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Memória, testemunho e resistência em Xanana Gusmão : uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu

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Universidade de Brasília Instituto de Letras

Departamento de Teoria Literária e Literaturas Programa de Pós-Graduação em Literatura

Andreia Pereira da Silva

MEMÓRIA, TESTEMUNHO E RESISTÊNCIA EM XANANA GUSMÃO

Uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) como parte dos requisitos exigidos para obtenção do grau de Doutorado em Literatura.

Orientador: Profº Dr. Alexandre Simões Pilati.

Brasília – DF 2019

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Andreia Pereira da Silva

MEMÓRIA, TESTEMUNHO E RESISTÊNCIA EM XANANA GUSMÃO

Uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) como parte dos requisitos exigidos para obtenção do grau de Doutorado em Literatura.

Orientador: Profº Dr. Alexandre Simões Pilati.

Aprovada em 30/08/2019.

Banca Examinadora:

Professora Dra. Cintia Carla Moreira Schwantes (UnB)

Professor Dr. Antonio Alvimar Souza (Unimontes)

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PSI586m

Pereira da Silva, Andreia

Memória, testemunho e resistência em Xanana Gusmão: uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu / Andreia Pereira da Silva; orientador Alexandre Simões Pilati. -- Brasília, 2019.

175 p.

Tese (Doutorado - Doutorado em Literatura) --Universidade de Brasília, 2019.

1. Xanana Gusmão. 2. Memórias. 3. Testemunho. 4. Resistência. 5. Identidade. I. Simões Pilati, Alexandre, orient. II. Título.

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Aos meus pais, Francisco Pereira da Silva e Maria Augusta Pereira da Silva, os primeiros que me ensinaram o significado pragmático da palavra resistência.

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AGRADECIMENTOS

Costumo dizer que a gratidão é o sentimento mais nobre que existe no mundo, pois revela a fragilidade do ser humano. Contar com a ajuda, o auxílio, a compaixão e a atenção do outro é uma forma de reconhecermos que não somos capazes de alcançar nossos sonhos e metas sozinhos. As pessoas que me ajudaram a chegar até aqui foram verdadeiros anjos, seres iluminados que se esforçam para iluminar nosso caminho quando as coisas não andam tão bem, quando o percurso é obscuro demais e quando a dúvida em continuar parece tão forte e verdadeira que desistir não se apresenta como escolha, e sim como a melhor saída. Ainda bem que minha vida é cheia de anjos. E são a eles que presto a minha gratidão por ter vencido mais uma etapa da minha vida e por ter conquistado o sonho de me tornar doutora.

Primeiramente, quero agradecer às minhas amigas Vanusa Ferreira, Maria Erlane, Débora Soares e Lindiane Reis. Elas não só acreditaram no meu sonho como me ajudaram a conquistá-lo. Viveram comigo toda a angústia e a ansiedade do processo de seleção para o doutorado, depois me acolheram durante o ano em que precisei residir em Brasília-DF, um lugar desconhecido e assustador para mim até então. Elas tornaram minha adaptação tão fácil que Brasília hoje é para mim um lar. É como se eu tivesse nascido nessa terra cinza, enorme, misteriosa e encantadora. Obrigada, meninas, por serem anjos de luz em minha vida.

Osleide Botelho é outra amiga que conhece muito bem minha história. Sabe de tudo o que eu passei, tudo mesmo! Embora pareça clichê, não tenho, realmente, palavras para descrever a sua importância em minha vida. Você é uma amiga que não desistiu de mim, pelo contrário, sempre acreditou em minhas forças quando eu mesma julgava não tê-las. Minha gratidão por você é enorme e eterna, mas está longe de compensar sua presença em minha história, ou melhor, em nossa história.

Sabe aquela pessoa com quem você esbarra na vida e não consegue mais viver sem ela? Na minha vida, essa pessoa se chama Josiane Fernandes. Somos diferentes em quase tudo, temos opiniões divergentes, eu sou de virgem; ela, de gêmeos. Mas, mesmo assim, nossa ligação ultrapassa as explicações racionais e astrológicas. Ela foi e é aquela pessoa que pega na mão e diz: “Vamos juntas”, “Tô contigo”, “Eu te ajudo”. Como isso fez diferença!

Nathálya Colares foi outro presente dos céus. Tão discreta, e, ao mesmo tempo, com a percepção e a sensibilidade suficientes para compreender as aflições humanas. Você é um ser elevado, que veio a este mundo para iluminar as pessoas que você vai encontrando pelo

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caminho. Você é capaz de chegar aonde nem imagina. Obrigada por me compreender sem me julgar e por ser luz e inspiração para mim.

Existem pessoas que nos inspiram, mas nem imaginam. Bráulio Siffert, meu colega e coordenador, e sua esposa, Fernanda Paulino, são aquelas pessoas de quem a gente gosta de graça mesmo. Os dois me ajudam a perseverar, a acreditar na vida e a ter esperança, inclusive em um mundo mais humano. É muito bom saber que estamos do mesmo lado da luta.

Sou muito feliz por ter tido o privilégio de ter sempre ao meu lado o meu irmão, Wellington Pereira Silva. Agradeço pela sua existência. Como é bom saber que sempre posso contar com você. A minha história é a sua história. Vivemos tantas coisas, algumas que merecem ser lembradas; outras nem tanto. Mas é a nossa história. Agradeço a Deus, todos os dias, por você ter se tornando um homem sensível, com uma sabedoria incrível e uma fé contagiante.

Eu não poderia deixar de registrar aqui os meus agradecimentos à Universidade Federal de Brasília (UnB), de forma especial ao Programa de Pós-Graduação em Literatura, por valorizar a educação, o conhecimento, a diversidade, o debate crítico e democrático das ideias. Como foi bom ter tido a chance de fazer parte de uma instituição tão grandiosa, sobretudo no que diz respeito à grandeza dos professores, demais servidores e alunos. Eu ainda sonho com um mundo em que todas as pessoas possam ter a oportunidade de estudar em uma universidade que cumpra a sua missão no mundo como a UnB cumpre.

Falando em UnB, terei sempre uma enorme gratidão ao meu orientador Alexandre Pilati, o qual me mostrou que o conhecimento acadêmico tem que estar a serviço das pessoas e que poesia e política podem caminhar juntas numa estrada de resistência.

E como não falar do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), onde tenho o prazer e a honra de ser servidora. Foi no Instituto que compreendi, de fato, a importância, a necessidade e a urgência de ofertar educação pública e de qualidade nos lugares mais recônditos do nosso Brasil. As políticas públicas na área da educação ainda são recentes e escassas em cidades de médio e pequeno portes. Os IFs têm esse compromisso, ou seja, de levar a educação para os sertões, para o interior, concedendo a jovens e a adultos a oportunidade de sonhar e de transformar a vida por meio da educação. Só tenho a agradecer por uma instituição que luta e resiste para concretizar essa meta, reconhecendo a importância da contínua capacitação de seus servidores. Como bolsista do Programa de Bolsas para Qualificação de Servidores (PBQS-IFNMG), agradeço ao IFNMG pelo auxílio financeiro a mim concedido, o que tornou mais leve meu percurso enquanto estudante de pós-graduação.

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À Sociedade Educativa do Brasil, presto os meus agradecimentos como forma de reconhecer a oportunidade que me foi concedida de atuar como coordenadora de curso e professora no Icesp à época do meu primeiro ano do doutorado. Foi mais uma experiência por meio da qual pude aprender ainda mais sobre o universo acadêmico.

Agradeço a todos os meus amigos e familiares que, mesmo indiretamente, contribuíram nessa minha jornada e aproveito para pedir desculpas pelas constantes ausências. Por fim, sou grata a todas as instituições pelas quais passei, como estudante e como colaboradora. Todas as experiências vivenciadas em cada lugar foram fundamentais para que eu me tornasse quem sou hoje. E sou muito grata a Deus e ao universo pela pessoa que me tornei. Estou em processo de evolução e pretendo ser um ser humano ainda melhor. A poesia e a arte estão me ensinando.

