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2. Processos da Globalização: Contextualizando a emigração brasileira

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2.

Processos da Globalização: Contextualizando a emigração

brasileira

Neste capítulo, as visões de globalização dos sociólogos Saskia Sassen, Boaventura de Sousa Santos, Manuel Castells, do geógrafo David Harvey e do antropólogo e teórico cultural Stuart Hall foram reunidas com a finalidade de construir uma base teórica multidisciplinar de onde partirão os estudos acerca da relação entre o Estado brasileiro e sua diáspora, para melhor preparar o terreno para a análise empírica presente nos próximos capítulos.

As teorias analisadas representam meios de pensar a globalização que vão além do escopo das teorias tradicionais de Relações Internacionais. Incorporamos em nosso estudo diversos termos para tratar do tema: a lógica de redes na

estrutura informacional desenvolvida Castells; a noção de compressão espaço-tempo e pós-modernidade de Harvey; o sistema mundial em transição (SMET) e cosmopolitismo das comunidades brasileiras no exterior desenvolvido por Sousa

Santos; assim como o duplo deslocamento das identidades nacionais e do sujeito moderno de Stuart Hall e a desnacionalização parcial de Saskia Sassen. Esses autores têm como fio condutor a ideia de que a globalização é uma reestruturação do capitalismo que não se limita somente à transação entre atores mais poderosos, como Estados, multinacionais e instituições internacionais, mas que engloba práticas de atores informais (Sassen) como imigrantes e redes de ativistas numa relação de bidirecionalidade. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012214/CA

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2.1. A Globalização e suas novas fronteiras

2.1.1. Redes e fluxos numa infraestrutura informacional

Os autores estudados se referem à globalização como parte de um “novo paradigma” estrutural advindo de um período de crises do capitalismo no final do século XX. Para Manuel Castells, a revolução nas tecnologias de informação é vista como propulsora do processo de reestruturação — a revolução tecnológica representa uma ‘transformação fundamental’, um evento histórico da ‘mesma importância da Revolução Industrial do século XVIII’, devido a sua penetrabilidade em todos os ‘domínios da atividade humana’ (CASTELLS, 1999, p. 68). As tecnologias que agem sobre a informação e a penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias transformam qualquer conjunto de relações numa

lógica de redes (CASTELLS, 1999, p. 108). Diferentemente, Sassen as enxergam

como resultados da globalização (SASSEN, 2003).

A globalização, sob a ótica de Castells, pode ser concebida como a mudança para um modo de desenvolvimento informacional que representa uma revolução estrutural por transformar a lógica do desenvolvimento e pesquisa tecnológica, sendo assim um rompimento com o modo de desenvolvimento industrial que determinou a acumulação de meados no século XIX e metade do século XX. Esse modo de produção informacional forma um ciclo de crescimento exponencial que se baseia na capacidade humana de expandir conhecimento sobre a maneira de produzir conhecimento. Esse capitalismo informacional se manifesta de formas diferentes nas sociedades e regiões ao redor do mundo. O fato de ser informacional implica uma forma organizacional em que a geração, processamento e transmissão de informação são fontes cruciais de produtividade e poder (CASTELLS, 1999, p. 64 [n30]).

Do mesmo modo que a economia industrial requereu algumas transformações, tais como: uma nova forma de reprodução social do espaço, uma indústria cultural, a divisão social e técnica do trabalho e o consumo em massas — o surgimento da economia informacional precisou reestruturar a sociedade como um todo para poder dar conta das novas dinâmicas mediadas tecnologicamente. Desse modo, embora a economia informacional/global seja diferente da economia industrial, ela não se opõe à sua lógica. A indústria

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continua sendo importante, porém agora se desenvolve em redes transnacionais, incorporando os processos industriais dentro da lógica de produção informacional. A economia informacional é global, pois “é uma economia com capacidade de funcionar como uma unidade em tempo real, em escala planetária” (CASTELLS, 1999, p. 119).

A globalização dos mercados financeiros é vista como ‘espinha dorsal’ da nova economia global (CASTELLS, 1999). O valor das transações financeiras é mais alto do que da produção industrial. Esse crescimento exponencial dos mercados financeiros se deve à criação da infraestrutura de tecnologia, principalmente nos anos oitenta, e tornou possível separar a economia real daquela dos mercados financeiros, na medida em que o valor dos derivados das bolsas supera o PIB global e a especulação financeira proporciona rotatividade bem maior do que o volume de exportações. Assim, só é possível atingir números tão elevados através da infraestrutura informacional instalada ao redor do mundo, o que tem como resultado o aumento da concentração e geração de valor na esfera financeira, “numa rede global de fluxos de capital administrados por redes de sistemas de informática, e de seus serviços auxiliares” (CASTELLS, 1999, p. 147).

A dinâmica e forma de concorrência entre empresas, países e regiões nessa nova economia global são determinadas por quatro fatores: a capacidade tecnológica, o acesso a um grande e afluente mercado integrado, as diferenças entre custos de produção no local e os preços no mercado de destino e a capacidade política de instituições supranacionais e nacionais para promover a estratégia de crescimento de tais regiões e países. Nesse âmbito, cria-se um novo modelo de divisão de trabalho no final do século XX que não coincide com países, mas que é “...organizado em redes e fluxos, utilizando a infraestrutura tecnológica da economia informacional” (CASTELLS, 1999, p. 160). Como veremos adiante, é nesse contexto que surge a emigração brasileira analisada neste trabalho.

