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Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca

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Academic year: 2021

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(1)Tradução & Comunicação Revista Brasileira de Tradutores Nº. 19, Ano 2009. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRESENÇA E A PRÁTICA DA TRADUÇÃO EM EXCERTOS SELECIONADOS DE CÍCERO E SÊNECA Remarks about the presence and the practice of translation in selected excerpts from Cicero and Seneca. Matheus Clemente De Pietro Universidade Estadual de Campinas UNICAMP theo.depietro@yahoo.de. RESUMO Por meio deste estudo pretendemos oferecer uma breve discussão acerca do tema da tradução em Cícero e Sêneca. Inicialmente, apresentaremos parte do contexto literário romano à época de Cícero, devido à ligação que se observa entre tal contexto e o projeto tradutório do autor. Nesse primeiro tópico abordaremos de forma introdutória o método ciceroniano de tradução, bem como seus efeitos e implicações na literatura e na cultura romana em geral. Avaliar-se-á o que veio a ser considerado pioneirismo de Cícero na questão, e o efeito “nacionalista” (por assim dizer) de suas traduções, identificado não apenas por comentários atuais sobre seus textos, mas, sobretudo, por declarações do próprio autor. Seguindo-se a isso, pretendemos expor algumas reflexões metalinguísticas dos referidos autores, bem como algumas semelhanças entre suas práticas tradutórias, nomeadamente, a uariatio e a atenção ao “sentido” da palavra a ser traduzida. Por fim, procuraremos ilustrar que o estudo da filosofia estóica apresentada tanto por Cícero como por Sêneca pode se beneficiar com uma leitura que atente aos procedimentos tradutórios empregados por esses autores – recursos que, muitas vezes, consistem em parte fundamental da argumentação contida nos excertos por nós analisados. Palavras-Chave: Cícero; Sêneca; história da tradução; estoicismo.. ABSTRACT. Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@unianhanguera.edu.br. In the present study I intend to offer a brief discussion on the theme of translation in Cicero and Seneca. Initially, I shall present a part of the Roman literary context in Cicero’s time, due to the connection recognized between such context and the author’s translation practice. In this first subject I look into the ciceronian translation method in selected excerpts, as well as its effects and repercussions in the Roman Literature and culture. It shall be evaluated Cicero’s so called “pioneering” in the matter, and the “nationalist” (so to speak) effect of his translations, which is identified not only by modern commentaries to his texts, but also by the author’s own statements. In sequence, I intend to show a few metalinguistic remarks from the above mentioned authors, combined with similarities between their translation practices, namely, the uariatio and the attention for the original meaning of the source word. Finally, I will try to exemplify that the study of Stoic philosophy presented by Cicero and Seneca have much to gain with a reading that is conscious of the translation procedures applied by these writers. Keywords: Cicero; Seneca; History of translation; Stoicism.. Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 2/11/2009 Avaliado em: 20/11/2009 Publicação: 27 de abril de 2010 7.

(2) 8. Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca. 1.. ANTECEDENTES. 1.1. Cícero como pioneiro A tradução parece ter sido uma prática comum aos escritores romanos, e a tal ponto presente em seu desenvolvimento literário que seu surgimento (ou introdução) em Roma se perde no tempo e não pode ser precisado com solidez. Sabemos que traduções extensas (em contraste com traduções pontuais de termos de outras línguas) existiram ao menos desde 250 a.C., quando Lívio Andronico (c. séc. III a.C.) compôs em latim obra que toma a Odisséia de Homero como modelo1. Apesar disso, reflexões mais elaboradas sobre a prática tradutória em si mesma, nomeadamente, em caráter metalingüístico, não se registram antes do século I a.C., na obra de Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C.). Evidentemente, é possível encontrar observações mais esparsas, que atestam a consciência de alguns autores, anteriores a essa época, acerca do contexto em que suas obras (e língua) estariam inseridas. Uma dessas breves referências nos é oferecida por Plauto (ca. 254 - 184 a.C.), comediógrafo romano que, em prólogo à tradução de uma peça grega de Filemão, diz, em tom jocoso, que “Filemão escreveu, Plauto traduziu em língua bárbara2”. Devido a essa escassez de registros sobre a o tema, quando discorremos sobre tradução no mundo romano, não há como ignorar Marco Túlio Cícero. Considerado modernamente, e avant la lettre, o primeiro “teórico da tradução” do mundo ocidental, ou, ao menos, o primeiro com sucesso suficiente para ser assim reconhecido, e ser tido também por muitos escritores da Antiguidade como parâmetro para a prática tradutória. Dentre esses, inclui-se Sêneca (4 a.C – 65 d.C.), que explicitamente recorre à autoridade ciceroniana como tradutor. Em sua 107ª Carta, ao anunciar ao leitor sua tradução de versos gregos, Sêneca diz, acerca deles, que [...] o exemplo de Cícero, homem extremamente eloqüente, me permite verte-los [sc. os versos] em nossa língua. Se lhe agradarem, que você os tenha em boa estima. Se lhe desagradarem, você há de compreender que nisto estou seguindo o exemplo de Cícero3.. 1 Cf. G. Highet, The Classical Tradition (1985), p. 104. Para maiores informações sobre Lívio Andronico, cf. G. B. Conte, Latin Literature (1994), pp. 39-42; e M. von Albrecht, A history of Roman Literature (1997), p. 112 ff, em especial a nota 1. Cf., também, Cícero, Brutus, 71-73. 2 Philemo scripsit, Plautus uortit barbare. Cf. Plauto, Trinummus, Prol., 19. Sobre a frase, cf. Cardoso, I. T., “Ilusão e engano em Plauto”, In: Publicação de Grupo de estudos do Teatro Antigo, no prelo da editora Humanitas. 3 (...) quos mihi in nostrum sermonem mutare permittitur Ciceronis, disertissimi uiri, exemplo. Si placuerint, boni consules; si displicuerint, scies me in hoc secutum Ciceronis exemplum. Cf. Sêneca, Ep. 107, 10. No contexto, trata-se de versos de Cleantes, ilustre representante do estocismo grego. Todas as traduções constantes no presente trabalho, salvo indicação diferente, são de minha autoria.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(3) Matheus Clemente De Pietro. 