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Academic year: 2021

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Compreensão semiótica da arte abstrata inserida na mídia impressa

Gilmar Hermes1

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

Resumo

O texto insere a problemática da abstração artística no contexto da atividade de ilustração jornalística, tema de uma pesquisa de doutorado. A problemática da abstração é tratada teoricamente com conceitos semióticos peirceanos, especialmente o de ícone, situando as relações estabelecidas por imagens abstratas entre as categorias da primeiridade, secundidade e terceiridade. O conceito de ícone ajuda a elucidar a problemática da abstração na arte, sendo tratado para além das meras relações de semelhança, considerando os ícones degenerados.

Palavras-chave

Ilustrações; Jornalismo; Semiótica; Arte; Abstração.

Na minha pesquisa para uma tese de doutorado, estou estudando ilustrações jornalísticas, observando os seus processos de produção e as suas respectivas concepções. Considerando que o jornal Folha de São Paulo publica ilustrações de artistas plásticos na página 3 das edições dominicais desde o ano de 1992, estou problematizando a atividade de ilustração em função de estar delimitada por paradigmas jornalísticos e artísticos. Acredito que a aparição nesse veículo das ilustrações feitas por artistas plásticos, geralmente abstratas, é algo bastante significativo e tem muito a dizer sobre os limites e as perspectivas da elaboração gráfica de um jornal. Neste artigo, me detenho em ver teoricamente como a questão da “abstração artística” repercute nos meus estudos, propondo uma abordagem semiótica da questão.

A ocupação de um espaço jornalístico por artistas mostra que a atividade de ilustração dos textos (feita com desenhos e não com fotos) está intensamente permeada por questões estéticas, embora seja também marcada por conceitos jornalísticos. Uma das primeiras questões que surge ao estabelecer uma comparação entre os desenhos feitos por ilustradores jornalísticos e por artistas plásticos é o caráter figurativo que predomina nos trabalhos dos primeiros e o caráter abstrato nos demais.

Há uma certa dificuldade para definir a arte abstrata mesmo no campo da arte. A forma mais imediata seria distinguindo a abstração da figuração, porque na segunda ocorrem representações de objetos e seres vivos por semelhança. A própria figuração,

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Gilmar Hermes é jornalista, mestre em História e Crítica da Arte, doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), onde leciona as disciplinas de História da Arte e Comunicação e Filosofia, nos cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda e Relações Públicas. Endereço eletrônico:

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no entanto, tem um caráter abstrato, já que o pensar do artista, o estilo e as concepções artísticas sempre perpassam as representações por semelhança.

Acredito que a semiótica peirceana operacionaliza a compreensão desse aspecto da arte através das diversas considerações feitas sobre as relações triádicas, as quais constituem logicamente as semioses. Primeiramente, toda a forma de representação poderia ser vista como abstrata no sentido de que a mediação sígnica representa algo sob algum aspecto, havendo assim uma transformação representacional. Para representar, o signo propõe-se em relação a um objeto e, assim, abstrai suas características ou suas possibilidades de significação. Há algum tipo de pensamento nas semioses que não precisa ser visto de uma maneira racionalista necessariamente.

Mesmo nas representações figurativas, onde há objetos imediatamente reconhecíveis, pode haver um forte teor abstracionista. O conceito de ícone, que se define a partir das relações de semelhança, aparentemente corresponde à arte figurativa, mas é no interior do próprio conceito e das complexas diferenças sígnicas que se pode compreender o caráter semiótico da abstração.

O campo das artes visuais é caracterizado na modernidade pela sua ênfase estética, a medida em que as artes voltam-se à sensibilidade propriamente. As representações artísticas não precisam mais se vincular necessariamente, por exemplo, às representações naturalísticas, à religiosidade ou à história, como ocorreu nos séculos anteriores à modernidade. E, neste sentido, não têm mais um caráter instrumental, e, assim, é possível falar de uma “pintura pura” como proporam os cubistas e realizaram plenamente os artistas construtivistas.

Embora a questão da representação não tenha sido abolida – mesmo que não estivessem sendo representadas figuras – o que estava em questão era sobretudo a concepção mental de como elaboravam as suas imagens. As abstrações deparam-nos com um sentido complexo que aponta para uma série de questões semióticas das mais interessantes, envolvendo problemas de ordem estética.

O campo artístico, voltado para a questão do sensível, como tenho observado, é explicitado da melhor forma pela categoria peirceana da primeiridade (qualidade), que, ao lado da secundidade (singularidade) e da terceiridade (generalidade), é uma das balizas das relações estipuladas por Peirce entre signo, objeto e interpretante.

