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Marxismo,MovimentosSociaiseFenomenologia

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Academic year: 2021

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MARXISMO, MOVIMENTOS SOCIAIS E FENOMENOLOGIA

Por Marco Antonio Perruso

Este ensaio volta-se para o potencial das experiências autônomas e anticapitalistas das massas e grupos sociais subalternizados, entendidas como o fator mais relevante para efetivar uma transformação revolucionária nas sociedades atuais. Por isso, busca-se aqui, sem pretensão de pioneirismo, uma apropriação crítica e de esquerda de várias reflexões consideradas – em termos abrangentes – fenomenológicas. A diversidade daquelas experiências desde baixo é ontológica e subjetivamente mais importantes que fenômenos afeitos ao mundo das elites e dos intelectuais, aí incluídas suas pretensas vanguardas.

COLETIVISMO X INDIVIDUALISMO METODOLÓGIGO

A maior parte do marxismo enquanto teoria social se estabeleceu historicamente como um coletivismo mais ou menos rígido. Durante o século XX esta corrente, subsídio para a maioria dos movimentos de transformação do planeta, sofreu várias mudanças, algumas apontando para uma sofisticação analítica e uma menor rigidez, na qual apostamos. Neste sentido, exploramos matrizes de pensamento fenomenológicas, a fim de contribuir para um efetivo protagonismo, no campo da teoria, das experiências dos trabalhadores e demais setores explorados.

Assim, o marxismo ou materialismo dialético e histórico pode ser pensado como um coletivismo baseado em relações sociais não tão rígidas, quase como interações sociais. Não se trata de ignorar a força de fatores materiais strictu sensu, mas de efetuar uma complementação analítica, especialmente ao nível micro-sociológico e micro-histórico. Assim, com Simmel p.ex., temos que as relações/interações sociais se baseiam também no que uns sabem dos outros (das respectivas condutas), nas representações ou imagens que uns fazem dos outros. Deste modo, o

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conhecimento entre indivíduos não se reveste sempre de universalidade mas também de diferenciação.i

O trecho abaixo de W. Thomas, citado por Goffman, é contundente: “É também sumamente importante que compreendamos que, na verdade, na existência quotidiana não dirigimos nossas vidas, tomamos nossas decisões ou alcançamos metas, nem de maneira estatística nem de maneira científica. Vivemos de inferências.”ii

Nessa perspectiva, visualiza-se que o mundo social depende inclusive das formulações subjetivas dos indivíduos elaboradas em interações singulares (como nos diversos movimentos sociais, p.ex.), e não exclusivamente de articulações ou estruturas estáveis de ordem coletiva cuja apreensão pode ser universalmente objetiva (o mundo do trabalho em sua acepção mais institucionalizada). A crescente sofisticação do marxismo no estudo da cultura e da subjetividade, com Gramsci, Thompson e outros, se alia, aqui, a percepções não marxistas fundamentais dessas esferas sociais simbólicas, seja com Simmel, Habermas, Bourdieu, Geertz, Mead e outros.

Há de se ter um cuidado analítico: a vivência interacional social desde baixo, intermediada simbolicamente, aponta para a riqueza e diversidade cultural e valorativa, não para uma racionalidade transparente e calculista como propugnado por certas correntes do pragmatismo estadunidense. Nestas, a intersubjetividade, fruto de múltiplas interações coletivas apreendidas fenomenologicamente, é reduzida a resultantes dinâmicas de interações entre estratégias individuais, aproximando-se de um utilitarismo ou contratualismo liberais. Que, por sua, vez constrói uma imagem forçadamente universalista do mundo humano, visualização tão equivocada quanto à realizada pelo determinismo econômico do marxismo ortodoxo.

Na verdade, um dos obstáculos iniciais para uma apreensão crítica e progressista de certas formulações fenomenológicas é evitar o individualismo

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metodológico normalmente nelas presente, que costuma apontar para duas conclusões: 1) a sociedade é sempre vivenciada subjetivamente; e 2) a sociedade, em termos teóricos e analíticos, não é apreensível com a precisão recorrente nas ciências exatas ou naturais e nem como totalidade. Entendo que a primeira proposição é inegável, mas não definitiva. A vivência subjetiva é interindividual, é coletiva. Assim temos os grupos sociais subalternizados e seus movimentos sociais e culturais. A apreensão da sociedade pode, ainda, sofrer um processo de objetivação, como diz Bourdieu. Além disso, não considero que se deva chegar necessariamente à segunda afirmação. Primeiro, porque a oposição epistemológica entre ciências naturais/exatas (de um lado) e sociais/humanas (de outro), correspondente aos princípios do verum e do certum nas reflexões originais de Vico, é, no mínimo, problemática. É óbvio que os estatutos científicos são diversos, mas não de uma maneira hierárquica como se imagina comumente. Segundo: avalio que é positivo questionar os resultados dos projetos de totalidade científica já lançados, inclusive o marxista ortodoxo. Mas acho que a idéia de pensar em termos de totalidade, enquanto horizonte de reflexão, não precisa ser abandonada, mas reformulada de modo muito mais complexo.

Reformulação esta que pode comportar as obras de matiz fenomenológico como as de Simmel, Goffman e outros, devido à capacidade de estas construírem imagens da sociedade de modo incrivelmente detalhado e capilarizado, portanto, mais complexo. É preciso, contudo, criticar a visão simmeliana da sociologia como ciência composta exclusivamente por conhecimentos “unilaterais”. A idéia de unilateralidade provém da assertiva antes colocada: as interações são permeadas de interpretações possíveis e imperfeitas. Mas este mundo fenomênico e interindividual não compõe toda a sociedade. Partindo das interações

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face-a-face, a sociedade se alastra: tanto em termos de escala espacial (dimensão coletiva) quanto processual (os encadeamentos mencionados por Elias e outros). Neste sentido, as conseqüências não premeditadas da ação (Weber) e os nexos não-pretendidos da ação (Habermas), p.ex., não devem ser pensados como subsumidos à dimensão individual/interacional. Isto porque a apreensão da sociedade além do mundo fenomênico pode sofrer um processo de objetivação, já que o conhecimento interpretativo (apreensão imperfeita, aparência construída) não extrapola os limites das interações singulares onde se circunscreve.

MODERNIDADE

Uma apreensão sociológica que mantenha uma referencial central marxista mas que seja capaz de conjugar elementos analíticos fenomenológicos tem condições de melhor entender as questões da modernidade,iii já que buscamos não só seus postulados materiais mais “duros”, mas também a vivência subjetiva da modernidade por parte dos setores explorados e dominados.

Acrescentemos a postulados essenciais da modernidade – capitalista (Marx), industrial (Durkheim) e liberal (Stuart Mill) – alguns outros. Novamente com Simmel temos que a modernidade oferece aos indivíduos, com crescente rapidez, uma enorme quantidade de impressões e estímulos, favorecendo uma pluralidade de aparências e interações, muitas individuais e fugazes. Ao lado dessa faceta individualizadora e diferenciadora da modernidade, podemos acrescentar a racionalidade detectada por Weber. O ethos capitalista (ascético, work-a-holic e devotado à reprodução do capital), que vai se afastando de sua origem religiosa, dissemina-se homogeneamente pela nova classe burguesa ascendente porém na forma de conversão individual íntima ao novo dever, como vocação. Além disso, esse ethos comporta uma particular racionalidade, que exige do indivíduo

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proceder teleológica, pragmática e até criativamente em busca de rentabilidade, deixando tão somente de seguir conteúdos valorativos abstratos ditados pela tradição.iv Mas Weber também coloca algumas nuances a essa interpretação da modernidade como locus privilegiado de uma nova ação social e da interação entre indivíduos movidos por suas vocações transparentes:

“A empresa dos dias atuais é um imenso cosmos, no qual o indivíduo nasce, e que se apresenta a ele (...) como uma ordem de coisas inalterável, na qual ele deve viver. Obriga o indivíduo, na medida em que ele é envolvido no sistema de relações de mercado, a se conformar às regras de ação capitalistas.”v

A isto se adicionem três fatores: a adequação entre vocação individual fixa e divisão do trabalho (especialização), a conveniência do novo ethos produzir trabalhadores disciplinados para o empresário e a tendência uniformizadora/padronizadora do capitalismo advinda do ascetismo originalmente religiosovi. O resultado é uma sociedade moderna parecendo ficar menos interacional, pluralista e fundada na aparência do que Simmel imaginaria, mas que permite uma complementação teórica com a leitura marxista, mais estruturante e desvendadora dos laços de dominação e massificação social.