9. De fato, os comentários de Cícero sobre o assunto estão presentes em muitas de suas obras, sendo De optimo genere oratorum (“Sobre o melhor gênero dos oradores”; escrita em 46 a.C.) a primeira em que se costumam apontar referências propriamente metalinguísticas nesse sentido. Sabemos hoje que muitas de suas obras se perderam, de forma que não é possível afirmar com exatidão se ali estaria realmente a primeira ocorrência, ou se escritos mais antigos conteriam referências semelhantes ao processo tradutório. Podemos notar, de toda forma, que estudiosos costumam tomá-la como registro inicial. Furlan, por exemplo, diz: “Duzentos anos depois de Roma ter conhecido a Odyssea, na tradução de Lívio Andronico. Cícero, em 46 a.C., oferece a primeira reflexão sobre a arte e a tarefa do traduzir, principalmente em De optimo genere oratorum4”. Malmkjaer, ao comentar sobre a origem da teoria da tradução, também segue pensamento semelhante. Ela diz: Na Europa é comum escrever como se a teoria da tradução começasse com os romanos, em particular com Marco Túlio Cícero e Horácio. Por exemplo, Steiner identifica o Libellus de optimo genere oratorum de Cícero em 46 a.C. e a Arte poética de Horácio em cerca de 20 a.C. como os pontos de partida para a teorização da tradução, e a maioria dos teóricos europeus o seguem5.. A justificativa dessa afirmação, segundo a estudiosa, não se fundamenta apenas no fato de que essas obras estão entre os escritos supérstites mais antigos sobre a tradução. Sua importância se deve, além disso, ao valor “retroativo” que receberam ao longo da história, pois ambas tiveram grande influência no desenvolvimento da teoria da tradução no Ocidente6. A temática da origem da tradução é um assunto complexo e uma abordagem satisfatória requereria um trabalho à parte, que tratasse dos diversos problemas que surgem quando o investigamos7. O presente artigo tratará, pois, de Cícero, uma das principais fontes romanas sobre tradução, quer consideremos os critérios do tempo (entre os textos extantes, foi, ao que se saiba, o primeiro a escrever de forma mais abrangente),. Cf. M. Furlan, “Brevíssima história da tradução” (2001), p. 16. “In Europe, it is common to write as if translation theory begins with the Romans, Marcus Tullius Cicero and Horace in particular. For example, Steiner identifies Cicero’s Libellus de optimo genere oratorum of 46 b.C. and Horace’s Ars poetica of circa 20 b.C. as the starting points for theorising about translation, and most European theorists follow suit”. Cf. K. Malmkjaer, “Linguistics and the language of translation”, (2005), pp. 1-2. 6 “The reason is that these are among the earliest writings about translation still extant and that they have had a significant effect on the development of translation theory in the West.”. Cf. K. Malmkjaer (2005), op.cit., p. 2. 7 Grande parte do problema deriva do obstáculo fundamental de se estabelecer, quanto à Antigüidade, qualquer afirmação em escala planetária. Inicialmente há a dificuldade material: o trabalho deverá se apoiar em registros históricos específicos sobre a tradução, mas estes muitas vezes são insuficientes ou não existem, mesmo em povos que, por sua presença em área de diversidade linguística (como os egípcios e chineses), evidentemente teriam traduzido em algum momento. Em seguida poderíamos pensar na dificuldade conceitual, já que civilizações tão distantes poderiam também ter diferentes definições do que seria uma tradução, e diferentes formas de praticá-la, impedindo que entre elas se estabeleça uma equivalência. Em menor escala, há também a legitimidade histórica das próprias fontes: por exemplo, notemos que Cícero, ao tratar da filosofia epicurista no De finibus, não menciona Lucrécio, seu contemporâneo. 4 5. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(4) 10. Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca. quer pelo de relevância (foi visto como modelo não apenas por Sêneca, acima citado, mas também por tradutores tardios, como, por exemplo, Jerônimo8). No presente texto, limitamos nossa exposição a apenas uma de suas obras: tratase de De finibus bonorum et malorum (“Sobre os fins dos bens e dos males”; escrito em 45 a.C.), um diálogo filosófico composto por um conjunto de cinco livros e com o propósito de apresentar a visão que as doutrinas epicurista, estóica e peripatética teriam respectivamente sobre o que seria o “fim último” (télos em grego; finis em latim) da filosofia9. A escolha da obra se justifica pelo fato de nela encontrarmos muitas reflexões metalinguísticas de Cícero, por exemplo, acerca da língua em sua época, e também, mais especificamente, comentários sobre a tradução dos textos estóicos do grego para o latim. Antes de prosseguir, uma ressalva deve ser feita quanto à classificação de Cícero como um “teórico da tradução”, uma vez que não há consenso entre os estudiosos que se dedicam ao assunto. J. Powell10, por exemplo, não só afirma que os comentários ciceronianos sobre a tradução constituem fundamento insuficiente ao delineamento de uma “teoria de tradução” propriamente dita, como também que os registros históricos não permitem que especulemos sobre mudanças de atitude em geral, por parte dos antigos, quanto ao modo de se refletir sobre a questão da tradução11. O estudioso utiliza tais argumentos para defender a abordagem que trará em seu artigo, que trata de analisar algumas traduções ciceronianas12 individualmente em seus contextos, e verificar como o método de Cícero se altera em cada caso. De todo modo, uma investigação sobre a possível “teoria de tradução” de Cícero seria uma proposta de execução problemática, especialmente se utilizarmos noções modernas da Linguística para tratar de um autor que, escrevendo de acordo com códigos dos gêneros a que suas obras se filiavam, hoje poderia ser considerado “assistemático” ou “incoerente”. Igualmente, um trabalho que julgue a existência ou validade da “teoria da. “Nesse assunto, tomo Cícero como mestre.” (habeoque huius rei magistrum Tullium). Jerônimo, Ep. 57, 5. Cf. Cícero, De finibus, I, 4-5. 10 Também é possível citar V. G. Yebra, “¿Cicerón y Horacio preceptistas de la traducción?”, p.152. Yebra parece falhar em um de seus argumentos, ao dizer que “Cícero nunca quis oferecer preceitos aos tradutores”. Independentemente da intenção de Cícero, seus textos efetivamente foram, como acima afirmamos, usados como modelo de tradução, como se pode conferir, por exemplo, em Sêneca Ep. 107, 10; Jerônimo, Ep. 57, 5; e indiretamente em Quintiliano, Institutio oratoria, X, 5, 5. Ainda hoje, segundo M. Furlan, Cícero (e Horácio) são utilizados em argumentos a favor da tradução não-literal. Cf. Furlan, “Brevíssima história da tradução no Ocidente” (2001), p. 25. 11 Cf. J. F. G. Powell, “Cicero’s tranlations from the Greek” (1995), p. 278: “In all, Cicero’s comments on translation are simply not enough on which to base the attribution of a particular ‘theory of translation’ to Cicero himself or his contemporaries, and the ancient evidence as a whole is not enough on which to make far-reaching speculations about changes in attitudes to translation in general”. 12 As passagens de Cícero apontadas e comentadas por Powell têm em comum o fato de terem sido explicitamente declaradas pelo autor como “traduções”, como por exemplo: Tusculanae disputationes, I, 53; I, 97; III, 41; V, 34; V, 36; V, 100; Orat., 41; Leg., II, 45; Cato Maior, 79; De finibus, I, 68; II, 21 e II, 96. A listagem completa é mais extensa, e pode ser encontrada em: J .F.G Powell, op.cit., pp. 279-280. 8 9. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(5) Matheus Clemente De Pietro. 