresento a diversidade e a beleza dos grafismos rupestres brasileiros.

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A arte nas sociedades simples

Os cientistas sociais, ao pensarem sobre as diferentes sociedades, propõem que elas podem ser agrupadas em dois grandes conjuntos: sociedades simples e complexas. Nas primeiras todos participam do processo de produção, distribuição e consumo de bens, com a divisão social do trabalho apoiando-se em classes de idade e sexo. Já as sociedades complexas são marcadas por forte hierarquia social que assegura privilégios e deveres para diferentes segmentos. No que se refere à produção de arte, caracterizam-se pela dissociação entre o produtor e o consumidor de bens artísticos. Tal dissociação não ocorre nas sociedades simples; nelas é possível até mesmo contar com a presença de certos especialistas, mas não com um corpo de profissionais que produzem para o mercado e obtêm o seu sustento através dessa prática.

Assim, o domínio da arte nas sociedades consideradas simples está particularmente integrado à rotina da comunidade, reforça tradições e tende a estar vinculado ao domínio ritual. Alguns arqueólogos chegam a sugerir que “arte” é um termo inadequado, sendo mais pertinente denominar as sinalações pelo termo “grafismo”. Considero “arte rupestre” uma expressão já consagrada e que pode ser mantida, especialmente se tratada no sentido sugerido por André Prous — ao enfatizar que as palavras “arte” e “artista” têm a mesma raiz latina que “artesão”, sendo arte o conhecimento de regras que permitem realizar uma obra perfeitamente adequada a sua finalidade. É esse o sentido que atribuo à expressão “arte rupestre”. Assim, o recorte que desenhei para este livro apóia-se na própria tradição de pesquisa arqueológica brasileira. Ao mesmo tempo que constitui um campo de saber com problemas e estratégias de pesquisas próprias, que serão aqui abordadas, a arte rupestre é um domínio integrado aos demais aspectos da vida social do grupo que a produziu.

O estudo de Nancy D. Munn sobre a iconografia dos Walbiri, da Austrália, é um bom exemplo de como os grafismos rupestres podem estar articulados com outros conjuntos de manifestações gráficas e integrar a vida social dos grupos que os elaboraram. Os Walbiri representam as suas habilidades pictográficas em diferentes situações: são desenhos totêmicos feitos durante o ritual no próprio corpo, em tábuas ou pedras sagradas e desenhos na areia que complementam graficamente histórias sobre vários acontecimentos. Munn diz que a arte gráfica Walbiri tem sido equivocadamente rotulada de “geométrica” ou “abstrata”, chamando a atenção para suas conexões com noções relacionadas a ancestrais, nação e sonhos em uma única matriz de idéias. Os ancestrais totêmicos são representados por desenhos gráficos, cada um se associando a uma ou mais formas com explícita referência semântica. Dessa forma, as pinturas não são meramente formas decorativas.

Já os desenhos feitos na areia são parte do discurso no qual experiências são trocadas e eventos comunicados. Como a conversa entre os Walbiri geralmente ocorre com as pessoas sentadas no chão, o desenho é um complemento da expressão verbal e gestual. São cerca de 12 elementos regularmente usados, sendo que cada um representa um conjunto de significados. Um simples traço de forma geométrica muito simples pode representar lança, bastão de luta, bastão de cavar, homem, animal (cão ou canguru) ou fogo. Já elementos combinados formam cenas que podem se passar no acampamento, no espaço ritual, fora do acampamento e referem-se à caça, coleta ou procura por água, entre outros temas.

Com este exemplo quero enfatizar que as diferentes manifestações de arte rupestre brasileira também integravam a vida cotidiana dos diferentes grupos pré-históricos que a produziram. Em certos casos, poderiam ser complementares à fascinante pintura corporal ainda praticada por algumas tribos brasileiras. Porém, fundamentalmente, é preciso ressaltar que o grafismo era parte

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integrante do sistema de comunicação do qual se preservaram apenas as expressões gráficas que resistiram ao tempo. Trata-se de um domínio em que estão representados sistemas de idéias e de que se pode apenas aventar a complexidade e diversidade ao contemplar o caso Walbiri.

Gabriela Martin, estudiosa da arte rupestre do nordeste do Brasil, assinala que grafismos tão comuns nos registros rupestres como espirais, círculos radiados e linhas paralelas onduladas podem significar, ao mesmo tempo, dependendo do grupo cultural, símbolos femininos ou masculinos, incesto, o movimento das águas ou a piroga anaconda que transporta a humanidade. Quem poderia imaginar que uma simples linha, considerada em nossa cultura uma das mais simples formas geométricas, pode conter tantos significados? Se por um lado traços simples podem conter vários significados, André Prous ressalta que sinais vistos como simbólicos em algumas interpretações de arte rupestre podem ser simples esquematizações. Um bom exemplo é a figura do triângulo, que pode ser tanto um desenho geométrico ou uma simples representação realista. Este é o caso do desenho composto de dois triângulos opostos, feito pelos Bororo, que representa uma realista vértebra de peixe.

Para complicar ainda mais, estudos realizados por André Prous e Alenice Baeta, em lâmina extraída de um paredão do sítio arqueológico Santana do Riacho, em Minas Gerais, e analisada em microscópio, indicou a existência de muitas pinturas que não podem ser visualizadas nem a olho nu nem com o auxílio de fotografia com filme infravermelho. Além disso, não se deve esquecer a fragilidade relativa de cada tinta utilizada pelo pintor pré-histórico. Os pigmentos vermelhos fixam-se melhor nas paredes que os mais pastosos, como os amarelos e brancos, e, desta forma, os amarelos aparecem geralmente na forma de manchas e podem estar sub-representados. É possível, ainda, que tenham sido feitas pinturas com pigmentos vegetais e que desapareceram totalmente com o passar do tempo. Além do mais, uma série de alterações óticas, que incluem desde efeitos naturais relacionados com a incidência da luz ou mesmo decorrentes da sobreposição de grafismos, moldam a percepção atual da arte rupestre.

É preciso, ainda, levar em conta que a organização dos painéis e até mesmo das figuras que os compõem pode ser o resultado final da intervenção de inúmeros pintores que se sucederam através de gerações. Prous e Baeta mostraram que cada pintor, ao acrescentar uma figura num painel, interpretava as obras anteriores, sua contribuição não sendo inserida como elemento isolado, mas como uma nova parte de um conjunto preestabelecido. Ao pintar um veado, acima ou ao lado de outro já existente, o artesão podia querer reafirmar ou atualizar o significado do primeiro desenho ou então negá-lo, substituindo o animal. Ainda podia enriquecer o significado original da primeira pintura ao acrescentar, por exemplo, uma corça ao animal preexistente, e com tal atitude evocar a dualidade procriadora, dando um novo significado ao desenho anterior. Ao contemplarmos um painel pré-histórico, sentimos a tentação de atribuir um sentido global ou final às figuras que o integram, pois é assim que apreciamos as obras de arte produzidas por nossa sociedade, onde há um distanciamento entre a produção e o consumo de arte. A inauguração de uma exposição de arte é a ritualização do momento de apresentação do produto final. Através desse rito, somos treinados a perceber as obras de arte como a fixação de um único momento, o momento em que o artista resolve mostrar o seu trabalho. No caso dos grafismos pré-históricos, muitas vezes as figuras são acrescentadas progressivamente aos painéis, afirmando, modificando ou negando o significado das figuras preexistentes. Para os pesquisadores de Minas Gerais, acima referidos, o que está representado atualmente nos abrigos é, na melhor das hipóteses, o estado final da decoração dos paredões rochosos. A arte rupestre está impregnada de todas as marcas decorrentes do tempo, que

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eliminou algumas cores, figuras e, eventualmente, acrescentou tonalidades resultantes da ação de fungos e outros agentes naturais.