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A luta continuará sem tréguas! Xanana Gusmão

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RESUMO

Um diálogo entre a história do Timor-Leste e o livro Mar Meu (1998), de Xanana Gusmão, o líder da resistência timorense contra a Indonésia. Esse é o propósito desta tese ao recuperar as invasões, as guerras e a opressão que marcaram os principais capítulos da narrativa histórica do Timor e ressignificaram o processo de construção de uma identidade nacional. Os poemas e as pinturas que compõem a obra de Xanana foram elaborados na prisão, em Cipinang, na Indonésia, e são apresentados como fragmentos da memória de um autor que vivenciou a experiência dos traumas, da diáspora, da barbárie e da violação do direito à vida e à liberdade. Enquanto as pinturas evocam, predominantemente, paisagens tranquilas, as quais podem ser associadas ao desejo do artista que almejava a paz e a soberania do Timor, os poemas concretizam o artifício utilizado para dar continuidade à luta contra a Indonésia. Neles estão as vozes das crianças, das mulheres e de todos os timorenses que por mais de duas décadas conviveram com a morte, a tortura, a privação de liberdade, entre tantas outras formas de violência. Na busca por apoio da comunidade internacional, que se manteve até 1999 praticamente em silêncio frente a um genocídio, seus versos representavam o grito de socorro de um povo e de uma cultura que insistiam em resistir mesmo quando a ocupação e a integração à Indonésia pareciam irreversíveis. Nesse contexto, a língua portuguesa se torna, além de símbolo, instrumento de resistência. Por isso esta investigação ainda discorre sobre a colonização portuguesa e seus principais aspectos, uma vez que compreender o período colonial em Timor possibilitou inferir que não se pode considerar a existência de uma Literatura de Resistência em Timor apartada da língua portuguesa. A concepção teórica sobre a Literatura de Testemunho também serviu como direcionamento para que os poemas fossem lidos como manifestação do real, e não como mimese. Assim, nesta pesquisa, Literatura de Testemunho e Literatura de Resistência são tratadas como vertentes teóricas que estão intrinsecamente ligadas, o que se reflete em um eu lírico que revela e denuncia o trauma a partir de memórias de um poeta diaspórico. Conclui-se, então, que Mar Meu (1998) é a expressão artística de Xanana Gusmão, um homem engajado na vida política, que, quando privado da liberdade, recorreu à arte para recuperar a humanidade do homem. Seus versos tornam a (outra) história do Timor visível para o mundo e preservam os momentos mais difíceis vividos pelo povo timorense. Enfim, passados os tempos mais sombrios na ilha do Timor, sua obra é uma expressão poética que também resiste para (re)construir a identidade timorense.

PALAVRAS-CHAVE: Xanana Gusmão, literatura, pinturas, memórias, testemunho,

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ABSTRACT

A dialog between the history of Timor-Leste and the book My Sea of Timor (1998) by Timorese resistance leader against Indonesia, Xanana Gusmão. That was the purpose of this thesis while going back to the invasions, war and oppression that wrote the main chapters of Timor-Leste’s historical narrative and gave new meaning to the national identity construction process. Poems and paintings that comprise Xanana Gusmão’s work were elaborated in Cipinang prison, Indonesia, and were here presented as memory fragments of an author who experienced trauma, barbarism, diaspora, and violation of the right to life and freedom. Although his paintings mainly evoked quiet landscapes that could be related to the author’s desire for peace and for Timor-Leste’s becoming a sovereign nation, his poems were material evidence of an artifice that was used to continue fighting against Indonesia. Children, women and all Timorese people that lived surrounded by death, torture, deprivation of liberty and many other types of violence for more than two decades had their voices heard from these poems. Seeking support from the International Community, which virtually kept in silence while facing genocide until 1999, the verses in his poems represented a cry for help from a people and their culture that both kept resisting even when Indonesian occupation and integration seemed irreversible. Within this framework, Portuguese language became not only a symbol, but also an instrument of resistance. Therefore, this research also discussed Portuguese colonization and its main aspects inasmuch as comprehending colonial period in Timor made it possible for us to imply that the existence of Resistance Literature in Timor-Leste could not be considered apart from Portuguese language. The theoretical definition of Testimonial Narrative also worked as a guide to reading the poems as an expression of reality instead of mimesis. Thus, Testimonial Narrative and Resistance Literature were understood in this research as theoretical strands that were intrinsically connected, which could be seen in a Lyrical I that revealed and denounced trauma by bringing a diasporic poet’s memories. We could conclude, then, that My Sea of Timor (1998) was the artistic expression of Xanana Gusmão, a man engaged in politics who, when deprived of freedom, resorted to art to restore humanity of mankind. His poems made the — other — history of Timor-Leste possible for the world to see and still preserves the toughest moments ever lived by the Timorese people. Finally, time has passed since the darkest times in the island of Timor, and Gusmão’s work is a poetic expression that also resists in order to [re]construct Timorese identity.

KEYWORDS: Xanana Gusmão, Literature, Paintings, Memories, Testimonial, Resistance,

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ABSTRATU

Iha dialogu entre historia Timor-Leste nian no Livro Hau Nia Tasi (1998) lider resistencia nebe hasoru Indonesia husi Xanana Gusmão. Ida nee mak propositu tese nian iha nebe fila fali ba tempu invsaun, funu,no operasaun nebe hakerek kapitulu sira nebe importante ba história narrativa Timor Leste nian no fo significasaun nebe sai hanesan identidade procesu construsaun nacional. Poema no pintura sira katak komprimisu Xanana Gusmão nian iha nebe elabora iha prizaun Chimpinang Indonesia no iha nee hatudu sai hanesan fragamentu memoria sira autor ida nia moris nia experencia trauma, halo terus, diaspora no violencia ba direitu atu moris no liberdade. Evoka predominantemente paisagen sira nebe tranquila iha kona liu ba autor ninia hakarak paz nomos Timor Leste sei nasaun soberaria ida, ninia poema sira sai material evidencia artifise nebe uza atu Kontinua luta hasoru Indonesia. Labarik no feto sira no Timor oan tomak nebe haleu ho ema mate sira, halo terus, deprivisaun ba liberdade no violencia barak oioin nebe iha liu tinan rua nolu resin nia laran. Sira nia lian sei rona mai husi poema sira. Iha nebe hein hela tulun mai husi comunidade internacional nian, iha nebe mantein iha silensiu nia laran hodi hasoru genocidiu to’o 1999, husi versu sira mai husi ninia poema sira representa hakilar husu tulun mai husi povo ida nian no kultura ida nebe husu makaas no la hakiduk maske iha wainhira iha ocupasaun no integrasaun ho Indonesia hanesan irreversivel iha contextu ida lian portuguesa sai hanesan simblu ka instrumentu ba resistencia nian. Tan nee investigassun ida nee hanesan mos hakerek kona ba tempu kolonializasaun portugues nian no aspetu principais sira, hodi nee dala ida tan comprende ba periodu kolonial iha Timor Leste posibilidade implika ba ami mak existencia ba resistensia literatura iha Timor Leste. Labele mos konsideira sai aparte mai husi lian portuguesa teoricamente fo difinisaun testemuiña narrativa servicu sai hanesan matandalan atu lee poema hirak nee sai hanesan expression ba realidade no ida nee laos mimese.Testemunã narrativa literatura resistencia nian iha nebe comprende liu husi pesquisa hanesan teorika vertente hodi liga metin ba malu, ida nee bele mos here liriko nebe revela no denuncia trauma hodi lori poeta no memoria sira mai husi diapora. Ita bele concluidu ida nee katak Hau Nia Tasi Timor (1998) ida nee mak expression Xanana Gusmão ninian ema ida nebe kesi-an ba politika, wainhira deprividu ba liberdade reordenadu sai arte hodi rekopera ema humana. Ninia versu sira halo historia Timor sai visivel ba mundu no preserva iha momento sira nebe dificil teb-tebes ba povu Timor oan sira nebe sei moris. Ikus liu, tempu passa iha tempu nakukun nian iha ilha Timor no Gusmão nia servicu expresaun politika ida nee sai resistu hodi ba harii fila fali Timor oan nia identidade.