11. tradução” ciceroniana seria de consistência frágil, pois não há garantias de que nossas concepções de língua, método e autoria13 sejam compatíveis com as do autor. Apesar dessa limitação, algo pode ser depreendido acerca da concepção de tradução subjacente a textos antigos que a apresentam, e podemos caminhar com segurança se investigarmos não a hipótese de uma “teoria da tradução” de Cícero, mas sim um “projeto tradutório”, esboçado por passagens específicas e, de modo semelhante a Powell, analisado em seus contextos. A opinão quanto à presença de um projeto tradutório ciceroniano é compartilhada, por exemplo, por Lima14, em estudo dedicado aos cinco livros do De finibus, e Vieira, estudioso da obra ciceroniana De optimo genere oratorum15. Observaremos a seguir que Cícero efetivamente declara ter um projeto de elevação da cultura romana, e que a tradução é um dos meios que empregará para realizá-lo.. 1.2. O contexto das Letras romanas (litterae romanae) à época de Cícero Nas linhas iniciais do De finibus16, Cícero afirma que o projeto dessa obra é confiar às letras latinas (Latinis litteris mandaremus), e, por extensão, ao mundo romano, tópicos elevados da filosofia grega. Lima interpreta o prefácio ciceroniano ao De finibus como um projeto de educação17, em que o autor pretende “ilustrar” a filosofia em língua latina e, adicionalmente, tornar esse conhecimento acessível aos seus concidadãos, como se fosse uma espécie de serviço público (munus rei publicae). Concordamos com o estudioso, e destacamos que é significativo o fato de Cícero ter optado pela tradução como um dos instrumentos para o cumprimento dessa proposta. Em estudo exclusivo sobre a filosofia helenística, Long sente que deve incluir Cícero18 em sua discussão, e, após discorrer sobre a doutrina estóica nas obras de Panécio, Posidônio e Antíoco, escritas em grego, acrescenta uma seção sobre a influência e o pioneirismo de Cícero como transmissor do pensamento grego. Em observação final, o estudioso diz: O fato de que ele [sc. Cicero] escreveu em latim foi em si uma realização significativa, visto que ele teve de encontrar novos meios de expressar ideias para as quais o latim. Sobre autoria em Antiguidade clássica, um relato breve pode ser encontrado em D. S. Rocha, “Aspectos legais da tradução”, in Tradução e comunicação (1982), N. 2, pp. 121-125. 14 S. C. Lima, Aspectos do gênero dialógico no diálogo De finibus de Cícero (Tese de Doutorado; IEL/Unicamp), 2009. Cf., em especial, o Capítulo IV (“O projeto ciceroniano de formação de uma filosofia em latim”). 15 B. Vieira, “Cícero e seu projeto tradutório”, in Calíope (2006), n. 15, pp. 23-35. 16 Cf. De finibus, I, 1. 17 Cf. S. C. Lima, op.cit., pp. 197-198. 18 “It would be inappropriate to conclude this discussion of later developments in Hellenistic philosophy without further word about Cicero, whose writings provide us with so much of our evidence”. Cf. A. Long, Hellenistic philosophy (1974), p. 229. 13. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(6) 12. Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca. estava naturalmente mal equipado. Ele não conseguiu superar esse problema com sucesso completo, mas abriu o caminho para o posterior desenvolvimento do latim como uma língua filosófica altamente eficiente19.. Mediante a ênfase que Cícero dá ao caráter inaugural desse tipo de tradução em latim, patente não só pelo proêmio ao De finibus20, como também pelas passagens citadas abaixo, poderíamos imaginar que, até o momento, a sociedade romana teria preferência quase absoluta pela língua grega na discussão de temas filosóficos. Seria impróprio fazer tal suposição, visto que a produção escrita de textos filosóficos ocorria, em Roma anteriormente a Cícero, tanto em grego como em latim21. Um exemplo dessa tradição é De rerum natura de Lucrécio (sec. I a.C.), um poema filosófico que em latim apresenta a doutrina epicurista, de origem grega22. Essa observação, no entanto, não contradiz os estudiosos acima citados. O fato é que Cícero inovou não tanto na atividade de tradução, mas sim na forma como a expôs. Sirakova afirma que: As traduções de Cícero são bem diferentes das traduções de Lívio Andronico, Névio e Ênio. O propósito tradutório de Cícero é transferir os méritos artísticos dos textos, ou das idéias e conceitos dos autores. Fragmentos traduzidos23 nos oferecem a possibilidade de observar o modo com Cícero dá uma forma romana ao pensamento grego24.. Podemos acrescentar a isso os comentários de Powell, que nos exorta a não subestimar o caráter popularizante que as obras de Cícero tinham, e atribui esse efeito em parte ao formato de diálogo (no qual se inseriram cenários e personagens romanos, bem como exemplos da história de Roma), e, em parte, ao esforço ciceroniano de tornar a filosofia grega acessível ao público sem proficiência nessa língua25. Um possível fator significativo adicional à notoriedade de Cícero, não mencionado pelos estudiosos, poderia ser o extenso treinamento retórico do autor como escritor, atributo que conferiria aos seus textos um “valor” literário (se for possível dizêlo) maior do que os tradutores anteriores. De todo modo, segundo a hipótese levantada. 19 “The fact that he [sc. Cícero] wrote in Latin was itself a very considerable achievement, for he had to find new means of expressing ideas for which Latin was naturally ill equipped. He could not overcome this problem with complete success, but pioneered the way to the later development of Latin as a highly effective philosophical language”. Cf. A. Long, op.cit., (1974), p. 231. 20 Cf. De finibus, I, 1-4. 21 Sobre a atividade filosófica em Roma antes de Cícero. Cf. J.G.F. Powell, Cicero the philosopher (1995), pp. 1 - 35. 22 Note-se que, no primeiro livro se sua obra, Lucrécio destaca a probreza da língua latina (patrii sermonis egestas). Cf. Lucrécio, De rerum natura, I, 830 ff. Farrell interpreta a “pobreza” citada pelo autor como um recurso positivo e vantajoso ao latim. Cf. J. Farrell, Latin language and Latin culture (2001), pp. 49-51. 23 Na seqüência da passagem citada, a filóloga analisa uma tradução da Ilíada realizada por Cícero (De diuinatione, II, 63-64), e nela aponta recursos que o autor utiliza, em alguns momentos, para essa adaptação à cultura Romana. A passagem traduzida por Cícero toma como modelo a Iliada, II, 299-330. 24 “Cicero’s translations are quite different from Livius Andronicus’ ones, Naevius’ and Ennius’ translations. Cicero’s translating purpose is to transfer the artistic merits of texts or authors’ ideas and concepts. Translated fragments give us a possibility to observe the way Cicero gives Roman form to Greek thought”. Cf. S. Sikarova (1998), p. 81. 25 “Nor should one underestimate the factor of popularization for a Roman audience, catered for as much as by dialogue form with its roman characters and settings and as by the frequent examples from Roman history and the strenuous attempts to ‘teach philosophy to speak Latin’, for the benefit of readers whose knowledge of philosophical Greek might not have been extensive”. Cf. J. G. F. Powell, Cicero the philosopher (1995), p. 9.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(7) Matheus Clemente De Pietro. 