Todavia Weber mesmo indica que a modernidade não se resume a ascetismo. As “tentações” da riqueza que se acumula ensejam a percepção de outra faceta do capitalismo, já preconizada nas reflexões de Simmel sobre a moda e sua característica anti-utilitária: o luxo e o erotismo, vinculados ao refinamento dos sentidos – hipótese lançada originalmente por Sombart.vii Assim, ao lado do ascetismo – que denota simplicidade – temos a sacralização do amor – que remete à sofisticação dos sentidos. Em relação à conduta sexual a autoridade se desloca da religiosa para a laica. Algo

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parecido ocorreu com a conduta econômica na análise de Weber: no catolicismo o lucro era proibido ou tolerável, passa à situação de sua busca incessante e racional compor o cerne do puritanismo até sacralizar-se. Acredito que em ambas as facetas da modernidade – mas por caminhos diversos – o indivíduo passa a operar com mais independência em detrimento de prescrições de ordem holística, o que, sem dúvida, volta a realçar a pluralidade e a possibilidade de mudança, isto é, a vertente fenomenológica das sociedades modernas.

A partir de Weber, também é possível identificar uma tendência ao autocontrole na modernidade, compondo grande parte, se não a essência, da ascese capitalista, originária de movimentos religiosos puritanos.viii Em oposição, a sacralização do amor significou, de acordo com Sombart, a vitória do princípio da ilegitimidade: a possibilidade de ferir normas é constante. A diversidade de ações e interações humanas, que parece crescer na modernidade, implica, muitas vezes, desobediência a princípios ou mecanismos de coesão ou coerção social.

Mas quem desenvolve mais extensamente a relação entre infração de normas e respectivo controle é Foucault. Este autor qualifica a sociedade moderna como disciplinar.ix De maneira próxima à mundanização do lucro e do amor, o direito penal deixa a esfera religiosa e se dedica à reparação ou, mais importante, à prevenção do dano causado à sociedade. Nota ainda que “o sistema de penalidades adotado pelas sociedades industriais em vias de formação, em vias de desenvolvimento, foi inteiramente diferente do que tinha sido projetado alguns anos antes”.x Aqui, as reflexões de Foucault procedem quase fenomenologicamente, pois se ressalta simultaneamente a passagem da questão da justiça para o controle estrito do indivíduo e de sua ação (descartando-se parâmetros mais fortemente holistas-prescritivos) e as conseqüências não-premeditadas dessas ações/interações. De qualquer

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forma, a modernidade seria o terreno por excelência dessa indeterminação/diversidade social, embora as sociedades não modernas, pela sua infindável variedade e heterogeneidade, também apontem para a noção de pluralidade – do mesmo modo, como veremos, pode ocorrer em nossos tempos atuais de globalização.

Com Foucault refletindo sobre as várias instituições penais e de controle (prisões, hospícios, reformatórios, hospitais, escolas, fábricas) podemos concluir por uma vitória sombartiana do princípio da ilegitimidade (e da diversidade). Mas a sociedade disciplinar traz consigo ainda uma grande vontade de prevenir e combater, panopticamente, o que entende por anormalidade.xi Então, existe na modernidade também uma tendência antidiversidade.

Mas a questão foucaultiana que creio ser a mais instigante para articular uma visão marxista e fenomenológica da modernidade seja a seguinte: porquê o autocontrole “inventado” por grupos sociais subalternizados – reformistas religiosos como os “criadores” do ethos capitalista – é apropriado por setores dominantes na configuração panóptica? Foucault menciona que tal mudança se refere à transformação de uma comunidade espiritual (acrescento: tradicional, coletivista, holística) em uma sociedade institucional (isto é: moderna, individualista, interacional). Acredito que a resposta tenha a ver com o fato de a tendência antidiversidade presente na modernidade – desvendada por Foucault, subestimada por Simmel e percebida enviesadamente por Marx e os marxistas ortodoxos, como veremos – se desdobrar em uma vontade racional de controle dos indivíduos, de suas ações e, portanto, de suas interações. Essa vontade, de iniciativa dos indivíduos que estão no poder (poder econômico e estatal), só pode ser realizada mediante uma perspectiva panóptica – cujo “olhar de cima” é incrivelmente semelhante ao das sociologias

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coletivistas/estruturalistas! O que não deixa de revelar a grande pertinência desse tipo de sociologia ao pensar a modernidade em grande escala, a dominação e a massificação social. Porém, como a sociedade moderna traz, em grande parte, a substituição da comunhão holística pela ação teleológica, o controle tem de “descer” até o indivíduo, de modo a disciplinar os comportamentos humanos. Por isso Foucault fala de “pequenas instituições situadas em um nível mais baixo” e “trama de poder político microscópico, capilar”, já usando termos fenomenológicos.

A modernidade se estabelece com grande força no meio urbano. Face às questões da diversidade, individualização e especialização (bem como conseqüente interdependência) vistas anteriormente, a modernidade urbana, ainda segundo Simmel,xii intensifica os estímulos psicológicos. Diante de tantas e tão rápidas referências jogadas sobre o indivíduo urbano, este assume uma atitude fria, blasé, já que não lhe é possível se envolver profunda ou emocionalmente com a multiplicidade de pessoas que encontra freqüentemente. E existe o risco de tal atitude de autopreservação, significando indiferença, reserva ou mesmo antipatia com tudo ao redor, nulificar o próprio indivíduo. Mas essa impessoalidade que se alastra – inclusive via intercâmbio monetário – tem como contrapartida, uma subjetividade altamente individual. É a partir dessa espécie de isolamento propiciado pela autopreservação que se desenvolvem uma liberdade e uma diferenciação maiores, bem como sociabilidades coerentes (associações diversas, incluindo movimentos sociais). Sendo este controle referido, a meu ver, diretamente à comunhão coletiva holística que perde terreno diante da ação individual teleológica. Aqui, inclusive, de certa forma Simmel discrepa do pessimismo weberiano e da denúncia foucaultiana, ao vincular controle antes à tradição que à modernidade. Mas, no melhor estilo contraditório da reflexão simmeliana, aqui também temos a individualização urbana

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produzindo, devido à especialização e interdependência, uma vitória do “espírito objetivo” sobre o “subjetivo” (a exclusão do “progresso, espiritualidade e valores” do domínio individual), isto é, o que entendo ser a derrocada do holismo. Porém, como “o indivíduo se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes”, concluo que a predominância da ação na modernidade não inaugura uma primazia única da interação e da aparência (direção na qual caminha uma parte da reflexão simmeliana ou talvez seus seguidores pós-modernos), já que permanece a necessidade de uma (complementar!) perspectiva coletiva ou estrutural, de modo a evitarmos uma compreensão sociológica parcial.

Park e Wirth,xiii entre outros, mencionam também que a urbanização mina paulatinamente as relações face-a-face – tão significativas para uma sociologia interacional e fundada na aparência – em favor de relações indiretas. Aqui acrescento mais uma questão para embasar uma aproximação entre marxismo e fenomenologia: se a modernidade coloca o indivíduo em um patamar superior de liberdade e diferenciação (até por influência ideológica liberal), por outro lado o gigantismo populacional e a estruturação das metrópoles impacta concretamente sua esfera de ação, colocando uma série de mediações (distância, dinheiro, leis, etc.) que problematizam as dimensões face-a-face.