Arte rupestre consiste em manifestações gráficas realizadas em abrigos, grutas, paredões, blocos e lajes feitas através da técnica de pintura e gravura. As gravuras podem ser elaboradas através de picoteamento ou incisão; já as pinturas foram realizadas por meio de diversas técnicas: algumas, com a fricção de um bloco de pigmento seco e duro na pedra; outras, com o uso de um pincel feito de galhos de árvore; em outros casos, a pintura foi feita com o próprio dedo ou o pigmento foi transformado em pó e soprado na rocha.

Ao analisar os grafismos rupestres os pesquisadores costumam fazer uma classificação inicial apoiada na técnica de confecção dos grafismos, opondo principalmente pintura à gravura. Esse contraponto parece ser pertinente para certas regiões onde só ocorre uma ou outra técnica, ou no caso de motivos que só foram representados de uma maneira ou de outra. Numa primeira abordagem do tema, levantamentos sistemáticos desenvolvidos pela equipe de Minas Gerais mostram que em alguns motivos representados foram utilizadas ambas as técnicas e que gravuras, muitas vezes, foram preenchidas por pintura, o que torna a classificação bastante complicada. Como muitas gravuras estão em áreas abertas, bem iluminadas, geralmente perto de águas, picotear ou fazer incisões na pedra talvez fosse o único recurso para demarcar, de maneira duradoura, locais na paisagem.

Também é bastante variado o tipo de suporte escolhido para os grafismos. Paredões expostos à ação do mar como os existentes na costa de Santa Catarina, paredes de grutas e de abrigos e até mesmo rochas isoladas às margens de rio. Alguns artesãos escolheram locais de difícil acesso para executar os grafismos; em virtude da altura em que se encontram foi necessária a construção de andaimes ou de algum tipo de escada para se ter acesso aos paredões. Alguns grafismos têm alta visibilidade e parecem ter funcionado como uma espécie de marco na paisagem, em outros casos foram feitos em locais de difícil visualização e acesso. Pode-se dizer que foram feitos para permanecerem escondidos e, talvez, fossem locais restritos aos iniciados.

Às vezes, a implantação das pinturas na paisagem pode fornecer um caminho para a interpretação do grafismo. Este parece ser o caso do que Leila Maria Pacheco e Paulo Tadeu de Albuquerque denominam “sítio cerimonial” do Lajedo da Soledade, em Apodi, Rio Grande do Norte. No afloramento calcáreo com estreitas grutas, galeria longas e baixas, pequenos abrigos sob rochas e ravinas, alguns grafismos estão escondidos e só foram descobertos porque Paulo Tadeu de Albuquerque realizou uma minuciosa busca de inscrições procurando desenhos em locais de difícil acesso. Parte da prospecção arqueológica foi realizada com auxílio de espelho para que reentrâncias da pedra pudessem ser inspecionadas. Para Gabriela Martin no Lajedo da Soledade encontra-se uma das mais interessantes representações rupestres relacionadas com a observação celeste. Para penetrar no pequeno abrigo, com cerca de 50cm de altura, e observar as pinturas é preciso rastejar de costas. Completa o cenário o fato de as imagens ficarem iluminadas apenas pela luz que atravessa um orifício na rocha situado ao fundo do abrigo. No centro do teto, uma figura radiada aparece atravessada por uma linha sinuosa de grafismos na forma de setas, que percorrem uma trajetória desde o orifício por onde a luz penetra até se perder no fundo do pequeno abrigo. Para a pesquisadora, toda essa ambientação sugere o registro da trajetória de um astro, provavelmente o Sol. Os motivos que decoram a Toca do Cosmo, na Bahia, também levaram Maria Beltrão a considerar que ali estão representados fenômenos astronômicos.

No que se refere aos corantes, é possível obter uma série de informações através de análises físico-químicas de pigmentos. Maria da Conceição Soares Meneses estudou as pinturas rupestres da

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Serra da Capivara, no Piauí, e estabeleceu a composição química das tintas. A cor vermelha é constituída de óxido de ferro misturado com uma substância rica em cálcio; a amarela é goetita, um óxido de ferro hidratado. A cor branca era feita com duas espécies de tinta, kaolinita e gipsita; o cinza, por sua vez, é uma mistura natural dos pigmentos vermelho e branco. A coloração azul, observada na Toca do Veadinho, não existia no momento da realização da pintura: trata-se de um pigmento preto que, com o passar do tempo, foi recoberto por mineral silificado que alterou sua coloração. O preto foi conseguido de duas maneiras: através de carvão vegetal obtido com a queima de madeiras ou de carvão animal resultado da queima de ossos. O estudo dos pigmentos negros traz em si a possibilidade de datação da própria tinta e, portanto, a possibilidade de estabelecer o período em que a pintura foi feita. Seu estudo permite, também, a identificação das espécies animais que foram queimadas.

No futuro, poderemos ser surpreendidos pela notícia de que ossos humanos foram queimados e utilizados em pinturas rupestres, costume que não estaria em contradição com os hábitos de grupos nativos que habitaram o nosso território. Manipular ossos humanos — cremando, marcando, pintando — é um costume antigo e muito bem documentado na pré-história brasileira. Análises de pigmentos encontrados na Austrália indicam que a proteína existente no sangue humano foi usada na confecção de mãos que decoram a Caverna Judds, na Tasmânia.

Existe uma série de procedimentos para a realização dos estudos de arte rupestre. O primeiro de todos é a prospecção sistemática para a localização dos sítios arqueológicos; depois o estudo detalhado dos grafismos, que são fotografados com diferentes tipos de filme e geralmente decalcados com a utilização de plásticos transparentes que recobrem os desenhos. Com canetas pilot de diferentes cores são feitas enormes cópias em tamanho natural dos painéis. Levadas para o laboratório, são minuciosamente estudadas, tentando-se identificar e ordenar as figuras, bem como estabelecer estilos, motivos, maneiras de representar e de distribuir espacialmente os grafismos. A fotografia com diferentes tipos de filmes e as filmagens também são oportunas para contextualizar os achados.

Uma série de estudos detalhados é realizada, tudo dependendo do momento da pesquisa e das questões colocadas pelos pesquisadores. Datar os grafismos pressupõe encontrar evidências que indiquem o momento de sua confecção — sejam vestígios orgânicos nos pigmentos (datação por meio de métodos físicos), sejam blocos caídos ou pigmentos de corante (datação por meio dos materiais orgânicos associados). Já o estudo da evolução cronológica busca discernir, nos painéis, sobreposições de figuras para estabelecer a seqüência de elaboração de estilos.

Avaliar a dispersão espacial de determinada maneira de decorar rochas exige prospecções sistemáticas em amplas regiões e a comparação de grafismos estudados por diferentes arqueólogos, pois, dificilmente, uma única equipe de pesquisa consegue realizar trabalhos detalhados em toda a área coberta por um tipo de pintura ou gravura. Para que os arqueólogos possam compartilhar suas informações, a comunidade científica investe na elaboração de uma nomenclatura científica e na divulgação de técnicas e estratégias de registro da arte rupestre. São etapas distintas do trabalho de pesquisa que vão sendo realizadas e que, passo a passo, permitem construir um quadro de referência para a arte rupestre do Brasil.

No que se refere à análise dos grafismos, é preciso considerar que mesmo as primeiras prospecções são procedimentos marcados pela orientação teórica adotada pelos pesquisadores. A seqüência de tarefas desenvolvidas no campo que visa estudar da melhor maneira possível os grafismos é fruto de escolhas teórico-metodológicas que delineiam a produção de conhecimento.