LIAFUAN CHAVE: Xanana Gusmão, literatura, pintura sira, memoria sira, testemuñu no

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: UM TIMOR A SER (AINDA) DESCOBERTO ... 13

CAPÍTULO 1. OUTRA HISTÓRIA DE TESTEMUNHO E RESISTÊNCIA ... 28

1.1 Da colonização portuguesa à invasão indonésia ... 33

1.2 Um poeta à frente da resistência timorense ... 42

1.3 O poder da língua portuguesa ... 55

1.4 A imprensa e o Timor-Leste ... 62

CAPÍTULO 2. ALÉM-MAR ... 73

2.1 Cooperação Internacional no Timor-Leste e sua complexidade ... 74

2.2 A missão brasileira em prol do Timor ... 79

CAPÍTULO 3. DA REAPRESENTAÇÃO DAS MEMÓRIAS À ARTE ... 91

3.1 O valor da arte literária ao encontro da humanidade do homem ... 99

3.2 A literatura timorense em língua portuguesa: das cinzas à resistência ... 107

CAPÍTULO 4. RESISTIR PARA TESTEMUNHAR ... 114

4.1 Versos e imagens da diáspora ... 115

4.2 A tematização da infância ... 129

4.3 Silenciadas, mas coprotagonistas ... 141

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 149

REFERÊNCIAS ... 159

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INTRODUÇÃO: UM TIMOR A SER (AINDA) DESCOBERTO

São recentes e escassos os estudos sobre a literatura da República Democrática de Timor-Leste, mais conhecida no Brasil como Timor-Leste. Há de fato uma ausência de estudos sobre a história de independência do Timor, bem como sobre a própria história literária timorense, que também é recente.

A República Democrática de Timor-Leste é um país que ocupa geograficamente a parte oriental do sudeste asiático. Foi colônia de Portugal, que professou piamente que levaria a Timor-Leste o desenvolvimento, a civilização. Nada mais era do que a ambição, já vista em outros capítulos da história da humanidade, por lucro e poder. Contudo, independentemente das possibilidades de interpretação do que significa civilização e desenvolvimento, Portugal não alcançou seu propósito.

A independência do Timor frente a Portugal foi conquistada em 1975, mas, por causa da ocupação indonésia, o país só se tornou oficialmente soberano em 2002, embora o governo indonésio tenha deixado o país em 1999. Nesse contexto histórico, a língua portuguesa, inicialmente imposta pelos portugueses durante o período da colonização lusófona, foi tida como um instrumento de luta depois que os timorenses escolheram esse idioma para estabelecer comunicação entre os militantes que lutavam em prol da independência do país.

Regina Helena Brito (2010) explicita que, apesar de a língua portuguesa ter chegado ao Timor apenas no século XVI, ela adquire o status de um dos idiomas mais falados na ilha. Todavia, a autora destaca que, antes do período indonésio, o tétum, também língua oficial, era falado em “quase todas as situações cotidianas, enquanto a Língua Portuguesa se restringia à escrita ou às atividades relativas a determinados fins de ordem cultural ou administrativa” (BRITO, 2010, p. 8).

Essa situação só muda com a invasão indonésia, a partir da qual o português passa a ser ferramenta e símbolo de resistência, como afirma Damares Barbosa em sua tese Roteiro de Literatura de Timor-Leste em Língua Portuguesa.

À época da invasão indonésia, o ensino do idioma português foi proibido e seus falantes, em sua maioria, foram dizimados, restando, portanto, o contexto clandestino para a prática do idioma português. Dessa forma, ao ser formada a resistência timorense, passou a língua portuguesa a ser sinônimo de arma de combate, o que conferiu a ela o status de língua de resistência no período da luta armada e depois de língua oficial durante a redação da Constituição de Timor-Leste. (BARBOSA, 2013, p. 39)

A propagação da língua portuguesa no Timor-Leste se deu também por parte do ensino do idioma nas escolas e nos seminários. É válido relembrar que o português não é a

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língua materna dos timorenses, nesse sentido, torna-se um desafio ensinar uma segunda língua – e não uma língua estrangeira – para parte da nova geração que não vivenciou as lutas políticas do país para conquistar sua soberania (BRITO, 2010). Nessa perspectiva, é necessário obter um olhar crítico a respeito da adoção da língua portuguesa como língua oficial, analisando sua importância para a consolidação do Timor-Leste como nação.

Ao longo do século XX, surgiram escritores que desenvolveram uma literatura sobre o Timor-Leste e escritores timorenses que não necessariamente tratavam o país como tema de seus escritos. Foi também nessa conjuntura que a poesia pôde contribuir como instrumento de resistência à dominação e como ferramenta para a consolidação, ou melhor, formação da identidade nacional, apesar do caráter marginal que a acompanhou.

É válido considerar que as mazelas sociais refletidas na arte e na literatura são, em boa medida, reflexos do desenvolvimento do capitalismo no mundo, ou seja, as transformações sociais e econômicas concederam aos artistas, de modo geral, uma nova vertente para o desenvolvimento das artes, tendo como base não só a representação desse tema em suas obras, mas também o engajamento de muitos escritores, considerando que:

[u]m escritor é engajado quando trata de tomar a mais lúcida e integral consciência de ter embarcado, isto é, quando faz o engajamento passar, para si e para os outros, da espontaneidade imediata ao plano refletido. O escritor é mediador por excelência, e o seu engajamento é a mediação. Mas, se é verdade que se deve pedir contas à sua obra a partir da sua condição, é preciso lembrar ainda que a sua condição não é apenas a de um homem em geral, mas também, precisamente, a de um escritor. (SARTRE, 2004, p. 61-62)

Apesar de toda a história de luta, a marginalidade sempre acompanhou a história do Timor e a formação de uma história da literatura timorense, principalmente se tratando de poesia. Tudo isso interfere no processo de construção da identidade timorense, que, nas palavras de Mendes (2005), ainda se encontra em estágio embrionário.

Até agora, os sinais da existência de uma cultura colectiva pública são previsivelmente fracos: a educação continua tributária do sistema indonésio (sendo necessário “descolonizá-lo”), a formação militar depende do exterior, os media, como se viu, têm uma implantação modesta e os mártires da pátria, os caídos e os de pé, têm apenas um monumento erguido na memória viva e infelizmente recente da população. Assim, a preocupação com este problema suscitou a reutilização de um neologismo muito curioso criado pelos nacionalistas de 1975: a timorização, ou seja, um processo de reforço identitário, de defesa e recuperação das especificidades, através do qual o Estado e a sociedade timorense poderiam edificar as instituições, libertando-as de constrangimentos impostos do exterior que tolheram a afirmação da especificidade timorense. (MENDES, 2005, p. 207)

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Atualmente, é legítimo defender que a edificação da identidade timorense não é mais tão embrionária assim. Os acontecimentos históricos, da colonização à soberania, são os componentes que fizeram os timorenses lutar contra a opressão, escolher a língua portuguesa e manter a resistência por quase 25 anos. Tudo isso configura a identidade timorense em plena construção.

Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. (HALL, 2006, p. 38)

Dessa forma, é possível refletirmos sobre a poesia de língua portuguesa no Timor-Leste e como ela pôde e pode ser capaz de ajudar na construção da identidade, na resistência cotidiana e na busca por transpor os muros que colocaram a história do povo maubere1 à

margem dos olhos dos governantes e da sociedade como um todo.

