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A VIÚVA POBRE E SEU EXEMPLO*

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A VIÚVA POBRE

E SEU EXEMPLO*

CAROLINA BEZERRA DE SOUZA**

INTRODUÇÃO: AS VIÚVAS

A

situação das mulheres palestinas era, com algumas exceções de comunidades da diáspora2, de dominação em múltiplas vertentes. Na maioria das comunidades, os registros3 são de que elas eram consideradas incapazes juridicamente e religiosamente, portanto pouco participavam das assembleias populares. Eram confinadas em casa, como mães, donas de casa, esposas. Suas atividades por excelência eram moer e tecer. Também eram submetidas ao silêncio com relação aos homens, qualquer conversa podia ser entendida como adultério. Aquelas mais pobres podiam ter um diálogo social maior, pois sua mão de obra era necessária ao sustento da família, então trabalhavam no campo e na manufatura, mas tinham seu trabalho explorado.

No caso de viúvas, a situação se agravava, pois não havia um homem chefe de fa-mília que as guardassem, representassem ou a suprissem. O próprio texto sagrado, no Antigo Testamento, coloca a viúva na categoria de pessoas desprovidas ao expressar mandamentos Resumo: este artigo analisa o texto de Mc 12,41-44, que narra a oferta da viúva pobre, numa

abordagem narratológica. Serão analisados contexto, narrador, tempo, cenário e personagens. O objetivo é discernir o funcionamento da narrativa em si e não observá-la como uma janela para eventos históricos. Pretende-se mostrar que tipo de relações de poder e resistência se re-fletem nesse texto e como ele pode ser usado para fomentar novas relações sociais e de gênero.

Palavras-chave: Evangelho de Marcos. Gênero. Viúva. Relação de poder

* Recebido em: 02.09.2015. Aprovado em: 17.09.2015. Parte desse texto integra a dissertação de mestrado de Souza (2014).

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de cuidado para com elas com padrão de correto caminhar diante de Deus, por exemplo Dt 10,18; 24,17-21; Ex 22,21; Sl 68,6; Is 1,16.17.23; Zc 7,10. E conta ainda algumas histórias de viúvas como Rute e Noemi ou o encontro de uma delas com Elias em 1Rs 17. A situação das viúvas se reflete no Novo Testamento. Além do texto que é objeto deste trabalho e de seus paralelos, elas são citadas algumas vezes nos evangelhos (Mc 12, 40 e paralelos, Lc 2,37; 4,25-26; 7,12; 18,3-5), At 6,1; 9,39-41, Tg 1,27 e por Paulo (1Co 7,8 e 1Tm 5,3-16).

Ao tempo de Jesus e ao tempo da composição do Evangelho de Marcos, por volta do ano 70 d.C., a região vivia sob o domínio romano. Em especial para as mulheres, isso era crítico. A implantação do sistema político do Império se dava em guerras de conquista marcadas por diversas formas de violência, as mulheres eram as maiores vítimas, pois elas e as crianças compunham a maior parte do povo dominado. Além da exploração econômica (es-cravagismo, impostos, alienação da terra...), da violência física e simbólica da dominação cul-tural e política, elas eram submetidas, como os homens, a torturas, crucificações, e também eram alvo das violências de gênero, eram violentadas e exploradas sexualmente (RICHTER REIMER, 2000, p. 29-30). Na época da composição do Evangelho, essa questão das guerras era particularmente forte, devido ao aprofundamento das tensões que levara à guerra dos anos 66-74 d.C. com ápice na destruição do Templo.

Sob toda essa condição, a situação das viúvas devia ser ainda mais grave, visto que o sistema do Templo se aliara aos interesses romanos por longo tempo e já não cumpria seu papel de assistência aos grupos desprovidos, esses eram entregues a extrema miséria. Enten-dendo-se que na tradição bíblica e nas sociedades agrárias as viúvas eram uma figura típica, quase um estereótipo com relação a uma situação de penúria (HORSLEY, 2001, p. 217), far-se-á a análise da narrativa.