A categoria da primeiridade não é um conceito classificatório e, sim, relacional. Por ser relacional como as demais, é que serve ao campo da comunicação, permitindo o estudo dos fluxos semióticos entre diferentes áreas do conhecimento. Enquanto no

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jornalismo predomina a categoria da terceiridade, para que as mensagens possam ser lidas no plano do senso comum, mesmo que o caráter factual da notícia evoque forte incidência da categoria da secundidade, a arte coloca a sua expressão no plano da primeiridade. Embora os artistas produzam signos simbólicos e indiciais, eles também estão marcados por características na ordem da primeiridade em diferentes níveis.

Apesar de eu estar lançando um olhar estético sobre o jornalismo, buscando vê-lo sobretudo do ponto de vista da primeiridade, é possível que encontre muitos exemplos de imagens, caracteristicamente midiáticos, que se impõem mais pela terceiridade, a inteligibilidade (própria dos símbolos), que é uma característica mais diretamente relacionada ao texto verbal, do que pela primeiridade, que é aquilo que nos atinge mais pela sensibilidade (própria dos ícones).

A distinção entre objeto dinâmico e objeto imediato torna-se crucial na análise de textos jornalísticos impressos que fazem uso de linguagens verbais e não-verbais. O objeto dinâmico, na concepção peirceana, é objeto que o signo representa. O objeto imediato é como ele aparece na representação dos signos.

As ilustrações jornalísticas, que vêm a ser a parte não-verbal do texto jornalístico, podem ser vistas como signos que se remetem a si mesmos – como é próprio da arte moderna - ou que se relacionam a objetos dos mais variados. O objeto dinâmico de uma ilustração pode ser o texto que ela acompanha ou o objeto dinâmico a que o texto por sua vez se remete. Poderia ser ainda o objeto a que o texto se remete na forma como aparece no texto verbal, que seria, então, um objeto imediato.

Tendo uma mesma temática, um texto jornalístico pode referenciar-se a si mesmo em muitos momentos, pode aludir a outros textos, e pode tentar relacionar-se diretamente aos aspectos da realidade, embora, na maioria das vezes, tenha como base os discursos das fontes ou, especialmente, quando se tratam de textos opinativos, as idéias que circulam em torno de um objeto dinâmico. São diferentes objetos imediatos que constituem diferentes representações no texto, produzindo novas semioses em torno de um ou mais objetos dinâmicos.

As ilustrações podem considerar esses textos como seus objetos dinâmicos ou como objetos imediatos, pois estarão se referindo a algo a que o texto alude, através da sua representação. Quando o ilustrador tiver algum conhecimento sobre o objeto dinâmico, ou tenha contato com outras semioses ou objetos imediatos que se referem aos mesmos objetos dinâmicos, poderá produzir uma representação paralela ao texto, com uma certa independência em relação à representação produzida verbalmente.

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Considerando-se paradigmas jornalísticos como a “clareza”, “precisão” e “coloquialismo”, é fácil de compreender o porquê de muitos ilustradores entenderem que seus desenhos devam ter representações de ordem naturalista ou figurativa, permitindo, assim, uma leitura rápida e a identificação de um objeto dinâmico comum ao texto verbal ou relacionado com aquele representado pelo texto verbal. Observando as rotinas jornalísticas e fazendo entrevistas com editores e ilustradores, tenho buscado avaliar como essa questão aparece como uma determinação das práticas profissionais e até que ponto isso pode ser uma opção particular dos ilustradores.

Há uma opção paradigmática comum ao campo da arte. A ilustração pode estar motivando um olhar sobre si, e não para aquilo que está além dela, através dos seus atributos formais ou plásticos. Aí é que eu acredito que entra o problema da abstração e como ele surgiu no campo da arte.

Os artistas pouco a pouco se libertaram da representação mimética naturalista – da tirania do objeto dinâmico na ordem indicial e simbólica - e fizeram trabalhos marcados pelos aspectos que caracterizariam a “pintura pura”, assumindo o seu caráter sígnico e o seu caráter de primeiridade, que parece estar mais próximo do que propõe a estética, como uma possibilidade de sensibilização através da arte. Pouco a pouco, os artistas perderam o vínculo com as representações miméticas para produzir imagens que sensibilizam para aspectos de ordem puramente sensível ou intelectual.