A produção informacional precisa da geração de conhecimento e processamento de dados para manter-se competitiva. A ciência, tecnologia e informação são organizadas em redes globais com estrutura assimétrica, no sentido em que há uma alta concentração de pesquisa e desenvolvimento (P&D) num número menor de países da OCDE. Dessa forma, a conexão entre a ciência, a tecnologia e o setor empresarial com as políticas nacionais e internacionais é

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necessária para que ocorra o desenvolvimento tecnológico global (CASTELLS, 1999, p. 165). O novo sistema conta com o conjunto de alianças estratégicas e a cooperação ad hoc entre redes de empresas grandes e médias, operando numa produção e distribuição localizadas em vários locais, o que torna necessário uma forma nova e mais flexível de gerenciamento, em visão compartilhada por David Harvey, como veremos adiante (CASTELLS, 1999, p. 164).

As empresas multinacionais e suas redes de produção servem como instrumentos de domínio tecnológico e canais de difusão seletiva da tecnologia, na medida em que utilizam o conhecimento como bem para concorrência para penetrar em mercados e conseguir apoio governamental (CASTELLS, 1999, p. 167). No entanto, o processo de geração e difusão de conhecimento tecnológico organizado em redes transnacionais de produção depende muito da política governamental no fornecimento de recursos humanos através da educação e infra-estrutura tecnológica (CASTELLS, 1999, p. 168). Os mercados de bens e serviços se tornam cada vez mais globalizados apesar das medidas protecionistas.

Dessa maneira, para Castells, a nova ordem econômica e social está centrada nas tecnologias da informação e das comunicações. Estas tecnologias envolvem a reestruturação do capitalismo, a queda do estadismo, a crescente concorrência econômica global e integração dos mercados financeiros através da revolução digital e do crescimento de redes de computadores, transformando o desenho da economia em todo o mundo. Essa reestruturação do capitalismo que ocasionou tal mudança de paradigma de um capitalismo industrial para o modelo informacional seria uma resposta às incertezas e aumento de competitividade ocasionados pela crise de 1973-74. A resposta seria uma série de estratégias para aumentar lucros num ambiente de alta concorrência, como a redução de custos de produção, aumento de produtividade, ampliação de mercado e aceleração de giro do capital. Tais estratégias foram colocadas em funcionamento no momento de reestruturação dos Estados nos anos 80 e 90 através do Consenso de Washington. Nesse processo, é possível perceber um movimento dual de liberalização e degradação do trabalho e do estado do bem-estar social a partir da década de 70 (CASTELLS, 1999, pp. 184-185).

Na década de 1980, os fluxos financeiros aumentaram de forma significativa, abrindo espaço para a globalização da mão de obra especializada. As empresas se localizaram em diversos lugares, solicitando trabalhadores de

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diversas partes do mundo, formando uma ‘elite profissional global’, similar à noção de ‘elite transnacional global’ desenvolvida por Saskia Sassen. Ao mesmo tempo, a entrada de mão de obra não especializada é restringida por barreiras nacionais, mantendo a maior parte do contingente de mão de obra ‘local’. Desse modo, surge uma grande quantidade de imigrantes não documentados e em status irregular que também participam do fluxo de transações globais de produção, pessoas e dinheiro através de remessas, informações e cultura. (CASTELLS, 1999, pp. 171-172). É nessa infra-estrutura informacional que os emigrantes brasileiros, em sua maioria em status ‘ilegal’, atuaram nas décadas de oitenta e noventa, analisadas nos próximos capítulos.

Castells afirma que a resistência a este modelo ocorreu de forma paralela, como a crítica ao patriarcalismo, a deslegitimação dos sistemas políticos, a fragmentação de movimentos sociais e a nova consciência ambiental. Tais movimentos de crítica caracterizam um momento de mudanças que confundem e não podem ser controladas, e assim como veremos na visão de Stuart Hall, indivíduos são agrupados de acordo com suas identidades primárias, que seriam as étnicas, territoriais, religiosas e nacionais: “Em um mundo de fluxos globais de riqueza, poder e imagens, a busca pela identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, torna-se a fonte básica de significado social” (CASTELLS, 1999, p. 41). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012214/CA

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2.1.2. Sistema Mundial em Transição (SMET) e cosmopolitismo

Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, enxerga o aspecto ‘multifacetado’ da globalização, descrevendo-a com “dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas, interligados de forma complexa” (SOUSA SANTOS, 2002). Tal processo une o universal e o particular, ligados ao mesmo tempo a questões complexas que envolvem desigualdades e conflitos externos e internos, onde interesses hegemônicos e subalternos se opõem. Assim, a globalização pode ser vista como um intenso campo de conflitos entre diversos grupos sociais, Estados e interesses hegemônicos de um lado, e Estados e interesses subalternos de outro; além de outras subdivisões (SOUSA SANTOS, 2002).

O conceito de sistema mundial em transição, (SMET) procura dar conta desta mudança ao ampliar o escopo do sistema mundial moderno (SMM). “O sistema mundial em transição (SMET) é constituído por três constelações de práticas coletivas: a constelação de práticas interestatais, a constelação de práticas capitalistas globais e a constelação de práticas sociais, culturais e transnacionais.” A partir deste ponto de vista, as duas primeiras constelações de práticas correspondem ao universo do SMM – a primeira diz respeito ao protagonismo do Estado-nação nas relações hierárquicas que se estabelecem no sistema-mundo como: centro, periferia e semi-periferia. A segunda são as “práticas dos agentes econômicos cuja unidade espaço-temporal de atuação real ou potencial é o planeta” (Sousa Santos, 2002, p.21). Essas se referem aos fluxos de capital que transcendem as barreiras do Estado e do sistema internacional. Sem dúvida, as duas constelações de práticas descritas são relacionadas de forma não excludente. Portanto, os fluxos de capitais e as práticas transnacionais seguem caminhos abertos pelas constelações de práticas interestatais. As constelações de práticas se mantêm com ganhos obtidos pelos fluxos desiguais do sistema mundial. A ideia principal, o que define a contradição latente do SMET, é que “as tensões e contradições no interior de cada uma das constelações e nas relações entre elas decorrem das formas e das desigualdades na distribuição do poder” (Sousa Santos, 2002, p.23).

