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DRAMATURGIA DA MELANCOLIA AS PEÇAS DE ODUVALDO VIANNA FILHO DEPOIS DE 1964

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DRAMATURGIA DA MELANCOLIA

AS PEÇAS DE ODUVALDO VIANNA FILHO DEPOIS DE 1964

Paulo Bio TOLEDO1

A melancolia trai o mundo para servir o saber. Mas o seu persistente alheamento meditativo absorve na contemplação as coisas mortas, para as poder salvar.

(Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão)

Resumo

O trabalho busca analisar parte da produção dramatúrgica de Oduvaldo Vianna Filho escrita após o golpe de 1964. Trata-se de um conjunto de obras teatrais que tentaram elaborar os impasses e a desolação de um tempo interditado pela repressão militar e pela ausência de condições em desenvolver um projeto moderno, coletivo e popular para o teatro. Peças engavetadas pelo autor ou censuradas pela ditadura ao mesmo tempo em que recorriam cada vez mais a um enquadramento dramático das situações, desenvolveram também, consciente ou inconscientemente, configurações formais específicas para lidar com a paralisia, a inação, o peso da história e com a melancolia de toda uma geração. São peças que contrastam, portanto, com o entusiasmo de época diante da amplitude que a televisão e a indústria fonográfica deram à cultura de protesto e, em contrapartida, formam uma imagem profunda do tipo de fratura social causada pelo golpe de 1964.

Palavras-chave: Teatro brasileiro; Oduvaldo Vianna Filho; Teatro político; censura

Entre 1964 e 1974 a cultura no Brasil viveu uma série de impasses que resultaram numa produção dramatúrgica de características ambivalentes. Parte da produção dramatúrgica de Oduvaldo Vianna Filho naquele período, que se inicia com o golpe de 1964 e vai até a precoce morte do autor, compõe um conjunto que chamamos aqui de “dramaturgia da melancolia”, unindo peças como Moço em estado de 1 Professor da Faculdade de Letras da UFMG. E-mail: paulo.v.bio@gmail.com

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sítio (1965), Mão na luva (1965), Papa Highirte (1968), Longa noite de Cristal (1969), Corpo a corpo (1971) e Rasga Coração (1974).

São obras marcadas por uma atmosfera saturnina, interessadas nos impasses da luta política em tempos regressivos e nos dilemas existenciais de personagens inspirados na volúvel classe média brasileira. Apesar de não se passarem especificamente no Brasil ditatorial pós-64, o ambiente dessas peças remete àquele tempo. São textos, portanto, que já numa primeira mirada contrastam com a produção dramatúrgica do autor nos anos que antecedem o golpe de 1964, quando escreveu peças muito diferentes, abertamente engajadas e marcadas pelo interesse em tentar representar as formas da luta de classes no Brasil, como também por um intenso experimentalismo épico na composição estrutural.

Na década de 1950, junto a Gianfrancesco Guarnieri, Vera Gertel e outros jovens, Vianna participa da fundação do Teatro Paulista do Estudante (TPE), apadrinhados pelo diretor italiano Ruggero Jacobbi e com intenção de desenvolver um teatro moderno mas também comprometido socialmente (NEIVA, 2016). Pouco depois, o grupo se funde com o Teatro de Arena de São Paulo ajudando a desenvolver um trabalho coletivo, engajado e com intenções populares. Vianna ainda seria um dos principais nomes do Centro Popular de Cultural (CPC), um enorme programa cultural interessado em formas de democratização da arte em contato produtivo com trabalhadores da cidade e do campo. O jovem autor não apenas foi um dos fundadores do CPC, em 1961, como trabalhou obstinadamente no movimento até o dia do golpe, em abril de 1964, quando o prédio da UNE no Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro, onde ficava a sede da sessão carioca, foi cercado por grupos paramilitares e incendiado, obrigando os remanescentes, dentro os quais o próprio Vianna, a fugir pelos fundos do prédio. As condições avançadas de trabalho existentes na primeira metade da década de 1960 foram interditadas ou suprimidas depois dessa fratura violenta na história2.

Após 1964, a melancolia torna-se um componente estrutural que percorre diversas das peças do autor. Desde ali, ela pode ser vista como um recurso estético de grande rendimento crítico para lidar com as novas configurações sociais. As duas primeiras peças desse nosso corpus de análise, Moço em estado de sítio, de 1965, e Mão

na luva, de 1966, são documentos de uma mente angustiada, tentando elaborar o

momento histórico e os possíveis equívocos que teriam contribuído com aquela 2 O melhor debate sobre a dimensão dessa fratura histórica no campo da cultura ainda é o clássico artigo

de Roberto Schwarz (2008), Cultura e política, 1964-1969. Sobre o assunto, ver ainda COSTA (1996) e a dissertação de mestrado que discute essa passagem na produção reflexiva de Vianinha (TOLEDO, 2013).