Para resolver tal dilema, recorro a Benjamin,xiv que articula a questão da modernidade, da cidade e das massas a partir de uma preocupação com a subjetividade humana, com o exercício da liberdade e do prazer, destacando diversos setores subalternizados ou que resistem a disciplinas racionais e controles sociais – uma perspectiva desenvolvida antes por Sombart e, depois, por Foucault. Benjamin observa na cidade moderna os vícios, seus bares, a boemia, os catadores de trapos, os agitadores/conspiradores profissionais: sua descrição da paisagem urbana e

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de seus tipos é repleta de diversidade, bem como de desigualdade, miséria e drama humano. Benjamin identifica na boemia e em boa parte dos artistas da Paris de Baudelaire uma resistência ou revolta contra a sociedade e a incerteza social modernas que se estabeleciam. Na cidade que Park vê como locus de uma modernidade inexorável, ascética e disciplinada, Benjamin nota contradições, a exploração capitalista, a injustiça, a concorrência desenfreada (que leva à exacerbação social, ao roubo e ao crime), enfim, uma espécie de caos bem pouco racional.xv

Além disso, reflete sobre as já citadas mudanças nos meios de comunicação. A literatura penetra na imprensa em difusão crescente, no formato do folhetim. Como os jornais ainda eram relativamente caros na França do séc. XIX, o público leitor se aglomerava nos cafés. Os jornais em grande parte se financiavam através da publicidade, nova forma de comunicação urbana e moderna, típico exemplo de relação que substitui as interações face-a-face, como já notaram Park e Wirth. Estes, na trilha de Simmel, vêem a publicidade como tentativa de sensibilizar o citadino, normalmente indiferente diante de tantos estímulos, enquanto Benjamim caracteriza esses reclames pagos como potencialmente corruptores da imprensa. Toda essa mudança industrial da literatura resulta na ida do escritor ao mercado, para vender sua singular força de trabalho. Temos então a figura do flâneur, que vive nas ruas e passagens (bulevares) da cidade, buscando matéria-prima para produzir sua arte e vendê-la ao mercado. E igualmente surge um novo gênero literário, as physiologies, descrições panorâmicas e superficiais das realidades citadinas. Vejamos três interessantes passagens:

“Desde as raízes ele [esse novo gênero literário] era pequeno burguês. (...) Essas fisiologias em nenhum momento transpuseram um horizonte dos mais limitados. (...) O que importava era a inofensividade.”

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“Uma tal visão dos outros homens estava demasiado distante da experiência real (...) todo homem, tanto o melhor quanto o mais miserável, traz consigo um segredo que, caso fosse conhecido, torná-lo-ia odioso a todos os demais. Para pôr tais concepções inquietantes de lado como irrelevantes, as fisiologias eram exatamente adequadas. Elas colocavam, caso nos seja permitida a expressão, viseiras e antolhos no ‘citadino tapado’.”

“O que mais se queria, de fato, era dar uma imagem alegre e cordial das pessoas entre si (...) Mas tal procedimento não podia levar muito longe. As pessoas se conheciam entre si como devedores e credores, como vendedores e clientes, como patrões e empregados (...)”xvi

A partir desses trechos é possível fazer uma leitura problematizadora dos pressupostos de uma fenomenologia próxima ao liberalismo, isto é, individualista e por demais baseada na aparência, quando aplicada à modernidade: a visão extremamente superficial da cidade realizada pelas fisiologias denotaria que as aparências (“viseiras e antolhos”) seriam limitadas do ponto de vista do conhecimento mesmo no qual se baseiam as interações. Benjamin, como marxista, trabalha com a dualidade essência/aparência, privilegiando-se a essência (“experiência real”). Mas com Bourdieu,xvii temos que a essência só é atingida via processo de objetivação, que nasce das intersubjetividades, cuja dimensão é a fenomenológica por excelência. De qualquer forma, o resultado é o “citadino tapado”, alienado, cuja cultura subjetiva (holística) é derrotada pela objetiva, para usar os termos de Simmel.

O romance policial substituiu as fisiologias no gosto popular europeu do séc. XIX. Benjamin acredita que esse gênero literário tratava dos aspectos realmente instigantes da vida urbana moderna, visualizando as massas ameaçadoras, nas quais submerge o criminoso depois do crime: “Nas

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épocas de terror, quando cada um tem em si algo de um conspirador, cada um também chega a ter a oportunidade de desempenhar o papel de detetive. A ‘flânerie’ é o que lhe dá a melhor chance para isso.”.xviii Não deixo de lembrar, nesse ínterim, do autocontrole de origem ascética em Weber, exercido “de baixo para cima” e, depois, executado panopticamente – segundo Foucault. Benjamin acrescenta outros elementos a esse processo: o controle cada vez mais técnico da vida civil (numeração das casas, identificação por assinatura e fotografia, iluminação pública). Acredito que Benjamin, partindo de uma visão da modernidade urbana influenciada por Simmel, nos traz questões que, via Foucault e Bourdieu, a meu ver apontam de novo para alguns limites de uma perspectiva fenomenológica “pura”. Primeiro: o indivíduo desaparecendo na multidão e sua perseguição cada vez mais panóptica apontam para uma estruturação social acima do imaginado pela ótica simmeliana, pois a multidão, como bem apontava Marx, remete a uma escala sociológica de difícil acesso ao indivíduo, protagonista das interações face-a-face. Segundo: o disfarce do criminoso é forte evidência de uma precariedade da aparência como alicerce único das interações, visto que o indivíduo, ao contrário do poder estruturado panopticamente, possui parcos recursos para perceber todas as aparências em meio às massas. Não é à toa que Benjamin pensa o indivíduo urbano como herói, por enfrentar desafios, colocados pela modernidade, desproporcionais às suas forças.

Acredito que a saída possível para esse imbróglio teórico – evitar ver a sociedade unilateralmente, seja via estruturas desumanizadas ou rígidas (como no marxismo ortodoxo e em certos estruturalismos), seja via interações superdimensionadoras do indivíduo (como no liberalismo, em Simmel e em alguns pragmatismos) – consista em apostar em agentes sociais coletivos, as massas, os setores sociais explorados e dominados, que se articulam originariamente sempre por intermédio de movimentos sociais.

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Por isso não avalio como inviáveis as propostas teóricas que buscam conjugar interação e estrutura, como encontramos, p. ex. e de modos diferenciados, em Bourdieu, Habermas e Giddens. Da mesma forma, proponho compatibilizar, no que for possível, marxismo e fenomenologia. GLOBALIZAÇÃO

Não é possível compreender as sociedades contemporâneas e suas possibilidades de transformação radical – como as estamos tratando nesse ensaio – sem passarmos pela recorrente discussão da “globalização”. Nossas sociabilidades atuais estão deixando de ser modernas? Em que a modernidade difere da globalização? Considero a globalização como um conjunto – não necessariamente articulado – de fenômenos empíricos. Considero ainda os termos “pós-moderno”, “pós-industrial” e “pós-fordismo” como qualificativos aparentados à “globalização”,xix sendo estes quatro termos genericamente pensados como referências das transformações que atualmente se dão na sociedade moderna (capitalista, industrial, urbana, racional, individualista, ocidental) e em outras nem tanto. Quais seriam então os fenômenos envolvidos na globalização?

- Enorme incremento das tecnologias, em especial as da informação (internet, fax, satélites, tv a cabo, arquivos digitais, etc), criando novos meios de comunicação, bem como conseqüente maior importância da informação como fonte de valor;xx

- Em decorrência, compactação do tempo e do espaço, compressão do mundo, suprimindo-se as distâncias de comunicação entre os diversos locais do globo, estabelecendo uma simultaneidade de interconexões;xxi

- Também (mas não só) por conta disso, complexificação das interconexões e interdependências entre os fenômenos e atores sociais e entre a dimensão local e a global, por vezes assumindo-se como configurações disfuncionais, esgarçadas (como na noção de “desencaixe”

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em Giddens), incoerentes, ou fragmentadasxxii – esta última remete ao pós-modernismo que veremos mais adiante;

- Aumento da mobilidade do capital (face ao incremento tecnológico das comunicações) e expansão/intensificação do capitalismo, especialmente do financeiro, criando uma verdadeira economia virtual, que gira pelo mundo quase instantaneamente, por vezes erodindo as economias reais;xxiii

- Desenvolvimento da produção flexível (seguindo a demanda, o “gosto” do consumidor, em detrimento da produção estandardizada em massa do padrão taylorista-fordista), retorno do trabalho artesanal e força crescente das pequenas empresas (vide certos discursos políticos a favor das microempresas e do cooperativismo), chegando a ponto de o trabalho não ser mais necessariamente realizado no mesmo espaço físico – tendo em vista, novamente, as novas tecnologias de informação;xxiv

- Fim da centralidade do trabalho, que seria cada vez menos necessário em termos quantitativos, como evidenciado pelo desemprego estrutural, estando a exploração capitalista perdendo espaço para a exclusão social;xxv

- Descentralização geral do exercício do trabalho, do lazer, das instituições, etcxxvi, que remete a discrepantes tendências individualistas, localistas e comunais que veremos adiante;

- Declínio do estatismo e avanço da esfera privada sobre a pública (privatizações, terceirização, ideologia neoliberal, etc),xxvii que se relacionam ao predomínio do capital financeiro e ao individualismo que veremos adiante, bem como à derrocada do chamado “socialismo real”;