Nesse sentido, no SMET, os grupos de práticas interestatais e capitalistas globais anteriores são transcorridos pelas práticas sociais e culturais, como as

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organizações não governamentais, movimentos sociais, redes e fluxos. As relações entre os grupos de práticas supramencionadas iluminam os diferentes processos de globalização, como a ‘globalização localizada’ e a ‘localização globalizada’. Em contrapartida, o ‘cosmopolitismo’ e o ‘patrimônio mundial da humanidade’ constituem resistências aos processos da globalização ‘de cima para baixo’. Como será explorada nos capítulos seguintes, a emigração brasileira pode ser vista sob esta ótica, como práticas sociais e culturais que transcorrem as práticas interestatais e capitalistas globais e a sua relação com o Estado, uma forma de contra-hegemonia.

Os localismos são impostos para o mundo pelas demandas da globalização, e a resistência a esses localismos geram formas inéditas de contra-hegemonia. O localismo globalizado “consiste no processo pelo qual determinado fenômeno é globalizado com sucesso” (SOUSA SANTOS, 2002, p. 26). Por exemplo, a difusão da língua inglesa e o fast-food americano tornaram-se globais, porém levando consigo o seu localismo original. Ainda agindo ‘de cima para baixo’ o globalismo localizado tem impacto direto sobre as condições dos demais locais. A devastação de culturas locais, do pequeno comércio e meio ambiente são exemplos desses globalizados localizados que se reestruturam para abastecer uma cadeia global, onde práticas locais são consideradas periféricas ou complementares.

As práticas de resistência e contra-hegemonia cuidam da ‘organização transnacional’ da resistência de Estados-nação, regiões, classes, ou grupos sociais vitimizados pelas trocas desiguais de que se alimentam os localismos globalizados e os globalismos localizados. Essas práticas utilizam em seu favor a facilidade de comunicação e de dispersão de informações permitidas pelas novas tecnologias, abrindo o caminho para o ‘cosmopolitismo’, uma forma de resistência que reúne vários grupos sociais articulados globalmente; indo além das lutas de classes embora ainda as englobe. “As atividades cosmopolitas incluem movimentos e organizações no interior das periferias do sistema mundial; redes de solidariedade transnacional (...)” (SOUSA SANTOS, 2002, p. 26).

Ou seja, as atividades cosmopolitas da globalização não se restringem aos proletários, mas incluem lutas de outros grupos tradicionalmente excluídos como as mulheres, os negros, homossexuais, índios, etc. As atividades dos que lutam pela proteção do patrimônio comum da humanidade estão incluídas na mesma

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chave de resistência, pois se preocupam com a desmercantilização de “recursos, artefatos, ambiente considerados essenciais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária” (Sousa Santos, 2002, p.29). Desse modo, a globalização não é um movimento unidirecional e irresistível, mas o contrário, ela permite o surgimento de novas resistências. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012214/CA

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2.1.3. Compressão espaço-tempo e o deslocamento de identidades nacionais na pós-modernidade

O geógrafo David Harvey argumenta que as mudanças nas práticas políticas, econômicas e culturais ocorridas a partir de 1972 são relacionadas à “ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de compressão tempo-espaço na organização do capitalismo” (HARVEY, 2011, p. 7). De acordo com este ponto de vista, a globalização é vista como a compressão do espaço pelo tempo, ou seja, o processo social onde ocorre uma aceleração e difusão dos fenômenos pelo planeta. A profunda reconfiguração do tempo e do espaço caracterizada pela ‘aceleração do ritmo da vida’ ocorre em virtude das crises do capitalismo. É um processo altamente diversificado em seus efeitos e condições, por isso que é imprescindível analisar as relações de poder que respondem pelas diferentes formas de mobilidade temporal e espacial (HARVEY, 2011, pp. 7, 210, 257). Há uma crescente sensação de que o mundo ‘encolheu’ (HARVEY, 2011, p. 219).

As mudanças ocorridas a partir do início dos anos setenta assinalam o surgimento de um novo regime de acumulação, acumulação flexível, uma fase tardia do capitalismo que rompe com a ‘rigidez’ do fordismo em resposta à crise (HARVEY, 2011, p. 135). Tal como defendido por Castells, para Harvey, diferentemente do modelo de acumulação fordista, no qual trabalhadores eram concentrados em um tempo e espaço determinado, a ‘acumulação flexível’ pós-fordista das novas tecnologias, como de informação, puseram fim à antiga ordem espaço-temporal, reestruturando seu processo produtivo. A emergência de setores de produção novos, como “as novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, as taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”, é uma característica do novo modelo de produção pós-fordista, o qual ‘se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos produtos, e dos padrões de consumo (HARVEY, 2011, p. 140).

Atualmente, “a explosão de novos instrumentos e mercados financeiros” são os mesmos elementos que permitiram a “flexibilidade geográfica e temporal da acumulação capitalista” (HARVEY, 2011, p. 7). No entanto, as crises sistêmicas surgem na medida em que há oposição entre a aceleração de ciclos e a necessidade de investimentos em capitais, “porque os investimentos fixos em

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instalações e equipamentos, bem como as formas organizacionais e habilidades de trabalho, não podem ser modificados com facilidade”(HARVEY, 2011, p. 210).

