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CAMÕES: um poeta carnavalizando a literatura de cordel

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Academic year: 2021

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CAMÕES: um poeta carnavalizando a literatura de

cordel

Alberto ROIPHE1

RESUMO

O intuito deste artigo é analisar de que forma o poeta português Luís Vaz de Camões é retratado na literatura de cordel brasileira. Por esse motivo, o que se propõe é a leitura do folheto de cordel “Camões e o Rei”, de autoria do poeta Geraldo Gonçalves de Alencar e do artista Carlos Henrique, considerando-se, nesse procedimento, tanto a linguagem verbal da narrativa em verso, quanto a linguagem visual de sua capa. A leitura do folheto de cordel tem como base os estudos do filósofo russo Mikhail Bakhtin e seu Círculo a respeito do conceito de carnavalização, buscando evidenciar as categorias relacionadas a esse conceito e sua possível transposição para o texto literário popular contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura de cordel; leitura verbovisual; Camões. ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze how the Portuguese poet Luís Vaz de Camões is portrayed in the Brazilian cordel literature. Therefore, what is proposed is reading the leaflet string "Camões and the King", written by the poet Geraldo Gonçalves Alencar and artist Carlos Henry, considering, in this procedure, both the verbal narrative in verse , as the visual language of their cloak. Reading the brochure string is based on the studies of the Russian philosopher Mikhail Bakhtin and his circle about the concept of carnivalization seeking to prove the categories related to the concept and its possible implementation in contemporary popular literary text.

KEYWORDS: Cordel literature; verbal and visual reading; Camões.

1 Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da USP, desenvolvendo, atualmente, estágio de Pós-Doutorado na área de

Letras da PUC-Rio. Professor de Teoria Literária e Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe – DLEV-UFS. Investigador/Colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra – CEIS20.

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S

OBRE A LITERATURA DE CORDEL

O folheto de cordel brasileiro é uma manifestação literária que tem sua origem no desafio nordestino, um embate poético entre dois cantadores adversários que improvisavam de forma alternada, utilizando-se, para isso, de uma estrutura textual desenvolvida, tradicionalmente, em quadras e que, no final do século XIX, passou a ser construída em sextilhas.

De acordo com os estudos das pesquisadoras Ruth Terra (1983), em sua obra Memórias de lutas: literatura de folheto do Nordeste (1893-1930) e Márcia Abreu (1999), em sua obra Histórias de cordéis e folhetos, o poeta Leandro Gomes de Barros, no ano de 1893, teria passado a editar tais desafios em folhetos e a comercializá-los em feiras e mercados nordestinos, estabelecendo, assim, uma forma escrita para uma expressão, até então, fortemente oral.

Além de Leandro Gomes de Barros, outros poetas, como Francisco das Chagas Batista e João Martins de Athayde, passaram a criar seus folhetos, dando origem à literatura de cordel nordestina. Esses folhetos todos, entretanto, não reproduziam somente desafios entre cantadores, mas também outras estruturas, às vezes, determinadas até pelo número de páginas, como mostra Eno Theodoro Wanke (1983): os folhetos de oito páginas, com impressão dos dois lados de uma folha de papel jornal, dobrada em quatro, medindo aproximadamente 16cm x 11cm, eram aqueles que abordavam diversificados temas circunstanciais; os de dezesseis páginas, feitos em duas folhas, eram os romances; os de trinta e duas, em quatro, histórias; sendo todos, daí por diante, denominados somente folhetos.

Mesmo que os temas abordados fossem os mais variados, com o passar do tempo, a estrutura composicional dos folhetos se manteve constituída pela linguagem verbal do título e da narrativa e pela linguagem visual de suas capas, caracterizadas por três formas prioritárias de expressão: o desenho, a xilogravura ou a fotografia. Considerando-se que essas imagens não são meras ilustrações do texto verbal, é possível afirmar que um folheto de cordel é um gênero verbovisual.

Diante do grande número de exemplares existentes na literatura de cordel, por sua vez, destacam-se, aqui, para efeito de análise, o folheto “Camões e o Rei”, de Geraldo Gonçalves de Alencar, à luz do conceito de carnavalização, cunhado pelo teórico russo Mikhail Bakhtin, levando-se em conta, portanto, ambas as linguagens que o constituem, a linguagem verbal de seus versos e a linguagem visual de suas capas.