Entendo a estética como uma forma de relação semiótica marcada pela categoria da primeiridade, embora, em função de seus vínculos com a tradição e outros campos do conhecimento humano, ela se relacione também com aspectos na ordem da secundidade e da terceiridade.

Na verdade, os signos puramente icônicos, são signos degenerados, que não constituem signos propriamente, por permanecerem no plano da pura sensibilidade. O termo “degenerado”, no contexto da semiótica peirceana, refere-se a uma relação triádica incompleta e não julga pejorativamente esse tipo de signo, mas admite uma possibilidade de representação que não constitui um signo genuíno. A nossa relação com esses signos tende a gerar semioses, por não suportarmos o vazio semiótico, relacionando-os com ocorrências ou regras que afastam-os do plano de signos degenerados.

A questão da abstração torna-se importante em relação às considerações semióticas sobre as ilustrações porque evidencia aspectos semióticos que não se dão na relação com o objeto dinâmico, mas na produção dos próprios textos visuais ou signos,

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ou seja, vistos do ponto de vista do objeto imediato ou na forma sígnica, que se refere a outros objetos constituintes do fazer artístico.

Signos estéticos, especialmente as imagens abstratas, propõem interpretantes na ordem da primeiridade, muito proximamente do que seria um ícone degenerado, embora não se limitem a isso, podendo gerar semioses, o que depende de uma relação triádica entre objeto, signo e interpretante; ou seja, a formação de um signo genuíno.

A questão do tempo e o dinamismo que caracteriza a semiose permitem compreender que aquilo que é um ícone degenerado, que se mantém numa relação de primeiridade num momento, pode, coincidentemente, levar a relações na ordem da secundidade e terceiridade, embora essas categorias, não precisem ser levadas em conta de uma maneira ordenada temporalmente.

É possível que alguns leitores, acostumados a ler signos visuais figurativos, reconheçam signos genuínos, para só depois começarem a perceber os signos degenerados que constituem a semiose estética. Um signo degenerado se caracteriza pela não constituição de uma relação triádica genuína que constitui o signo, entre o signo, o objeto e o interpretante.

Sendo a leitura típica de um jornal caracterizada pela rapidez, é provável que o leitor não se detenha numa imagem de forma a sensibilizar-se por seus atributos propriamente icônicos, vistos como signos degenerados, mas procure imediatamente um sentido informativo na ordem da terceiridade.

Em seu livro, Estética de Platão a Peirce, Lucia Santaella (Santaella, 1994) mostra que dentro da lógica relacional da semiótica peirceana, o estético corresponde ao que seria da ordem sensorial, mais ligado ao sentimento, através da “rede de percepções físicas”, como indica a própria origem da palavra na Antiga Grécia (aisthesis). Uma relação na ordem da primeiridade é quase impossível, pois, sendo uma relação, entra, pelo menos, na ordem da secundidade.

Os estudos peirceanos evidenciam as complexidades das relações sígnicas. Há representações em que a categoria da primeiridade predomina, como é o caso dos ícones e, os que não chegam a ser signos propriamente, os signos icônicos degenerados, justamente por predominar uma relação na ordem da primeiridade, não chegando a constituir uma relação entre representamen e interpretante, importante na relação sígnica genuína.

A percepção tende a ocorrer sobretudo na ordem da secundidade, quando percebemos os aspectos qualitativos como ocorrências. A sensibilidade – na ordem da

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primeiridade - ocorreria antes de relacionarmos aspecto qualitativos com qualquer tipo de ocorrência.

O conceito de ícone é um dos primeiros a ser evocado para abordagens da arte. A princípio um signo ícone se define pelas relações de semelhança, o que levaria a considerar as imagens figurativas como ícones, pois são fortemente marcadas por relações de semelhança. Essa, no entanto, é uma compreensão restrita da questão da iconicidade, ligada à categoria da primeiridade, que pode ser entendida como uma forma de representação sempre na ordem do qualitativo. Qualidades, que se apresentam como tal, estão mais propícias a aparecerem em imagens abstracionistas no que nas figurativas.

O ícone – correspondente à primeiridade restritamente - seria a percepção das coisas antes de que pudéssemos nos dar conta de que se trata da ocorrência de algo, ou que seja qualquer coisa a que já estivéssemos habituados. Seria a relação própria com a arte no plano da gratuidade e do prazer estético.

As imagens abstratas evocam os aspectos qualitativos da representação já que deixam de remeter-se a objetos, fazendo com que sejam vistas em si mesmas. Se ficássemos unicamente no plano do sensível, saboreando uma relação sensorial, nada além disso, estaríamos vivenciando a categoria da primeiridade.