Tal oposição significa que o tempo de giro afetado pelas modernizações, como as estradas de ferro, telégrafo, cabos de fibra ótica, satélites, é implantado de forma não uniforme. Logo, ao longo do tempo, o capital precisaria da crise para gerar uma nova onda de modernizações para modificar novos espaços e criar condições para a maior aceleração dos ciclos. Exemplos dessas tendências são encontrados nas constantes inovações tecnológicas, na linha de montagem fordista, na obsolescência programada, no papel central da propaganda e da moda, no desenvolvimento dos mercados financeiros, os quais estão cada vez mais interligados por redes de comunicação instantâneas e na ‘flexibilização’ do trabalho.

De acordo com esta visão, para o melhor funcionamento do capitalismo, é necessário que o capital percorra o ciclo da produção e consumo. O que está acontecendo, portanto, é que esses ciclos, esse tempo de giro, estão cada vez mais aceleradas. “Há um incentivo onipresente para a aceleração, por parte de capitalistas individuais, do seu tempo de giro com relação à média social, e para fazê-lo de modo a promover uma tendência social na direção de tempos médios de giro mais rápidos”. A natureza competitiva e voraz do capitalismo causa esse incentivo(HARVEY, 2011, p. 209).

Dessa forma uma característica marcante da globalização é a aceleração da vida como processo social com a compressão espaço-temporal, possibilitada pela redução do tempo do giro do capital. A velocidade em que os capitais se deslocam em torno do planeta, buscando as melhores condições para o lucro, ajuda a construir um mercado financeiro que não precisa lidar com o tempo natural da vida. O trabalhador representa a resistência a este processo, “ainda hoje, as tentativas de acelerar ou intensificar os processos de trabalho produzem algumas das mais fortes e duras lutas entre os trabalhadores e administração”. O capitalismo é então desenvolvido num ritmo diário que é “fixado pela obtenção de lucros, e não pela elaboração de escalas de trabalho humano” (HARVEY, 2011, p. 211). O emigrante brasileiro está inserido nesta lógica enquanto trabalhadores imigrantes num mercado de trabalho ‘flexível’ da produção pós-fordista.

Segundo os estudos culturais de Stuart Hall, as identidades nacionais são produtos da era moderna, comunidades simbólicas capazes de gerar sentimento de

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lealdade e identidade. Elas representam uma tentativa de enquadrar diferentes culturas sob o mesmo ‘teto político’ do Estado, tornando-se uma fonte importante de significados. A ‘Nação’ seria “uma entidade política que produz sentidos, um sistema de representação cultural” (HALL, 2003, p. 48) cultivada por políticas de alfabetização universal e uma língua como meio de comunicação, que criaram uma cultura homogênea e mantiveram instituições culturais nacionais através do sistema de educação nacional. Assim, a cultura nacional se torna um ‘dispositivo para a modernidade’ na medida em que mobiliza um grande número de pessoas em torno do Estado, uma ‘comunidade imaginada’. Agora, no entanto, essas identidades nacionais centradas, coerentes e inteiras estão sendo deslocadas pelos processos de globalização (HALL, 2003, p. 49).

Dessa forma, a globalização agrava uma ‘crise na identidade’, na qual “(...) paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais” estão se fragmentando em um ‘duplo deslocamento’ (HALL, 2003, p. 9). Ou seja, está ocorrendo um duplo deslocamento das identidades e descentralização do sujeito, tanto no âmbito sociocultural quanto no pessoal. A identidade individual, única, racional do homem, que surge na era moderna está em crise, sinalizando uma nova era pós-moderna, cujas identidades são fragmentadas e duplamente deslocadas/descentradas, superando qualquer noção “essencialista ou fixa de identidade” (HALL, 2003, p.10).

Hall aponta três consequências possíveis para as identidades na globalização — a primeira sendo a desintegração de identidades nacionais devido à crescente homogeneização cultural na era pós-moderna. As identidades se tornariam cada vez mais mediadas pelo mercado global, desvinculadas de tempos, tradições, histórias e lugares específicos, contribuindo para um efeito de ‘supermercado global’ (HALL, 2003, p.75). Uma segunda possibilidade seria o reforço das identidades nacionais e locais como resistência à globalização. A terceira consequência seria o declínio das identidades nacionais, ocasionando o surgimento de novas identidades híbridas.

Na segunda possibilidade mencionada, observa-se a também forte tendência de resgatar identidades puras, para constituir ‘coesão’, exemplificadas pelo “ressurgimento do nacionalismo na Europa Oriental e o crescimento do fundamentalismo,” um efeito inesperado num contexto de globalização (HALL,

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2003, p. 92). Ou seja, os deslocamentos causados pela globalização têm efeitos contraditórios sobre as identidades, gerando um empate entre o ‘global e ‘local’, o que sugere que a globalização pode ser parte de um processo de descentralização gradual do próprio Ocidente (HALL, 2003, p. 73). Para o nosso estudo, observamos que as identidades nacionais, no entanto, ainda têm sua força através dos direitos garantidos por cidadania. O Estado brasileiro conseguiu formalizar as comunidades brasileiras no exterior através da mobilização da identidade nacional vinculada aos direitos de cidadania brasileira, num contexto de crescimento da importância das identidades locais, regionais e comunitárias.