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Em certo sentido, a própria escolha dos sítios estudados já é permeada pelos pressupostos teóricos abraçados pelo pesquisador. Vejamos um exemplo de fácil entendimento. Se o estudioso considera os grafismos como um sistema de comunicação, uma espécie de linguagem, ao estudar gravuras que têm como tema exclusivamente linhas, pontos e círculos, corre o risco de se perder num emaranhado de combinações de figuras e, dificilmente, conseguirá construir uma interpretação que dê conta da realidade observada. Certamente, seu trabalho será mais interessante se estiver estudando uma região onde as pinturas se caracterizem por cenas complexas com a participação de vários seres humanos e das quais se possa depreender o tipo de atividade ali representado. Quero dizer que alguns conjuntos de manifestações artísticas são objeto de estudo muito mais instigante para quem está procurando entender o significado simbólico dos grafismos do que outros conjuntos.

Diferentes maneiras de perceber a arte rupestre

Distintos pressupostos orientaram os estudos sobre arte rupestre ao longo do tempo. No século XIX, a idéia predominante era que esse tipo de arte era resultado do prazer puramente estético do homem pré-histórico: a arte pela arte. Com a descoberta de grafismos em locais de difícil acesso e de uma certa coerência interna aos painéis, ficou evidente o aspecto restrito desse ponto de vista. Já segundo as reflexões encabeçadas pelo abade Henri Breuil (1877-1961) — uma autoridade em arte do paleolítico que descobriu inúmeras cavernas e registrou enorme quantidade de grafismos na Europa —, a arte era tratada em termos de magia simpática. Os desenhos de animais teriam sido feitos com o objetivo de controlá-los na vida real. Por exemplo, o que se chamou de magia da caça pressupunha que o homem do paleolítico decorava as paredes das cavernas com imagens de animais para, através da magia, ser favorecido nas caçadas. A magia da fertilidade também explicava alguns grafismos: os artistas teriam feito os desenhos para assegurar a reprodução dos animais e garantir alimentos no futuro. Explicações apoiadas no totemismo também orientavam as interpretações da época, sendo recorrente a elaboração de analogias simplistas com grupo tribais que estavam sendo estudados pelos etnólogos. De acordo com esse ponto de vista, os paredões teriam sido decorados pela simples acumulação de figuras isoladas, sem planejamento algum.

Em 1940, quatro adolescentes franceses descobriram na Dordogne, região sudoeste da França, a caverna de Lascaux, que apresenta um dos mais famosos e espetaculares conjunto de grafismos do paleolítico. Apesar de sua importância para a ciência, não foram feitas escavações nas áreas principais da caverna em decorrência de sua adaptação para o turismo, que atrai um grande número de visitantes. Segundo Paul Bahn, é tão intensa a visitação que em 1963 constatou-se um forte impacto ambiental com bactérias atacando as imagens. Para atender ao público, as autoridades decidiram pela construção de uma réplica denominada Lascaux II, inaugurada em 1983 e que recebe cerca de 300 mil pessoas por ano. A análise de carvão recuperado em escavação arqueológica indicou que Lascaux foi ocupada por volta de 15.000 anos APa, e os estudos sugerem que a caverna foi um local de breves visitas

periódicas para atividades artísticas ou rituais, não havendo indícios de ter sido um local de moradia. A caverna é bastante conhecida pelas pinturas mas, na realidade, a maioria das figuras foi executada através da técnica de gravura. No primeiro salão estão pintados quatro enormes e impressionantes touros e, em menores dimensões, cavalos e veados. Em uma das galerias ocorre a transição da pintura para a gravura. No interior da caverna está representada a famosa cena do homem com cabeça de ave e falo ereto acompanhado por bisões e outros animais.

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Artefatos relacionados com a decoração das paredes foram encontrados no interior da gruta, além de muitas lamparinas, fragmentos de mineral, alguns com marcas de retirada, e trituradores com pigmentos. Análises químicas revelaram que os vários minerais eram misturados ou aquecidos para que fossem obtidas diferentes tonalidades.

Com a descoberta de Lascaux e as profundas transformações ocorridas nas ciências sociais — relacionadas às inovações teóricas do estruturalismo —, constituiu-se uma nova maneira de perceber os grafismos rupestres. Essa nova abordagem tem suas origens nos trabalhos do lingüista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), cuja teoria revolucionou o entendimento da linguagem ao considerá-la como um sistema de comunicação. A tarefa do lingüista passou a ser descobrir regras inerentes ao ato de falar. Claude Lévi-Strauss, um dos mais importantes teóricos do estruturalismo, enfatizou princípios que estruturam a mente humana numa série de oposições binárias, tais como direita/esquerda, dia/noite e cru/cozido, mediante as quais a cultura é criada e pode ser entendida. Já para Roland Barthes (1915-80), um teórico da literatura e da semiótica, a cultura humana constitui um enorme código simbólico e os métodos da semiótica seriam o caminho para decifrá-lo. Essa nova perspectiva teórica teve importante repercussão na maneira de se fazer arqueologia.

De uma perspectiva estrutural, artefatos integram sistemas de signos que comunicam significado não-verbal de uma maneira análoga à linguagem. Sem esmiuçar o tema, pode-se vislumbrar todo o campo de reflexão sobre arte rupestre que se abriu em decorrência dessas inovações nas ciências sociais. Os painéis passaram a ser vistos como tendo uma organização interna e foram abandonadas as interpretações que se apoiavam em explicações externas aos grupos culturais que executaram os grafismos. O foco deixou de ser a descrição pormenorizada de figuras isoladas, procurando-se lidar com o conjunto e sua disposição no espaço. A forma não é o único aspecto a ser estudado, pensa-se em ritmo, combinações de técnicas, luminosidade, hierarquia entre grafismos, jogo entre forma e fundo e até a acústica das cavernas é considerada.

André Leroi-Gourhan e Anette Laming-Emperaire, arqueólogos que se tornaram os principais pesquisadores de arte rupestre após a morte de Henri Breuil e foram fortemente influenciados pelo estruturalismo, buscaram estabelecer uma ordenação das figuras sem recorrer a analogias simplistas com grupos tribais e tentaram relacioná-las com o próprio modelo de sociedade que as produziu. As contribuições de Anette Laming-Emperaire são especialmente importantes para nós, já que ela teve forte influência na formação de arqueólogos brasileiros.

Na década de 1950, os dois pesquisadores concluíram que as cavernas tinham sido decoradas de maneira sistemática, e não ao acaso. Os grafismos foram tratados como composições individuais realizadas em cavernas individuais, e as representações de animais deixaram de ser consideradas reproduções fiéis, sendo interpretadas como símbolos. Estudaram-se as relações entre as figuras e foram enfocadas as associações entre elementos que se repetiam. Verificou-se que os animais que apareciam em maior número e com destaque no painel representavam a dualidade básica que ordenava a sociedade que os produziu e que esta dualidade era sexual. Para Laming-Emperaire, os cavalos correspondiam à mulher e os bovídeos, aos homens. Esta idéia foi estendida aos sinais (geométricos) identificados como representações de homem (falo) e de mulher (vulva). Muitas críticas foram feitas a esta corrente interpretativa em virtude do caráter subjetivo das análises estatísticas realizadas.

Não pretendo aqui esgotar o assunto, apenas ressaltar, como já foi feito por André Prous, a existência de várias correntes teóricas e modismos que se sucedem no tempo. Não cabe aqui listar todas as perspectivas, apenas mencionar algumas que norteiam a maneira como os grafismos são

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estudados. Para alguns pesquisadores, os grafismos podem ser explicados através do que se chama de arqueoastronomia, que pressupõe que grafismos representam fenômenos celestes como parte do céu: estrelas, cometas e eventos astronômicos. Para outros, as figuras são expressão de viagens xamanísticas decorrentes da ingestão de drogas — supostamente responsáveis por imagens causadas pelos fosfenos correlacionadas às figuras geométricas. Isso não significa que os fenômenos celestes não tenham sido observados e representados — o Lajedo da Soledade, em Apodi, no Rio Grande do Norte, parece ser um bom exemplo de tal prática. Tampouco quero negar o uso de alucinógenos por populações nativas, pois esta foi e ainda é uma prática recorrente entre muitos grupos. Porém, trilhar esse caminho interpretativo ao se deparar apenas com círculos ou borrões pode ser uma armadilha que restringe outras possibilidades analíticas.