A gravidade do percurso histórico do Timor fez com que o país contasse com uma cooperação internacional para o desenvolvimento, situação que, segundo Simião e Silva (2007), nunca acontecera em outro Estado. Iniciada em 1999, a cooperação proporciona assistência internacional à construção das estruturas básicas, o que diz respeito à reconstrução das infraestruturas físicas e administrativas do país, as quais foram destruídas pelos conflitos decorrentes do referendo do ano de 1999 e em consequência da saída coletiva dos servidores públicos da Indonésia. Como forma de esclarecer, quando o governo independente assume o país em 2002, após a administração transitória das Nações Unidas, aproximadamente 80% do orçamento do Timor era composto de doações internacionais intermediadas pela ONU (SIMIÃO; SILVA, 2007).

Houve, porém, um desencantamento com a construção do Estado timorense, sobretudo em virtude dos conflitos políticos que o impediram de ser o Estado modelo que se planejou por meio da Assistência para o Desenvolvimento Internacional (AID).

O desencantamento com a construção do Estado timorense, contudo, não foi surpresa para quem acompanhou de perto e com olhar analítico as práticas da cooperação internacional naquele país. Por trás do palco em que se encenava o espetáculo da modernização tecnicamente eficaz e politicamente asséptica, todo um cotidiano de tensões e disputas marcava as práticas dos cooperantes em busca da

1 O vocábulo “maubere” tem origem no dialeto mombar, da parte ocidental da ilha de Timor-Leste. O vocábulo era utilizado como nome próprio para identificar os criados, empregados. Nesse sentido, o termo maubere adquiriu uma conotação pejorativa, uma vez que podia significar também um timorense estúpido, atrasado e burro. Todavia, para muitas pessoas, a evolução semântica da língua concedeu ao termo maubere um sentido positivo, atrelado aos ideais de independência e soberania.

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aplicação e seus modelos, práticas cujas consequências eram, inevitavelmente, cheias de imponderáveis. (SIMIÃO; SILVA, 2007, p. 13)

O resgate da memória por meio da língua portuguesa também foi um instrumento de reconstrução. A propósito, muitos pensam ser um paradoxo o fato de o país ter apenas 10% de falantes do idioma que adotou como oficial – a língua portuguesa. Também pensam ser complexa a situação da literatura timorense de língua portuguesa nesse contexto. Utilizada como uma forma de resistência, é ela que hoje tenta resistir e sobreviver em um país que tem pelo menos 16 línguas diferentes faladas em um cenário de aproximadamente um milhão de habitantes. Então, qual seria a função da língua portuguesa nesse contexto? E a da literatura de língua portuguesa?

Há uma gama de escritores que desenvolveram uma literatura sobre o Timor-Leste e escritores timorenses que não necessariamente tratavam o país como tema de seus escritos. Entre eles, destacam-se, no período colonial, pós-colonial e de resistência do Timor-Leste: Alberto Osório de Castro, Ruy Cinatti, Fernando Sylvan, Borja da Costa, Eugénio Salvador Pires, José Alexandre Gusmão, Oky do Amaral, M. Leto, Mali Manek, Luís Cardoso, Jorge Lauten, João Aparício e Abé Barreto.

Xanana Gusmão, rebelde, escritor, poeta, político e líder da resistência maubere, foi um desses escritores. Se não fosse a sua ousadia e humanidade, seria bem mais difícil contar a história da ilha que hoje é a República Democrática de Timor-Leste. Isso porque, enquanto esteve preso, escreveu poemas e fez pinturas que compõem a obra Mar Meu: Poemas e Pinturas (1998)2. Foi a forma que o poeta encontrou de experimentar uma liberdade que só a escrita e a arte são capazes de permitir.

Não só os poemas, mas também as pinturas apresentam uma poesia ligada à literatura de testemunho ou narrativa de testemunho. Xanana conta por meio de versos e pinceladas os principais momentos da história do Timor, desde a formação até a guerra contra os indonésios. A poesia de Xanana é fruto de memórias que não podem ser esquecidas e urgem ser revisitadas, a fim de desmascarar a história contada pelos indonésios. Nesse sentido, os poemas e as pinturas são mensagens elaboradas ao longo do tempo em que esteve privado da liberdade e que servem como um documento-testemunho de uma época. São obras que, ao lado de outras, formam um arquivo de um percurso histórico que muitas vítimas querem até esquecer, embora a necessidade de lembrar se sobreponha ao desejo. Nessa perspectiva, é

2 Ao longo desta tese, a referência ao livro Mar Meu será feita em itálico, sem a data; a referência ao poema “Mar Meu” será por meio de aspas, também sem a data. A data será expressa apenas quando for citado o poema

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possível, então, entender que poemas e imagens marcam um começo, não o começo do Timor-Leste, mas o início de uma história registrada por pessoas que sobreviveram aos tempos sombrios do Timor. Os fatos passam a ser registrados não somente pelas experiências humanas, mas também por aparatos construídos por humanos. Dessa maneira, os poemas e as pinturas de Xanana podem ser tidos como objetos que ajudam a construir a história do Timor. Ao ler os poemas e olhar para as pinturas, fica nítida a possibilidade de promover o diálogo intersemiótico entre poesia e outras linguagens. Fato é que esse diálogo é amplo, abarcando a poesia e a pintura enquanto produções artísticas. Contudo, o diálogo também abrange todas as demais artes que acompanham o ser humano em sua trajetória terrena. Sobre isso, Berrini comenta que:

Não eram, por exemplo, os primeiros poemas das literaturas ocidentais cantados e dançados, conjugando a palavra ao som musical e ao ritmo, ao gesto e à coreografia corporal? Esta é uma primeira questão que se coloca em relação à correspondência das artes: diferentes linguagens convergem, quase sempre reiterativamente, na produção de uma mesma obra de arte complexa. (BERRINI, 1985, p. 1)

Relacionar imagem e literatura é possibilitar a interferência de uma arte sobre a outra sem que haja hierarquização entre ambas. Pelo contrário, o que se percebe é a complementaridade de informações que se torna possível extrair com a junção de duas linguagens. Apesar de se aparentarem equidistantes, trata-se de linguagens que possuem pontos em comum capazes de ampliar as possibilidades de leitura. Nos versos de Xanana, é possível vislumbrar as imagens de um Timor belo que sofreu as maiores violências em nome de um poder centralizador e cruel; nas pinturas, é possível, ao olhar para cada traço, deparar-se com a natureza bela e intocável.

É claro que o leitor da imagem possui o direito de ler seus traços conforme sua intuição, suas experiências, suas bagagens. Entretanto, pode ser uma ofensa à história descontextualizar o objeto artístico do tempo em que foi criado. Afinal, nenhuma obra nasce do acaso. Esta pesquisa, por exemplo, nasceu a partir dos anos 2012, quando comecei a entender e a me indignar com o que tinha acontecido no Timor-Leste. Não considerava justo que em um mundo que parecia tão evoluído um país tivesse conseguido conquistar a soberania apenas em 2002. Como eu era ingênua. Não sabia que muitos países ainda teriam (e terão) que lutar muito para conquistar a soberania nas mais diversas acepções dessa palavra.

completo. Essa observação também se destina aos demais poemas. A finalidade é evitar repetições que podem pesar esteticamente a composição do texto.

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Soberania política, soberania econômica, soberania cultural, todas ainda precisam ser conquistadas por muitos países, inclusive pelo Brasil.

Foi a poesia de Carlos Drummond de Andrade que me fez entender que o nosso tempo “é tempo de partido,/ tempo de homens partidos” e de “divisas/ tempo de gente cortada” (2009, p. 38-39). A poesia foi o instrumento que me provocou a catarse necessária para que eu tivesse uma visão mais aprimorada da vida e da condição humana. Foi a poesia drummondiana que me fez perceber universal, e não singular em relação ao gênero humano. Ouso dizer que foi Drummond que me apresentou ao Timor-Leste.