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tragédia. São também peças atentas às armadilhas que se armavam desde então no mundo da mercadoria, gerenciado de forma autoritária pelos militares. Os dois textos representam, por exemplo, a rapidez e a facilidade com que os protagonistas (ambos chamados Lúcio) são tragados pela máquina produtiva de um jornal e como a aparente autonomia reflexiva logo se reverte em funesta adesão ao capital. Mesmo a posição à esquerda de ambos torna-se água no moinho do sistema, como diz Galhardo, dono do jornal em Moço em estado de sítio: “esquerdismo, bem domado, fatura” (VIANNA, 1994).

Ambas as peças são materiais de grande valor artístico, Vianna Filho desenvolve uma estrutura cíclica, pendular3, figurando um ambiente labiríntico e sem saída. São peças cheias de cenas rápidas, com andamento cinematográfico, que criam um ritmo de ansiedade e urgência. Mas, ao mesmo tempo, tal velocidade alimenta um giro em falso: as peças são marcadas por falsas superações das personagens, cujas decisões apenas alimentam um movimento que não sai do lugar, que sempre retorna ao mesmo impasse. A julgar pelo quadro apresentado por essas duas peças, se houve mistificação e idealismo antes de 1964, o futuro era muito mais tenebroso, com pouca ou nenhuma chance de sobrevivência fora do aparelho produtivo, dentro do qual, apesar da aparente autonomia, só o que se fazia era alimentar a roda do existente.

Contudo, ambas as peças foram engavetadas pelo autor e só vieram a público após sua morte4. Em contrapartida, entre 1964 e 1967, Vianna se engaja num tipo de trabalho efusivo, animado e cheio de entusiasmo, sobretudo no Grupo Opinião que funda com remanescente do CPC após o golpe. Foi, por exemplo, um dos dramaturgos do Show opinião, que estreou em dezembro de 1964 e teve carreira de enorme sucesso; participou como ator de Liberdade liberdade, contracenando com Paulo Autran em 1965; e, junto com Ferreira Gullar, também escreveu a comédia Se correr o bicho pega,

se ficar o bicho come, na qual ainda fez parte do elenco no ano de 1966. Moço em estado de sítio e Mão na luva, escritas concomitantemente a estes trabalhos, contrastam

de maneira espantosa com eles, sobretudo pela diferença na abordagem temática e nos humores mobilizados.

Mais adiante, essa duplicidade do autor segue operando, no contraste, por exemplo, entre, de um lado, peças como Longa noite de Cristal (1969), Corpo a 3 Sobre a ideia da forma pendular como conceito crítico de alto rendimento, ver o capítulo “Volubilidade

e ideia fixa” na tese de livre docência de José Antônio Pasta (2011, p. 95-113).

4 Para uma discussão séria e pormenorizada sobre a produção do autor ao longo da vida ver Betti (1997).

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corpo (1971) e Rasga Coração (1974) e, de outro, a atividade do autor na televisão, por

vezes como forma de sobrevivência ou estratégia, mas também entusiasmado pela chance de irradiação enorme de suas criações. Vianinha trabalha como roteirista desde 1969, primeiro na TV Tupi e, a partir de 1972, na TV Globo até sua morte em 1974. Acompanha, assim, a trajetória de outros importantes autores e artistas do campo da esquerda, como Gianfrancesco Guarnieri, Dias Gomes, Eduardo Coutinho etc. Desse segundo conjunto de peças pós-64, também emana uma atmosfera melancólica, paralisada e asfixiante, que contrasta com a forma expansiva e positiva do trabalho na TV, bem como com o entusiasmo de Vianinha em relação ao alcance que a televisão teria e com a força nacional de sua programação.

A obra dramatúrgica de Vianinha, a partir de 1968, segue apresentando uma espécie de duplo contraditório com relação ao seu trabalho na televisão. Se na tela ele busca retomar configurações da comédia de costumes (como na série A grande família, de 1972) ou adaptar a lógica vibrante de obras clássicas para TV, em suas peças de teatro aparecem personagens presos em dilemas insuperáveis e sem capacidade de seguir adiante, assim como a retomada de cenas paralisadas, circulares e sem saídas viáveis. É como se buscasse, no trabalho solitário e mais literário da dramaturgia teatral daqueles anos, elaborar o avesso daqueles tempos estranhos, de crescimento da cultura televisiva e industrializada e concomitante fechamento político e asfixia repressiva da luta social.