Como vimos, ao longo do desenvolvimento das ciências sociais prevaleceram diferentes perspectivas de análise da arte rupestre. Cabe ao pesquisador pinçar o que é interessante e compor um corpo teórico que balize a interpretação do conjunto de grafismos estudado. Simples modismos passam rapidamente, mas contribuições de correntes teóricas bem fundamentadas são incorporadas definitivamente na produção do saber. Muitas das inovações trazidas pelo estruturalismo podem estar aquém do patamar explicativo alcançado pela arqueologia moderna; porém, noções derivadas de seus ensinamentos demonstraram que os grafismos devem ser entendidos a partir das próprias figuras representadas e dos arranjos dos painéis, e não recorrendo-se a explicações exógenas. Ou seja, é equivocado interpretar grafismos antigos produzidos há milênios a partir da experiência gráfica de grupos atuais. Mesmo havendo uma clara filiação cultural, é indispensável levar em conta a dinâmica da cultura e as profundas e inevitáveis transformações acarretadas pelo passar do tempo. No caso brasileiro, convém apontar a desestruturação advinda do contato com o europeu e as muitas mudanças daí resultantes.

Da mesma forma, dentre as contribuições definitivas trazidas pela Nova Arqueologia — movimento que ocorreu na década de 1960 em países de língua inglesa —, destaca-se o estudo dos aspectos espaciais das manifestações arqueológicas. A Nova Arqueologia ou Arqueologia Processual teve como principal destaque o arqueólogo norte-americano Lewis R. Binford. Um dos postulados que orientou essa linha de pensamento sustenta que o comportamento humano é altamente padronizado e que, portanto, artefatos produzidos pelos homens seguem um padrão no que se refere aos aspectos formais e às suas propriedades espaciais. Por conseguinte, o registro arqueológico (produto do comportamento humano) também apresenta forte padronização, revelando-se como uma possibilidade de estudo da organização social. Na agenda proposta, forte enfoque foi dado à adoção de novos métodos e técnicas de investigação, especialmente as abordagens estatísticas como estratégia para identificar os padrões.

Essa perspectiva fornece um viés para a análise dos grafismos classificados como geométricos, muito podendo ser dito acerca da distribuição espacial, implantação ambiental, filiação cultural e demais características desses testemunhos. Este é o caso dos grafismos dos Lajedos de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, cuja uniformidade da composição temática e estrutura sugere que as gravações tenham sido realizadas por um mesmo grupo cultural. Considerando a energia gasta na produção dos imensos painéis, 510m2 de área o maior deles, fica evidente o trabalho envolvido em sua produção. Avaliando sua distribuição espacial e de outros tipos de testemunhos arqueológicos na região, sugeriu-se que foram confeccionados pelos construtores dos aterros que ocuparam as áreas alagadiças. Os longos sulcos sinuosos ligando grafismos circulares sugerem tratar-se de representações do ambiente onde se encontram, isto é, um emaranhado de rios, canais e lagoas.

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Segundo Maribel Girelli, em decorrência das dimensões e de sua implantação ambiental, são extremamente visíveis em áreas abertas. Para a pesquisadora, as formas representadas insinuam trilhas, passos e ritmos a serem seguidos. Quando vi as enormes transparências feitas em tamanho natural, no laboratório do Instituto Anchietano de Pesquisas, tive a clara sensação de que estava observando um mapa. Mas quem garante que não estamos diante da parte gráfica de um mito que envolve animais, homens e deslocamentos de espíritos ou seres fantásticos através das águas do Pantanal?

Nesse caso, um dos caminhos a seguir é aproveitar os ensinamentos da Nova Arqueologia e correlacionar os grafismos aos sítios arqueológicos da região e investigar a sua implantação na paisagem, como bem fez a equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas. A arte rupestre foi considerada um aspecto importante de um grupo cultural que ocupou a região e deixou inúmeros traços de sua passagem.

A Nova Arqueologia foi um importante movimento, e críticas e desdobramentos apontaram novos passos para a arqueologia. Outra vertente é a Arqueologia Comportamental, de Jefferson Reid, Michael Schiffer e William L. Rathje, da Universidade do Arizona, que entre outras contribuições aborda os processos de formação dos sítios arqueológicos pondo em foco fenômenos culturais e naturais que agiram na formação do testemunho arqueológico. Essa linha de pesquisa salienta que o registro arqueológico, seja qual for (um paredão com pintura rupestre ou um sambaqui), chega aos dias de hoje marcado por transformações naturais e por ações de outros grupos culturais. Ressalta que é trabalho do arqueólogo desvendar todos esses processos que causam modificações profundas nos testemunhos pré-históricos. No caso dos grafismos, é preciso investigar o componente dos diferentes pigmentos que compõem o painel para que não prevaleça uma visão fortemente marcada pela impressão das cores mais resistentes à ação do tempo. É preciso identificar, também, os grafismos que foram adicionados por outros grupos para que se possa traçar a “história de vida” de determinado painel.

Porém, a maior reação veio da chamada Arqueologia Pós-Processual, cuja denominação já é uma referência crítica à corrente que a antecedeu. O termo pós-processual foi utilizado pela primeira vez em 1985, por Ian Hodder, da Universidade de Cambridge. Ao contrário da corrente anterior, não há uma agenda a seguir, como também não se buscam leis de comportamento. O foco reside na interpretação: ações e materiais podem ser percebidos como textos interpretados por aqueles que os fizeram e os utilizam. Como um texto admite diversas leituras, isso inclui não só os “leitores” da sociedade que o produziu, como também os “leitores” da sociedade que pretende estudar tais textos — os próprios arqueólogos.

No momento, desenvolve-se um saber estruturado sobre o potencial explicativo da cultura material, e diferentes perspectivas teóricas são adotadas. Atlântidas, fenícios e alfabetos são cartas fora do baralho das pesquisas arqueológicas. Por outro lado, muitas vezes o excessivo rigor metodológico que caracteriza esse domínio da arqueologia acaba por engessar interpretações possíveis. Nesse momento, uma tendência prevalece nos estudos de arte rupestre e, independentemente da orientação teórica, as pesquisas vêm sendo marcadas por grande rigor técnico no que se refere à descrição de formas, de painéis, à análise de pigmentos etc. Esse movimento soa como uma reação à série de interpretações fantasiosas ou pouco fundamentadas que marcou o estudo desse campo.

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Breve histórico do estudo da arte rupestre no Brasil

No período inicial da arqueologia brasileira (1870-1930), o tema que mais chamou a atenção dos pesquisadores foi a antigüidade da ocupação da região de Lagoa Santa, especialmente as descobertas que tentaram relacionar os primeiros caçadores com os ossos de megafauna encontrados em grutas e abrigos de Minas Gerais. As culturas do baixo Amazonas, os sambaquis e a arte rupestre também foram temas importantes no começo da formação da arqueologia brasileira.

Os grafismos rupestres são mencionados desde o século XVI. Alfredo Mendonça de Souza oferece um interessante histórico das pesquisas, e assinala que as Lamentações brasílicas, obra do padre Francisco Teles escrita entre 1799 e 1817, registram 274 sítios arqueológicos com gravações e pinturas no Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí e Pernambuco. Acreditando que tais sinais teriam sido feitos por indígenas e por holandeses e que seriam roteiros de tesouros, tentou decifrá-los, cotejando-os com os alfabetos grego e hebraico, signos zodiacais e tábuas astronômicas. O padre Francisco Teles não só realizou um levantamento detalhado de sítios rupestres, como, em certo sentido, inaugurou duas importantes correntes interpretativas deste tipo de testemunho arqueológico: a vertente que vê os grafismos como uma linguagem e a que os toma como referências astronômicas. Cientistas de várias procedências registraram manifestações rupestres durante suas expedições: Karl Friedrich Philipp von Martius (1818-21), Auguste de Saint Hilaire (1816) e Charles Frederich Hartt (1870). Jean-Baptiste Debret (1834) copiou as pinturas que estão às margens do rio Japurá e Rugendas (1835) desenhou algumas manifestações pelos caminhos por que passou.