13. por Powell, a abordagem tradutória ciceroniana seria em muitos aspectos diferente daquela presente em textos do período (a referida obra de Lucrécio, por exemplo, é um poema filosófico, assim como inúmeros outros semelhantes de sua época26). Em suma, Cícero teria inovado ao traduzir filosofia em prosa, e por traduzi-la com habilidade suficiente27 (satis eruditis). Cícero demonstra estar consciente de que sua ousadia poderia despertar os mais diversos tipos de crítica28. Destaca, em primeiro lugar (em todo o prefácio à obra De Finibus), o valor do estudo da filosofia29; na seção seguinte, enuncia uma segunda justificativa, adiantando-se ao momento em que deverá traduzir conceitos do grego para o latim. Observemos a última passagem: Consequentemente, é ainda mais difícil satisfazer aqueles que dizem desprezar os textos latinos. Nisto, surpreendo-me sobretudo pelo fato de que sua língua materna não lhes agrada em questões mais graves30, embora eles mesmos leiam de boa vontade peças latinas copiadas palavra por palavra do grego. Quem é que, quase hostil ao termo ‘romano’, desdenha da Medéia de Ênio31 ou da Antiôpa de Pacúvio32, ou as rejeita, porque diz que as peças de Eurípedes lhe agradam, embora deteste as letras33 romanas?34 (Cícero, De finibus, I, 2). O excerto acima nos permite depreender que, segundo Cícero, haveria resistência expressiva da sociedade romana a traduções de textos gregos que tratassem de temas graves35 (grauissimis rebus). Em sua dissertação, Kruck lembra que, além dessa passagem, Cícero menciona também em outros momentos certo grupo de romanos que estimaria mais a língua grega do que a latina, nomeadamente em De finibus (III, 5) e em Academica (4-12)36. No contexto da passagem citada, o atributo grauis se refere a obras solenes, “não dadas à frivolidade” (OLD37, sentido 12), e que merecem respeito e autoridade (sentido 13). Lima38, ao comentar a expressão, esclarece que não se trata apenas de “assuntos mais. 26 27. Cf. H. Bardon, La Littérature latine inconnue, I, 335, nota 67; e J. G. F. Powell, op. cit. , p. 27. Para a crítica de Cícero quanto à qualidade da exposição escrita da filosofia em latim, cf. Cícero, Tusculanae disputationes, I,. 6. 28 Cf. De finibus, I, 1: Non eram nescius, Brute, cum quae summis ingeniis exquisitaque doctrina philosophi Graeco sermone tractauissent, ea Latinis litteris mandaremus, fore ut hic noster labor in uarias reprehensiones incurreret (“Eu não ignorava, Bruto, que, ao confiar às letras latinas as coisas que em língua grega trataram os filosófos com os maiores intelectos e mais refinadas doutrinas, este nosso nosso empreendimento sofreria múltiplas censuras.”). A idéia se encontra ao longo de todo o prefácio ao De finibus (I, 1-4). 29 De finibus, I, 1-5. 30 Grauis: Para considerações detalhadas sobre as implicações do uso do termo nesse contexto, cf. Lima, op.cit., p. 275. 31 Quinto Ênio (239 – 169 a.C.), poeta romano, frequentemente evocado por Cícero, sobretudo por suas obras historiográficas (Annales) e trágicas. 32 Marco Pacúvio (220 – 130 a.C.), era sobrinho de Ênio e, como o tio, escreveu obras em latim. 33 Litteras: No plural, o termo littera também pode ter a acepção de “literatura” (OLD, esp. Sentido 8). 34 Iis igitur est difficilius satisfacere qui se Latina scripta dicunt contemnere. In quibus hoc primum est in quo admirer, cur in grauissimis rebus non delectet eos sermo patrius, cum iidem fabellas Latinas ad uerbum e Graecis expressas non inuitii legant. Quis enim tam inimicus paene nomini Romano est, qui Enni Medeam aut Antiopam Pacuui spernat aut reiciat quod se iisdem Euripidi fabulis delectari dicat, Latinas litteras oderit? 35 Interpretação similar da passagem é encontrada em J. Kruck, Cicero as translator of Greek in his presentation of Stoic theory of action (2008), p. 23. 36 Cf. J. Kruck, op. cit., p. 24-25. Aqui, o autor afirma que esse grupo é personificado no personagem Varrão. 37 Oxford Latin Dictionary. 38 S. C. Lima, op.cit., p. 275.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(8) 14. Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca. importantes”, mas sim de tópicos que, entre os romanos, deveriam ser tratados com seriedade extrema (note-se o superlativo grauissimis; “das mais graves”). Na sequência da passagem, após uma praemunitio39 em que se considera a o fato de certos romanos desprezarem traduções latinas, Cícero diz: Discordo destes de tal maneira que, mesmo considerando que Sófocles tenha escrito Electra excepcionalmente bem, ainda assim acredito que devo ler a péssima tradução de Atílio40, alguém que, para Licínio41, era um ‘escritor de ferro42’. Mesmo assim, acredito que efetivamente é um escritor, e que deve ser lido43. (Cícero, De finibus, I, 1). A passagem nos mostra um outro aspecto da argumentação de Cícero: para o autor, a tradução tem mérito apenas por ser uma tradução para o latim, e Atílio, sendo um escritor44, deve ser lido. Kruck também interpreta a passagem como uma declaração de Cícero quanto à validade da leitura de más traduções45. Em verdade, nossa impressão é que também aqui o discurso de Cícero é mais amplo, indo vai além da mera consideração quanto à poesia (ali referida pela menção a Sófocles e Licínio), e toca a cultura romana como um todo. Dessa forma, uma tradução do grego para o latim, ainda que insatisfatória, deveria ser lida pelo fato de contribuir para a valorização da cultura romana. Os parágrafos seguintes parecem corroborar essa interpretação: De fato, não ser minimamente versado (rudem... esse) em nossos poetas (nostris poetis) demonstra ou uma indolência das mais incorrigíveis, ou uma aversão das mais frívola. Sob o meu ponto de vista, ninguém deve ser considerado satisfatoriamente erudito se não conhecer o que é nosso (nostra). Se lemos ‘Quiçá na floresta não... 46’ sem a considerar em nada inferior à sua contraparte grega, por que também não hão de nos agradar que sejam desenvolvidas em latim as palavras discutidas por Platão sobre como viver bem e feliz? Que tal se nós não cumprirmos a função de um tradutor (interpretum), mas preservarmos (tuemur) as palavras ditas por quem nós aprovamos, e anexarmos a elas nossa47 opinião (iudicium) e nossa disposição de escrita (scribendi ordinem)? Sob qual fundamento eles colocariam os gregos acima daquilo que não apenas. 39 Praemunitio é o recurso retórico em que o autor apresenta uma suposta objeção a fim de refutá-la em seguida e, assim, reforçar seu argumento. 40 Não temos registros sobre a vida de Atílio. 41 Provavelmente se refere ao poeta Pórcio Licínio (c. século II a.C.), 42 Ferreum: Ainda não está claro para nós o significado exato da crítica à escrita de Licínio. J. Martha, tradutor da edição Les Belles Lettres, verte a passagem como “Si celui-ci est, selon l’expression de Licinius, un ”écrivain de fer”, c’est malgré tout, à mons sens, un écrivain, et il faut le lire.”; Rackham, tradutor da Loeb, o faz por “‘An iron writer’, Licinius called him; still, in my opinion, a writer all the same, and therefore deserving to be read”. Lima traduz de forma um pouco diferente: “A respeito de quem disse Licino: ‘escritor de ferro; todavia, penso que é, na verdade, um escritor que se deve ler’”. 43 A quibus tantum dissentio, ut cum Sophocles vel optime scripserit Electram, tamen male conuersam Atili mihi legendam putem, de quo Licinius ‘ferreum scriptorem’, uerum, opinor, scriptorem tamen, ut legendus sit. 44 O termo usado é scriptor, que na passagem pode ter as acepções de “escriba”, “copista” (OLD, sentido 1. b), ou “escritor de obras literárias” (OLD, sentido 3. a). 45 Cf. J. Kruck, op.cit., p. 36: “He believes that even poorly written translations (mala conuersa) of Greek plays are worth reading (Fin. 1.5)”. 