Em sua obra, Drummond traduz em palavras, poeticamente arranjadas, o mal-estar de um tempo marcado pelas guerras, pelas disputas políticas, que prejudicam o bem-estar do povo. Os conflitos políticos aparecem nas diversas acepções desse vocábulo “partido”, a viagem também aparece, com um viés negativo, mas justificada pela experiência dolorosa da guerra e da diáspora. Seus versos representam a dor de um povo, de uma sociedade, que, consequentemente, ocupa um lugar no mundo, e é esse lugar que foi descrito por diversas vezes nos poemas drummondianos, ora como lembranças de infância, ora como observação de um determinado presente. Afinal, é o olhar do poeta que capta aquele lugar do mundo, capaz de dizer muito mais do que meras palavras.

Enquanto Drummond criava seus versos, que, em 1940, iriam compor seu terceiro livro, Sentimento do Mundo, o Timor-Leste estava sob o domínio português. Dois anos após a publicação desse livro, o Timor teve que enfrentar a ocupação japonesa, que perdurou de 1942 a 1945. Preparando-se para a independência de Portugal, a ilha mais uma vez é ocupada, agora pela Indonésia, em 1975.

Referindo-se ao contexto político e social da época, mas também prenunciando um futuro, Drummond publica nesse livro o poema “Congresso internacional do medo” (1940), em que alude ao medo no lugar do amor.

CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio, porque este não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte. Depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas (ANDRADE, 2009, p. 38)

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Em meio a guerras, comandos ditatoriais e às incertezas de um tempo marcado pela fragmentação política e de valores, o eu lírico versifica um sentimento comum não só no contexto brasileiro, mas em todo o mundo: o medo. O caráter universal que o poema evoca vai ao encontro da função da arte, sobretudo quando se refere ao próximo, que pode ocupar o mesmo espaço do poeta ou estar do outro lado do mundo. Nesse contexto poético, em que Drummond supervaloriza o medo, faz-se presente um elemento importante na arte literária, sobretudo na literatura engajada: a humanidade. Esta é materializada no reconhecimento de cada condição vivida pelas pessoas presas ao medo.

Dado o caráter universal, refletido pelo próprio título do poema, é possível fazer uma leitura do período da ocupação indonésia no Timor-Leste sob a luz desses versos drummondianos. O povo timorense teve que se privar de cantar o amor e de saborear a brisa do mar para se refugiar nas montanhas. Apesar de altas, as montanhas em Timor eram os “subterrâneos” que Drummond metaforicamente descreveu. Foi o medo que acompanhou os timorenses por 24 anos de ocupação indonésia, que esterilizou os abraços, que impediu que muitas relações humanas fossem mantidas com respeito à diversidade.

O povo timorense conviveu com o medo dos sertões da ilha, conviveu com o medo dos mares, de onde vinham os inimigos. Primeiro foram os portugueses, depois os japoneses, depois os australianos, depois os indonésios. As mães timorenses tiveram medo do futuro que dariam a seus filhos. Os timorenses também temiam as igrejas, pois cada uma queria exercer seu poderio e anular sua cultura religiosa. Temiam os ditadores, que muitas vezes se apresentavam com generosidade. Também temiam a democracia e o que ela faria do futuro em Timor. Mas não houve medo maior em Timor-Leste do que o medo da morte. Esse medo foi materializado no extermínio de aproximadamente 200 mil pessoas que lutaram pela soberania, muitas delas assassinadas pelas milícias indonésias.

Durante 24 anos o Timor viveu em guerra contra a Indonésia. Um dos menores países do mundo, com a população variando de 600 a 800 mil habitantes conforme à época, enfrentou o gigante asiático, país de aproximadamente duzentos milhões de pessoas. Durante três anos, de 1976 a 1978, toda a população fugiu da cidade para o mato. Homens, mulheres, crianças, todo mundo teve que se juntar à resistência e à guerrilha que organizava e protegia a população. A Indonésia chegou a ter 60 mil soldados no território e a bombardear o país com napalm. Resistir ou morrer não era uma divisa na bandeira, mas a realidade de cada dia. (FORGANES, 2002, p. 385)

E chegando ao Timor, pela poesia de Drummond, fui apresentada ao poeta Xanana Gusmão e ao seu primeiro livro: Mar Meu: Poemas e Pinturas (1998). Os poemas foram escritos dentro da prisão e enviados para fora, conforme disse o próprio autor:

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Compuz também sonetos e, antes da invasão, ainda no processo de descolonização portuguesa, publiquei uma série, denominada Mauberíadas, com o estilo das Lusíadas, de Luis de Camões. O grande problema é que perdi tudo... na guerra! Só não perdi os do Mar Meu, porque os mandei para fora. (GUSMÃO, 2018)

O livro, com prefácio do escritor moçambicano Mia Couto, foi publicado em 1998 pela editora portuguesa Granito, Editores e Livreiros LTDA. Além dos poemas, o livro apresenta 15 pinturas do artista feitas também durante a prisão, com materiais que foram cedidos por um vizinho de cela, outro preso político (QUEIROGA et al., 2014, p. 160). É interessante perceber que todas as pinturas mostram o ambiente externo, com exceção da pintura intitulada “Ausência”, que apresenta uma sala colorida, com flores e frutas, mas sem ninguém. Os poemas foram traduzidos para o inglês por Kristy Sword e Ana Luísa Amaral e para tétum por Luís Costa. Inclusive, a tradução para o inglês pode ser analisada como uma forma de os poemas chegarem ao maior número possível de leitores e, consequentemente, sensibilizar a comunidade internacional, conforme também analisa o pesquisador Roberto López-Iglésias Samartim (2003):

é esclarecedor que a publicaçom de Mar Meu fosse promovida pola norte-americana Kristy Sword, amiga persoal do autor e membro da East Timor Relief Association, co objectivo de publicitar a causa da resistência do povo de Timor Leste no nível internacional; deste facto deriva tamém a oportunidade e a utilidade da ediçom bilíngüe em que a obra vai circular: o original português colocado à esquerda e a correspondente traduçom para inglês nas páginas da direita, a língua franca internacional que assegura ao livro, e à causa timorense, o acesso a um público mais alargado; e, por fim, nom é menos significativo que, como resultado desta procura de solidariedade internacional, o livro publicado pola Granito no Porto em 1998 circule com profusom na antiga metrópole portuguesa, convertendo-se a sua aquisiçom nos meses do verám de 1999 numha clara mostra de apoio do povo português à causa da independência timorense. (SAMARTIM, 2003, p. 226)

A denúncia das atrocidades indonésias, inclusive, consta no primeiro poema, em que o eu lírico anuncia que está nessa guerra.

Estou em guerra o céu não é meu Estou em guerra o mar não é meu Estou em guerra e a vida só se conquista com a morte...

na esperança de recuperar

o meu mar! (GUSMÃO, 1998, p. 12)

O poema apresenta-se como um anúncio, uma notícia, que urge ser divulgada. Os versos livres e curtos cumprem com a urgente necessidade de o mundo saber o que se passava

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em Timor. Referir-se ao céu e ao mar é uma forma de registrar que o inimigo, representado pelos soldados indonésios, tomou o mar e o céu, de onde, inclusive, vinham as armas destruidoras das vidas timorenses. Apesar da guerra, Xanana não é um poeta vencido, assim como não é um guerrilheiro derrotado. Manteve a esperança de recuperar o território timorense, mesmo que, para tal, tivesse que perder a própria vida.

Ao término do meu mestrado em Literatura, cheguei à conclusão de que entre Carlos Drummond de Andrade e Xanana Gusmão há versos e armas que se conjugam em um objetivo comum: alcançar a paz e a liberdade. Cada um, em sua época e a seu modo, foi importante para o processo de soberania nacional.