O TEXTO EM SEU CONTEXTO

O Evangelho de Marcos apresenta algumas passagens em que Jesus se encontra com mulheres, estão em: Mc 1,29-31; 3,31-35; 5,21-43; 7,24-30; 12,41-44; 14,3-9; 15,40-16,8. São a cura da sogra de Simão, a redefinição da família, a cura da filha de Jairo e da mulher com hemorragia, a cura da filha da siro-fenícia, a viúva pobre que oferta, a unção de Jesus, as cenas das mulheres na crucificação, sepultamento e na ressurreição. Estas passagens mostram que as mulheres faziam parte do movimento de Jesus, pois aparecem nos diversos momentos do ministério de Jesus e podem ainda estar anônimas meio à multidão de seguidores, portan-to fazem parte do dia a dia comunitário retratado. Na primeira parte do Evangelho (capítulos 1 a 8), enquanto Jesus ainda circula na Galileia e arredores, os episódios com mulheres são encontros em que Jesus cura a maioria dessas mulheres. Depois, a atuação muda na última parte (capítulos 11 a 16), elas aparecem não mais como objeto da atuação de Jesus, mas em serviço ou entrega de vida, no caso do texto analisado aqui, a mulher é apenas observada na sua atitude de entrega.

Na parte do meio do Evangelho (capítulos 8 a 10), no caminho para Jerusalém, elas não aparecem na narrativa, mas pode-se entender que fazem parte dos seguidores de Jesus. Após uma grande ausência de personagens femininos, ao longo dessa parte central do Evan-gelho de Marcos, as mulheres reaparecem na última parte do EvanEvan-gelho, quando Jesus já está em Jerusalém. A primeira delas é a viúva pobre que oferta no Templo em Mc 12,41-44. Aqui está uma tradução do texto:

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41 E tendo se assentado diante do gazofilácio observava como a multidão colocava dinheiro no gazofilácio. E muitos ricos colocavam muito; 42 e vindo uma viúva pobre colocou dois lepta, o que é um quadrante. 43 E chamando seus discípulos disse-lhes: Amém digo-vos que esta pobre viúva colocou mais do que todos os que estão colocando no gazofilácio; 44 pois todos colocaram do que lhes está sobrando, mas esta da sua pobreza colocou tudo quanto tinha toda a sua vida (tradução da autora).

Essa narrativa se encontra na segunda metade do Evangelho de Marcos, na cam-panha de ação direta de Jesus em Jerusalém nos dias que antecedem a paixão. Para Richter Reimer (2012, p. 185), o eixo dos capítulos 11 e 12 é que Jesus vai sendo reconhecido por sua profética messianidade. Portanto, entender a contribuição para a caracterização messianidade de Jesus é uma chave para compreender o texto.

A passagem é parte de uma sequência de conflitos com autoridades religiosas e po-líticas, pois, desde o capítulo 11, Jesus se depara com anciãos, escribas, sacerdotes, fariseus, herodianos, saduceus. Ao longo desses textos há uma construção negativa da narrativa com relação a papel do Templo e dos líderes religiosos na exploração das pessoas e no fato de cor-roborarem com a dominação, que começa com a figueira que seca e com ápice no discurso apocalíptico do capítulo 13. Logo antes da narrativa da viúva, Jesus ensinara em oposição às atitudes dos escribas. A cena é a última ação de Jesus dentro do Templo, em sequência, co-meça o discurso do capítulo 13, que condena a Templo como símbolo da estrutura religiosa que é utilizada pelo Império.