Inscrições indígenas copiadas por Debret

É claro que nessa época discutia-se se tais manifestações eram decorrentes de processos naturais ou se tinham origem humana. Alguns estudiosos achavam que eram resultado da ação de partículas ferruginosas na pedra ou indícios da presença de Atlântidas no território brasileiro. As especulações sobre as marcas existentes na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, são um bom exemplo sobre as preocupações da época. Para muitos, essas marcas, resultado de processos naturais que ocorrem na rocha, eram o mais vivo testemunho da passagem de fenícios pelo que viria a ser o território brasileiro.

O primeiro trabalho mais extenso sobre arte rupestre, publicado em 1887 por Tristão de Alencar Araripe, afirmava se tratar de obra humana e de grande antigüidade, ressaltando, assim, a importância de seu estudo.

O início do século XX é marcado por uma grande polêmica com intensa participação da intelectualidade brasileira. De um lado, aqueles que não consideram a arte rupestre um tema digno de estudo e, do outro, os que a percebiam como uma manifestação carregada de significados, podendo

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ser uma forma degradada de escrita ou a origem de todas as formas de escrita do mundo. Por exemplo, Theodor Koch-Grünberg, diretor do museu etnográfico de Stuttgart, sustentava que a arte rupestre não passava de produto do ócio, não representando nenhum tipo de comunicação. Já Ermano Stradelli procurou explicações indígenas para interpretá-la, vendo nos desenhos ordens de marcha, existência de víveres, posse, representações de deuses, instrumentos musicais, armas, animais e adornos. Seguindo essa linha, Alfredo Brandão (1914) interpretou os grafismos de Alagoas como uma forma pré-histórica de escrita, por ele decifrada e associada a uma civilização megalítica descendente da Atlântida. Já para Theodoro Sampaio (1922), os sinais seriam uma espécie de lápide mortuária e que ali estaria grafado o nome do índio morto e de sua descendência. Apoiando-se no vocabulário tupi, investiu em sua tradução. Paralelamente, vários cientistas continuavam a registrar as manifestações de arte rupestre em lugares do Brasil que iam sendo desbravados.

As diferentes linhas de interpretação da arte rupestre explicitam as noções que permeavam o imaginário da intelectualidade da época sobre o indígena que ocupava o território brasileiro. Por um lado, os testemunhos arqueológicos seriam resultado do ócio do indígena e não passavam de simples rabiscos inconseqüentes, não tendo portanto valor algum. Por outro, eram repletos de significados, o que eliminaria a hipótese de terem sido feitos pelos nativos ou seus antecedentes. Uma “escrita” tão sofisticada só podia ser obra de outras civilizações muito mais avançadas. Como resultado disso, em diferentes momentos a arte rupestre brasileira foi atribuída a gregos, fenícios ou atlântidas: afinal, as tribos existentes no Brasil, à época do descobrimento, jamais poderiam ter elaborado desenhos com tamanha precisão e simetria…

O mesmo tipo de perspectiva também marcou as interpretações referentes a outros tipos de vestígios arqueológicos bem diferentes dos grafismos. Os enormes morros construídos com conchas e recheados de sepulturas, sítios arqueológicos denominados sambaquis, eram vistos como resultado da preguiça do indígena, que abandonava seus restos alimentares em qualquer lugar. As elaboradas estatuetas em pedra ali encontradas eram apontadas como obras de outros povos mais evoluídos!

Já em 1937, Herbert Baldus elaborou a primeira visão antropológica da arte rupestre ao estudar as pinturas de Sant’Ana da Chapada. Em 1941, José Anthero Pereira Jr. refutou as interpretações fantasiosas sobre a autoria dos grafismos — fenícios, holandeses, ciganos, atlântidas, entre outros — classificando-os segundo a técnica e estilo de elaboração, etapa fundamental de todo estudo moderno de grafismos.

Um dos pesquisadores que marcou mais profundamente a arqueologia brasileira foi Annette Laming-Emperaire, pesquisadora francesa que, após revolucionar os estudos de arte rupestre na Europa, demonstrando a existência de regras de elaboração dos grafismos, voltou-se para a pré-história brasileira. Esteve no Brasil diversas vezes, onde realizou escavações, ministrou cursos e formou toda uma geração de profissionais. A partir de 1973, coordenou um grupo do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), da França, iniciando pesquisas em Minas Gerais. Os pesquisadores pretendiam obter as primeiras datações para a arte rupestre e sua inserção no contexto cultural pré-histórico. Essa Missão Franco-Brasileira formou uma importante corrente de pesquisa que — junto com a estabelecida pelo casal americano Clifford Evans e Betty J. Meggers, que coordenou um projeto de pesquisa para parte significativa do território nacional (1965-71) — estruturou a pesquisa arqueológica moderna no país. Enquanto Evans e Meggers dedicaram-se principalmente ao estudo de sítios cerâmicos, a Missão Franco-Brasileira teve sempre a arte rupestre como tema central de estudo.

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começado a realizar levantamentos sistemáticos de grafismos nos estados do Sul. Em 1970, Desidério Aitay faz uma interpretação fortemente marcada pelo estruturalismo dos grafismos de Itapeva (SP). Ele procurou identificar a estrutura que ordenava as figuras que compunham um painel e comparou com mitos Jê. Porém, é a partir da década de 1970, com os resultados das pesquisas realizadas pelas Missões Franco-Brasileira em Minas Gerais e no Piauí, que se ampliam definitivamente os estudos. Apoiados na crescente produção de informação pela comunidade de arqueólogos, Niéde Guidon e André Prous sintetizam os dados relacionados com suas regiões de pesquisas e, separadamente, esboçam os primeiros quadros de referência que apresentam a caracterização das diferentes manifestações e sua distribuição no território brasileiro.

Os primeiros artistas

Para Paul G. Bahn, há 40 mil anos os aborígines da Austrália já estavam pintando paredões e há 27 mil anos cavernas já estavam sendo decoradas na Europa, muito embora as evidências do hábito de pintar sejam muito mais antigas. Pigmentos naturais foram encontrados em sítios arqueológicos de datas remotas; fragmentos de corante, com marcas de terem sido usados para pintar, foram encontrados em diferentes partes do mundo (Índia, República Tcheca, França) com datação estimada entre 200 e 300 mil anos atrás, indicando que ancestrais do Homo erectus já tinham como costume manusear estes materiais, quer seja para efetuar pinturas, quer para explorar as qualidades terapêuticas de alguns pigmentos.

A equipe que estuda os grafismos da Serra da Capivara, no Piauí, data algumas pinturas ali realizadas em cerca de 26 mil anos. Como todas as referências cronológicas relacionadas aos primórdios da ocupação de qualquer território, esta data para os grafismos mais antigos brasileiros também é polêmica, pois coloca em questão o período da chegada do homem às Américas.

Quando se quer discutir o início da ocupação de uma região ou os primeiros grafismos, o ponto central não é aceitar uma ou outra referência cronológica, e sim ter a clareza de que, quanto mais antiga uma manifestação pré-histórica, mais difícil é a obtenção de dados que consolidem uma hipótese de trabalho. Afinal, a pesquisa arqueológica organizada em moldes científicos modernos é extremamente recente no Brasil, com os primeiros projetos remontando apenas à segunda metade da década de 1960. Nesse período prevalecia a idéia, defendida fortemente por arqueólogos norte-americanos, de que a chegada do homem à América seria um fato recente.