A arte – a princípio feita para o nosso deleite – nos oferece a segurança de experienciar algo sem que necessariamente corramos algum risco e isso permite com que a gente se encontre com o indefinível, o que não está na ordem do hábito, da regra, da lei, enfim, do simbólico propriamente. A arte promete o simbólico, mas exige o risco de nos depararmos com o nada, com a pura sensação.

Nem todos suportam a falta de uma relação sígnica imediata, por isso, a princípio, tendem a ocorrer reações negativas diante das representações abstratas. Talvez exista um certo risco de vivenciar sensorialmente as coisas, por mais inocentes que elas pareçam, sem que elas digam o que são e por qual lei são governadas. No plano da primeiridade, as abstrações seriam isso, uma sensação que pode nos levar para todos os lugares e coisas, bons e maus, agradáveis e desagradáveis.

Mas, na verdade, há que se considerar que as pessoas em geral e até mesmo os teóricos não aceitam que a abstração possa se deter somente no plano da sensação. Os impressionistas trataram as imagens como reflexos luminosos e os fauvistas evocaram a questão da cor, colocando em primeiro plano a percepção sensória em seus trabalhos de caráter figurativo, mas foram tachados de superficiais por seus contemporâneos da linha

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cubista, que buscavam recuperar a questão da forma, que dava um sentido racionalista aos seus trabalhos. A sensação exaltada na representação foi contraposta à necessidade de elaboração formal que fazia parte da tradição ocidental desde o Renascimento, uma outra forma de abstração - também ligada às representações figurativas -, que a partir dos objetos dinâmicos, pressupunha um melhor olhar sobre as coisas, considerando que há formas mais aprimoradas de conceber iconicamente a representação.

O pós-impressionista Paul Cézanne aproximou-se de uma síntese entre a sensação e a elaboração intelectual e, por isso, veio a ser considerado como o pai da arte moderna pelos historiadores da arte. Cézanne não é abstracionista, mas sua obra exemplifica a problemática que liga a figuração à abstração e como os dois aspectos podem ser vinculados à concepção geral da semiótica peirceana.

Cézanne é considerado como um dos gênios que viveram na passagem do século XIX para o XX. Acredito que ele possa ser relacionado diretamente aos princípios da semiótica peirceana, por preocupar-se em retomar o aspecto intelectual da arte diante da experiência sensória impressionista.

Esse artista não desconsiderou a experiência de pintores como Monet, que se sensibilizou para a experiência efêmera da realidade que se manifesta através da nossa sensibilidade visual aos reflexos luminosos sobre as coisas. Cézanne, no entanto, para além disso, buscou o caráter intelectual da percepção que se dá no sentido da forma, manifestada na sua pintura através de relações cromáticas e das relações entre as próprias coisas que coexistem no mundo e passam a coexistir na representação da pintura, numa relação propriamente semiótica.

O pintor realiza um trabalho intelectual entre a percepção do mundo e a representação na tela. A partir da sensação visual, é possível redimensionar o conhecimento sobre as coisas, já que a nossa relação com o mundo é essa mescla entre relações na ordem da primeiridade, da secundidade e da terceiridade.

A pintura de Cézanne tem um caráter fortemente intuitivo e fortemente intelectual. Os dois aspectos se mesclam na obra do artista, da mesma forma que a semiótica peirceana não pode ser vista como uma semiótica racionalista ou empiricista.

A abstração problematiza o fazer do artista como representação mimética, mas não quer dizer que o artista deixe de estar representando algo. A intenção é não representar algo na ordem do naturalismo, mas, o que se quer, de alguma forma, é fazer um signo. Tudo pode vir a ser um signo, porque o ser humano e a natureza tendem a constituir relações triádicas entre objetos, signos e interpretantes. Agora, quando se

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tratam de ações humanas, especialmente no patamar da arte, é quando justamente não haveria como escapar da dimensão sígnica. Por mais vazias que as obras se proponham, elas se dispõem a produzir um sentido em relação à arte, e aquilo que ela corresponde como uma necessidade humana.

Na história da arte, a palavra ícone surge para explicar uma das primeiras representações cristãs que aparecem na arte bizantina. Diante de questionamentos se as personagens sagradas eram passíveis ou não de representação, os ícones foram convencionalizados como a representação do inconcebível, de algo plenamente espiritual. No início do século XX, os principais artistas que conceberam as primeiras representações artísticas abstratas – Malevich, Kandinsky e Mondrian - tinham uma concepção de ordem espiritual ou metafísica.