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2.1.4. Desnacionalização parcial na lógica organizadora nacional global

Saskia Sassen compreende a globalização a partir de duas dinâmicas distintas: das instituições e processos que operam na escala explicitamente global, como as organizações internacionais, e as dinâmicas que atuam na escala tida como nacional, práticas que ocorrem dentro do território e instituições no domínio do nacional e subnacional. Essas dinâmicas formam redes de transferências, ligando processos e atores locais e nacionais numa recorrência de dinâmicas em um crescente número de países. As comunidades brasileiras no exterior seriam exemplos dessas dinâmicas por formarem redes de ativismo, envolvidos em conflitos localizados com agendas globais. Outros exemplos das dinâmicas de globalização presentes no objeto estudado são aspectos da atuação do Estado (a aproximação do Estado brasileiro com os emigrantes), assim como o uso de instrumentos internacionais (no caso do Estado brasileiro, a questão global dos direitos humanos) em cortes nacionais, práticas que constituem o global de forma não reconhecida(SASSEN, 2003ª, pp.1-2).

Sassen procura desafiar o que denomina ‘nacionalismo metodológico’, que atribui ao Estado o papel de contentor de processos sociais e o que ocorre no território nacional é de fato, nacional. Para ela, essas condições estão sendo desarticuladas parcialmente de maneiras divergentes, tanto na forma como a globalização está ocorrendo, quanto em nível de articulação. Segundo este raciocínio, o Estado não perde a sua função na globalização, ao contrário, desempenha papel estratégico para a sua promoção (SASSEN, 2006). Portanto, é dentro do Estado que a globalização “... se torna o lugar para as transformações fundamentais na relação entre os domínios do privado e público, no equilíbrio interno de poder do estado e nos campos mais amplos das forças nacionais e globais onde o Estado agora deve funcionar” (SASSEN, 2006, p. 43).

A autora inclui dentre os processos da globalização a desestabilização de antigas hierarquias de escala, que colocavam o global, nacional e subnacional em níveis hierárquicos. Não estamos presenciando o fim desta hierarquia, mas o fim da exclusividade do Estado no estudo do global, na medida em que esse opera de forma não ascendente entre escalas, não somente para cima (SASSEN, 2003a, pp.6-7). No caso estudado, o que vemos é uma reconceituação do local na medida

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em que o Estado procura atender as necessidades de sua população que reside fora do país, reconceituando os emigrantes como cidadãos, sujeitos políticos.

Nessa visão, o global opera sobre elementos antigos como o Estado, as classes, as migrações, forçando-os a funcionar de outras maneiras, mostrando como o próprio Estado opera a dinâmica de desnacionalização parcial. Argumentamos que a emigração brasileira e o Estado brasileiro se inserem nesta dinâmica, na medida em que o ativismo das comunidades brasileiras no exterior constituíram mudanças para o Estado, o qual se inseriu diretamente na organização e formalização dessas comunidades. O papel do Estado varia de forma significativa dependendo tanto do poder tanto interno quanto externo. Essa dinâmica contém uma dialética em que novas participações do estado dão forças a formas que desestabilizam o que fora construído historicamente como poder estatal(SASSEN, 2003b, p. 14).

Nesse contexto, esta reorientação do poder do Estado para uma maior concentração de poder no executivo é reforçada através de duas tendências: primeiro, a crescente importância de componentes particulares da administração, como os ministérios de finanças e bancos centrais, para a implementação de uma economia corporativa global, cujos elementos ganham poder devido à globalização; e segundo, as agências reguladoras globais só lidam com o executivo, o que fortalece a adoção de lógicas globais exclusivamente com este setor. Essa desnacionalização consiste em vários processos específicos, inclusive a reorientação de agendas nacionais para globais, e a circulação de agendas privadas disfarçadas de política pública dentro do Estado (SASSEN, 2006, p. 73). Como veremos adiante, o fato de que a relação entre o Estado brasileiro e as comunidades brasileiras no exterior seja partir do executivo, ao invés do legislativo mostra uma estratégia de política externa que reflete a dinâmica desnacionalizante de reorientação do trabalho do Estado. Os estados nacionais agora funcionam num campo de poder que é constituído não somente pela comunidade de estados, mas também pela formação de uma nova ordem institucional privada ligada à economia global e pela ascensão de ordens institucionais, englobando ONG’s e organizações de direitos humanos (SASSEN, 2006, p. 146). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012214/CA

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Conforme será visto no próximo capítulo, comparado ao contexto de maior fluxo de imigração para o Brasil, no final do século XIX e início do século XX, a era global atual é diferente do internacionalismo praticado naquela época. A era hipernacional do final do século XIX continuou no século XX e era um resultado complexo de dinâmicas de construção de capitalismos nacionais num mundo de grandes poderes que tanto competiam quanto interagiam na economia emergente do século XX (SASSEN, 2006, p. 140). Os diversos esforços colonizadores ocorreram sob o contexto de expansão imperial e doméstica de capitalismos nacionais. O Brasil não foi diferente. Veremos no próximo capítulo que, as políticas de imigração e de política externa brasileira naquela época tinham um claro projeto de Estado-nação brasileiro, iniciado na época do Império com objetivo colonizador, tornando-se política de Estado no final do século XIX. A imigração europeia foi subsidiada naquela época como parte de uma política de desenvolvimento cujo intuito era miscigenar os europeus com a população brasileira para o seu ‘branqueamento’ (SANTOS, 2002).

Veremos no terceiro capítulo que a política externa, desde a época da República, busca firmar o Brasil como ‘potência natural’, e fazê-lo exercer papel de protagonista autônomo no cenário mundial (HIRST & LIMA, 2005). Ou seja, a internacionalização econômica de convenções e mercados, apoiada pela coordenação interestatal, foi direcionada para a construção de capitalismos nacionais. Desse modo, o nacionalismo centrado na geografia imperial é utilizado para argumentar que a economia global atual representa um projeto distinto, pois as rivalidades intercapitalistas são abordadas no domínio econômico em vez do militar, e através de mecanismos públicos e privados cada vez mais formalizados.