Há quem argumente que Drummond não se indignou, que preferiu a burocracia do serviço público a liderar uma revolução. Estão todos enganados. Enquanto o capitalismo, o nazismo e o fascismo proliferavam como bactérias em um corpo doente, Drummond, visceralmente político e com apenas duas mãos, criava, como antídotos, versos que poderiam refazer o universo se todos os lessem. Embora o processo de criação poética do escritor mineiro tenha passado por várias fases, em toda a sua poesia observa-se um engajamento social e político. Por isso, Silviano Santiago aponta que Drummond “estará, então, engajado pelo viés ideológico-político com as lutas revolucionárias no Brasil e mundo afora” (SANTIAGO, 2006, p. 33-34). Carlos Drummond de Andrade não viu o Timor renascer. Morreu em 1987, deixando um Timor destruído pelas forças indonésias, que tentaram exterminar sua história, sua cultura e seus valores.

Daí surge outra meta no meu percurso acadêmico que agora se apresenta: contar a história do Timor, tendo como guia a poesia, ou melhor, a poesia lança luz sobre a outra história do Timor e de seu povo. O escritor escolhido foi Xanana Gusmão. Em minha dissertação, intitulada Notícias em versos: o processo de criação em Carlos Drummond de Andrade (2014), foi possível compreender, por meio da Crítica Genética3, que a obra artística só pode ser interpretada a partir do “conhecimento não somente da última etapa de uma obra, mas do conjunto do trabalho do escritor ou do artista, incluindo todo o percurso deste” (WILLEMART, 2005, p. 18)

Não se objetiva aqui analisar os manuscritos ou rascunhos do livro Mar Meu, o que seria valioso para compreender a tessitura do texto e as fases de elaboração das telas por meio de rasuras, cartas, novas versões, entre outros elementos marginais capazes de revelar o

3 A Crítica Genética é uma ciência ou uma corrente de conhecimeno que estuda o processo de criação da obra artística por meio de elementos marginais, como manuscritos, rasuras, bilhetes, correspondências, várias edições

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encoberto e o exercício mental do artista. Apesar de a Crítica Genética não ser um dos pilares que sustenta esta tese, ela corrobora com o entendimento de que a obra não se fecha em si. A arte, embora sempre inacabada segundo a Crítica Genética, só pode ser lida à luz de elementos e situações que podem não estar explícitos na superficialidade da obra. Por exemplo, em relação aos poemas e às pinturas publicados em Mar Meu, não há nenhuma menção explícita de que o artista esteja preso4. Ao ler e analisar as produções sem considerar outros elementos, presentes no próprio livro, e o período histórico em que ocorreu a gestação da obra, o crítico literário terá como resultado um trabalho limitado e sujeito a equívocos. Assim, a Crítica Genética só tem a colaborar, sobretudo, para a preservação da história de um povo.

Não se trata apenas de estudar o percurso literário do autor ou seu estilo, mas, também, uma oportunidade para relacionar o autor ao mundo em que ele está inserido, desvelando o contexto histórico, social e cultural presentes nos elementos que norteiam seus escritos. (SILVA, 2014, p. 54)

Embora as finalidades sejam distintas, a Crítica Genética pode ser relacionada à literatura de testemunho, uma das bases teóricas que ampara este estudo, na medida em que esta só se concretiza a partir de experiências que antecedem à produção do texto ou de outra obra artística. Essa particularidade comprova o que a Crítica Genética sempre defendeu: o processo de criação não é isolado nem consequência apenas de talento, muito menos de inspiração transcedental.

A inspiração do artista que produz obras a partir dos pressupostos da literatura de testemunho provém das memórias. Não é de todas e quaisquer memórias, mas daquelas oriundas de situações-limite, termo utilizado pelo pesquisador Márcio Seligmann-Silva para referir-se aos sobreviventes de eventos traumáticos.

Não foram poucos os momentos históricos traumáticos que marcaram os últimos séculos no mundo, sobretudo o século XX, palco da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, que promoveu o massacre dos judeus a mando da Alemanha nazista sob o poder e ódio de Adolf Hitler. Faz-se necessário destacar que o termo literatura de testemunho foi originado desse massacre, por meio do conceito de literatura de holocausto, gênero que abarca os relatos de sobreviventes dessa perseguição e dos campos de concentração (MACIEL, 2016).

de uma mesma obra e outras peças de acervo, com a finalidade de compreender o percurso do autor e como transita o espírito humano no processo de criação de uma obra de arte.

4 No livro de Xanana, há enumerados nove poemas, porém um não apresenta os aspectos que o definem como poema, sendo, na verdade, uma carta.

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Quem não só falou sobre, mas também viveu esse tempo sombrio foi a filósofa Hannah Arendt, que, na obra Homens em tempos sombrios (2008), reúne pessoas que foram afetadas pelas guerras, injustiças e atrocidades, mostrando como essas pessoas viveram e se posicionaram perante uma história que se sucedeu aos olhos de todos.

Tudo era suficientemente real na medida em que ocorreu publicamente; nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E no entanto não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas, explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações. Quando pensamos nos tempos sombrios e nas pessoas que neles viveram e se moveram, temos de levar em consideração também essa camuflagem que emanava e se difundia a partir do establishment — ou do “sistema”, como então se chamava. (ARENDT, 2008, p. 4)

Ao mesmo tempo em que reflete sobre a vida de Lessing, Rosa Luxemburgo, Angelo Giuseppe Roncalli, Karl Jaspers, Isak Dinesen, Hermann Broch, Walter Benjamin, Bertolt Brecht, Randall Jarrell e Martin Heidegger, Arendt emite seu próprio testemunho imbricado em análises que recorrem à memória e decorrem da própria experiência traumática que passou ao ser presa, vítima da diáspora e apátrida.

Nesse sentido, Arendt é detentora de um lugar de fala que a autoriza elucidar fatos camuflados pela história oficial. Em outras palavras, o personagem-testemunho possui o respaldo do gênero para revisitar a história e apresentar uma espécie de denúncia. Ainda que seja uma denúncia construída por fragmentos de memórias, isso não limita nem prejudica a função da narrativa de testemunho e da literatuta de testemunho, uma vez que os fragmentos de memória são consequências do evento traumático que provoca incapacidade de dizer o indizível. Sobre o holocausto, “[f]alar sobre um episódio dessa proporção é ter a certeza de que algo sempre ficará silenciado, não explicado, oculto, pois o sobrevivente não tem todas as palavras necessárias para narrar com exatidão e clareza os acontecimentos” (SILVA, 2013, p. 4).

Apesar da impossibilidade de reapresentar de maneira completa o passado histórico traumático, muitos sobreviventes foram capazes de visualizar a catástrofe, outros de até pré-visualizar, e de contestar explicações emanadas pelo sistema. Arendt fala justamente desses homens em Tempos Sombrios (2008). Homens e mulheres que, apesar dos equívocos, dos temperamentos e das contradições, não deixaram de lançar alguma luz que corroborasse, o mínimo que fosse, para a manutenção das liberdades e preservação da humanidade,

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compreendida aqui como a capacidade de o homem se reconhecer como homem, isto é, de seres humanos se reconhecerem como iguais.