Kandinsky vinculava as suas representações abstratas a uma necessidade interior e deu títulos a vários quadros com referências da religião cristã. O ícone – neste sentido – é a presentificação sensível de algo a princípio inacessível.

As representações abstratas podem estar se referindo a aspectos da percepção humana que não se manifestam através da aparência das coisas e, sim, na relação que existe entre as coisas ou entre os aspectos qualitativos da realidade. O fazer do pintor não é imitação. Através das técnicas e dos materiais que o artista dispõe ele produz sensações, ocorrências e relações.

O suporte do quadro é um signo. É um “quadro”. Já está marcado pela terceiridade. A pintura abstrata produziu questionamentos sobre o signo do “quadro” deixando que a “representação” passasse a dialogar com o mundo independente dos limites desse signo. A representação artística teve de libertar-se desse signo na ordem da terceiridade, para que fosse assimilada na primeiridade ou na secundidade.

Uma abstração pode vir a ser somente um ícone degenerado, o que no caso da arte, ou mesmo da ciência, seria uma experiência enriquecedora, que nos leva a ter novas concepções sobre as coisas percebidas, de uma maneira inteiramente diferente. As abstrações artísticas estão sempre nos instigando a perceber os trabalhos artísticos de uma maneira inteiramente nova, tal como a gente pode ver nos trabalhos que têm como elementos motivadores o jogo entre pontos, linhas, formas e cores.

A abstração pode ser compreendida no plano do índice como rastro de um processo, de um fazer. É o artista chamando atenção para o que caracteriza o seu trabalho. Veremos, então, índices de ações, de processos individuais e, na ordem da terceiridade, o caráter simbólico dessas ações e processos, diante da tradição artística e

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das possibilidades de fazer arte até então criadas. Neste sentido, a crítica genética pode contribuir para a compreensão das abstrações e dos fazeres artísticos e jornalísticos (no caso jornalístico, na observação das rotinas), considerando o processo da gênese dos trabalhos através dos documentos de processo, como sugere Cecilia Almeida Salles em Crítica Genética (Salles, 2000.)

A abstração pode ser compreendida no plano da terceiridade quando envolve conceitos desenvolvidos pelos artistas. Nesse plano, não há como entender as representações abstratas fora da história da arte. É como se o artista tivesse a obrigação de optar por ser ingênuo ou estar par a par com o que acontece em termos de arte no plano internacional. A saída, em muitos casos, e que tem tudo a ver com as idéias de um dos primeiros artistas abstracionistas da história, Kandinsky, é a coerência interna. Mas essa coerência interior ganha muita força quando faz parte de uma atitude bem informada, o que parece indispensável no nosso tempo.

A abstração está fortemente ligada a um objeto único, cujo resultado foi alcançado com materiais específicos para fazer um objeto específico. O espectador relaciona-se com um objeto único, no qual podem ser experimentados sensorialmente resultados de uma pesquisa feita ao longo de várias outras realizações.

Artistas conceituais como Sol LeWitt, no entanto, idealizam imagens monumentais que tendem a ser sobretudo projetos de realização, que podem ser repetidas em vários locais, tendo como suporte diretamente as paredes, a exemplo do que aconteceu na 23. Bienal de São Paulo, em 1996.

No caso do jornal Folha de São Paulo, os artistas fazem imagens que são reproduzidas em milhares de exemplares. A percepção de suas obras nos suportes propriamente artísticos é bem diferente do que ocorre nas páginas do jornal. Neste sentido, a relação com a representação se problematiza nessa diferenciação de suportes. A mesma idéia concebida para galerias ou para serem desenhos ou esculturas está sendo executada de uma maneira diferenciada, onde o caráter icônico da representação se problematiza. Aspectos qualitativos que algumas vezes são percebidos numa relação corporal, agora passam para o plano marcadamente visual, o que é um problema evidente da relação que temos com obras de arte reproduzidas. Conversando com os artistas, tenho percebido em entrevistas, cujo conteúdo pretendo explorar em minha tese, que o problema é levado a sério e que produz questões em torno dessa relação entre as concepções anteriores e o que se produz nas páginas dos jornais, podendo ganhar um caráter fortemente conceitual, como ocorre na obra de Sol LeWitt.