Diferente das outras visões, no entanto, para Sassen a ascensão de empresas e bancos transnacionais em meados da década de setenta não é vista como um resultado da mudança do movimento em direção à era global. Nessa visão, a crise no sistema bancário internacional forneceu elementos críticos para a evacuação parcial desse tipo de sistema bancário dos mercados de capitais dos EUA e de sistemas financeiros internacionais durante a crise da dívida do terceiro mundo do início da década de oitenta. Isso abriu amplo espaço global para novos tipos de atores e novos alinhamentos correspondentes na relação entre o Estado e os bancos/sistemas financeiros. Assim, a crise dos bancos transnacionais para um

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contexto mais amplo de estagnação econômica criou espaço operacional para as finanças e contribuiu para a rápida propagação da ‘financialização’ de um número crescente de setores econômicos, construindo as capacidades para as mudanças na década seguinte (SASSEN, 2006, p. 157).

Esta nova lógica organizadora global se tornou visível a partir da década de oitenta, o ponto de inflexão das mudanças (SEWELL apud SASSEN, 2006, p. 148). Diferentemente de muitos teóricos da globalização que atribuem ao sistema de Bretton Woods o início da era global, adotamos a visão de que o mesmo foi um sistema de governança global que tinha como objetivo manter uma autonomia relativa entre estados nacionais e forças globais. A era global é vista como um sistema que visa abrir países para formas globais e implantar novas lógicas organizadoras para substituir elementos específicos do Estado. Dessa maneira, o período Bretton Woods não é visto como virada para era global, porque o sistema foi concebido como internacional; era dirigido para a construção de economias nacionais e proteção de interesses nacionais, não globais (SASSEN, 2006).

Nos primeiros 12 anos o sistema tinha como objetivo a governança global para o bem comum, porém os EUA, participante relutante, utilizou o seu poder hegemônico para utilizar o sistema para o desenvolvimento de capacidades estatais para a atuação dos atores privados, as empresas americanas, já dominantes na época em que os outros grandes poderes lidavam com a destruição da guerra. Os poderes europeus estavam muito mais dispostos a pensar em termos de sistema internacional que assegurava o equilíbrio. A acomodação de tais interesses implicou numa negociação na direção da desnacionalização de instituições e componentes nacionais altamente especializados. As instituições estatais são reorientadas em suas políticas e agendas para as demandas do capital global, não mais do Estado do bem-estar social (SASSEN, 2003a, p.8).

O que vemos é um desenvolvimento chave, o crescimento de várias formas de autoridade privada que, juntas, estão construindo ordens institucionais que funcionam fora do sistema interestatal; o que tem acontecido em graus diversos no Estado, mesmo se seu aparato institucional continua sem mudar, estabelecendo assim novas dimensões políticas de espacialidade do nacional e global (SASSEN, 2003a, pp.9-10). Assim, ao contrário do que houve na era do New Deal, quando o poder federal dos EUA ganhou força, principalmente o legislativo, desde os anos oitenta ocorre um movimento para um executivo

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privatizado, que reinterpretam antigas leis e com menos participação do legislativo na formulação daquelas novas. Já que o legislativo é o canal de representação da população, há menos espaço para a participação popular na formação de novas leis (SASSEN, 2006).

Desse modo, a autoridade e leis do Estado fazem uma interseção com o espaço digital privado dos interesses financeiros na medida em que introduz novos tipos de normas que “... refletem a lógica operacional do mercado global de capitais nas políticas nacionais” (SASSEN, 2006, p.78). Os mercados financeiros informatizados são inseridos em centros financeiros localizados em territórios nacionais, o que parcialmente devolve as finanças globais aos governos nacionais. Logo, a autoridade nacional não é anulada, mas desnacionalizada parcialmente; transformada para melhor atender aos interesses das finanças globais (SASSEN, 2010).

Essas tendências apontam para uma privatização parcial, porém aguda de aspectos chaves do executivo, que produz um realinhamento dentro do estado e uma erosão de direitos de privacidade entre os cidadãos. O auge desses realinhamentos recorrentes ocorreu durante a administração de George W. Bush. Com o Patriot Act. Nesse contexto, houve uma reconstrução da divisão do público e privado, em parte através dessas dinâmicas e de políticas de desregulamentação, privatização e mercadorização, que também contribuiu para a mudança na posição do executivo (SASSEN, 2006, pp.184, 410). Através desse novo tipo de segmentação dentro do aparelho estatal, é possível constatar uma desnacionalização também ocorrendo na instituição da cidadania. A erosão dos direitos de privacidade é uma mudança histórica da divisão público-privada que está no centro do estado liberal(SASSEN, 2006, p. 72).

Como apontaremos nos próximos capítulos, é neste contexto de desnacionalização do Estado brasileiro que há maior saída de seus cidadãos, pois a expansão do investimento global está ligada a rupturas nas comunidades locais e à explosão da migração internacional. Podemos observar então que a globalização abriu as fronteiras para o fluxo de capitais, informação, mercadorias e terceirização, através da atuação do Estado na regulação e legislação sob esses fluxos. A ação do Estado também criou novas fronteiras em relação ao segundo grupo, de imigrantes e refugiados, que encontram fronteiras fechadas, abrindo espaço para a emergência de classes transnacionais globais. Ou seja, os fluxos de

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capitais e bens, serviços e informação não foram seguidos por um fluxo maior de pessoas, exceto por aqueles seletos pertencentes à privilegiada classe transnacional, lógica não aplicada aos fluxos de trabalhadores ‘não’ ou ‘semi-qualificados, frequentemente barrados e detidos nas fronteiras (CASTELLS 1999; Sassen, 2003)1.