46 Trata-se de excerto da Medéia de Ênio. A frase completa é: “Quiçá na mata de Pélio, cortados por machados, não tivessem caído por terra troncos de pinheiro.” (Utinam ne in nemore Pelio securibus caesa cecidesset abiegna ad terram trabes). Na versão grega, de Eurípedes, consta: Méd’ en nápaisi Pelíon pesêin pote tmethêisa peúke. 47 Nostrum/nostrum: o contexto indica que, nessa passagem, o possessivo se refere a todo o povo romano: Cícero já havia utilizado o “nosso” para se referir à literatura romana, no parágrafo anterior, e a própria argumentação do texto sugere que ele estaria propondo um certo método de tradução romano (ou mesmo uma reavaliação das convenções tradutórias de Roma).. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(9) Matheus Clemente De Pietro. 15. está escrito de forma magnífica, mas que também não é uma simples tradução (conuersa) do grego?48 (Cícero, De finibus, I, 5-6; grifos nossos). Observemos, portanto, que, no excerto citado, Cícero destaca a necessidade de se estimar a cultura romana, inicialmente por meio uma exortação a um maior conhecimento da produção nacional (com o exemplo de Ênio), e, logo após, através de uma proposta de educar a sociedade tornando mais acessíveis idéias gregas de grande peso filosófico (com a referência a possíveis e bem escritas adaptações de Platão para o latim), seja devido à tradução para o latim, seja devido aos comentários e adaptações (“romanizantes”) a serem acrescidos pelos autores romanos. Interessante é notar que a escolha da origem dos textos a serem traduzidos não é indiferente. Sem entrar no mérito da complexa imagem que os romanos coevos a Cícero faziam da cultura grega, o fato é que do texto se depreende que a mera comparação (que o processo tradutório possibilitaria) de Roma com a Grécia também teria o efeito de elevar a cultura romana. Kruck esclarece a questão com seu exemplo, quando comenta que seria improvável que Cícero comparasse Roma com outra nação, como a Gália49. Além disso, encontramos nesse texto um indício do projeto ciceroniano de tradução: como se pode ler, o autor indica que não se limitará a traduzir os textos (nos non interpretum fungimur munere), mas fará algo a mais: mantendo o sentido original aprovado (sed tuemur ea quae dicta sunt ab iis quos probamus), acrescentará o ponto de vista romano (nostrum iudicium) e a disposição do discurso na língua latina (nostrum scribendi ordinem). Lima50 considera que iudicium denota a ação de decidir sobre que argumentos utilizar em um discurso. Ainda para o estudioso, ordinem scribendi se refere à disposição dos elementos no discurso (dispositio), uma das preocupações do gênero da oratória51. Dessa forma, ao se recusar a “apenas traduzir”, Cícero deixa implícito que não ocupará um papel passivo em relação à recepção da cultura grega. Contrariamente, ele sugere que, além da mera versão das palavras de uma língua para outra, acrescentará a opinião e a ordem latina de disposição dos elementos discursivos. Seu argumento final corrobora sua proposta: ao fazer algo além de uma simples tradução (conuersa de Graecis), e ao fazê-lo em uma linguagem refinada, ele estará se colocando no mesmo patamar dos gregos.. 48 Rudem enim esse omnino in nostris poetis aut inertissimae segnitiae est aut fastidi delicatissimi. Mihi quidem nulli satis eruditi uidentur quibus nostra ignota sunt. An “Vtinam ne in nemore” nihilo minus legimus quam hoc idem Graecimi, quae autem de bene beateque uiuendo a Platone disputata sunt, haec explicari non placebit Latine? [6] Quid si nos non interpretum fungimur munere, sed tuemur ea quae dicta sunt ab iis quos probamus, eisque nostrum iudicium et nostrum scribendi ordinem adiungimus? Quid habent cur Graeca anteponant iis quae et splendide dicta sint neque sint conuersa de Graecis? (Cícero, De finibus, I, 5-6; grifos nossos). 49 Cf. J. Kruck, op. cit., p. 26. 50 Cf. S. C. Lima, op. cit., 2009, p. 276. 51 Lima traduz a passagem como: “Se (…) a isso acrescentarmos nosso julgamento e nossa forma de escrever (...)”. Cf. S. C. Lima, op. cit., 2009, p. 276. Cf. S. C. Lima, op. cit., 2009, p. 250.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(10) 16. Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca. Embora seja evidente que Cícero está justificando o método adotado em seu livro e antecipando possíveis críticas, o uso do pronome na primeira pessoa do plural, em posição de destaque (Quid si nos...), parece-nos ir além do “plural autoral”: é possivel que ele possa estar se referindo aos romanos como um coletivo, e, da mesma forma, recomendando que seu exemplo fosse seguido por seus conterrâneos. Corrobora com nossa interpretação o fato de que, sem dúvida, o uso do pronome possessivo, em parágrafos anteriores e posteriores, em caráter nacionalista (nostra) e, sobretudo, no prefácio à obra (cf., por exemplo, nostrum iudicium e nostrum scribendi ordinem, na seção I, 1), ao menos permite uma leitura nesse sentido – isto é: que Cícero pode ter como interlocutores o “romano” (como indivíduo ou como povo). Sabemos hoje que o esforço de Cícero foi efetivamente um grande auxílio à formação da identidade cultural romana. Marouzeau52 denominou esse empreendimento de “conquista do abstrato”, e, comentando a definição apresentada pelo estudioso, Powell assevera com uma imagem militar que a expansão do vocabulário latino realizada por Cícero “foi um ataque deliberado ao território cultural que até então tinha sido ocupado pelos gregos53”. A esse esforço certamente contribuíram outros autores, como o contemporâneo Lucrécio, citado anteriormente. A tradução, ou melhor, a aemulatio por esta proporcionada54 seria a arma utilizada pelos romanos para essa conquista. O próprio Júlio César, segundo nos conta Plínio55, teria enaltecido Cícero com a frase: “As fronteiras romanas foram estendidas mais pelo intelecto do que pelo poder bélico56” – de fato um grande elogio por parte de um general responsável pela conquista militar da Gália. Já F. Nietzsche57 parece se indignar com a atitude, e afirma: Pode-se avaliar o grau do sentimento histórico que permeia uma época pelo modo como esta época faz traduções, e como procura incorporar a si mesma épocas e livros passados. (...) De fato, naquele período [sc. período clássico romano], quando se traduzia, dominava-se58.. Na argumentação que se segue ao excerto citado, Nietzsche procura demonstrar que a atividade tradutória romana teria uma função – ou efeito – similar ao da conquista bélica, de forma que o autor da obra original seria posto em segundo plano e o texto traduzido seria adaptado à cultura e atualidade romanas.. Cf. J. Marouzeau, Quelques aspectes de la formation du latin littéraire, p. 105-124. Cf. J. G. F. Powell, op.cit., p. 290. 54 A aemulatio consiste na imitação que visa a superação do original. 55 Cf. Plínio, Naturalis Historia, VII, 117. 56 Plus est ingenii romani terminos (...) promouisse quam imperii. 57 F. Nietzsche, F. Die fröhliche Wissenschaft, II, 83. 58 “Man kann den Grad des historischen Sinnes, welchen eine Zeit besitzt, daran abschätzen, wie diese Zeit Übersetzungen macht und vergangene Zeiten und Bücher sich einzuverleiben sucht. (...) In der That, man eroberte damals, wenn man übersetzte”. 52 53. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(11) Matheus Clemente De Pietro. 