- Atenuação da centralidade de identidades e articulações de classe (movimento sindical incluído), até face à emergência do trabalho flexível e da descentralização (também informalização, no caso brasileiro), em favor de diversas outras possibilidades de identidades/articulações, baseadas

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principalmente em cultura, mas também em etnia, sexo, localidade, estilo de vida, estética, etc (que em parte remetem aos novos e novíssimos movimentos sociais, bem como às ONGs), as quais passam a ser uma opção individual, às vezes segmentada ou temporária, mais que um pertencimento coletivo normalmente prévio, integral e estável;xxviii

- Profusão de informações e imagens de todo o globo, lançadas pela mídia/indústria cultural ou trocadas por indivíduos e grupos sociais através dos novos meios de comunicação, normalmente relacionadas às acima indicadas novas (e também outras velhas ou desconhecidas) identidades/articulações étnicas, culturais, etc, como que promovendo um mosaico de subjetividades e, além disso, referida a um aumento da reflexividade e da consciência do mundo como um todo, embora tal processo não esteja isento de problemas ou desafios;xxix

- Concomitante valorização da diferença, da diversidade e das particularidades (às vezes numa perspectiva fragmentadora ou de incomunicabilidade, em outras num sentido de recuperação ou reconstrução de identidades)xxx, comumente associadas ao “outro” antropológico, em oposição aos valores/práticas ocidentais, bem como às identidades/articulações locais, ao pós-modernismo e mesmo ao discurso “politicamente correto”;

- Desenvolvimento de sensações de incerteza, instabilidade, insegurança ou risco, em função das múltiplas alternativas disponíveis de identidades, informações, imagens e diferenças humanas;xxxi

- Renascimento de “comunidades” – no sentido do romantismo alemão (Herder) – e emergência de manifestações/práticas culturais “em busca de raízes”, que aparentemente resistem ou não aceitam a globalização, parcial ou totalmente, estando referidas a particularismos e movimentos localistas e coletivistas – tradicionais (os já remotos quakers,

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p.ex.) ou não (gangues urbanas, etc) – que possivelmente se opõem ao individualismo (veremos este mais abaixo), embora possam ter articulações globais (religiões fundamentalistas transnacionais, movimento hip hop, contracultura ...)xxxii, mas normalmente a partir de parâmetros intersubjetivos (relações face-a-face em Giddens ou mundos da vida habermasianos) ou holistas;

- Enfraquecimento da esfera pública, do interesse e participação na política institucional (cada vez mais burocratizada e distante das pessoas) ou nos “velhos” movimentos sociais (sindicatos), bem como crise de legitimação das respectivas autoridades (muitas vezes tratadas de modo irreverente), em favor de outras identidades/articulações sociais (novas/novíssimas e velhas/comunais, às vezes informais, muitas locais ou globais), além de crise de ideologias que dominaram a cidadania no séc. XX (social-democracia,

etc)xxxiii, o que se relaciona, obviamente, ao já citado declínio da centralidade

das identidades/articulações de classe;

- Vinculado ao fenômeno acima indicado, temos o questionamento da democracia liberal representativa como culminância do progresso da racionalidade humana;xxxiv

- Incremento das exigências de transparência e moralização das esferas pública e privada, centradas por vezes sob uma ótica de consumidorxxxv (como seria o caso do movimento pela responsabilidade social das empresas – em sentido diferente temos os orçamentos participativos), que certamente está vinculada à crise de legitimidade de instituições públicas e também privadas;

- Crescimento do individualismo, da competitividade e da esfera privada da vida e diminuição de certas solidariedadesxxxvi, propiciados inclusive pelas novas tecnologias da informação (internet, etc), e que podem significar um declínio das relações face-a-face ou um enfraquecimento dos

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mundos da vida, bem como resultar em uma postura agressiva de desconhecimento/desprezo pelo “outro” ou em políticas de supressão de direitos, além de serem associados ao alastramento da depressão e outros sintomas psicossociais;

- Enfraquecimento do Estado-Nação (que pode chegar à desterritorialização) diante de sociabilidades e lealdades locais e globais – que rompem a fusão entre Estado e sociedade nacionais – e das já vistas: profusão de imagens/informações, fluxos/redes de comunicação e do capital financeiro – todos efetivados a partir dos novos meios de informação;xxxvii

- Emergência de tribalismos, nacionalismos e regionalismos (subnacionais – p. ex. Catalunha – e supranacionais – Mercosul), muitos vinculados a novos e velhos particularismos comunais e culturais, outros questionadores dos postulados teóricos e das realidades históricas dos Estados-Nação;xxxviii

- Por conseguinte, desenvolvimento de um cenário mundial não mais dominado pela política internacional-estatal, onde atuam atores sociais globais além dos Estados-Nação (cuja ação está cada vez mais limitada): multinacionais, fóruns internacionais, nacionalismos, religiões transnacionais, ONGs, acordos multilaterais, FMI, bancos de fomento, Fórum Social Mundial, Via Campesina, grupos terroristas globais como a Al-Qaeda, comunidades virtuais, crime organizado, alianças regionais, etc;xxxix

- Tais atores sociais globais enfrentam questões que se colocam globalmente: crises ecológicas, epidemias que são ou podem ser globais como a AIDS (a doença da vaca louca agora ameaça a pecuária norte-americana, favorecendo a de outros países), disputas e questões étnicas, culturais ou políticas que levantam a problemática de direitos humanos universais (crimes de guerra na Bósnia, o caso da nigeriana condenada ao

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apedrejamento por uma corte islâmica, os talibãs presos em Guantánamo pelos EUA), etc;xl

- Declínio do machismo/patriarcalismo e da centralidade da família nuclear em favor de uma pluralidade de novos arranjos individuaisxli, que se relaciona à valorização da diferença antes mencionada;

- Surgimento de uma “sociedade centrada no lar”, tornada possível pelas novas tecnologias (da informação, computação, etc), mas que pode assumir formas inclusive fundamentalistasxlii – e que remete simultaneamente aos já citados: individualismo, trabalho flexível, descentralização, localismo/comunalismo e profusão de imagens/identidades globais disponibilizadas para indivíduos e grupos sociais;

- Insustentabilidade do produtivismo (ideologia consensual entre conservadores, liberais e marxistas ortodoxos) diante de possíveis desequilíbrios ecológicos de grande porte (visto como uma ameaça global), tendo como contrapartida surgimento de propostas de “desenvolvimento sustentado” e ideologias pós-materialistasxliii – o que remete também ao fim da centralidade do trabalho, bem como à “busca de raízes” (consumo crescente de produtos naturais e “ecologicamente corretos” como os amazônicos cupuaçu e açaí, movimentos em favor de um estilo de vida menos agitado, etc);

- Fim das grandes narrativas das trajetórias das sociedades humanas como lineares/progressivas e desconstrução da racionalidade ocidental (que teria “desencantado” o mundo),xliv típicos postulados pós-modernistas, que se relacionam ao questionamento do primado da democracia burguesa e à valorização do “outro”, anteriormente citados.

Em relação a certos intelectuais fomentadores do debate em torno da globalização, identifico dois grupos: o primeiro composto por Beck, Robertson e Albrow e o segundo, por Kumar e Castells. Acredito que as

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análises realizadas e as propostas colocadas pelos autores do primeiro grupo apontam mais linearmente para pensar a sociedade da globalização em termos de fluxo, enquanto os do segundo grupo, ainda que também assim procedam, o fazem interpondo certas problemáticas e identificando outras tendências societárias, especialmente Castells, que propõe a expressão “sociedade em rede”xlv.

Preliminarmente, consideremos que a globalização traz fluxos de sociabilidades (baseados temporal e espacialmente nos fluxos de informação, tecnologia, financeiros, etc), exigindo que a teoria social não pense mais a sociedade “como um container” – algo fechado, estático, sistêmico e dotado de contornos nacionais, estatais, institucionais, burocráticos. Denuncia-se, assim, seu “nacionalismo metodológico”, que está a ser superado, por exemplo, através de pesquisas de temas cosmopolitas e culturais. Estas sociologias nacionais, por serem excludentes, muitas vezes operam com raciocínios do tipo “um-ou-outro” em vez do mais contemporâneo “um-e-outro”. A territorialidade das sociedades identificadas – pelas sociologias da modernidade – com o Estado-Nação está se desmanchando, surgindo indivíduos pluri-localizados.xlvi A globalização parece, então, substituir a modernidade.