Embora o livro tenha sido publicado em 1968, Arendt ultrapassa as barreiras do tempo ao referir-se à apatia e ao egoísmo instalados em um mundo de muitos períodos sombrios. A referência é tão atual quanto o tempo sombrio que, mais uma vez, insiste em cegar a razão, desconstruir o significado de humanidade, minar o pensamento crítico e reduzir as liberdades. O que se observa na contemporaneidade, conforme sustenta Arendt (2008), é que:

[m]esmo onde o mundo está, ou é mantido, mais ou menos em ordem, o âmbito público perdeu o poder iluminador que originalmente fazia parte de sua natureza. Um número cada vez maior de pessoas nos países do mundo ocidental, o qual encarou desde o declínio do mundo antigo a liberdade em relação à política como uma das liberdades básicas, utiliza tal liberdade e se retira do mundo e de suas obrigações junto a ele. Essa retirada do mundo não prejudica necessariamente o indivíduo; ele pode inclusive cultivar grandes talentos ao ponto da genialidade e assim, através de um rodeio, ser novamente útil ao mundo. Mas, a cada uma dessas retiradas, ocorre uma perda quase demonstrável para o mundo; o que se perde é o espaço intermediário específico e geralmente insubstituível que teria se formado entre esse indivíduo e seus companheiros homens. (ARENDT, 2008, p. 9-10)

O poeta e líder da resistência do Timor-Leste, Xanana Gusmão, foi um desses homens que em tempos sombrios não se retirou do mundo. Poderia, sem dúvidas, estar no rol dos perfis apresentados por Arendt (2008), já que não se calou “frente à eminência de vozes excluídas. A solução apresentada se materializa na busca por um espaço de fronteira, no qual a voz do intelectual será somada ao discurso que provém das margens” (PATROCINIO, 2011, p. 33). Como ele fez isso? Tornando a poesia e a pintura um raio de liberdade capaz de testemunhar e denunciar as atrocidades que aconteciam no Timor à época do contexto de dominação pela Indonésia. Seu engajamento político e social foi transformado em arte quando não pôde mais estar com seus companheiros em combate, o que não significava que a luta, para Xanana, tivesse acabado. Só havia mudado de estratégia: resistir à prisão e não silenciar. Seus poemas e suas pinturas preservam os momentos decisivos da história do Timor-Leste, momentos de transição, tornando a história visível, dando um significado e uma intensificação ao drama humano no contexto timorense. É por isso que as análises de Arendt também ajudam a entender como Xanana viveu sua vida, como se moveu no mundo à época da invasão e como foi afetado pela experiência de ver sua pátria sendo retirada de seus compatriotas. Por isso, também, os pressupostos da literatura de testemunho são capazes de abranger a obra de Xanana Gusmão, tornando-a também representativa da Literatura de Resistência, mesmo contrariando a visão do próprio autor. “Pessoalmente, sim, mas não em termos de mensagem de luta! Digo pessoalmente... porque, em poesia, me expresso com um

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sentimento mais amplo, mas mais íntimo, do que em prosa” (GUSMÃO, 2018)5. A particularidade que Xanana atribui à sua obra (sentimento mais amplo, mais íntimo) não reduz a força que sua poesia e sua arte têm para denunciar um passado de atrocidades em Timor e elucidar as lacunas que a história oficial não narrou. E olha que ele nem se considerava poeta. Na literatura de testemunho, o sentimento mais amplo é, na verdade, componente da narrativa, mesmo quando esta se processa em versos, como é o caso dos seus poemas.

Outro ponto a ser considerado diz respeito à ficção como elemento que também compõe o projeto de escrita de um autor da literatura de testemunho. Assim, os poemas de Xanana Gusmão não são o fato vivido, e, sim, a evocação do fato vivido pela memória. Nela, a ficção tem o poder de ser tão esclarecedora quanto a verdade.

Nessa perspectiva, em Xanana, a poesia não é um estado de texto e a pintura não é uma imagem congelada. Ambas tornam-se arquivos significativos que auxiliam na compreensão e na ressignificação histórica, política e cultural do Timor.

Identificam-se, ao longo da obra, traços que denotam um empenho na formação da nacionalidade, mas também processos de recusas e afirmações de símbolos identitários. Embora os poemas denotem maior domínio técnico por parte do autor, também nas pinturas verifica-se este mesmo empenho estético-político fundacional e a recorrência a leit-motivs que fazem referência à terra, à origem, aos antepassados e ao sagrado. Portanto, é nesse sentido que se estabelece um diálogo entre as partes do livro.

Também nesse sentido suas obras ganham mais valor, não pela estética em si mesma, ou tratamento apurado de categorias simbólicas e o primor técnico, especialmente na pintura, mas pelo desejo de abertura de novos caminhos rumo a um futuro esperançoso, característica muito afim ao vanguardismo, porém aqui assumem nuances marcadamente políticos com penhor nacionalista. (QUEIROGA

et al., 2014, p. 162)

Ao analisar toda a obra de Xanana, tem-se a impressão de que as pinturas complementam os poemas; percebe-se o quanto poema e pintura estão alinhados numa mesma temática, revelando impressões semelhantes no processo de evocação das memórias pelo artista. Por isso Berrini (1985) afirma que diferentes linguagens são capazes de compor uma obra de arte complexa. A impressão que se tem é a de que se trata de uma única obra com função também singular: provocar a humanização do homem.

5 A entrevista foi feita por e-mail em setembro de 2018, e o seu conteúdo integral encontra-se no apêndice desta tese. Vale ressaltar que os trechos utilizados neste trabalho foram transcritos ipsis litteris, ou seja, as citações diretas retiradas da entrevista são fiéis ao texto original, tendo sido mantidos variações da língua portuguesa e possíveis desvios à norma culta. A opção por preservar o conteúdo original vale-se do entendimento de que as variações e a forma original não comprometem o sentido e a essência das falas e do posicionamento de Xanana Gusmão. Por isso, foi dispensada a utilização do advérbio latino sic para indicar que as citações foram reproduzidas igualmente como estavam no texto original. A mesma opção foi feita para todas as citações que

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Por isso, convém esclarecer que, neste trabalho, a leitura e a interpretação dos poemas são feitas a partir dos aspectos que definem tanto a literatura de testemunho quanto a Literatura de Resistência. As pinturas, por sua vez, são analisadas tendo a diáspora como matéria-prima para a criação. Apesar disso, o próprio leitor deste trabalho poderá realizar o cotejo entre as imagens, poemas e todas as discussões apresentadas nesta pesquisa. Cada pintura é capaz de provocar uma percepção aberta, flexível e aprimorada da vida e da condição humana, sobretudo dialogando cada imagem com o percurso histórico do Timor apresentado nos poemas e no decorrer de todo este estudo. Cada poema, nessa ótica, também pode ser compreendido como uma imagem ou até mesmo uma pintura, diante da força das memórias reapresentadas em versos de testemunho e de resistência.

Não tenho dúvidas quanto à importância do diálogo entre obras de gramáticas artísticas distintas. Uma complementa a outra sem hierarquização. Contudo, não é propósito desta pesquisa explicitar ou exaurir o diálogo entre os poemas e as pinturas tampouco fechar as possibilidades que ambas as produções têm para conversar entre si.

A compreensão neste estudo é a de que poemas e pinturas são a mesma expressão de testemunho e de resistência que guiou todo processo de criação de Xanana Gusmão em Mar Meu. E ambos têm a função de mostrar um Timor através da perspectiva de um artista guerrilheiro e sensível à natureza humana.

O mundo precisa conhecer esse Timor-Leste e a verdadeira identidade timorense ainda em plena construção. É esse inclusive também o desejo do poeta que em entrevista disse: “Esperamos que, num futuro breve, Timor-Leste venha a ser um local de atracção turística, onde as pessoas possam vir descansar o corpo e o espírito!” (GUSMÃO, 2018). O percurso ainda não é fácil, inclusive no sentido literal. No caso do Brasil, não há voos diretos para a ilha. Nem as buscas na internet fornecem informações suficientes, detalhadas e claras. Chegando à Europa, o percurso mais viável é pegar um voo até à cidade de Darwin, na Austrália, e depois até Díli, capital do Timor. Dependendo do trajeto, a viagem pode se aproximar de 50 horas, tendo como origem capitais brasileiras como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Fato é que a literatura e demais manifestações artísticas são um caminho mais curto.

Valendo-se desse passaporte artístico-literário, este estudo mostra, ao longo dos seus quatro capítulos, momentos históricos decisivos no desenvolvimento do Timor, elucidados por autores que conhecem a outra história do Timor-Leste, por pesquisadores que reconhecem

apresentam variações do português. Dada a quantidade de citações com essas caracteríticas, as citações latinas poderiam comprometer a estética textual.