A perícope abre porta para muitos tipos de interpretação. Em seu artigo, Wright (1982, p. 257-8) faz uma revisão da literatura sobre a passagem para dividi-la em cinco tipos de posições sobre a fala de Jesus: 1) que verdadeiro valor das ofertas é o custo para quem a faz; 2) que o que importa é o espírito em que a oferta é feita; 3) que a verdadeira oferta é dar tudo que se tem; 4) a história indica que esmolas e outras doações piedosas devem correspon-der às posses pessoais; 5) a história indica o dever da caridade. No entanto, ao consicorrespon-derar o contexto imediato da passagem, o discurso apocalíptico que afirma a destruição do Templo e os ditos de Jesus sobre o Corban (7, 11-12), Wright conclui que a viúva não é um modelo a ser imitado, pois

o seu pensamento religioso realizara aquilo que os escribas foram acusados de fazer (a menos que presumamos que o pensamento religioso não faça nada errado ou que a reli-gião não devora). Se, de fato, Jesus era contrário ao devorar das casas de viúvas, como ele poderia se satisfazer com o que via ali? A história, se vista como aprovação, não é mais coerente com o precedente imediato dito sobre viúvas do que com a afirmação sobre o

Corban. [...] A história não provê um contraste piedoso à conduta dos escribas na secção

precedente (como é a visão habitual), ao contrário, ela provê mais um exemplo dos males da devoção oficial. O dito de Jesus não é uma visão penetrante sobre a medida das ofertas, é um lamento (WRIGHT, 1982, p. 262).

De fato, a tendência espiritualizante das interpretações, deixa de lado a severidade da pobreza daquela viúva. No entanto, Malbon (2000, p.172-185) critica a noção de contex-to de Wright, afirmando que existem contexcontex-tos sobreposcontex-tos e ele falha ao deixar de comparar a viúva com o próprio Jesus, tanto na oposição de atitude quanto na entrega da vida, e não

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observar o valor da passagem em conexão com as outras mulheres do Evangelho. Segundo ela, é preciso pensar que a morte de Jesus e a destruição do Templo têm referências intercaladas ao longo de todo o Evangelho e que esta passagem e a da unção de Jesus por uma mulher emolduram o discurso escatológico. Além disso, que Marcos faz das mulheres personagens exemplares e não apenas vítimas, mas exemplos de ação com relação às suas posições sociais oprimidas e sofridas. Sendo assim, a entrega de vida seria o cerne da passagem, e o destaque realmente estaria na sua devoção como atitude esperada no Reino de Deus.

Há similaridade com outras passagens em que Jesus reúne os discípulos para falar-lhes (8,34; 10,42), isso sugere que a ação da viúva é relevante para a questão do dis-cipulado (COLLINS, 2007, p. 589-90). Além disso, o uso da expressão de autoridade “Em verdade vos digo” (amén) atrai a atenção para a interpretação em forma de ensino (RICHTER REIMER, 2012, p. 184), pois ela foi usada antes para introduzir seu dito profético sobre in-sultar o espírito santo, o sinal dado a esta geração (8,12) e também em 3,28; 9,1.41; 10,15.29; 11,23, 13,30; 14,9.18.25.30, dando a impressão de uma afirmação importante e enfática (COLLINS, 2007, p. 589-90). Kinukawa (1994, p. 76) observa que esta é a única passagem com a terminologia que se refere a uma ação passada, e que isso pode na verdade apontar para o destino próximo de Jesus ao entregar sua vida, assim pode-se entender a empatia de Jesus com a viúva e aceitar a que ele permaneça distante dela deixando-a só, pois ele próprio também estará só.

Outra palavra que é chave para a interpretação da passagem é a palavra grega que, neste trecho, é usada duas vezes para designar a pobreza é da viúva ptochē. Segundo Stege-mann e StegeStege-mann (2004, p. 110-5), esse termo se refere àqueles que viviam no limite ou abaixo do mínimo necessário à sobrevivência. Esta seria a situação desse tipo de pessoa: “elas têm fome e sede, vestem apenas farrapos, encontram-se desprovidas de moradia e esperança. Dependem da ajuda de outros para o indispensável à vida, obtendo-o, por exemplo mediante a mendicância” (STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p. 114). Nessa situação incluíam-se geralmente, mendigos, viúvas e órfãos, doentes crônicos e portadores de deficiência. A cena, então, é mesmo paradigmática do nível de exploração a que eram submetidos certos estratos da sociedade.