Algumas mudanças trazidas pela globalização foram às transformações de atores antes confinados ao doméstico em atores globais, sem terem que sair de seus papéis nas comunidades localizadas em circuitos globais (SASSEN, 2003a, p. 13).A consequência disso é que as cidades emergem como lugares estratégicos para importantes processos econômicos e para novos tipos de atores. Ao desagregar a nacionalidade e cidadania, uma vez que a sensação de pertencimento não esteja submissa ao nacional, é possível sinalizar a possibilidade de uma política transnacional que esteja centrada em localidades concretas (SASSEN, 2005, p. 92).

A crescente articulação da globalização com as economias nacionais e a retirada associada do Estado de vários aspectos/ esferas de direitos de cidadania aumentam a possibilidade de diluição da autoridade do estado correspondente (Sassen, 2003b, p.18).Reificada como parte do nacional, a cidadania na verdade é um agrupamento de diversos elementos. As dinâmicas atuais da globalização e digitalização, e a variedade de práticas políticas que envolvem grupos e organizações silenciadas, como os emigrantes brasileiros, estão desestabilizando esses agrupamentos, trazendo à tona suas particularidades (Sassen, 2003b, p.19). A desestabilização das hierarquias de poder e alianças legítimas possibilitou uma multiplicação de dinâmicas e atores não formalizados, ou parcialmente formalizados, como os imigrantes brasileiros. A extensão em que as transformações serão formalizadas e institucionalizadas variam bastante. Esses são marcadores de um terreno analítico expandido para entender a cidadania.

Neste contexto, o sentido de cidadania é pluralizado pelas expansões formais do seu status legal e através da institucionalização do regime de direitos humanos. Isto está contribuindo hoje para uma maior exploração de fronteiras desses status legais, como o fortalecimento da constitucionalização de direitos

1 Do artigo “Saskia Sassen and the Sociology of Globalization: A Critical Appraisal” de William I

Robinson. Publicado em Sociological Analyysis Vol. 3 No. 1 Spring 2009. Disponível em http://www.soc.ucsb.edu/faculty/robinson/Assets/pdf/Saskia%20Sassen.pdf PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012214/CA

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civis, que permitem reivindicações contra estados, aumentando a distância entre o aparato formal do Estado e a instituição da cidadania e a garantia de direitos para atores estrangeiros, como atores econômicos(SASSEN, 2006, pp. 88).

No entanto, os direitos formais de uma instituição da cidadania evidenciam a mudança e sinalizam que esta é uma instituição incompleta(SASSEN, 2003b, p. 21). A cidadania legal nem sempre traz direitos completos ou iguais, ela é afetada pela posição de grupos diferentes num Estado-nação, mas a posição desses grupos também gerou as práticas e lutas que forçaram mudanças na instituição da própria cidadania em si. Dois pressupostos importantes para esse argumento são: primeiro, a cidadania é produzida em parte através das práticas dos excluídos, e segundo, ao expandir a inclusão de aspectos formais da cidadania, o Estado nacional contribuiu para algumas condições que facilitaram aspectos chaves de cidadania pós-nacional e desnacionalizada (SASSEN, 2003b, p. 22). As consequências são a ausência de progressão linear na evolução da instituição, uma progressão chave em muita literatura de cidadania. Para muitos, ela está se tornando um projeto normativo, enquanto o pertencimento social se torna cada vez mais compreensivo e aberto. A globalização e os regimes de direitos humanos relativizaram as hierarquias políticas de poder e aliança, legítimos na última década(SASSEN, 2003b, p. 23).

Portanto, a globalização de uma série de atores e processos econômicos traz consigo um aumento na desigualdade de poder em diferentes partes do governo, aumentando quaisquer desigualdades pré-existentes. Embora cada estado seja diferente, a redistribuição do poder do legislativo para o executivo é evidente em numero crescente de países (SASSEN, 2006, p. 145). O Consenso de Washington não foi somente uma decisão, também implicou em novas práticas estatais que mudaram o papel do Estado, resultando ironicamente na desestabilização de aspectos do poder do próprio Estado.

A desnacionalização pode abrir espaço para agendas políticas não corporativas, pois conforme os estados participam da implementação de regimes de direitos humanos, eles sofrem transformações significativas porque essa acomodação envolve negociações, como no caso do Estado brasileiro (SASSEN, 2008, p. 73). No caso da economia global, essas negociações implicam no desenvolvimento de determinados comportamentos dentro de estados nacionais, através de atos legislativos, julgamentos nas cortes, ordens executivas e políticas

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dos mecanismos necessários para a reconstituição de certos aspectos do capital nacional em 'capital global'(SASSEN, 2003b, pp. 11-12).

Dessa maneira, o papel do Estado no processo de desregulamentação envolve a produção de novos tipos de regulamentações, itens legislativos e decisões da corte - a produção de uma série de legalidades. O papel do Estado é evidente na proliferação de redes transfronteiriças e agências regulatórias especializadas. Ele continua sendo o elemento que garante direitos, porém pode ser visto como representante de uma capacidade técnico-administrativa que nesse tempo não pode ser replicada por qualquer outro arranjo institucional, uma capacidade protegida pelo poder militar(SASSEN, 2003b, p. 13).

É possível observar dinâmicas desnacionalizantes na maneira em que o Estado se relaciona com os emigrantes brasileiros na era global: como cidadãos detentores de direito e fonte de investimento externo, e como protetor dos direitos humanos dos imigrantes em geral. Se tomarmos como pressuposto que a cidadania e Estado-nação são categorias que evoluíram de forma agrupada historicamente, e que as dinâmicas atuais estão desestabilizando tais ligações, e trazendo-as à tona, é possível pensar em novas aberturas operacionais e retóricas para a emergência de novos tipos de sujeitos políticos e novas espacialidades para a política através desses efeitos desestabilizadores, como imigrantes não documentados, que são sujeitos não autorizados que têm a possibilidade de desenvolver estratégias informais, extraestatais, assim como redes que os ligam com comunidades dos países de origem, exercendo uma espécie cidadania informal, como no caso brasileiro.