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Mas, a questão da ação desses artistas nas páginas do jornal não pára neste ponto. Há que se considerar a semiose gerada em torno das concepções da ilustração jornalística, afinal, o trabalho desses artistas está aparecendo como tal. As relações entre a arte e o jornalismo, podem ser problematizadas inicialmente pelo caráter reflexivo que é característico da arte. No caso das abstrações, essa reflexividade não tem mais como alvo uma temática, mas diretamente o fazer do artista e os atributos semióticos diretamente deste fazer. É, neste sentido, que a presença das ilustrações artísticas pode estabelecer um patamar crítico para as práticas e concepções das ilustrações jornalísticas, sugerindo concepções alternativas como uma tendencialidade.

A questão do abstracionismo, como eu venho observando semioticamente ao longo do texto é complexa. Os próprios artistas participantes do projeto da Folha relutam em aceitar que realizam imagens abstratas. Mas, na medida em que fazem isso, como pode ser observado em exemplos, deparam-se com um problema no campo do jornalismo, marcado pelas representações de ordem simbólica que levam a um entendimento rápido. Ao contrário das abstrações, essas representações tendem a relacionar-se com objetos dinâmicos que estão mais presentes nas concepções habituais, não sendo assimiladas como signos icônicos degenerados, marcados por aspectos qualitativos.

O aspecto provocador da sensibilidade, especialmente nas ilustrações, pode aparecer quando emerge o seu caráter propriamente icônico, característico das abstrações, que pode gerar semioses com maior multiplicidade, próprio da polissemia, que Roland Barthes coloca como uma característica semiótica marcante da arte (Barthes, 1990).

Neste estudo que estou realizando sobre ilustrações, parece-me que o aspecto crítico fundamental da atividade dos ilustradores, do ponto de vista estético, é como ele reflete o seu fazer em termos de linhas, cores, forma e composição, o que aproxima a reflexão do seu fazer das questões da arte abstrata.

O mais interessante do que acontece com os objetos elaborados do ponto de vista estético é o equilíbrio que se busca entre o sensório e o que é da ordem da racionalidade. O conhecimento mais aprimorado intelectualmente poderia ser entendido na ordem do racional, mas a grande contribuição da semiótica peirceana é formular a produção de sentido em relações onde o que é da ordem dos sentimentos e da ordem do conhecimento sistematizado não se contradizem, mas coexistem em diferentes possibilidades de percepção e entendimento das coisas.

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O “fazer” do ilustrador, assim como o do artista plástico, produz semioses na ordem do formato artístico, ligado às tradições e experiências que caracterizam as representações visuais na cultura contemporânea. Neste ponto de vista, as abstrações produzem semioses na ordem da terceiridade, no plano simbólico, o que me parece ser a maneira comum de tratar os objetos artísticos. A semiótica peirceana, através da sua rica abordagem da categoria da primeiridade e dos ícones, permite abordar conceitualmente questões que atingem diretamente os fazeres artísticos no plano da sensibilidade.

Referências bibliográficas

1 BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

2 BONFAND, Alain, A Arte Abstrata. Campinas: Papirus, 1996. 3 FABBRI, Paolo. El Giro Semiótico. Barcelona: Gedisa, 2000. 4 GOODING, Mel. Arte Abstrata. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 5 HENN, Ronaldo. Pauta e Notícia. Canoas: Ulbra, 1996.

6 HENN, Ronaldo. Jornalismo Impresso: Uma Crise Semiótica. Verso &

Reverso, São Leopoldo, n.25, p.123-131, ju./dez. 1997.

7 HENN, Ronaldo. Os Fluxos da Notícia. São Leopoldo: Unisinos, 2002. 8 JIMENEZ, Marc. O que é Estética? São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999.

9 KANDINSKY, Wassily. Ponto e Linha Sobre Plano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

10 OSBORNE, Harold. Estética e Teoria da Arte. São Paulo: Cultrix, 1978. 11 PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977. 12 PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. São Paulo: Cultrix, 1993.

13 SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética – Uma (Nova) Introdução. São Paulo: Educ, 2000.

14 SANTAELLA, Lucia. A Assinatura das Coisas. Rio de Janeiro: Imago, 1992. 15 SANTAELLA, Lucia. Estética de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento,

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16 SANTAELLA, Lucia. A Percepção – Uma Teoria Semiótica. São Paulo: Experimento, 1998.

17 SANTAELLA, Lucia. A Teoria Geral dos Signos. São Paulo: Pioneira, 2000. 18 TRAQUINA, Nelson et al. Jornalismo: Questões, Teorias e "Estórias".

Lisboa: Vega, 1993.

19 23. BIENAL DE SÃO PAULO. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1996. Catálogo.

Referências

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