É visível que os fluxos de sociabilidade globais remetem a noções como: movimento, abertura, interação. Sociedade como fluxo, concluo. Beck aponta, inclusive, que a globalização põe em movimento até mesmo as instituições.xlvii É este um dos sentidos do seu “um-e-outro”, pois “um” pode fluir para o “outro”, não havendo mais fronteiras (nacionais, etc) excludentes entre ambos, fronteiras estas que impõem o “um-ou-outro”. Uma síntese normativa desta visão de sociedade como fluxo é encontrada em Albrow: “A textura aberta dos povos, dos lugares, do tempo e da agência é a verdadeira experiência primordial.”xlviii.

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A fim de problematizarmos a visão da sociedade como fluxo, temos inicialmente Kumar notando que a importância da informação na sociedade global se ajusta à “tradição liberal, progressista, do pensamento ocidental”.xlix Constata-se aqui uma ponte entre modernidade e globalização, não havendo apenas rupturas entre ambas. Seguirei nesta senda mais adiante. Além disso, Kumar nota que a “pós-modernidade” e o “pós-industrialismo”, aparentados à globalização, dizem muito da “condição da população erudita ocidental”l, a qual identifico como intelectuais, setores médios e elites (no meu entender, não apenas do Ocidente, mas de quase todo o planeta). Entendimento correlato tem Castells: as sociabilidades como fluxo são mais afeitas aos setores dominantes das sociedades contemporâneas.li Por conseguinte, exige-se da análise sobre as teorias da globalização um certo cuidado em ver nas sociedades contemporâneas não apenas suas partes ou esferas que são conformadas ou vivenciadas principalmente por essa população erudita (da qual fazemos parte, obviamente). Passaremos novamente por esse ponto.

Uma série limitação para a identificação da globalização puramente como fluxo é o fato de a mobilidade do trabalho ser muito menor que a do capital, conforme reconhecido por Beck.lii Por isso mesmo o trabalho flexível não alterou todas as profissões nem substituiu, antes se associou ao fordismo. Indo mais além: os fluxos de informação não chegaram a transformar radicalmente a sociedade moderna nem seus princípios capitalistas.liii Essas discrepâncias entre capital e trabalho relativizam um pouco o “social” não mais identificado com o nacional-estatal em Beck, uma vez que, apesar dos fluxos de sociabilidade e comunicação, os indivíduos (pelo menos os trabalhadores) não podem assumir qualquer identidade ou alternativa de vida disponível, se não estão tão “móveis” assim.

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A não ser que, conforme a sugestão de Kumar sobre a “população erudita ocidental”, Beck, Robertson e Albrow estejam confundindo a mobilidade e disponibilidade identitária de intelectuais, setores médios e elites – que em parte vivem em um mundo cosmopolita, globalizado, pós-moderno, puramente reflexivo, etc – com a situação da maior parte da população do mundo, que não é exatamente a mesma. Principalmente face às enormes concentrações/desigualdades de riqueza e poder, apontadas pelo próprio Beck ao citar Wallerstein.liv Acrescentemos a isso outro “porém” também fornecido por Beck: o fato de que Estados-Nacionais e poderes hegemônicos como os EUAlv (ainda mais em tempos de Bush) ou o Ocidentelvi “autorizam silenciosamente” o desenrolar da globalização. Já Robertson nega a existência de forças hegemônicas na globalização, ao falar, por exemplo, de um “sistema internacional fluido”lvii, o que, sem dúvida, facilita a construção da imagem de uma sociedade dotada de mais mobilidade.

Na mesma direção das reflexões de Kumar, Castells afirma que a reflexividade crescente da globalização não se distribui igualmente pelos indivíduos e grupos sociais, não sendo vivida plenamente pelos setores não-dominantes,lviii justamente devido às grandes discrepâncias de poder e riqueza, evidência maior da permanência do referencial marxista para entender o mundo.

Voltando à conjugação de globalização e sociedade como fluxo (aberta, dinâmica, móvel, interacional) em Beck, Robertson e Albrow, deve ser registrado que ela pressupõe, por oposição, a identificação da modernidade com uma concepção de sociedade estática, fechada, sistêmicalix, totalizante, pré-determinada,lx objetivada. O problema, aqui, consiste simplesmente em que a imagem da modernidade inadvertidamente construída por esses três teóricos da globalização é simplesmente inaceitável para pensadores como

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Simmel (já visto anteriormente) Geertz e outros. Simmel, inclusive, é citado por Robertson: “(...) suas preocupações com as formas de vida em geral levaram-no à produção de idéias que são relevantes, em termos teóricos, para o conceito de globalização.”lxi Só que Simmel em grande parte de sua obra fala justamente da modernidade (do urbano, etc). E a partir de Simmel entendo ser a modernidade também multifacética, heterogênea, indeterminada, subjetiva, ambígua, fluida e dotada de interconexões complexas, por mais que se queira imputar exclusividade ou marca diferenciadora para a globalização em torno destes qualificativos.

No mesmo diapasão, Albrow afirma: “The analytic concept of the global can never be as precise as that of capital.”lxii Certamente o capital pode ser analisado mais objetivamente que a globalização, mas o mesmo não ocorre com a modernidade! Albrow indica, ainda, que modernidade aponta para finitude e globalização para transcendência.lxiii Mas desde quando a crença moderna no progresso linear remete à finitude? Inspirando-nos em Kumar, é possível indagar se o trajeto da finitude para a transcendência proposto por Albrow remete à idéia de progresso na modernidade, recaindo este autor no próprio equívoco por ele denunciado: pensar em termos da teoria moderna ao imputar à globalização o fim superior de um caminho (a transcendência). A globalização não pode ser um passo atrás? A renovação do liberalismo dos últimos tempos não pode fazer parte de uma trajetória histórica e contingente (portanto, alterável) da modernidade, quiçá mesmo um retrocesso, em vez de ser culminância revolucionária rumo a uma nova era (global)?lxiv

Seguindo indicação já antecipada de Kumar (que vincula a informação na sociedade global à tradição liberal), relembro que uma das mais fortes premissas da modernidade é o individualismo, bem como o liberalismo. De antemão, estes dois “ismos” remetem à idéia de fluxo e, secundariamente, à

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de rede. Neste ínterim, o mais interessante é verificar a desconcertante convergência entre essas duas premissas modernas (individualismo e liberalismo) e a visão linear ou unidirecional da globalização em termos de fluxos de sociabilidade – adotada na maior parte das vezes por Beck, Robertson e Albrow.

Assim, temos a enfática defesa do individualismo metodológico e do cidadão global em Albrow como mais pertinentes à globalização, enquanto a modernidade e sua teoria social seriam sistêmicas e coletivistas.lxv Diante de tal assertiva, o que diria Simmel, teórico social da modernidade, cuja sociologia é individualista e interacional? Será que, realmente, o “social” na globalização seria majoritariamente o “individual”, como pretende Albrow? Como compreender o “retorno das comunidades” ou a emergência de fundamentalismos apenas com este enfoque? Acredito que isto tudo não combina com a diversidade inerente aos processos contemporâneos.

Não acredito ser coerente supor a globalização como reforçadora de premissas básicas da modernidade – individualismo/liberalismo – ao mesmo tempo em que se fazem grandes e interessantes esforços teóricos no sentido de elaborar diferenças qualitativas entre modernidade e globalização, como é o caso de Beck, Robertson e Albrow. Não identifiquei nas reflexões desses três instigantes autores respostas explícitas ou específicas a este dilema: como uma nova era rompe com a anterior mantendo dela uma de suas maiores idéias-força. Negar a força do individualismo na globalização é impensável, mas o mesmo deve ser dito em relação à modernidade e suas teorias sociais (além de Simmel, temos as tradições weberiana, pragmática, etc). Talvez seja necessário atenuar as diferenças entre modernidade e globalização. Também não suponho que seja recomendável incluir no debate sobre a globalização, mesmo sem querer, acertos de conta entre correntes acadêmicas e intelectuais (individualismo x coletivismo metodológico).

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Inclusive porque, no caso de Albrow e, em menor grau, Robertson, isto significa entrar em choque com individualistas metodológicos (muitos dos quais seus predecessores!), pelo menos sobre os significados da modernidade.