17. Cabe ressaltar, como indica Vieira59, que na Antiguidade a distinção entre próprio e alheio era tênue não só no processo de tradução, mas também na produção e recepção de textos escritos na mesma língua60, de forma que o argumento de Nietzsche perde um pouco de sua intensidade e soa anacrônico. Ainda assim, ele se mantém parcialmente válido: na passagem do De finibus acima mencionada, Cícero deixa entrever que as obras gregas devem ser “assimiladas” pela cultura romana, a fim de que esta seja, por meio delas, valorizada. J. Martha, em prefácio a sua tradução ao De finibus, comenta que a obra faz parte de um projeto de popularização filosófica, que já vemos mencionado em De diuiniatione61, e que seu renome literário em muito se dá pelo difícil feito de ter desenvolvido a expressão latina adequada a tantas idéias novas para Roma 62. As passagens acima nos permitem vislumbrar o contexto tradutório romano no século I a.C., sob o ponto de vista ciceroniano, e a partir dele apresentarmos algumas considerações sobre a atividade da tradução. Prosseguindo na exposição, observaremos a seguir a tradução como prática textual, atentando ao modo como o próprio Cícero verteu e como lidou com o trabalho do tradutor. Limitaremos nossa exposição a dois recursos constantes das práticas tradutórias, que, explícitos em Cícero, encontram reflexo em Sêneca e podem nos auxiliar na compreensão de seu modo de transmitir a filosofia estóica.. 2.. CARACTERÍSTICAS E SEMELHANÇAS DOS MÉTODOS DA PRÁTICA DE TRADUÇÃO DE CÍCERO E SÊNECA Embora em momento algum os escritos de Cícero nos ofereçam um método definitivo ou um conjunto exaustivo de regras para a tradução, é possível encontrar reflexões do autor sobre os procedimentos que ele próprio utilizaria em suas traduções. Os excertos que selecionamos de tais comentários se dão no contexto da versão de textos filosóficos gregos, e usualmente se apresentam como propostas de se contornar ou superar as dificuldades de transmissão dos conceitos elaborados em grego para a língua latina. É interessante notar, como veremos abaixo, que alguns desses procedimentos de Cícero encontram correspondência em Sêneca, em passagens que, também como as ciceronianas, tratam da tradução e da exposição de idéias gregas.. B. Vieira, op.cit., p. 24. Embora os limites de autoria não sejam precisos, eles, de fato, existiram na época. É verificável que alguns escritores romanos se preocuparam em distinguir a tradução “fiel” da tradução “livre”, por vezes atribuindo valor a elas de acordo com a função que ocupam. Cf., por exemplo, Horácio, Ars poetica, 131-134. Para a passagem comentada sobre essa perspectiva, cf. M. Furlan, op.cit., pp. 23-24; e B. Vieira, op.cit., pp. 24-25. 61 As passagens citadas pelo autor são De diuinatione, II, 1, 1-8; Acad. I, 3, 10 ff.; e Tusc.V, 2, 5. 59 60. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(12) 18. Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca. 2.1. Privilegiar o sentido acima da forma O terceiro livro de De finibus tem o estoicismo como tema central. O texto é escrito em forma de diálogo, fictício, mas nele Cícero toma Catão o Jovem, personagem histórico (95 – 46 a.C.), como interlocutor. Veja-se, portanto, que Cícero nomeia um membro da elite romana para expor tal doutrina, em vez de invés de optar por usar como personagens representantes iniciais gregos (como Zenão, Cleantes e Crisipo), ou mesmo Posidônio, que, embora fosse um estóico ilustre nos séculos II e I a.C. (e mestre do próprio Cícero em 78 a.C.), era de ascendência síria. Um efeito dessa escolha pelo personagem mencionado certamente teria sido produzir familiaridade no leitor romano, e, por assim dizer, reduzir o “tom helênico” ou estrangeiro das questões ali tratadas. Por outro lado, há a auctoritas (“prestígio”; “reputação”) própria de um personagem da estatura de Catão, cuja probidade era reconhecida por todos. Conscientes do cenário em que o diálogo se desenrola, vejamos, então, as passagens relevantes. Comecemos por uma fala do personagem Catão: Pois se foi permitido a Zenão que, quando descobrisse alguma coisa incomum, também atribuísse àquela coisa um nome novo, por que não seria permitido o mesmo a Catão? Entretanto, tampouco deverá haver a obrigação de que a palavra seja traduzida literalmente63 - como os tradutores (interpretes) inaptos costumam fazer -, quando houver uma palavra mais comum signifique a mesma coisa. Quanto a mim, quando não consigo verter uma palavra grega por outra <latina>, costumo explicá-la por meio de várias. Ainda assim, julgo que deve ser concedido a nós que utilizemos uma palavra grega, se ocorrer de poucas estarem disponíveis em latim64. (Cícero, De finibus, III, 15). A citação é relevante por nos apresentar, de forma resumida, alguns métodos que Cícero efetivamente usará na tradução de textos estóicos. É a fim de se autorizar a criar neologismos para conceitos até então inexistentes em latim que Cícero, por meio de seu personagem Catão, evoca o nome do fundador do estoicismo (Zenão de Cício, 334 – 262 a.C.), que se teria estabelecido em Atenas por volta do século III a.C. No entanto, da passagem acima, inferem-se limitações para tal prática tradutória: •. em primeiro lugar, o termo da língua alvo não deve ser um reflexo literal de sua contraparte grega, pois isso demonstraria pouca eloquência (nec tamen exprimi uerbum e uerbo necesse erit, ut interpretes indiserti solent).. •. além disso, quando uma tradução é impossível, devem-se utilizar várias,. Cf. J. Martha, p. II: Le De finibus fait partie d’un programme de vulgarization philosophique, dont nous avons l’énoncé dans Le De diuinatione. (…) Sa renommée littéraire d’ailleurs a tout à gagner dans l’entreprise difficile, et partant méritoire, qui consiste à trouver, pour tout un monde d’idées nouvelles à Rome, l’expression latine adéquate.” 63 Exprimi uerbum e uerbo: a expressão já foi usada por Cícero no início do livro I (cf. supra), para denotar a tradução “palavrapor-palavra”, e também ali tem caráter depreciativo. 64 Si enim Zenoni licuit, cum rem aliquam inuenisset inusitatam, inauditum quoque ei rei nomen imponere, cur non liceat Catoni? Nec tamen exprimi uerbum e uerbo necesse erit, ut interpretes indiserti solent, cum sit uerbum quod idem declaret magis usitatum; equidem soleo etiam, quod uno Graeci, si aliter non possum, idem pluribus uerbis exponere. Et tamen puto concedi nobis oportere ut Graeco uerbo utamur, si quando minus occurret Latinum. 62. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(13) Matheus Clemente De Pietro. 