O modelo clássico propõe que os primeiros grupos alcançaram o continente americano atravessando o estreito de Behring, aproveitando a “ponte” formada entre a Sibéria e o Alasca por volta de 18 e 13 mil anos atrás, em decorrência de mudanças climáticas que resultaram no recuo da linha da costa e, por conseguinte, na exposição de amplas planícies litorâneas. Os primeiros caçadores teriam seguido a migração dos grandes animais (bisonte, cavalo, mamute, caribu) através desse caminho, denominado Behringia. Ao chegarem à Grande Planície no centro da América do Norte, a ação humana e um acentuado crescimento demográfico teriam levado à extinção dos grandes animais, como mastodontes, mamutes e camelídeos. Para sobreviver, teriam migrado cada vez mais para o sul, acabando por atingir a Terra do Fogo.

Supunha-se, também, que os primeiros grupos que chegaram à América do Sul compartilhariam certas semelhanças com os primeiros colonizadores da América do Norte. Esperava-se encontrar por aqui indícios característicos dos caçadores especializados em animais de grande porte, como o

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mamute e o bisonte. Os caçadores do planalto norte-americano contavam com pontas líticas muito sofisticadas tecnologicamente que foram recuperadas em sítios de matança de animais. Designadas como pontas Clóvis e Folsom, provenientes de sítios datados em 11.200 e 10.900 anos AP, respectivamente, foram feitas com apurada tecnologia de lascamento que implicava retiradas de lascas de pedra dos dois lados da ponta até que a peça ficasse bem delgada. Para concluir, um golpe certeiro punha em risco todo o trabalho do artesão e, se bem-sucedido, retirava uma longa lasca no sentido longitudinal da ponta.

Levando em conta que não há indícios seguros de que os homens tenham primeiro chegado à América do Sul para depois ocupar a do Norte, supunha-se que eles teriam colonizado o nosso continente por volta de 10 mil anos atrás. Caçadores teriam cruzado o istmo do Panamá e seguido pela Colômbia até atingir a extremidade sul das Américas. Segundo esse modelo, o continente teria sido povoado em apenas 500 anos, numa espécie de corrida migratória. Os resultados das pesquisas realizadas no sítio Monte Verde, no sul do Chile, trouxeram nova luz a este debate. Tom Dillehay obteve datações de 12.500 e 13.000 anos AP, sugerindo com isso uma ocupação no final do Pleistocenob totalmente distinta da empreendida na América do Norte. Pesquisas que estão sendo

realizadas em sítios antigos no Brasil indicam, ainda, que o estilo de vida era bastante diferente dos caçadores de animais que ocuparam as planícies da América do Norte.

Os estudos de sítios dos primeiros colonizadores e uma série de datações antigas que tinham sido obtidas em diferentes estados do país — Bahia (9.610 90), Goiás (10.750 3000), Mato Grosso (10.405 100), Mato Grosso do Sul (10.340 110), Minas Gerais (12.330 230) — começam a confirmar a existência de grupos humanos em época recuada. Alguns pesquisadores acham que a ocupação do Brasil é ainda mais antiga e certamente novas escavações vão liberar informações que podem ser surpreendentes. Pois, se de fato as primeiras populações que ocuparam as Américas atravessando o estreito de Behring e depois cruzaram a América do Norte, a Central para só depois chegar à do Sul e se Monte Verde, no extremo sul do continente americano, foi ocupado por volta de 12.500 anos AP, é possível que sejam encontrados testemunhos mais antigos no território brasileiro. Niéde Guidon obteve uma série de datas bem recuadas para sítios no Parque Nacional da Serra da Capivara, e tem discutido o tema com pertinência mas sem total aceitação pela comunidade de arqueólogos. O sítio Boqueirão da Pedra Furada apresenta datas que se aproximam de 50 mil anos.

Como sugere Paulo De Blasis, apesar da escassez e fragilidade das evidências existentes, um crescente número de pesquisadores começa a aceitar a idéia de que o homem teria penetrado na América em datas mais recuadas, aproveitando diferentes momentos da formação da passagem pelo estreito de Behring, criando condições para que diferentes levas de grupos humanos migrassem para o continente americano.

É natural que o debate ocorra e seja acalorado, pois a arqueologia é uma ciência social que caminha lentamente, acumulando conhecimento produzido pela comunidade de arqueólogos e, como os demais campos de saber, é integrada por estudiosos que abraçam hipóteses distintas. Como toda ciência, cabe aos pesquisadores que inovam o ônus da prova. Segundo Anna Roosevelt, para que seja aceita a antigüidade de ocupação de um sítio é necessário haver numerosas datas concordantes relacionadas a uma série de materiais, tais como artefatos, esqueletos humanos e restos alimentares, além de uma seqüência cronológica oriunda de depósitos estratificados intactos — e são poucos os sítios antigos que reúnem todas estas características.

Renato Kpnis sugere que, diferente do que havia sido proposto, os primeiros ocupantes do Brasil Central eram principalmente coletores e que a sua indústria lítica caracterizava-se pela presença de

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raspadores utilizados no trabalho da madeira e de algumas poucas pontas de projétil. Os restos botânicos indicam a exploração de coquinhos, guariroba, licuri, chichá (amendoim-de-bugre), pequi, jatobá e outros frutos do cerrado. A caça tinha como presa animais de pequeno e médio porte (roedores, tatus, primatas, preguiças, lebres), répteis, aves e peixes. Animais maiores, tais como (veado, porco-do-mato, anta) são raros nos momentos iniciais, sendo mais representados no final. Para o autor, não há nenhuma evidência clara de caça sistemática à megafauna e, como bem demonstra, trata-se de um modo de vida bem diferente daquele dos caçadores de grandes animais que ocuparam a América do Norte. Estes grupos aprenderam a explorar a grande diversidade de recursos disponíveis nos novos ambientes tropicais.

Acumula-se, no Brasil e na América do Sul, uma série de informações sobre sítios antigos; agora, saber exatamente quando este processo começou e demonstrar toda a sua complexidade vai exigir dos cientistas muito mais pesquisa. Neste momento, é importante saber que as informações disponíveis asseguram que a partir de 12.000 AP o território brasileiro já estava ocupado e que muito cedo os caçadores começaram a decorar as paredes rochosas com grafismos. Mais ainda, que este hábito perdurou até o período de contato com os europeus. Foi entre os grupos de caçadores que surgiu o hábito de pintar e gravar as paredes de pedra.

No que se refere à antigüidade dos grafismos, também é preciso levar em conta que a primeira datação de pigmentos feita através do método Carbono-14 foi realizada há muito pouco tempo. Em 1987, na África, datou-se pigmento feito com carvão retirado de pinturas da Caverna da Sonia, em Boontjieskloof, e depois disso datações foram obtidas em vários lugares. Nas regiões onde existe arte rupestre é recorrente a longa duração do hábito de decorar paredões de pedra com pinturas e gravuras. Na Austrália, cujas primeiras manifestações estão datadas de 40 mil anos, os aborígines ainda mantêm essa tradição. Nos continentes onde há arte rupestre, foram estudadas maneiras de representação que variam tanto no espaço como no tempo. Vejamos o caso do território brasileiro.

Caracterização e distribuição espacial dos grafismos brasileiros

Para apresentar um quadro de referência apóio-me na proposta de ordenação dos grafismos brasileiros elaborada por André Prous (1992). Ele ressalta que ao tentar delimitar grandes conjuntos, denominados na arqueologia brasileira de tradições arqueológicas, teve que incluir uma certa variabilidade intra-regional — que pode estar relacionada a evoluções culturais no tempo e no espaço, ou mesmo a funções distintas de determinados espaços. Destaca, ainda, que, ao estabelecerem tradições regionais, as diferentes manifestações podem se misturar ou se sobrepor, particularmente em áreas de fronteira.