Lembro, ainda, que o par individualismo/liberalismo constitui-se no cerne de uma das grandes narrativas humanas, a ocidental. Só que a globalização, a pós-modernidade e o pós-industrialismo trazem consigo fortíssimos questionamentos a essas narrativas, quando não o seu fim.

Voltando ao debate sobre globalização e sociedade como fluxo e buscando visualizar o mundo contemporâneo de modo mais profundamente multifacético, talvez seja mais produtivo analiticamente pensar não apenas em termos de novos fluxos de sociabilidades, mas também em articulações – não necessariamente – estáveis e holistas como a identidade em Castells.lxvi Aceitando-se ambas as tendências como legitimamente globais, conformam-se as sociedades não apenas em torno da idéia de fluxo, mas também de rede, possivelmente segundo não só a proposta teórica de Castells, mas também a de Eliaslxvii. Nesta última há a tentativa de equilíbrio entre indivíduos e coletividades, entre interações e estruturas, entre subjetividades e objetividades. Do mesmo modo como buscamos equilibrar marxismo e fenomenologia.

Por conceberem a globalização mais enfaticamente como fluxo, Beck, Robertson e Albrow tendem a não dar tanta importância ao ressurgimento dos nacionalismos, às novas comunidades e aos novos fundamentalismos como tendências díspares da contemporaneidade. Além disso, se inclinam a ver nestes movimentos antes suas articulações através de redes globais de comunicação que o compartilhamento de valores alternativos, anteriores, esquecidos e recriados – considerados por isso mesmo pura “invenção de tradição” ou estratégias anacrônicas. lxviii

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Da mesma maneira, os três autores acima citados, em graus diferentes, apostam numa cidadania global e no diálogo intercultural. Contudo, tais cidadãos globais aparentam ser mais homogêneos que os movimentos comunais formadores de identidades de resistência percebidos por Castells. Por outro lado, a favor de Beck, Robertson e Albrow, deve-se dizer que as versões fundamentalistas destas comunidades são ainda mais infensas ao esforço de compreensão do “outro”, o que é também descrito por Castells.lxix

Outro debate fundamental da globalização é o que envolve os nexos entre local e global. Albrow afirma que não se pode mais fazer simples oposição e mesmo diferenciação entre local e globallxx, pois o global cada vez mais se localiza – isto é, se implementa levando em conta parâmetros locais – e o local cada vez mais se articula globalmente (via tecnologias da informação), configurando o fenômeno da glocalização (proposto por Robertson), que pode ser, inclusive, uma estratégia.lxxi

A discussão da glocalização em Robertson aponta explicitamente que o local não mais se realiza “internamente”, de modo “fechado”, pois está como que amalgamado ao global.lxxii Só que tal conclusão pressupõe novamente de forma não suficientemente problematizadora a globalização como sociedade de fluxo, “aberta”, sem maiores obstáculos ou presença de outras tendências societárias. Novamente, fica penoso, por exemplo, pensar “o retorno das comunidades” ou o “outro” apenas sob este prisma, por mais promissor e adequado que ele seja para perceber a fluida diversidade contemporânea e suas possíveis interconexões globais. Não creio ser possível imaginar que estratégias de glocalização vão dirimir todo e qualquer conflito entre local e global, a não ser para liberais ou capitalistas incorrigivelmente otimistas. Ainda mais considerando as tendências societárias baseadas na identidade como uma força autônoma da

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globalização, inúmeras vezes voltadas para o local, não há porque pensar que este perdeu toda a razão de ser.

A crítica de Robertson ao raciocínio dual em torno do local/global nos leva à discussão da própria manutenção da pertinência de outras dualidades clássicas da teoria social (individualismo x coletivismo, p.ex.). Também lembro do justo alerta de Albrow no sentido de não procurar entender o novo com conceitos velhos.lxxiii Todavia, a meu ver, só em uma visão linear ou unidirecional da globalização é possível aceitar que tais dualidades estejam totalmente superadas ou sejam inúteis – como não comungo desta visão ...

Por conseguinte, vejo em Robertsonlxxiv uma confusão na qual ele imagina que, hoje em dia, um grupo social não possa mais desenvolver “internamente” algum tipo de coletivismo holista (tribalismo, nacionalismo). Caso tal processo se dê, foi porque alguém do grupo tomou conhecimento de uma leitura “nativista” ocidental. Então cabe a indagação: depois que Herder codificou os cânones do romantismo, ninguém mais no planeta pode repeti-lo independentemente? Novamente parece que a condição cosmopolita e pós-moderna dos intelectuaislxxv é estendida, inadvertidamente, para outros grupos sociais de modo forçoso, como se não fosse possível o “um-e-outro”.

O debate teórico sobre globalização, sociedade como fluxo, sociedade em rede nos leva também à questão da inexorabilidade da globalização. Quando Beck afirma a inutilidade de ser contra a globalizaçãolxxvi ou quando Albrow diz que a globalização não pode ser evitada,lxxvii entendo que acabam raciocinando em termos de “um-ou-outro”. Só há uma globalização possível, objetiva e totalizante? Robertson avalia que não, ao identificar até possibilidades de reglobalização e desglobalização, exemplificando inclusive com a manutenção da força do protecionismo no mundo.lxxviii Posição bastante clara a respeito tem Castells,lxxix para quem os rumos e significados da globalização vão ser dados e alterados pelas diversas tendências

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existentes nas sociedades atuais (fluxos de sociabilidade, blocos de poder, movimentos comunais articulando identidades de resistência, entre outros), além de fatores econômicos, culturais, históricos, etc, até porque não entende a sociedade contemporânea sendo orientada unicamente no sentido de fluxos. Em Castells a sociedade da globalização não pode ser irresistível, posição com a qual concordo plenamente.

Por fim, outro móvel polêmico da globalização é a dualidade homogeneidade/heterogeneidade. Autores como Harvey, Wood e Giddens tendem a não perceber aprofundadamente as ambigüidades da globalização, centrando-se em homogeneidades. Tal procedimento é um equívoco, pois, para ver os indivíduos e grupos sociais desta forma convergente é necessário ignorar as diferenças humanas presentes em todo o globo, deixando-se de lado a dimensão fenomenológica das experiências e manifestações sociais e culturais, a emergência do “outros”, dos “de baixo”, etc.lxxx Neste sentido, Albrow reitera, com muita propriedade, a exigência de se pesquisar fenomenologicamente a globalização.lxxxi

Kumarlxxxii também discorda parcialmente de Harvey: reconhece a continuidade das relações e princípios capitalistas da modernidade na globalização, como já vimos. Porém, algumas características pós-modernas das sociedades contemporâneas não são imaginárias, podem significar realmente um novo patamar histórico e societário: a produção se flexibilizou em boa parte e se “glocalizou” em função não só de estratégias vindas “de cima” (sanduíches do McDonald na Índia não contêm carne bovina), mas também em função da multiplicidade de manifestações, experiências e pressões dos “de baixo”, que, aliás, se assumem por vezes como militância “antiglobalização” (Fórum Social Mundial) ou até anticapitalista (recuperação do anarquismo).

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É verdade que boa parte da heterogeneidade percebida na globalização é apropriável pelo capitalismo mas, ao contrário do que supõem Harvey e Wood,lxxxiii tal constatação empírica não invalida a emergência, por vezes localista, do “outro”, dos “de baixo”, etc. Desnecessário lembrar que os movimentos socialistas e trabalhistas europeus e suas estruturas sindicais de grande porte, nada localistas e pouco heterogêneos, já que baseados em grandes identidades coletivas/classistas, foram assimilados há tempos pelo capitalismo avançado.