19. de forma que, em conjunto, apontem para o sentido original grego (quod uno Graeci, si aliter non possum, idem pluribus uerbis exponere). Convém notar, como Lima esclarece, que aqui pode-se designar o procedimento da tradução de uma palavra grega por perífrase latina65. •. Por fim, quando diversas palavras não puderem ser empregadas por deficiência do léxico latino, será apropriado manter o termo grego66 (Et tamen puto concedi nobis oportere ut Graeco uerbo utamur, si quando minus occurret Latinum).. A “originalidade” linguística de Zenão já havia sido referida por Cícero no início do livro III, quando afirmara que “dentre todos os filósofos, os estóicos foram os que inovaram em mais aspectos, e Zenão, seu fundador, foi não tanto um inventor de novas idéias, mas sim de novas palavras67”. A passagem é comentada por Lima68, em seu estudo sobre o De finibus: Eis um parágrafo importantíssimo para que possamos discutir o modus operandi de Cícero como tradutor da terminologia filosófica grega. Inicia-se com uma defesa do uso de neologismos (...), algo que, no âmbito do discurso oratório, nosso autor não aceitava e nem empregava comumente. (...) A seguir, faz-se uma crítica a tradutores, pouco hábeis na arte de verter, que traduziriam um texto palavra por palavra.. Aqui, como em passagem anteriormente vista (Cícero, De finibus, I, 5-6), o vocábulo utilizado por Cícero para designar o tradutor é interpres, que teria em latim um sentido mais preciso do que tem para nós o termo “tradutor” (OLD, sentido 4). É inquestionável que, no contexto da passagem, o termo designa a versão que privilegia a obra modelo, resultando em uma tradução literal. No âmbito da história da tradução, convencionou-se que não só o referido termo (interpres), mas também o verbo a ele associado (interpretari), seriam termos técnicos latinos que indicariam a tradução produzida dessa forma, nomeadamente, com ênfase no modelo69. De maneira oposta, é também comum se afirmar que uertere (igualmente: conuertere, transuertere e imitari) designariam traduções que privilegiariam o texto final (de forma que, se for possível dizermos, esta seria uma tradução menos “colada” à obra de partida). Traina acrescenta que uertere denota a ação de “traduzir competindo com o modelo”, e é bastante comum em textos artísticos (como epopéias e peças de teatro)70. Caso essa distinção se confirme, ela nos permite depreender, a partir da afirmação de Cícero no excerto acima comentado, que a fidelidade ao conteúdo da obra original. Cf. S. C. Lima, op. cit., pp. 456-458. Como por vezes faz Lucrécio em De rerum natura. 67 (...) ex omnibus philosophis Stoici plurima nouauerunt Zenoque eorum princeps non tam rerum inventor fuit quam uerborum nouorum. Cf. Cícero, De finibus, III, 2. A característica não é um elogio, como se tornará evidente no livros seguintes do De finibus. Não é insensato supor que Cícero estaria exaltando a criatividade linguística de Zenão a fim de tornar patente a ausência de originalidade filosófica do estóico e de seu sistema de pensamento. 68 S. C. Lima, pp. 456-457. 69 Cf. Traina, 1974, p. 58; M. Furlan, op. cit., p. 13; e B. Vieira, op.cit., pp. 27-28. O Oxford Latin Dictionary não prevê esse sentido. 70 Cf. Traina, 1974, p. 64; M. Furlan, op. cit., p. 13; e B. Vieira, op.cit., pp. 30-31. 65 66. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(14) 20. Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca. (indicada pelo vocábulo interpres) poderia ser prejudicada pelo excessivo apego ao aspecto formal ou etimológico da palavra, por parte do tradutor. Uma ressalva deve ser feita quanto à interpretação de tais palavras: embora a diferenciação dos vocábulos interpretari e uertere (e correlatos) esteja bastante difundida no meio acadêmico, e, como mencionamos em nota, presente em algumas publicações recentes, há estudiosos que a consideram infundada. Powell, por exemplo, diz que esse contraste não parece ter fundamento nas fontes antigas71. Não entraremos no mérito da discussão acerca da definição exata de interpretari e uertere em toda a obra de Cícero, menos ainda na literatura romana. Por ora, é importante destacar que, ao menos na passagem citada (De finibus, III, 15), até mesmo Powell (que recusa a validade de tal dicotomia interpretari/uertere em termos gerais) concorda que interpretes se refere, ali, à tradução literal72. Consequentemente, pode-se inferir que, em relação à tradução de conceitos filosóficos gregos, Cícero consideraria mais adequado preservar a matéria do original, colocando a semelhança formal em segundo plano. Dessa forma, os três métodos propostos por Cícero73 na referida passagem demonstram uma preocupação em manter o sentido do conceito grego, cuidado que se torna patente em todos os momentos do livro III em que Cícero oferece uma tradução latina para o grego. A preferência pelo sentido, que está implícita na passagem acima, é indicada de forma mais precisa em outros dois trechos de Cícero. Em Academica, I, 10, o autor elogia o fato de os tragediógrafos romanos “terem reproduzido não as palavras, mas a essência dos poetas gregos” (non uerba sed uim Graecorum expresserunt poetarum). Também em De optimo genere oratorum (§ 14), Cícero diz que não se empenhará em traduzir palavra por palavra (non uerbum pro uerbo necesse habui reddere), mas que “preservará a variedade74 e o sentido de cada palavra” (genus omne uerborum75 uimque seruare)76.. Powell é contrário a essa dicotomia, e aceita o uso ciceroniano de interpretari (e similares) como referência legítima à tradução literal em apenas duas passagens (De finibus, III, 15, e De legibus, II,45), afirmando que nos outros momentos Cícero usa o termo interpres para se referir a tradutores em geral, sem especificação quanto ao compromisso com o texto de partida. O estudioso também discorda das definições de uertere e conuertere apresentadas acima, argumentando que elas originalmente não envolveriam qualquer ênfase em termos de precisão ou liberdade da tradução. Cf. J. G. F. Powell, op.cit., pp. 277-278. 72 Cf. J. G. F. Powell, op.cit., p. 278. 73 Isso é: a) tentar verter o grego por um equivalente latino; b) explicar o sentido do termo original por meio diversas palavras latinas; e c) não traduzir. 74 Genus: o termo também poderia ser traduzido por “particularidade” (OLD, sentidos 9 e 11). 75 O “espírito das palavras” (genus uerborum) se refere à capacidade que o vocábulo de partida tem de produzir um determinado efeito. Cícero, então, tentaria reproduzir esse efeito. Cf. Jerônimo, Carta a Pamáquio, sobre os problemas da tradução p. 83, nota 34. 76 Conuerti... sententiis isdem et earum formis tamquam figuris, uerbis ad nostram consuetudinem aptis. In quibus non uerbum pro uerbo necesse habui reddere, sed genus omne uerborum uimque seruaui. (Cícero, De optimo genere oratorum, 14). 71. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(15) Matheus Clemente De Pietro. 21. Procedimento semelhante é observável em Sêneca. Assim como Cícero, o filósofo cordobês considera que a tradução deve transmitir a “essência” do termo original, e não sua “forma”. Podemos entrever isso nos excertos transcritos abaixo. O primeiro é parte do diálogo De tranquillitate animi (“Sobre a tranquilidade da alma”), em que Sêneca demonstra seu posicionamento acerca da tradução literal de conceitos gregos, ao argumentar em favor de sua versão de euthýmia (em grego) por tranquillitas (em latim): Pois não é necessário imitar e transcrever as palavras em sua forma (formam): deve-se atribuir um outro nome para o mesmo conceito sobre o qual se está discorrendo, que deve ter o sentido (uim)77 da denominação grega, mas não sua aparência (facies)78. (Sêneca, Tranq. anim., II, 2). A mesma idéia se encontra em De uita beata (“Sobre a vida feliz”), argumentando em favor das múltiplas definições que oferece ao supremo bem estóico: “É válido, caso se deseje divagar79, traduzir a mesma coisa nesta e naquela face mantendo preservada e íntegra sua força (potestate)80.” (Sêneca, De uita beata, IV, 3) Ora, o que essa ênfase no sentido, em detrimento da palavra, nos mostra? E em que aspectos ela afeta a leitura e o estudo das obras de ambos