ANÁLISE DA NARRATIVA

Entendido como o texto se relaciona com os demais textos do Evangelho de Mar-cos, segue-se a análise narratológica. Aqui são analisados os elementos que compõem uma narrativa: estilo, personagens, narrador, cenário, tempo, trama.

O narrador em terceira pessoa apresenta e detalha a cena e em seguida concede a voz a Jesus. Para Collins (2007, p. 587), ao apresentar o contraste entre os ricos e a viúva o narrador expressa o ponto de vista comum dos valores econômicos e Jesus o corrige. Enten-dendo assim, pode-se dizer que haveria uma diferença entre o autor implícito e o narrador, no entanto, parece melhor entender que o narrador já apresente uma consciência de classe, pois ele usa de uma oposição extrema: muitos ricos deixavam muito, enquanto uma viúva pobre deixou dois lepta4( MYERS, 1992, p. 384) e ao dar a voz a Jesus esta oposição é repetida e

aprofundada em seu discurso, o que compõe uma estratégia narrativa. Por já ser a repetição de uma oposição, e por conter uma ênfase com a expressão amén, pode-se dizer que o ponto principal da história é encontrado no dito de Jesus: todos ali deitaram do que lhes sobejava,

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mas a viúva, na sua pobreza, deitou toda a sua vida. Jesus apresenta, então, um novo sistema de valoração e ao mesmo tempo uma crítica ao sistema religioso que explora. Não se trata da quantidade ofertada, mas da qualidade com que a viúva fez a oferta.

Como característica do Evangelho, na segunda metade, a impressão de rapidez nos acontecimentos diminui (RHOADS; DEWEY; MICHIE, 1999, p. 47). O passo dessa nar-rativa não é rápido como nas narnar-rativas iniciais, ainda se percebe o uso do conectivo ‘e’, mas a cena não causa impressão de rapidez. Isso porque não há um sumário subsequente e o nar-rador detalha o movimento: havia uma multidão ofertando, esta tinha em seu meio muitos ricos, mas uma viúva pobre no meio da multidão tem especial atenção. Jesus observava essa movimentação e chama os discípulos para falar-lhe sobre isso. Assim, tudo parece ser narrado em um tempo próximo ao real.

A cena ocorre no Templo, fazendo parte de uma sequência de ensinamentos e con-flitos ali. Nesta passagem, há uma mudança espacial dentro do Templo. Na passagem ante-rior, Jesus ensinava a uma grande multidão, agora ele está assentado em frente ao gazolfilácio, observando a multidão que ali coloca dinheiro. A apresentação do lugar da cena não é precisa, Marcos poderia estar se referindo ao pátio, ou arca, do tesouro, onde se encontravam treze ga-zofiláceos de oferendas ou a um deles. Um dos gaga-zofiláceos era destinado a ofertas voluntárias, que, segundo Gnilka (2005, p. 206-7), serviam principalmente a holocaustos destinados ex-clusivamente a Deus, mas segundo Richter Reimer (2012, p. 185), as ofertas desse gazofilácio se destinavam também ao cuidado com as pessoas pobres. Com qualquer dessas intenções, a oferta da viúva é de uma abnegação religiosa admirável.

Apesar da diferença no cenário espacial, a passagem se liga à anterior, v.38-40, pela palavra “viúva”. Isso coloca em contraste o comportamento de abnegação da viúva e o comportamento de figuras masculinas, no caso, os escribas que gostam de ser bem vistos socialmente e “devoram as casas das viúvas, e isso com pretexto de largas orações”. A histó-ria da viúva pobre se torna uma espécie de ilustração do ensinamento que Jesus acabara de dar, a estrutura religiosa escribal baseada no Templo oprime ainda mais os pobres e mar-ginalizados ao invés de defendê-los. “A piedade escriba serviu como fino véu para encobrir o oportunismo econômico e a exploração. Marcos os acusa de plena responsabilidade por estes abusos” (MYERS, 1992, p. 383). Assim, a história mostra que, como a classe escriba, o Templo não mais protege viúvas, mas as explora como a essa mulher, privando-a de seus próprios meios de vida.