Por outro lado, a crítica de Robertson, fundada nas estratégias de glocalização,lxxxiv às visões tipo “McWorld”, ainda que seja pertinente à heterogeneidade real do mundo, esquece que os centros de produção/transmissão em massa dessa diversidade cultural em grande parte permanecem concentrados em poucas mãos, normalmente ocidentais: CNN, MTV, Hollywood, etc.lxxxv

Assim, concluo que apenas quando riqueza, poder e capital cultural e “cívico” se desconcentrarem fortemente a globalização poderá ser diferenciada radicalmente da modernidade no que tange à dualidade homogeneidade x heterogeneidade. De alguma forma, o prenúncio marxista de uma sociedade sem classes é uma condição fundamental para a transformação da modernidade, seja rumo à globalização ou a uma retomada do internacionalismo proletário em bases mais populares que intelectuais, como veremos. Por fim, sendo a globalização uma radicalização da modernidade, inclusive no sentido do aumento da diversidade/heterogeneidade das massas populares que crescentemente manifestam-se no cenário global por meio de experiências sociais e culturais próprias, mais do que nunca um avanço do pensamento de esquerda levando em conta os aspectos fenomenológicos do mundo se faz necessário. MOVIMENTOS SOCIAIS E EXPERIÊNCIA POPULAR

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A perspectiva de que a diversidade de articulações – autônomas – desde baixo dos trabalhadores e demais setores dominados das sociedades capitalistas é o fator central da luta de classes pode ser exemplificada com o caso brasileiro a partir dos anos 70 do século XX. A reoxigenação do sindicalismo e dos movimentos urbanos e rurais em geral foi de tal modo expressiva que significou uma nova qualificação para a participação política. O “novo sindicalismo” e os “novos movimentos sociais” que então surgiam foram a maior força popular de construção da democracia brasileira. Paralelo a isso, a teoria social feita no Brasil dá uma grande virada fenomenológica, atenuando o enfoque mais estrutural sobre a realidade e voltando-se para o detalhamento de múltiplas experiências populares específicas de vivência (da) e resistência à exploração/dominação capitalistas. Engendra-se, assim, um edifício analítico mais complexo e verossímil.

Nos meios de esquerda do Brasil e do mundo, essa virada fenomenológica significou o enfraquecimento da busca de uma única e “verdadeira” teoria revolucionária, normalmente realizada por intelectuais e pretensas vanguardas partidárias, sem que se levasse em conta as reais experiências de luta popular nos movimentos sociais. A respeito, temos o diagnóstico feito ainda em 1966 por Prado Jr.:

“A teoria da revolução brasileira, elaborada originariamente em época na qual pouco ou nada se conhecia acerca de nossa realidade, quando nos faltava experiência política e o nível de consciência revolucionária das massas trabalhadoras era extremamente baixo, particularmente no campo, cujo papel em países como o Brasil tinha de ser e ainda é de primordial importância, essa teoria se transmitiu assim com todas suas grandes falhas e sem nenhuma revisão radical que se fazia tão necessária.”lxxxvi

As formulações pecebistas sobre a sociedade brasileira eram obviamente tributárias da visão oficial da Terceira Internacional. E o

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marxismo predominante no Brasil até os anos 70 sempre foi o filtrado pelo PCB. Assim, o marxismo pecebista não diferiu essencialmente do marxismo ortodoxo, propagado pelo stalinismo. Por isso contam-se nos dedos os trabalhos teóricos com a chancela oficial do PCB que podem ser considerados originais e tenham abordado com propriedade as especificidades da história e da sociedade brasileira. A maioria dos principais autores marxistas de nosso país esteve à parte da tradição pecebista, como é o caso de Prado Jr., praticamente um dissidente partidário. Ou como Mario Pedrosa e Lívio Xavier, pioneiros trotskystas brasileiros, capazes de elaborar no ano de 1930 o Esboço de uma Análise da Situação Econômica e Social do Brasil, onde, diferentemente do PCB, já apontavam especificidades escravistas e latifundiárias no “feudalismo” brasileiro, entendiam que a burguesia brasileira estava cedo submetida ao capitalismo internacional e identificavam tendências antiliberais e estatistas em nossas classes dominantes.lxxxvii Para não falarmos, por fim, de obras clássicas não-marxistas, fundamentais para embasarmos uma compreensão e uma política revolucionárias sobre o Brasil, como a weberiana Raízes do Brasil, do progressista Sergio Buarque de Holanda, e a antropológica Casagrande e Senzala, do reacionário Gilberto Freyre.

Assim, alguns dos mais combativos movimentos populares, anteriores ao “novo sindicalismo” e aos “novos movimentos sociais”, contaram com a decisiva participação da militância pecebista entre 1922 e 1964 mas se realizaram além ou à margem das orientações políticas de seus dirigentes e, por vezes, em sentido contrário à estratégia majoritariamente reformista que o PCB, com poucas exceções, seguiu. Apesar de nos anos 50 os pecebistas estarem a reboque de políticas populistas (com todas suas implicações imobilistas, cupulistas, corporativas, estatistas e burocratizantes), a famosa Greve dos 300 mil de 53, em São Paulo, foi um exemplo de movimento

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sindical/social – em maior ou menor grau – classista, independente, autônomo, de base e mobilizador.lxxxviii

Já nos anos 70, a sociedade brasileira era palco de um boom de movimentos sociais. Toda essa diversidade de movimentos populares mudou a face do Brasil. Talvez pela primeira vez na história brasileira a classe trabalhadora era massivamente protagonista no cenário social e político. E isto se devia às características trazidas pelas mais combativas expressões do novo sindicalismo e dos novos movimentos sociais: classista, independente, autônomo, de base, mobilizador, e, por diversas vezes, pluralista, espontâneo, anti-institucionalizante, comunitarista, libertário, anticapitalista e socialista.

Uma característica fundamental da formação dos novos movimentos sindicais e sociais era que não existia uma hegemonia ideológica e partidária clara entre seus dirigentes e participantes. O PCB fora substituído no coração e na alma das vanguardas da classe trabalhadora e dos setores subalternizados do país por agrupamentos que iriam, um pouco depois, construir o PT: militantes vinculados à Igreja Católica e às CEBs, várias dissidências marxistas oriundas do PCB ou do trotskysmo e ativistas provenientes do sindicalismo oficial (como Lula), bem como das oposições sindicais ao peleguismo.

Tal ausência de hegemonia ideológica e partidária, no meu entender, trouxe uma vantagem extraordinária para o novo sindicalismo e os novos movimentos sociais, quando comparados aos do período pré-64. Minha sugestão é a seguinte: os novos movimentos sindicais e sociais se construíram sem uma teoria e uma estratégia únicas que os pré-determinasse, o que permitiu que se desenvolvessem mais intensamente, através de uma práxis mais criativa e menos limitada por referências teóricas marxistas cristalizadas, não tão abertas às novas contribuições das

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“experiências” (no sentido thompsoniano) legítimas do proletariado e demais setores populares. Em outras palavras: o viés fenomenológico da realidade dos subalternizados manifestou-se com maior força, libertando-se do jugo do campo intelectual (de esquerda) que sempre se apropriava precipitadamente de tais experiências em nome de uma teoria geral, abstrata, cartesiana e sem fundamentação empírica consistente: o marxismo ortodoxo.lxxxix

Longe de querer criticar a teoria marxista em si (que, a meu ver, se mantém como base maior para qualquer projeto socialista), estou querendo ressaltar que a luta revolucionária, em qualquer sociedade, não tem seu principal impulso no fato de existirem elites intelectuais que adotam o marxismo em termos teóricos ou doutrinários. O principal impulso da esquerda na luta de classes reside nas experiências de auto-organização e mobilização antiburguesa dos setores explorados e oprimidos pelo capitalismo. Tais experiências podem ou não contar com a presença de grupos intelectualizados marxistas. Se contar, tanto melhor. Mas a presença de tais grupos, a presença do marxismo nos movimentos populares não é garantia de uma orientação política correta. E mais: os intelectuais difusores do marxismo no interior dos movimentos sindicais e sociais não devem assumir uma postura de superioridade, porque o marxismo em particular e o pensamento de esquerda em geral só cumprem um papel revolucionário e socialista se integrados ou incorporados às autênticas experiências de luta dos setores “de baixo” da sociedade. Porque são estas experiências que dão conta das especificidades locais, regionais e nacionais de um país, antes da teoria marxista poder desenvolver uma interpretação particular da área em questão. São as experiências que dão “vida” – substancialidade histórica e consistência social – à teoria marxista, transformando-a em práxis.

Essa constatação refere-se, simultaneamente, a dois fatores teórico-políticos: primeiro, à complexidade das sociedades contemporâneas, que

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demandam explicações setoriais em constante atualização, ainda que vinculadas a uma teoria geral; segundo, à insuficiência e ao caráter incompleto do corpo da teoria marxista dos dias de hoje, ainda incapaz de compreender várias facetas das sociedades modernas (para não falar das não-modernas).