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não só a importância da arte e da literatura, mas também a força que elas possuem no curso da história e por testemunhas que foram atravessadas por um mar de atrocidades.

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CAPÍTULO 1

OUTRA HISTÓRIA: DE TESTEMUNHO E RESISTÊNCIA

A República Democrática de Timor-Leste guarda diversas histórias, muitas ocultas e outras que incomodaram o mundo. Histórias que não seriam contadas se pessoas destemidas tivessem preferido o silêncio ao sacrifício. Xanana Gusmão, rebelde, escritor, poeta, político e líder da resistência maubere, foi uma dessas pessoas. Se não fosse a sua ousadia, a trajetória de luta e de resistência, a ilha que hoje é conhecida como Timor-Leste, poderia ter tido outros rumos. Mas essa narrativa começa muito antes do nascimento de Xanana Gusmão. Ela se inicia antes mesmo do período colonial.

O equívoco de resgatar a história do Timor apenas depois da colonização portuguesa anula mais de 1.500 anos de tradição cultural timorense que só pode ser resgatada por meio das histórias orais de seu povo, sem falar dos anos antes de Cristo. Fato é que são escassos os registros documentais sobre o período pré-colonial do Timor.

A tese de doutorado intitulada Reforma político-administrativa em Timor-Leste enquanto processo de reterritorialização, de autoria de Valentin Ximenes, defendida em 2016 pela Universidade de Coimbra, em Portugal, apresenta informações que compõem o enquadramento territorial do Timor. Entre essas informações, há uma descrição sucinta e significativa sobre o período pré-colonial da ilha, que, conforme expôs Ximenes (2016), foi povoada por uma mescla de quatro povos: o homo sapiens no período mais antigo da pré-história, o Paleolítico; o grupo papua-melanésia, que viveu durante o período Neolítico, datado aproximadamente de 3.500 anos antes de Cristo; o grupo proto malaia no período reconhecido como Neolítico, o qual data de 2.500 anos antes de Cristo; e, por fim, os povos indianos e chineses. Ximenes faz esse levantamento para compor seu estudo sobre uma reforma político-administrativa em âmbito municipal no Timor, visando a uma coesão territorial. Diante dessa perspectiva, compreender, de fato, o passado e o processo de construção cultural, identitária, social e política de um lugar possibilita a compreensão do processo de reterritorialização.

Entre suas investigações sobre o passado do Timor no que diz respeito a sua formação, o pesquisador pôde afirmar que:

as populações indígenas que ocupam Timor evoluíram a partir das duas etnias primitivas que chegaram à ilha de origem melanésia e polinésia/papua da região Ásia-Pacífica. Estas constatações resultam das escavações em abrigos de rocha onde foram encontrados artefactos líticos, fragmentos de cerâmica e conchas de moluscos. Estes elementos foram encontrados no Posto Administrativo de Baguia, Distrito de

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Baucau, o que permitiu relacionar com a cultura neolítica das ilhas do Almirantado (Salomão e Nova Guiné). Foram ainda encontrados machados de secção elíptica que testemunham a migração Malaia, vinda do Norte. (XIMENES, 2016, p. 15)

No século XV, chineses e árabes já comercializavam com os nativos por meio da troca de machados, porcelanas, chumbo e de diversos outros materiais por madeiras nobres timorenses, entre as quais se destacava o sândalo. O sociólogo John G. Taylor (1993) explica que o valor do Timor, à época, estava reduzido apenas às reservas de madeira de sândalo. Outros produtos, como mel, cera e escravos, não possuíam uma importância equivalente ao sândalo, já que este tinha alto valor comercial porque poderia ser utilizado na fabricação de óleos, perfumes e móveis. Parece até que é a mesma história da colonização brasileira, porém, no Brasil, o nosso sândalo atendia pelo nome de pau-brasil.

Muito antes dos Portugueses e Holandeses entrarem na região, a ilha de Timor fazia parte das redes comerciais politicamente centradas a leste de Java e depois, nas Celebes (Sulawesi). Estas redes estavam ligadas por laços comerciais com a China e com a Índia. O valor comercial de Timor é realçado em documentos publicados durante a dinastia Ming, em 1436. (TAYLOR, 1993, p. 20)

É sabido, contudo, que, apesar das relações comerciais que o Timor mantinha com a China, a Malaca e a Indonésia, antes do século XV, a cultura timorense não sofria o domínio de outros países. É o que apresenta o professor catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), António Pinto Barbedo de Magalhães, quando diz que “[n]o período pré-colonial, os impérios javaneses, cujo apogeu se situa entre os séculos X e XV, não exerceram qualquer influência cultural sobre Timor” (MAGALHÃES, 1990, p. 17). A afirmação do professor é taxativa, mas rompe com a visão arbitrária de que a história do Timor só existe depois da colonização portuguesa, o que é largamente visto nos documentos e obras que tratam sobre esse assunto.

O poeta Xanana Gusmão, em relação à origem do Timor-Leste, apresenta no livro Mar Meu (1998) um poema, intitulado “Avô Crocodilo”, que relata com mais simplicidade, e não por isso desprovido de valor e significados, a formação do Timor.

Avô Crocodilo

(Para Marta B. Neves, Lisboa) Diz a lenda

e eu acredito!

O sol na pontinha do mar abriu os olhos

e espraiou os seus raios e traçou uma rota

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Do fundo do mar

um crocodilo pensou buscar o seu destino e veio por aquele rasgo de luz

Cansado, deixou-se estirar no tempo

e suas crostas se transformaram em cadeias de montanhas onde as pessoas nasceram e onde as pessoas morreram Avô crocodilo

- diz a lenda e eu acredito!

é Timor! (GUSMÃO, 1998, p. 20)

Dedicado a Marta B. Neves, uma criança portuguesa que enviava poemas e cartas para Xanana enquanto ele estava na prisão, “Avô crocodilo” tem, realmente, uma aura infanto-juvenil, o que é perceptível pela referência ao crocodilo e sua personificação, bem como pela personificação do elemento sol, que “abriu os ohos”. O eu lírico foi sucinto em falar da lenda, mas não se omitiu em referir-se à guerra na quarta estrofe, especificamente nos versos “onde as pessoas nasceram/ e onde as pessoas morreram”. Apesar de a morte ser um fenômeno natural da vida, o contexto em que ele escrevera o poema ia de encontro a essa naturalidade, pois a morte era causada pela guerra, pelos conflitos em busca de poder. A menção à morte, embora suave, pode ser uma reflexão às atrocidades que acometiam o país. Tendo em vista que o poema foi dedicado a uma criança, a leveza em falar da morte encontra sentido.

O poema dialoga, explicitamente, com a lenda que relata a amizade entre um homem e um crocodilo. A lenda é um mito timorense coletivo que foi contada por diversos escritores. Entre eles, destacam-se: Júlio Garcez de Lencastre (1934), que escreveu “Lafaic, o Crocodilo timorense”; Joana Fradique (1955), que intitulou a lenda com o nome de “Como nasceu Timor”; Fernando Sylvan (1998), que conhecia muito a ilha e escreveu “O Crocodilo que se fez Timor”; Luís Cardoso (1998), que é autor de “O crocodilo que se fez ilha”; e o padre Ezequiel Enes Pascoal (1950), o qual publicou “O primeiro habitante de Timor”.

No artigo “As lendas de Timor e a literatura oral timorense”, o autor Vicente Paulino não vê problema nos variados títulos para uma mesma lenda, para ele é “uma forma de enriquecer a sua validade. A referida lenda é na verdade considerada um amplo mito colectivo timorense, que se projeta do passado até à contemporaneidade” (PAULINO, 2018, p. 168). Além disso, apesar do estilo de cada autor, de estruturas narrativas distintas e de elementos que se alternam em cada versão da lenda, a essência da história é única.

Referências

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