São personagens da cena: Jesus, a viúva, a multidão, os muitos ricos e os discípulos. Nesta cena, a multidão, que ali especificamente contém ricos, deixa de seguir e ouvir a Jesus e passa a ser alvo da sua observação na ação de deitar ofertas. Os ricos deitam grandes ofertas funcionam como oposição imediata à atitude da viúva.

Jesus é caracterizado na cena como mestre. Ele vem ensinando no Templo desde o capítulo 11. Na cena anterior, ele ensinara à multidão, agora a seus discípulos, como em várias passagens anteriores. Também pelo fato de ele observar, estar sentado5, ajuntar os

discí-pulos para falar-lhes e pelo uso da expressão Amén. Mas como já dito, o fato de Jesus estar ali como mestre não exclui a caracterização construída até ali pelo evangelista: messias capacitado pelo Espírito, servo, homem que entregará a vida em favor de muitos.

Os discípulos não são especificados, atuam como personagens-tipo6. Sua função é receber o dito de Jesus sobre as ofertas, mas ao serem colocados na cena recebendo ensi-namento, implica que a mensagem é de fato importante do ponto de vista do discipulado.

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Implica também que até ali, o discipulado não estava completo e que eles ainda tinham a aprender. Nesta cena, não há uma condução para julgamento positivo ou negativo sobre os discípulos como em muitas outras.

A viúva é um personagem menor, que aparece apenas essa vez na narrativa e se faz exemplar em contraposição aos ricos, aos líderes religiosos judeus, é caracterizada pelo seu status de viúva e de pobre. Ela é sozinha e anônima, não há indicação de família ou amigos. Ela per-manece sem perceber a presença de Jesus que a observa à distância e se torna fonte de seu ensino.

O status social e econômico da viúva é o mais marginalizado da sociedade sob domínio romano. Era duplamente oprimida por ser uma mulher só e por ser extremamente pobre (GNILKA, 2005, p. 208). Nas sociedades palestinas, as viúvas não eram capazes de cuidar dos seus direitos, que deveriam ser protegidas pelo sistema religioso, portanto deviam permanecer em silêncio e se tornavam desumanizadas vistas como força de trabalho pela família que a abrigava (KINUKAWA, 1994, p. 67-68). Assim, o estado de solidão, destitui-ção e consequente vulnerabilidade das viúvas era resultado da interconexão dos círculos de relação entre eu/outro, homem/mulher e opressor/oprimido. No caso desta personagem, acrescenta-se a relação rico/pobre.

A sua atitude de oferta a caracteriza também. A viúva oferta toda a sua vida (Mc 12,41-44), dedicando “tudo o que tinha”. Isso pode representar uma religiosidade abnegada como forma de transgressão à lógica de mercado romana (RICHTER REIMER, 2005, p. 110-3) ou um ato de compartilhar o pouco que ela tinha com outras pessoas que também passavam necessidade (RICHTER REIMER, 2012, p. 185). Ela é um paradigma de religio-sidade nos dois casos, por isso, chama a atenção de Jesus. Ao entregar todo o seu meio de sustento, ela opta por viver fora da esfera de economia de mercado, transcendendo o Império Romano, mas também ainda não vivia sob o Reino de Deus que chegara com Jesus, estando em um estado intermediário: dando si mesma e fazendo de Deus o valor supremo, ela é a antítese das autoridades religiosas judaicas (MATEOS; CAMACHO, 1998, p. 290). Assim, ela antecipa o Reino, fazendo de sua vida exemplar e autêntica. Ela antecipa também na en-trega da sua vida a enen-trega da vida de Jesus. Por isso, toda a ênfase da narrativa na observação de Jesus, ela é sim modelo de discipulado. Aqui novamente, uma pessoa que se coloca como última na escala social é capaz de antecipar o Reino de Deus, se tornando uma das primeiras. Para Kelber (1979, p. 65), a viúva exemplifica o discipulado genuíno ao ser contras-tada com dois grupos de personagens: os discípulos e as autoridades religiosas. Os discípulos, até ali, não tinham compreendido verdadeiramente a campanha de Jesus, sonhavam com honra e lugares de poder. As autoridades escribais egoístas tinham a religião como a arte de autopromoção e implacavelmente exploravam viúvas sob pretensa piedade.