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A

NOÇÃO DE CARNAVALIZAÇÃO DA LITERATURA

O teórico russo Mikhail Bakhtin, em seus estudos A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais e Problemas da Poética de Dostoiévski, estabelece a noção de carnavalização como um conceito que vem a contribuir para a análise de textos, evidentemente, de Rabelais e Dostoiévski. Entretanto, essa noção pode ser perfeitamente transposta para a análise de textos da literatura popular contemporânea, sobretudo quando se observam particularidades da linguagem verbal e visual nos textos que são frutos, hoje, dessa produção.

Para Bakhtin, o carnaval se define da seguinte maneira:

(...) uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de época, povos e festejos particulares.” (BAKHTIN: 1997, p. 122) [grifos do autor]

É a partir de tal definição que o teórico russo torna possível se notar uma constante renovação da linguagem carnavalizada no tempo e no espaço, de forma que as categorias por ele evidenciadas nesse “espetáculo de caráter ritual” tornam-se perceptíveis na literatura, em geral, e na literatura de cordel, em particular.

Sobre a linguagem do carnaval, Bakhtin, afirma:

[a linguagem do carnaval] (...) é suscetível de certa transposição para a linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial, das imagens artísticas, ou seja, para a linguagem da literatura. É essa transposição do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da literatura. (BAKHTIN: 1997, p. 122) [grifos do autor]

Sendo assim, o teórico russo sugere categorias relacionadas à cosmovisão carnavalesca, a fim de mostrar de que maneira as leis, as proibições, as restrições, os sistemas hierárquicos, todas as formas conexas de medo, as reverências, as devoções, a etiqueta, as desigualdades etc. são revogadas durante o carnaval, de forma a contribuir com a aproximação entre os homens.

São quatro essas categorias:

1) o livre contato familiar entre os homens, que busca eliminar a desigualdade estabelecida pelas barreiras hierárquicas sociais, a fim de se determinar a livre gesticulação carnavalesca e o franco discurso carnavalesco;

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2) a excentricidade, que, a partir de aspectos ocultos da natureza humana, se expressa por meio da liberdade de gestos, de palavras e do comportamento, também de forma a romper com hierarquias;

3) as mésalliances carnavalescas, que consideram a livre relação familiar extensiva a todos os valores, ideias, fenômenos e coisas, aproximando elementos opostos como o sagrado e o profano, o elevado e o baixo, o grande e o insignificante, o sábio e o tolo, etc.;

4) a profanação, caracterizada pelos sacrilégios carnavalescos, destacando-se, exemplarmente, todos os sistemas de subidas e descidas, pelas indecências carnavalescas, que se relacionam à força produtora da terra e do corpo e pelas paródias de textos sagrados etc.

Além dessas categorias que, segundo Bakhtin, influenciaram a literatura “em termos de forma e formação de gêneros” (BAKHTIN: 1997, p. 124), outros aspectos do carnaval a serem examinados, no que se refere à transposição para os textos literários, são as ações carnavalescas:

1) a coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval, uma das ações carnavalescas mais comuns, dando ênfase às mudanças e transformações da morte e da renovação, ocorridas por meio dessa forma sincrética de espetáculo que é o carnaval, para Bakhtin;

2) a coroação-destronamento é uma forma de realizar uma ação, prevendo o seu contrário no futuro, isto é, coroa-se o antípoda do rei, o escravo ou o bobo da corte, para caracterizar um mundo às avessas, sabendo-se desde esse tal momento que o coroado, em breve, será destronado;

3) a cerimônia de destronamento, um ato que apresenta relativa alegria em tudo, considerando-se que o destronado perde os símbolos reais e é surrado e ridicularizado, enquanto outro é coroado e recebe esses símbolos. Dessa forma, o carnaval é marcado como algo funcional, e não substancial. Como afirma Bakhtin: “O carnaval triunfa sobre a mudança, sobre o processo propriamente dito de mudança e não precisamente sobre aquilo que muda.” (BAKHTIN: 1997, p. 125);

Quando, neste artigo, se identifica a noção de carnavalização, levando-se em conta a definição de carnaval como forma sincrética de espetáculo, passando pelas categorias da cosmovisão carnavalesca e pelas ações carnavalescas, o que se busca é perceber a transposição da linguagem do carnaval, na concepção de Bakhtin, para a linguagem literária, para que se torne possível orientar a leitura de um folheto de cordel, caracterizando essas ações em sua composição.