A tradição arqueológica implica uma certa permanência de traços distintivos que são geralmente temáticos. Já os estilos, uma das unidades recorrentemente utilizadas pelos estudiosos, são subdivisões estabelecidas a partir de critérios técnicos. André Prous estabelece oito tradições para o território brasileiro que são conhecidas pelas seguinte denominações: Meridional, Litorânea Catarinense, Geométrica, Planalto, Nordeste, Agreste, São Francisco, Amazônica. Gabriela Martin, por sua vez, apresenta uma leitura mais detalhada sobre as tradições rupestres do Nordeste e uma minuciosa conceituação dos instrumentos analíticos — tradições, fases, estilos, fácies — utilizados pelos pesquisadores para delimitar conjuntos. Com pertinência, ressalta ainda a complexidade do mundo pictórico do Brasil pré-histórico e como é difícil apreendê-lo e subdividi-lo, tanto para fins didáticos quanto operacionais.Vejamos, entretanto, as principais características das tradições

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Grafismo da tradição Litorânea Catarinense. Ilha dos Corais (SC) apresentadas por André Prous.

A tradição Meridional é uma manifestação que ocorre no sul do Brasil e em outros países da fronteira. Os sítios do Rio Grande Sul apresentam-se alinhados nas escarpas do planalto, sendo também encontrados em blocos isolados e em abrigos e grutas. As gravuras foram feitas no arenito, principalmente através da técnica de incisão ou de polimento, tendo sido, muitas vezes, a superfície da pedra previamente preparada através de picoteamento.

Os sulcos não são muito profundos, tendo menos de 1cm de profundidade, e em alguns sítios foram encontrados vestígios de pigmentos de diferentes cores (preto, branco, marrom e roxo) que formam gravuras geométricas lineares. A temática é considerada pobre e pode ser dividida em dois grupos. Um dos estilos caracteriza-se pela presença de traços retos paralelos ou cruzados, sendo alguns curvos. A combinação de traços retos às vezes forma o que se costumou chamar de “tridáctilos”. O outro estilo caracteriza-se pela presença de séries de círculos maiores, cada um rodeado na parte superior por círculos menores, parecendo formar pegadas de felídeos.

Gravura da tradição Meridional. Sítio D. Josefa (RS) Os painéis gravados da tradição Litorânea Catarinense estão situados em ilhas, em locais de difícil acesso e até mesmo perigosos, chegando a distar 15 quilômetros da costa e estando orientados para o alto-mar. As ilhas que foram escolhidas para gravação dos sinais estão distribuídas em intervalos de 20-25km de distância, sendo consideradas importantes pontos marítimos para o grupo que fez os grafismos.

As gravações foram feitas no granito, através da técnica do polimento e os sulcos têm até 4cm de largura. André Prous estabeleceu 14 temas. A maioria deles é integrada por desenhos geométricos através da combinação de traços e estão presentes duas formas humanas também geométricas.

Atravessando o planalto de Sul até o Nordeste, cortando os estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Goiás e Mato Grosso, são encontradas as manifestações que compõem a tradição Geométrica, que, como o nome diz, caracteriza-se quase exclusivamente por gravuras geométricas. Em decorrência da grande área de distribuição e de uma certa variedade, André Prous a subdivide em meridional e setentrional.

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A Pedra Lavrada, de Ingá (PB): tradição Geométrica (setentrional)

As manifestações mais setentrionais referem-se a sítios gravados nas imediações dos rios, particularmente nas proximidades de cachoeiras. Muitos blocos gravados costumam ser cobertos pelas águas durante as enchentes, o que parece ter sido uma escolha dos gravadores. As gravuras geralmente são polidas, ocorrendo muitas depressões esféricas, chamadas de cupuliformes pelos arqueólogos. Aparecem algumas representações biomorfas que lembram sáurios ou homens. A Pedra Lavrada, de Ingá, na Paraíba, é um dos exemplos bem conhecidos. Os sítios mais meridionais apresentam gravações, algumas vezes, retocadas com pigmentos, não são banhados pelas enchentes e estão localizados até mesmo distante das águas. Ocorrem tridáctilos, triângulos e alguns deles têm uma incisão ou ponto em seu interior e, por isso, alguns arqueólogos os denominaram “vulvas”. 1. Essas gravuras parecem representar pisadas de aves e mamíferos. Exemplo da tradição Meridional. Canhemborá, Nova Palma (RS).

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2. Tradição Litorânea Catarinense, com os desenhos e a forma humana geométrica característicos. Ilha do Campeche (SC).

3. Peixes e outros animais, assim como a cor vermelha, são típicos da tradição Planalto. Essa pintura encontra-se no abrigo de Santana do Riacho (MG).

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4. A tradição Nordeste é marcada por representações de figuras humanas e de animais como emas e cervídeos. Toca do Boqueirão da Pedra Furada (PI).

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5. Antropomorfos e animais estáticos da tradição Agreste. Parque Nacional Serra da Capivara (PI).

6. Os répteis são formas freqüentes na tradição São Francisco. Figuras com decoração interna simétrica demonstram forte sentido de efeito dos pintores. Lapa do Boquete, Januária (MG).

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7. Itaquatiaras de Cachoeira do Letreiro, em Carnaúba dos Dantas (RN): exemplo da tradição Geométrica.

8. Antropomorfo da tradição Amazônica. A riqueza de detalhes chama a atenção: traços do rosto, cabelos e até outra figura humana na região da barriga, sugerindo gravidez. Serra da Careta, Prainha (PA).

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Grupo de figuras humanas, característico da tradição Nordeste (PI) Grafismos da tradição Agreste. Sítio Pedra Redonda, Pedra (PE) A tradição Planalto está presente em muitos sítios do Planalto Central brasileiro, do Paraná até a Bahia, sendo o seu foco principal o centro de Minas Gerais. A maioria dos sítios apresenta grafismos pintados em vermelho, embora ocorra também alguns nas cores preta, amarela e mais raramente branca. Muitos animais estão representados, entre eles cervídeos, peixes, pássaros e mais raramente tatus, antas, porcos-do-mato e tamanduás. Aparecem algumas formas geométricas e figuras humanas também foram pintadas; quando são muito esquematizadas, formam conjuntos de pequenas figuras filiformes que parecem cercar os animais.

Grafismos de animais, comuns na tradição Planalto. Iapó e Tibagi (PR)

Em Lagoa Santa e na Serra do Cipó, os desenhos às vezes formam uma cena “explícita”, em que aparece um quadrúpede flechado cercado por pequenos homenzinhos, sendo que um deles geralmente segura um dardo. Há ainda uma referência de cena de pesca, no Paraná, e representações de cópulas na Serra do Cipó. André Prous sugere a existência de cenas “implícitas”, ou seja, associações repetitivas e, portanto, significativas: grupo de três animais com características de macho, fêmea e cria, associação de veado e de cervídeo, e ainda figura com corpo e cabeça de veado, as pernas sendo substituídas por peixes.

A tradição Nordeste ocorre nos estados do Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte, parte de Bahia, Ceará e norte de Minas Gerais. São pinturas monocromáticas e gravuras que representam homens, animais (emas, cervídeos e pequenos quadrúpedes) e algumas figuras geométricas. Porém, o que a distingue da tradição Planalto é a abundância de antropomorfos agrupados formando cenas de caça, dança, guerra, sexo, rito, entre outras. Os humanos seguram armas (bastões, propulsores), cestas e outros objetos.

As pesquisas sistemáticas desenvolvidas por Niéde Guidon, Anne-Marie Pessis e Gabriela Martin estabeleceram uma série de variações regionais decorrentes do tratamento e da dimensão das figuras, bem como das cenas representadas. Em algumas regiões é recorrente uma cena em que aparece uma grande ave dominando um conjunto de pequenas imagens, danças dirigidas por uma figura que ostenta um cocar, cenas de luta, de caça à onça, de violência e sexo, entre outras. As cenas são tão bem organizadas que se revelam uma verdadeira tentação para o observador, que tem a nítida impressão de poder decodificar as mensagens veiculadas pelos pintores.