Além de ser uma atitude de religiosidade admirável, que mostra um personagem que não se conforma com a forma errada que encontra a sociedade e resiste, agindo para mudá-la, a oferta, como observada por Jesus, pode ser, simultaneamente, entendida de outra maneira: como denúncia da exploração econômica existente no Templo. Ao destacar que a viúva depositava no Tesouro, onde tradicionalmente se acumulavam as riquezas, tudo o que tinha para viver, Jesus está denunciando que aquela mulher estava sendo fraudada e explo-rada, sua vida roubada, pelo sistema iníquo do Templo (SOARES; CORREIA JÚNIOR; OLIVA, 2012, p. 18).

Para Kinukawa (1994, p. 77), a mulher vive em uma fé cega que a leva a ofertar até suas últimas pequenas moedas, mas essa é a única forma que conhece de chamar a Deus,

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pois já não se importa consigo. Para a mulher, é Deus quem deve agir agora, pois ela não tem apoio humano. “A mulher encara a destituição e não gasta suas duas últimas moedas consigo. Sua ação desafia o desejo humano pela autopreservação e o poder da morte. Sua oferta ilustra sua confiança em Deus e a esperança sublinhada que ele superará o mal” (MILLER, 2002, p. 171).

Diante de todas essas análises, pode-se entender que a história da oferta da viúva pobre é um ponto de inflexão da narrativa do Evangelho de Marcos, emoldurando o discurso que finaliza a sua pregação em Jerusalém, para iniciar a paixão. É um trecho que apresenta múltiplas leituras. Mas seu ponto central é a tensão entre o retrato positivo da autoentrega da mulher, que resiste ao sistema exploratório a partir da religião, que por isso se torna um paralelo a Jesus, e o retrato negativo do tesouro do Templo, da riqueza e da exploração religiosa. A oferta da viúva forma a oposição ideal ao scribal establishment, também aos ricos que davam da sua abundância e aos discípulos, pois ela entendera o funcionamento do Reino de Deus sem precisar ser alcançada pelos ensinamentos de Jesus.

Essa personagem é um exemplo para uma comunidade que se compõe de muitos pobres, ela encoraja os pobres a serem generosos e suportarem outros na mesma condição. Como um paralelo de Jesus, ela encarna o modo de viver esperado do Reino, aquele que não entra em acordo com o sistema de mercado exploratório e que doa tudo que tem em contras-te com a busca de glória do Império, através de uma religiosidade abnegada e engajada. Ela encarna também a denúncia do sistema social e religioso que coloca pessoas à margem da so-ciedade, servindo-se delas e deixando que outras tenham sobras e sejam ricas. Desta forma, a mulher antecipa a atitude de Jesus recusando o modelo religioso e imperial e serve de modelo de discipulado, ao propor uma nova forma de viver e se relacionar.

NOVAS RELAÇÕES SOCIAIS E DE GÊNERO A PARTIR DE MC 12,41-44

Com a história da oferta da viúva pobre, Marcos vai chegando a última etapa da construção positiva que faz daqueles personagens femininos que se encontram com Jesus. As mulheres até aqui foram servas, membros da nova unidade familiar comunitária, persistentes, corajosas, inteligentes, resilientes, humildes, proativas, exemplificaram a questão da priorida-de no Reino, a questão da extensão da pregação aos gentios. Agora, a viúva representa Israel sob a exploração política e religiosa.