No campo dos partidos de esquerda verifica-se fenômeno correlato, sendo protagonista o marxismo, tratado de forma doutrinária e dogmática, não favorecendo o desenvolvimento continuado de pesquisas e estudos sobre a luta de classes, o socialismo e a revolução. Equivocadamente, boa parte da militância e da intelectualidade de esquerda defende o primado de uma teoria marxista – em detrimento das experiências populares de organização antiburguesa (cerceando a práxis através da teoria) – inspirando-se na famosa fórmula leninista presente no Que Fazer?: “a consciência revolucionária provém de fora do movimento operário”.xc Sob o escudo dessa assertiva leninista, grande parte dos intelectuais (falo em termos de posição social) assegurou historicamente uma hegemonia social sobre os setores populares no interior das organizações revolucionárias e socialistas do século XX. Hegemonia essa de características elitistas e de conseqüências contra-revolucionárias.

Não se trata apenas de denunciar o peso por vezes excessivamente grande de intelectuais em organizações de esquerda com dificuldades em se enraizar no proletariado, nem muito menos se pretende defender algum tipo de obreirismo contemporâneo – até porque elites operárias podem cometer o mesmo tipo de equívoco intelectual e político. Não se imagina que a fórmula mágica consista em extirpar os intelectuais dos partidos de esquerda, que, compostos então exclusivamente por operários vá, automaticamente, adotar a linha política “correta” e fazer a revolução socialista – uma verdadeira piada. Defendo sim é que o império da teoria marxista cristalizada que os

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intelectuais têm exercido nas organizações de esquerda em geral deve ser atenuado significativamente, sob pena de os setores proletários e populares que compõem o cerne destas mesmas organizações não terem sucesso no processo histórico de criar e implementar uma práxis revolucionária e socialista, através da qual o capitalismo será superado em favor de uma sociedade nova, socialista.

Como já adiantado anteriormente, esse império da teoria, da forma como se estabeleceu historicamente no século XX, pré-determina de modo equivocado o estabelecimento de uma práxis marxista/materialista, tolhendo a criatividade e a radicalidade das experiências de luta dos setores populares (perspectiva fenomenológica). Os intelectuais e militantes adeptos do marxismo ortodoxo em geral assim procedem inadvertidamente, sem compreender a verdadeira natureza do desenvolvimento de uma práxis revolucionária e socialista, que, por sua própria definição, não pode ser profetizada teleologicamente por algum oráculo do marxismo, mas sim criada e recriada historicamente pelos verdadeiros protagonistas da luta de classe, os setores operários, populares e subalternizados da sociedade capitalista. Parafraseando a velha tirada de Marx, “a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”.

Em termos sociológicos, políticos e ideológicos essa maior independência dos movimentos populares em relação a monopólios partidários reveste-se de outra implicação. Não só os intelectuais tiveram suas posições elitistas atenuadas em favor de um maior protagonismo do proletariado na luta de classes, mas também os partidos tiveram – no campo da esquerda – sua posição enfraquecida em favor dos movimentos sindicais e sociais. Não é à toa que temos hoje um Fórum Social Mundial (formado por diversos movimentos populares, grupos políticos, partidos, ONGs e militantes em geral) e não uma Quinta Internacional de partidos homogêneos. Isto se

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dá não por inexistir uma consciência ou uma maturidade da necessidade da revolução (como pensaria alguém que raciocinasse nos termos intelectualistas, teoricistas e partidocratas aqui criticados), mas porque o processo de conscientização e organização massiva em favor de uma nova sociedade se dá por excelência nos movimentos sindicais e sociais.

Seguindo esta premissa, a formação de um partido de esquerda se dá, preferencialmente, durante um processo de reorganização dos movimentos populares. Mas mesmo depois de criado o partido revolucionário e socialista, a referência dos movimentos populares se manteria permanentemente para a militância, porque os movimentos, mais até do que os partidos, são o espaço da experiência e do “mundo da vida” de lutas cotidianas dos setores explorados e oprimidos. A realidade em sua acepção fenomenológica será sempre a fonte alimentadora para a constante formação e renovação da teoria revolucionária: a diversidade é a própria condição da unidade. Os partidos, mesmo os antiburgueses, participam ao menos parcialmente da institucionalidade liberal-democrática, enquanto que tal inserção nos “sistemas” dominantes da sociedade capitalista é muito menos efetiva em relação aos movimentos.xci

Acredito que uma política revolucionária e socialista se faria, portanto, a partir de dois fatores que se relacionam dialeticamente. Um, principal: as experiências dos setores populares realizadas em seus “mundos da vida” através dos movimentos sociais, numa perspectiva alternativa ao capitalismo. Outro, secundário: a condensação de tais experiências num plano totalizante e teórico, efetivado em um ou mais partidos de esquerda, onde exercem papel vital não apenas setores populares, mas também intelectuais.

Pensando deste modo, temos que o erro histórico mais comum dos partidos comunistas e de seus intelectuais do século XX foi condensar precipitadamente uma totalidade (a partir da presunção de que a teoria

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marxista estava pronta e acabada), adotando, conseqüentemente, uma linha política que não se alimentava amplamente das diversas fontes de experiências dos setores populares através de seus movimentos sociais. O resultado geral desse processo foi a incapacidade de ganhar as amplas massas para o socialismo através dos movimentos sociais, devido ao vanguardismo dos intelectuais e militantes partidários. Tal fenômeno se manifesta concretamente de várias formas: por não se colocar um papel mais generoso para os movimentos, estes se restringem ao reivindicacionismo; valoriza-se apenas o movimento sindical em detrimento de outros movimentos, inviabilizando a construção do socialismo, pois este não se resume à esfera do trabalho; cai-se no cupulismo e no parlamentarismo, que são práticas reformistas e institucionalizantes, independentemente das intenções dos dirigentes partidários.

Por isso, tendo em vista o momento histórico de confusão em que a esquerda vive hoje, bem como a necessidade de reconstruir uma política revolucionária e socialista para o séc. XXI, defendo um recuo relativo nos papéis da teoria, do partido e dos intelectuais como têm sido exercidos há tempos, em favor de uma maior prioridade militante nos movimentos sindicais e sociais, de modo que o proletariado possa exercer sua criatividade e radicalidade mais amplamente. Está claro que não proponho uma passividade para nós, intelectuais. Pelo contrário, temos antes que lutar ainda mais ao lado dos trabalhadores, integrando-nos em seus movimentos. E não apenas nos resumindo em assumir uma posição superior nos partidos, teorizando sobre o que deve ser feito (esta sim uma postura contemplativa e contra-revolucionária). Não advogo, ainda, que os movimentos em si sejam socialistas. Sei muito bem que podem ser liberais e capitalistas. Mas justamente a visão que objetivamente abandona a prioridade nos movimentos em favor dos partidos é que favorece o economicismo. Priorizar

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os movimentos significa disputá-los com muito mais vigor contra as forças da ordem e da cooptação, buscando colocá-los num caminho revolucionário. Só uma nova vitalidade dos movimentos permitirá a construção de partidos de esquerda realmente novos.

Ainda sobre a força excessiva dos intelectuais nas organizações de esquerda em detrimento das experiências de luta realmente populares, seria produtivo revermos como “classes sociais” e “movimentos sociais” também não deixam de ser construções intelectuais, que interagem de modo diversificado com as práticas dos grupos sociais que protagonizam essas mesmas articulações de classes e movimentos sociais.

Aprendemos com Thompson a perspectiva de uma “‘história de baixo para cima’ com a incorporação de movimentos e formas de expressão populares como parte ativa do processo histórico”.xcii Esta história desde baixo, popular, passa a ser referenciada não mais preferencialmente a organizações centralizadas como os partidos comunistas. Pelo contrário, Thompson enfatiza a alteridade de múltiplas formas organizativas, tradições culturais e costumes sociais, identidades e experiências através das quais os trabalhadores se constituem ativamente enquanto classe.xciii

Temos também o uso da “noção de experiência como chave para superar a contradição entre determinação e agência humana no interior da historiografia marxista”, buscando um equilíbrio entre ação humana e condicionamentos e evitando-se separar, de modo estanque, o “objetivo” do “subjetivo”. De modo correlato, há um forte questionamento do par infra-estrutura/superestrutura.xciv Acredito que é possível identificar em Thompson uma posição epistemológica mais próxima de um empirismo ou historicismo do que de um teoricismo (“se há choque entre a pesquisa empírica e o modelo, é este último que há de ser reformado – e não restaurado”).xcv E este empirismo/historicismo nada mais é também que um tipo de abordagem

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