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C

AMÕES

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DO NOME À CARNAVALIZAÇÃO

O folheto de cordel Camões e o Rei marca o ingresso de seu autor, Geraldo Gonçalves de Alencar, no ano de 2003, como membro da Academia dos Cordelistas do Crato, cidade situada ao sul do estado do Ceará.

Capa do Folheto de Cordel “Camões e o Rei”, de Geraldo Gonçalves de Alencar. Xilogravura de Carlos Henrique, 2003.

Na capa do exemplar, o título, como ocorre tradicionalmente em folhetos de desafio entre dois cantadores, apresenta o nome dos dois personagens: Camões e o Rei. O que essa estrutura nominal do título não revela, entretanto, é uma possível rivalidade entre ambos. Além disso, o que parece singular é o fato de Camões figurar como personagem na literatura de cordel brasileira.

Ainda no que se refere à capa do folheto, na xilogravura de Carlos Henrique, artista também do Crato, se observa a presença dos dois personagens em um ambiente que, apresentando grandes pedras em sua edificação, lembra um castelo medieval, no qual Camões, do lado direto da imagem, de camisa escura, de calça branca e de sandálias, segura uma viola, e o rei, do lado esquerdo, usando uma coroa e um longo manto, segura um objeto branco e oval, com a mão esquerda, na direção de Camões. Dentre esses elementos, a coroa e o manto permitem que se identifique que o personagem do lado direito da xilogravura é o rei. No

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que se refere, especificamente, à viola, nota-se uma reprodução do que ocorre nas imagens presentes em capas de folhetos de desafio, isto é, da mesma maneira como faz Camões, os cantadores carregam suas violas. Com relação ao objeto oval que o rei mantém em sua mão, não é possível fazer afirmações, a não ser que na estrutura da narrativa haja menção a ele. O que chama a atenção, na ação proposta pela xilogravura, é o fato de não se saber se o que toca e, provavelmente, canta Camões é para o rei ou contra o rei. Da mesma forma, não se sabe se o objeto oval é algo do rei para Camões ou contra Camões. Sendo assim, a capa apresenta certa ambiguidade quanto à rivalidade e à amizade entre ambos tanto na linguagem verbal quanto na linguagem visual.

O folheto traz uma narrativa construída em trinta e duas estrofes, distribuídas em oito páginas. Essas estrofes são compostas por sextilhas com versos setessilábicas, caracterizados por rimas cruzadas. Trata-se de um folheto que não traz exatamente falas alternadas entre os dois personagens a cada estrofe, como ocorre em um folheto de desafio entre cantadores, mas que apresenta uma sucessão de pequenas narrativas, contendo perguntas feitas pelo rei e respostas dadas por Camões. Trata-se, portanto, de uma reunião de discussões entre Camões e o rei, o que desfaz a ambiguidade inicial do título e da xilogravura, dentro de uma narrativa maior.

Quando se observa a estrutura do folheto, nota-se que, nas duas primeiras estrofes, o poeta contextualiza a narrativa:

As astúcias de Camões vagueiam por toda parte supera Cancão de Fogo também Pedro Malazarte, João Grilo perdia feio para o grande baluarte. O rei era poderoso mas com ele não podia tudo quanto perguntava o poeta respondia, com suas grandes proezas

o povo se divertia. (ALENCAR: 2003, p. 1)

É certo, desde o início, que Camões é o poeta. Para além dessa confirmação, ao mesmo tempo, Camões é comparado a Cancão de Fogo, Pedro Malazartes e João Grilo, três personagens pícaros da literatura. Trata-se, portanto, da apropriação do nome do poeta português, em função de sua sabedoria, algo que Gilberto Mendonça Teles explica em sua obra Camões e a poesia brasileira (1979):

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Na verdade, o nome Camões possui no Brasil inteiro, não só no Nordeste, uma dimensão bem maior do que a que se vê na literatura. O termo Camões transcende os limites da pura erudição literária e universitária para repercutir na imaginação popular como algo mítico (um camonema), como um dos tais arquétipos que sobrevivem no “inconsciente coletivo”, dando ao povo a imagem de um ser ultra-inteligente, capaz de vencer os poderosos e beneficiar os pobres ou, apenas, capaz de satisfazê-los pelo simples fato de enganar o “rei”, de lesar o comerciante ou, como se diz, capaz de passar a perna em qualquer elemento detentor do poder real ou temporal. (TELES: 1979, p. 299) [grifos do autor]

Na concepção de Gilberto Mendonça Teles, a utilização do nome do poeta na narrativa é uma “compreensão mítico-ideológica”, confirmando o que se encontra nas estrofes inicias do folheto:

Daí porque aparece registrado na literatura de cordel, do Nordeste, a imagem de um “Camões” que muito tem a ver com o autor de Os Lusíadas, muito com a história de seus infortúnios mais ou menos legendários. Nesses folhetins das feiras nordestinas (mas agora curiosamente editados pelas universidades), “Camões” é simplesmente um tipo de herói popular, de natureza pícara e que, através de uma série de aventuras, se apresenta como capaz de dar quinau no “Rei” e até de contracenar com “Bocage” em episódios de astúcia e de pornografia. “Camões” tem aí muito das estórias de Pedro Malasarte. Aliás, o processo de mitificação dos dois poetas portugueses é tão forte que o significante “Camões” já vai tomando a forma de “Camonge” (ou “Cambonge”), para rimar, parece, com o significante “Bocage”. (TELES: 1979, p. 300) [grifos do autor]

A partir dessas considerações, o conceito de carnavalização parece ser aqui o mais adequado para exibir os recursos da linguagem verbal e visual presentes em um folheto de cordel que tem Camões como personagem. Para tanto, é ainda na segunda estrofe do folheto que se anuncia a maneira tradicional de perguntas e respostas que marcarão o desafio: “tudo quanto [o rei] perguntava / o poeta respondia”.

O rei é um personagem que não tem nome. É a sua função que o nomeia: o rei. Outras características, porém, ressaltam das ações desse personagem ao longo do folheto: “poderoso”, “ardiloso”, “impetuoso”, “monarca impetuoso”, “imperador”. E, se essas são as particularidades do rei, Camões, por sua vez, é descrito como o astucioso, o “baluarte”, o “poeta”, o perspicaz, o talentoso e, ao mesmo tempo, o desobediente, porque não se curva ao rei, como se observa na sucessão de pequenas narrativas a seguir:

De outra feita o rei queria continência de Camões, Camões não satisfazia

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do monarca as intenções entre Camões e o rei havia contradições Para que Camões curvasse em forma de continência, o rei mandou que fechasse a porta da residência e abrisse só a de baixo sequioso da reverência A convite do monarca foi a sua moradia

mas para entrar não curvou-se não fez o que o rei queria entrou de traseira adentro na casa da fidalguia Camões não obedecia às ordens do imperador a ele não se curvava nem para fazer favor, dizendo que gente pobre

também tinha o seu valor. (ALENCAR: 2003, p. 2-3)

Rebelando-se contra o rei, Camões deixa à mostra a tirania do monarca. Nesse ponto, quando se apresenta no palácio, expressa, por meio do gesto, não se curvando, como queria o rei, mas se exibindo “traseira adentro”, sua subversão a uma regra da obediência, por meio de seu comportamento, o que Bakhtin, em sua “cosmovisão carnavalesca”, denomina “excentricidade”. Também a estratégia do rei, de trancar a parte superior da porta para que o poeta fosse obrigado a curvar-se, não funciona, já que Camões entrou no palácio de uma forma inusitada. Imaginando-se sábio, portanto, o rei torna-se um tolo, o que para o teórico russo se justifica como uma aproximação de elementos opostos, como uma “mésalliance carnavalesca”. Além disso, a desobediência de Camões, que busca ainda eliminar as desigualdades sociais, “dizendo que gente pobre / também tinha o seu valor”, caracteriza o que Bakhtin nomeia de “livre contato familiar entre os homens”.

Em meio à sucessão de fatos, encontram-se algumas estrofes, finalmente, na estrutura de perguntas e respostas da narrativa, que justificam a presença do objeto que o rei mantém em sua mão, na xilogravura da capa. Trata-se de um ovo.

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O rei perguntou: Camões o que é o melhor da galinha? Camões respondeu: o ovo disse sem fugir da linha, o rei disse: muito bem, sua resposta é a minha. Depois de passar um ano lá na Corte Imperial o rei encontrou Camões e com gesto de rival

perguntou: Camões com que?

Camões respondeu com sal. (ALENCAR: 2003, p. 3-4)

Haveria alguma condição implícita para que Camões obedecesse às ordens do rei? Isso não se sabe. O que se sabe é que essas estrofes ressaltam a astúcia de Camões, que consegue, por meio da pergunta do rei, retomar o que se teria dito no ano anterior, relacionando “o ovo” e o “com sal”. É assim, em meio às contradições de ambos os personagens, que a narrativa vai se construindo.