Como denúncia da exploração, o texto incentiva a novas relações sociais. O retrato positivo da viúva abnegada contrasta com a sua condição social, mostrando que as relações de poder oprimem aquele que é bom e que isso deve mudar para relações mais humanizadas, em que os marginalizados possam ser incluídos e assistidos e não explorados. A atitude dessa mulher é característica de quem entendeu que pode existir outra forma de se relacionar. Sua oferta simboliza essa resistência a um projeto opressor em busca de relações em que o objetivo não seria acumular bens para sobrevivência, mas ser solidário e contribuir com o possível para a implantação do Reino de Deus.

Outra característica interessante é que Jesus serve também como paradigma de no-vas relações de gênero. Na relação de Jesus com as mulheres dentro do Evangelho de Marcos, percebe-se que ele é um homem cuja solidariedade independe de gênero e não é tolhida pelas normas religiosas de pureza e etnicidade. Jesus deixa-se ensinar (veja a mulher siro-fenícia) e admira as ações de mulheres (é o caso da mulher com hemorragia, da viúva pobre, da mulher

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que o unge), percebendo-as além das regras de comportamento, não tendo problemas em colocá-las no foco da atenção (a fé da mulher com hemorragia a salva, o que a siro-fenícia diz é que faz com que sua filha seja liberta, chama a atenção para a atitude da viúva pobre, defende a boa ação da mulher que o unge).

No caso deste texto, como deixa-se ensinar e admira as ações de uma mulher, per-cebendo-a além das regras de comportamento e não tendo problemas em colocá-la no foco da atenção, ele serve de modelo para uma nova masculinidade. Ao observar a ação da viúva pobre, Jesus a usa como exemplo positivo de ensino com respeito ao discipulado e crítica com respeito à opressão das instituições religiosas, elevando a atitude da mulher. Jesus mostra a sensibilidade de perceber que ao dar a si mesma e fazer de Deus o valor supremo, ela é a an-títese dos dirigentes infiéis a Deus por dinheiro. Mas além de perceber isso em uma mulher, ele chama atenção dos que o cercam para ela. Dessa forma, ele contraria o padrão patriarcal, em que as mulheres ficam confinadas e em silêncio, ao atentar, expor em elevação e ensinar sobre os atos de uma mulher.

THE POOR WIDOW AND HER EXAMPLE

Abstract: this article discusses the text from Mc 12.41 to 44, that narrates the offering of the poor widow, in a narratological approach. It will analyse the context, narrator, time, scenery and char-acters. The aim is to discern the workings of the narrative itself and not look at it as a window into historical events. With these results, it intends to show what kind of power relations and resistance are reflected in this text and how it can be used to foster new social and gender relations.

Keywords: Gospel of Mark. Gender. Widow. Power relationship. Notas

1 Há registros de mulheres chefes de sinagogas, dirigentes, anciãs, mães da sinagoga e até sacerdotisas. Ao lado disso, o fato de que a legislação apresentava também uma série de brechas que permitiam às mulheres testemunhar publicamente e que também colocavam limitações do direito do marido, assim muitas tinham direito a posses. Ver sobre essas questões: Alexandre (1990, p. 522); Brooten (2000); Tepedino (1989, p. 80, 81).

2 Sobre a questão do registro é necessário suspeitar de registros feitos sob uma ótica patriarcal que podem formatar e ocultar a maneira com que as mulheres se destacavam.

3 Lepta era a menor moeda de cobre(RICHTER REIMER, 2012, p.184).

4 Estar sentado alude a uma posição autoritativa dos rabbis enquanto ensinavam (MALBON, 2000, p. 183).

5 Personagem-tipo é aquele grupo de personagens planos, caracterizados por poucos traços que se modificam pouco ao longo da narrativa. Marcos faz uso desse tipo de personagens, por exemplo: os discípulos, que se juntam a Jesus, mas não o compreendem; as autoridades romanas e judaicas, que são antagonistas inimigas de Jesus; estes são normalmente retratados em grupos (RHOADS; DEWEY; MICHIE, 1999, p. 102).

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Referências

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