A tradição Agreste manifesta-se nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Piauí, caracterizando-se pela

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presença de grandes figuras, geométricas ou biomorfas, sendo que as

figuras humanas lembram espantalhos. As emas e os quelônios são representados de maneira estática e há também pássaros de asas abertas e longas pernas, alguns lembrando figuras humanas. As cenas são raras e delas participam poucas figuras, como por exemplo homens caçando ou pescando. Para André Prous os desenhos agrupados nesse conjunto podem ser uma mistura de duas tradições, a Nordeste e a São Francisco, provavelmente pintados em épocas diferentes.

Parte do Painel III da Lapa do Caboclo (MG). Tradição São Francisco

A tradição São Francisco é típica do vale do rio São Francisco, em Minas Gerais, Bahia e Sergipe e nos estados de Goiás e Mato Grosso. Nos grafismos predominam os motivos geométricos, mas verificam-se também desenhos que representam formas humanas e animais (peixes, pássaros, cobras, sáurios e algo parecido com tartaruga). Não existe nenhuma cena e, na maioria dos casos, as figuras são feitas em duas cores. Como outras tradições, também apresenta variedades regionais que contam com representações de pés humanos, armas, instrumentos. Em algumas localidades, em lugar de pintar, o grupo pré-histórico representou os mesmos motivos através de gravuras picoteadas. Em outros locais, incluíram pigmentos pretos e brancos no interior dos sulcos. Os artesãos demonstraram um forte sentido de “efeito” na combinação de cores vivas e na organização interna das figuras geométricas, o que torna os painéis extraordinariamente espetaculares.

Antropomorfos simétricos e geometrizados caracterizam a tradição Amazônica — ainda pouco estudada, principalmente se comparada às tradições Planalto, Nordeste ou São Francisco, que já contam com levantamentos sistemáticos e detalhados. Nas margens dos rios Cuminá, Puri e Negro, as cabeças de figuras humanas gravadas geralmente são radiadas, enquanto nas proximidades de Monte Alegre são pintadas. Há, também, em outras localidades painéis compostos por bastões e gravações curvilineares. No estado de Roraima ocorrem retas pintadas paralelas ou formando retângulos preenchidos com traços.

O mapa preparado por André Prous fornece uma boa idéia da distribuição espacial das várias tradições de arte rupestre no território brasileiro. Porém, é preciso ressaltar que muitas regiões ainda não foram alvo de pesquisas sistemáticas, o que permite supor que as manifestações rupestres sejam muito mais diversificadas e fascinantes do que se imagina. Apenas para demonstrar como ainda há muito a ser descoberto, cito o ponto de vista de Mentz Ribeiro, que não vê semelhanças entre os

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Grafismos da região de Monte Alegre (PA)

Pinturas rupestres de Alenquer (PA)

grafismos do cerrado de Roraima e os outros encontrados no Brasil, aproximando-os de algumas pinturas descobertas na Venezuela e gravuras existentes na Guiana.

A Amazônia é ainda uma imensa região a ser estudada pela arqueologia. Ocupada desde 11.200 anos AP, conta com a cerâmica mais antiga das Américas e com uma diversidade de formas, acabamentos e motivos aplicados aos vasilhames de barro que dão uma leve idéia do que deve ter sido esse caldeirão de efervescência cultural. Edithe Pereira menciona o registro de 300 sítios com arte rupestre, destacando que apenas algumas áreas foram objeto de

estudos detalhados. Em sua pesquisa no noroeste do Pará identificou três conjuntos rupestres distintos — dois relacionados com pinturas e um com gravuras. O conjunto de pintura de Monte Alegre foi feito em paredes de grutas e abrigos e paredões a céu aberto. Muitas vezes, a própria pedra foi aproveitada para dar volume ou compor a figura. Os antropomorfos foram pintados com a aplicação de duas cores e têm grandes dimensões, alguns com mais de 1m. Apresentam cabeça, tronco e membros e é recorrente a presença de traços do rosto. Muitas vezes o tronco está preenchido com desenhos geométricos sugerindo a representação de algum tipo de adorno e as cabeças apresentam cocar. A maioria das figuras está de pé, sendo que alguns estão de cabeça para baixo ou deitados. Geralmente não há indicação do sexo mas alguns têm órgãos sexuais masculinos.

Também são recorrentes os desenhos de mãos, que podem aparecer isoladas, em par, em série irregular e superpostas a outras figuras, algumas contando com círculos concêntricos desenhados nas palmas. Aves, peixes-boi, peixes, círculos, volutas também foram pintados nas rochas.

Já no conjunto da região de Alenquer as figuras humanas estão representadas em seus traços essenciais sem qualquer detalhe anatômico. Segundo a pesquisadora, sua principal característica é a composição de uma cena na qual as figuras aparecem uma ao lado da outra de mãos entrelaçadas.

A tradição Amazônica de gravuras tem como principal temática figuras humanas que podem ser completas ou apresentar apenas a cabeça. As completas exibem os traços do rosto, inclusive boca com dentes. A maioria é assexuada, e somente algumas sugerem a imagem de mulher através do que parece ser a representação de gravidez.

Antropomorfos, principal temática da Tradição Amazônica

Edithe Pereira ressalta que existem outros conjuntos na Amazônia que precisam ainda ser estudados e que o número de escavações é tão restrito, apenas duas, que limita o conhecimento sobre o contexto arqueológico em que a atividade gráfica se desenvolveu. A escavação realizada em Monte Alegre, por Ana Roosevelt, forneceu referências cronológicas para as pinturas através da recuperação de pigmentos cuja composição é similar à das figuras encontradas nas paredes da gruta da Pedra Pintada. Considera-se que a partir de 11.200 anos AP as paredes já estavam sendo decoradas

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com pinturas.

Outras manifestações pictóricas ainda merecem destaque. Gabriela Martin chama atenção para as itaquatiaras, gravuras realizadas nas rochas localizadas às margens dos rios do Norte e Nordeste. Destaca especialmente a Itaquatiara do Ingá ou Pedra Lavrada do Ingá, na Paraíba, que antes da destruição provocada pelos fabricantes de lages tinha inscrições formadas por uma linha contínua e uniforme por aproximadamente 1.200 m2.

Mapa com a distribuição das tradições de arte rupestre

Pertencentes à tradição Planalto, as pinturas de animais encontradas em Santana do Riacho, em Minas Gerais, e estudadas por André Prous e Alenice Baeta, são tão naturalistas que permitem identificar conjuntos familiares. O animal maior e com galhadas é o macho, o de tamanho médio é a fêmea e o de menor porte é o filho. Algumas figuras são passíveis de identificação, especialmente os veados machos: os que apresentam galhadas bem ramificadas caracterizam o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus), que já não é mais encontrado na região; as galhadas com duas ou três pontas podem se referir ao veado-campeiro (Dorcelaphus ou Hippocamelus bezoarticus) ou a de um

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cervo jovem. É provável ainda que a maioria dos cervos sem galha e os que apresentam até duas pontas sejam pinturas de animais do gênero Mazama, hipótese reforçada em decorrência da maneira como os pintores representavam os corpos dos animais. Em outras regiões também ocorrem pinturas muito naturalistas que permitem a identificação de espécies, como é o caso dos vários tipos de lagartos existentes na região central da Bahia. Na Serra do Cabral, em Minas Gerais, em pesquisa bem criativa junto com caçadores da região, Paulo Seda e Gilda Andrade identificaram uma série de animais. A serra é uma excelente localidade para caça e as figuras pintadas nos painéis são tão bem elaboradas que em alguns casos foi possível estabelecer o sexo e a idade do animal. Entre os peixes foram identificados piaba, pacu, piranha e bagre; entre os répteis, tartaruga, cágado e tiú; a única ave identificada foi a ema. Vários mamíferos — como macaco, veado-galheiro, veado-campeiro, anta, cachorro-domato, lontra, onça, mocó, cutia, capivara, coelho, tatu, tatu-bola, tatupeba, tamanduá-bandeira — foram pintados nos paredões.

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Referências

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