Contudo, em comparação com as peças escritas em 1965 e 1966, temos dois momentos e duas maneiras diversas de como a melancolia se entranha na estrutura das obras e organiza o desenvolvimento delas. A partir de 1967-1968 a avaliação de Vianna sobre o país vai se alinhando mais e mais com as orientações do Partido Comunista Brasileiro, sobretudo com a resolução política de seu VI Congresso no final de 1967. Afinado com o Partido, sua recusa ao caminho da luta armada, do voluntarismo da juventude e das atitudes contraculturais ligadas ao desbunde tropicalista passa a ocupar papel central, obsessivo e programático em suas obras. A crítica importante ao idealismo logo apresenta uma contraparte tão regressiva quanto ele: o elogio de posições como a do “herói anônimo” (VIANNA, 1980, p. 143), que trabalha silenciosamente dentro no cotidiano regressivo, buscando pequenos avanços possíveis, com triste paciência, como Manguari Pistolão em Rasga coração (que, aliás, pode ser visto como uma releitura, agora simpática, do viscoso Cristovão de Moço em estado de

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Forma-se, parece, dois momentos da melancolia nos escritos de Vianinha, aquela que, logo após 1964, evoca uma alta percepção dos impasses do tempo, consciência profunda da persistência conservadora do Brasil e da regressão histórica que ia levando tudo como uma onda enorme; e, após 1967, a melancolia que se aproxima de um estranho fatalismo engajado, que conjuga a crítica com a submissão ao tempo.

Seja como for, chama atenção como o autor viveu uma série de duplicidades naqueles anos, ambivalências que parecem ter sido uma constante até 1974, ano de sua morte. Curiosamente, a contradição entre a melancolia dos escritos dramatúrgicos e o entusiasmo do trabalho na indústria cultural não foi privilégio de Vianna. De modo semelhante, a força impactante e exitosa da atuação de seu amigo Gianfrancesco Guarnieri em seus trabalhos como ator na TV, por exemplo, contrastam também com elaborações simbólicas do confinamento em suas peças da década de 1970, como Um

grito parado no ar, Botequim etc. Também Chico Buarque, que, a partir de 1967,

quando já era uma das grandes estrelas da canção do país, sucesso absoluto nos festivais da canção na TV, faz da atividade dramatúrgica um campo de reflexão crítica sobre os dilemas do tempo e do artista às voltas com a indústria cultural que fazia dele mesmo um produto de grande alcance mercantil. Por exemplo, em Roda viva de 1967 ou em

Gota d’água, que escreve junto com Paulo Pontes em 1975 a partir de roteiro para TV

de Vianna Filho.

São autores que, assim como Vianinha, também transitaram por esse tipo de ambivalência entre textos dramatúrgicos e atuação animada dentro do ambiente cultural, mostrando assim que o conceito de dramaturgia da melancolia pode servir para pensar uma constante na produção teatral do país após-1964.

Esse conjunto ambivalente parece decisivo para compreender a passagem dos ciclos de politização mais aberta da década de 1960 para um ambiente fechado e que viveu momentos de expansão econômica. É uma espécie de palavra final de uma geração, sem contudo deixar de conter formas sofisticadas de composição estética para expressar o desalento. O estudo desse conjunto, quando a melancolia se torna um tipo de categoria temática e estrutural das obras, ajuda a compreender o esgotamento dos ciclos de modernização e de politização do teatro brasileiro em São Paulo e no Rio de Janeiro com diminuição das possibilidades produtivas e isolamento literários de seus autores. Ao mesmo tempo, faz pensar no modo dúplice com que esse autores lidaram com o mercantilização das formas de resistência e sua própria inserção na indústria cultural que ganha fôlego e massificação depois de 1964.

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O assunto parece fundamental também para melhor compreender os novos capítulos da cultura, especificamente do teatro, na segunda metade da década de 1970 e, sobretudo, na década de 1980, em torno do processo de redemocratização e reativação das lutas sociais. Apesar disto, este momento da dramaturgia sempre causou pouco interesse crítico. As formas mais solares de resistência da década de 1960 vibraram com muito mais interesse histórico nas últimas décadas, seja como modelo de trabalho ou marca da força política e social da arte. Curiosamente, contudo, esta dramaturgia da melancolia começa a ser olhada com mais atenção (com novas edições, leituras públicas e montagens) agora em que vivemos um vórtice político de resultados imprevisíveis.

REFERÊNCIAS

BETTI, Maria Silvia. Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo: Edusp, 1997.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. MORAES, Dênis de. Vianinha, cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Record, 2000. MOSTAÇO, Edelcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião – uma interpretação da cultura de esquerda. São Paulo: Proposta Editorial, 1982.

NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-Docência em História do Brasil Independente) – FFLCH, USP, 2011.

NEIVA, Sara Mello. O teatro paulista do estudante nas origens do nacional

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Paulo, 2016. doi:10.11606/D.27.2017.tde-14072017-144723.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. São Paulo: Boitempo, 2003. PASTA Júnior, José Antônio. Formação supressiva: constantes estruturais do romance brasileiro. Tese (Livre-Docência em Literatura Brasileira) – FFLCH, USP, 2011.

PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: ______. O pai de família e

outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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______. Impasses de um teatro periférico: as reflexões de Oduvaldo Vianna Filho sobre o teatro no Brasil entre 1958 e 1974. Dissertação (Mestrado em Teoria e Prática do Teatro) – ECA, USP. São Paulo, 2013.

VIANNA Filho, Oduvaldo. Corpo a corpo. Revista de teatro da SBAT. Rio de Janeiro, n. 387, mai.-jun. 1972.

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