A ‘ressonância’ institucional feita neste trabalho pretende reposicionar os cidadãos, ainda em sua maioria baseados na nação, como participantes em domínios emergentes de governança global. A cidadania descreve um número de elementos relacionados entre o indivíduo e a política em um espaço político (SASSEN, 2003b, p. 16). Os desenvolvimentos atuais trazem à tona tensões entre a cidadania como status formalizado legal e como projeto ou aspiração normativa. Na medida em que a cidadania seja um status que articule direitos e responsabilidades legais, os mecanismos através dos quais essa articulação é moldada e implementada podem ser analiticamente distinguidos do próprio status (SASSEN, 2003b, p. 17). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012214/CA

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A migração brasileira e a atuação do Estado em relação a esta realidade podem ser analisadas a partir das visões estudadas, principalmente em relação ao poder transformador das práticas de atores informais. Através dessa visão, as comunidades brasileiras no exterior são atores políticos ativistas que reivindicam direitos tanto dos países onde residem, quanto no Brasil. Na medida em que essas reivindicações são atendidas pelo Estado, em nome dos direitos humanos, formam-se políticas públicas que tornaram o brasileiro no exterior um sujeito político. Dessa maneira, é possível observar que as práticas dos atores informais (comunidades brasileiras) foram capazes de transformar institucionalmente o ator formal (o Estado) que por sua vez, formaliza a relação com as comunidades. Esta relação é um exemplo do poder do imaginário construído pela globalização, que permite aspirações à prática política transfronteiriça, gerando políticas centradas em múltiplas localidades ligadas digitalmente(SASSEN, 2003a, pp. 10-11).

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2.2. Vocabulário conceitual para análise da mudança

Para o nosso estudo, levaremos em conta a lógica de redes de emigração brasileira na estrutura informacional, pois tal estrutura faz com que haja maior mobilidade bidirecional de fluxos de capital e pessoas e várias direções, maior

flexibilidade nas relações de trabalho devido ao encurtamento do espaço causado

pela compressão espaço-tempo, além do efeito do duplo deslocamento das identidades nacionais na nova forma cultural chamada pós-modernidade. Este

sistema mundial em transição (SMET) permite o cosmopolitismo das

comunidades brasileiras no exterior, obtendo sucesso com seu ativismo global de

atores informais de tal forma que foi institucionalizada pelo Estado numa

dinâmica de desnacionalização parcial. Para melhor abordar o processo de mudança em questão, tomamos emprestados os termos construção de

capacidades, lógicas organizadoras e ponto de inflexão, adotados por Sassen

(SASSEN, 2006).

Seguimos a tipologia de Sassen utilizada em sua obra Novas Assembleias

de Território, Autoridade e Direitos para descrever os momentos de mudança na

postura do Estado brasileiro em relação aos seus cidadãos no exterior. Sua análise consiste em destacar três elementos constitutivos: construção de capacidades,

pontos de inflexão e lógicas organizadoras. É importante destacar que: primeiro,

o estado nacional não sofre desnacionalização em sua totalidade, mas somente em alguns componentes; e segundo, as capacidades particulares encontram o seu valor na lógica organizadora dentro da qual estão inseridas. Olhar para as capacidades significa focar nas dinâmicas intermediárias entre as novas e velhas ordens, pois no processo de mudança, tais ordens podem se tornar constitutivas da nova ordem sem parecer que sofreram alguma mudança (SASSEN, 2006).

Adotamos a visão de nova conjuntura é imbricada com o passado através de uma dinâmica de inflexão, um tipping point que obscura tais conexões (SEWELL apud SASSEN, 2006). A análise desses pontos de inflexão enquanto dinâmicas particulares envolvidas em sistemas relacionais foca no evento da mudança ao invés do resultado, nas lógicas organizadoras cujas capacidades se encontram em mutação. Para detectar tais ‘pontos’, é preciso analisar a história com o objetivo de capturar a transição de uma ordem para outra e acomodar a possibilidade de atores e práticas informais, na medida em que os excluídos

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também fazem história no processo de construção de capacidades. Os chamados ‘imigrantes irregulares’ servem como exemplo na medida em que, através de práticas informais podem desestabilizar e embaçar significados formalizados de pertencimento político como definido no estado moderno de hoje.

A interação entre o Estado brasileiro e os migrantes internacionais é vista de maneira diferente quando se trata de imigrantes e emigrantes, por isso que este olhar poderá ajudar a detectar os pontos de inflexão e traçar paralelos entre capacidades em formação nas duas fases. Uma análise das lógicas organizadoras envolvidas também requer um olhar para a história com o intuito de detectar e deduzir o caráter de tais lógicas. Levando em conta as escalas centrífugas, (poder desagregador, fragmentador) da ordem medieval e global, e a escala centrípeta (agregadora e centralizadora) da ordem nacional, é possível afirmar que o global é novo no sentido em que, diferente da escala centrífuga medieval, ele também desagrega a normatividade em assembleias parciais múltiplas e as remonta em subassembleias especializadas (SASSEN, 2006).

Este capítulo foi uma tentativa de construir um vocabulário conceitual para embasar o objeto estudado. Nos próximos dois capítulos, apresentamos a pesquisa empírica para explorar de que forma as dinâmicas desnacionalizantes da globalização se faz presente na relação entre o Estado e as comunidades brasileiras no exterior. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012214/CA

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