Outra provocação que o rei faz a Camões retoma não só a estrutura dos folhetos de desafio entre dois cantadores, mas também a temática presente em muitos deles, a capacidade da versificação.

O rei não acreditava em Deus nosso criador, pediu a Camões um verso sem falar no Redentor, dizendo: nada de Deus quero um verso de valor Camões repleto de fé decifrou logo a charada: “Nada, nada, nadador, nas ondas do mar salgado, seguindo com Deus nadando nada com Deus, nada, nada.” O rei então reclamou: Mas eu quero não é isto, Diga aí no seu repente “Juda” é melhor que Cristo, Não se faça de rogado Cumpra aquilo que eu insisto. Camões lhe disse: pois não

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Posso lhe responder isto: “o ferreiro bate o ferro Todo mundo sabe disto Na capital do inferno

‘Juda’ melhor de que Cristo.” (ALENCAR: 2003, p. 5-6)

Nessa discussão acerca de temas religiosos, Camões responde duas vezes ao rei em quadrinhas, segundo Câmara Cascudo, “a forma mais antiga do desafio sertanejo” (1939, p. 131). Tais perguntas e respostas manifestam na fala dos personagens o que Bakhtin chama de “profanação”, em função da paródia de textos sagrados, mais uma demonstração da “cosmovisão carnavalesca” do folheto.

Em decorrência dessa discussão, é possível ressaltar, na sequência de estrofes posteriores, a ocorrência, de algo que lembra também, em perspectiva bakhtiniana as “ações carnavalescas”, no que se refere a “coroação-destronamento”. Entretanto, diferentemente do que propõe o teórico russo, o rei é, literalmente, destronado.

O rei ouvindo as palavras do grande religioso, no trono do seu reinado ficou menos imperoso viu que não valia a pena

a gente ser orgulhoso (ALENCAR: 2003, p. 6)

Mesmo assim, o rei “menos imperoso” enfrenta Camões, fazendo-lhe uma exigência: Exigiu que ele viesse

pra corte do seu reinado de uma forma bem estranha de um modo bem delicado, nem a pé nem a cavalo,

nem vestido nem pelado. (ALENCAR: 2003, p. 7)

Para finalizar, Camões o surpreende, aparecendo “dentro de um saco de estopa”, montado em uma porca. Diante dessa outra prova de “talento”, o rei oferece ao poeta a mão de sua filha em casamento, o que lembra, somente por caracterizar o mundo às avessas, toda a “ação carnavalesca”, pela coroação de Camões, um pseudobufo, e pelo destronamento do rei.

Camões ficou no reinado com sua sabedoria fazendo parte também

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da classe da monarquia saiu da pobreza extrema e entrou na fidalguia O rei desmoralizado ficou bastante iracundo porque nunca tinha visto outro igual aqui no mundo, e disse: agora encontrei

um primeiro sem segundo. (ALENCAR: 2003, p. 8)

O folheto é finalizado, portanto, em função da última contradição entre Camões e o rei.

C

ONSIDERAÇÕES FINAIS

O folheto assim descrito permite a observação de como o nome de Camões funciona na literatura de cordel tal e qual um recurso de autoridade, exibindo sua vontade de romper padrões e de inverter o mundo. Trata-se, portanto, da carnavalização expressa no comportamento de um personagem ávido pela subversão. Sendo assim, na medida em que Camões resiste aos mandos do rei, faz com que seu adversário reconheça a existência de opiniões divergentes em seu reino e para além dele.

R

EFERÊNCIAS

ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e de folhetos. Campinas: Mercado das letras / Associação de leitura do Brasil, 1999.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. 4. ed. Tradução de Yara Frateschi. Brasília: EDUNB; São Paulo: HUCITEC, 1999.

______. Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores: folclore poético do sertão de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. São Paulo: Ediouro, [1939].

GÉRARD, Valérie. Obedecer? Rebelar-se? Tradução de Adriana de Oliveira. São Paulo: Alaúde, 2014. ROIPHE, Alberto. Forrobodó na linguagem do sertão: leitura verbovisual de folhetos de cordel. Rio de Janeiro: Lamparina/FAPERJ, 2013.

TELLES, Gilberto Mendonça. Camões e a poesia brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979.

TERRA, Ruth Brito Lemos. Memórias de lutas: literatura de folheto do Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983.

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WANKE, Eno Teodoro. Vida e luta do trovador Rodolfo Coelho Cavalcante. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1983.

_________________________________________ Data de submissão: jul./2013.

Referências

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