os autores? Primeiramente, sabemos que transmitir a “essência” original não é uma questão simples. Muitos dos termos filosóficos gregos foram utilizados a partir de seu emprego comum, resultando em associações difíceis81 ou praticamente impossíveis82 de se reproduzir mais diretamente em outro contexto cultural. Sendo assim, muitos desses termos, embora efetivamente carreguem uma acepção técnica, também trazem consigo sentidos mais cotidianos, mais concretos, da palavra. Por vezes, os sentidos periféricos do termo contribuem para o seu sentido técnico, e, quando isso ocorre, a tradução não pode dar conta de todos, resultando em falha na transmissão completa da idéia original. Não se trata da mera impossibilidade de encontrar equivalência exata do termo traduzido (dificuldade natural à tarefa da tradutor), mas de uma perda maior, que muitas vezes descaracteriza o argumento original. Powell83 ilustra a questão comparando o projeto ciceroniano de tradução (do grego ao latim) com a tentativa de filósofos ingleses e norte-americanos de traduzir Derrida (do francês ao inglês). A semelhança de Derrida com os filósofos gregos, segundo o estudioso, reside em grande parte no uso inovador da. 77 Vim: nessa passagem, o vocábulo uis também pode ser traduzido por “essência” (OLD, sentido 17) ou “significado” (OLD, sentido 18). 78 Nec enim imitari et transferre uerba ad illorum formam necesse est: res ipsa de qua agitur aliquo signanda nomine est, quod appelationis graecae uim debet habere, non facies 79 Essa consiste na segunda parte da exposição de Sêneca: primeiro disse que uma idéia poderia ser expressa de forma concisa, e agora afirma que pode ser discorrida longamente (euagari). 80 Licet, si euagari uelis, idem in aliam atque aliam faciem salua et integra potestate transferre. 81 Cf., por exemplo, phýsis (“natureza”; “aquilo que cresce”), que deriva parte de seu sentido filosófico do verbo phyô (“crescer”; “produzir”, em especial no âmbito das plantas). Cf. G. Naddaf, The Greek concept of nature, pp. 11-12. 82 Cf., por exemplo, a expressão “Embora o nome do arco (biós) seja “vida” (bíos), sua tarefa é a morte.” (Biós tôi tózoi ónoma bíos érgon dè thánatos), de Heráclito (DK 48). Cf. Robinson, Heraclitus, pp. 111-112. 83 Cf. J. G. F. Powell, Cicero’s translation from the Greek, p. 300, nota 56.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(16) 22. Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca. terminologia, cujo sentido deriva, em grande parte, de particularidades semânticas das palavras francesas84, embora também requeira que se leve em consideração todos os outros recursos significantes dos quais as palavras são constituídas. Um exemplo desse fenômeno é o conceito estóico de homología (por ora traduzido como “harmonia”). O sentido vulgar, em grego, deriva do verbo homologêo (“concordar”) e aponta para uma “concordância” e “assentimento”(LSJ85), podendo designar tanto “um acordo entre duas pessoas” ou “uma conformidade entre dois objetos”, como também o estado de paz social que caracteriza a ausência de guerra (LSJ). A escola estóica emprega essa palavra (homología) como termo técnico para designar seu bem supremo86, a “harmonia”, e, com isso, aos seus sentidos cotidianos acrescenta o filosófico e o etimológico87. Homologia é a palavra que designa o conceito específico, o qual envolve a “harmonia” estóica em diversos níveis (social, pessoal, temporal, etc.), de maneira similar aos múltiplos sentidos de “concordância” que o termo já teria em sua acepção vulgar. Quanto ao referido aspecto etimológico, a palavra homología (“harmonia”) favorece a definição estóica (grega) do conceito88, pois consiste no prefixo homo(significando “o mesmo”) justaposto a -log- (de lógos, significando “Razão”) – literalmente, poderia ser traduzido por “a qualidade de ter a mesma Razão”. A “harmonia”, para os estóicos, se fundamenta em seguir a Razão (lógos) do universo89. Por esse motivo, a referida palavra grega tem como efeito adicional expressar tal axioma morfologicamente. Como, então, seria possível traduzir a palavra homología? Se Cícero e Sêneca procuram manter o sentido90 (uis, genus, potestas) do conceito original, como seria possível expressar em latim os elementos que, em grego, contribuem para o significado filosófico do termo? Os próprios autores indicam que a proposta seria cumprida, ao menos em parte, por uma certa uariatio, isso é, pela tradução da mesma idéia por termos diferentes91.. À guisa de exemplo, cf. J. Derrida; Venuti, L.,“What is a ‘relevant’ translation?”, In: Critical Inquiry, pp. 174-200. Greek-English Lexicon. 86 Cf. sobretudo LS 63A (= SVF, III, 16; Estobeu, II, 77, 16-27), 63B (= Estobeu, II, 75, 11-76, 8) e 63C (Diógenes Laércio, VII, 87-89). 87 Tal como propõe M. Pohlenz, Die Stoa, vol. I, p. 116. 88 Cf. A. A. Long & D. N. Sedley, Vol. II, p. 390. 89 Cf. LS 63B, 1 (= Estobeu, II, 75, 11-13). 90 Mais especificamente, “sentido” se refere à “intensidade” (uis); “força” (potestas); ou “nobreza”, “estilo” e “característica” do vocábulo original (genus). Cf. Oxford Latin Dictionary. 91 Cf. OLD; Lausberg. O recurso também parece ser referido por Quintiliano, em Institutio oratoria, X, 2, 1. 84 85. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(17) Matheus Clemente De Pietro. 23. 2.2. Variatio Na passagem acima citada (De finibus, III, 15), Cícero havia mencionado que, quando uma palavra grega não tivesse equivalente latino que o representasse com exatidão, o uso de múltiplos termos seria um procedimento apropriado. Embora, com isso, resulte faltar ao texto traduzido a concisão do original, o recurso transmitiria o sentido deste ao permitir que o leitor apreciasse as nuanças que o termo grego carregaria. Em latim, nuanças desse tipo são apresentadas por meio de vocábulos que destacam um ou outro de seus aspectos. Esse método é apresentado por Cícero de forma clara em De finibus (III, 15)92: “Quanto a mim, quando não consigo verter uma palavra grega por outra latina, costumo explicar por meio de várias93. O parágrafo anterior trata da mesma idéia, quando Cícero discute a múltipla nomeação que determinado conceito estóico recebe: Se a virtude é uma só, se é um só isto que você denomina ‘excelente’, ‘honesto’, ‘louvável’ e ‘apropriado’ (pois será mais bem conhecido qual seja, se for designado por muitas palavras que apontem para a mesma coisa), digo, se isto, portanto é o único bem, o que você terá, além dele, para que persiga? Ou se nada é um mal, exceto o que é ‘vergonhoso’, ‘desonroso’, ‘inapropriado’, ‘corrupto’, ‘calamitoso’, e ‘indecente’ (para o tornarmos notório por meio de muitos nomes) – o que mais dirá que deve ser evitado?94. (Cícero, De finibus, III, 14; grifos nossos). Em contexto que indica a definição de um conceito estóico grego, Sêneca defende o mesmo procedimento: É mais seguro apresentar muitas, a fim de que uma única definição não envolva um aspecto insuficiente e, por assim dizer, arruíne a formula95. (Sêneca, De clementia, II, 3, 1). E: É possível definir o nosso bem96 ainda de uma outra forma, isto é: a mesma idéia expressa por meio de outras palavras (...) Conseqüentemente, será o mesmo se disser: ‘o bem supremo é a alma que desdenha dos eventos fortuitos e se entusiasma com a virtude’ ou ‘é uma força insuperável da alma, hábil em quaisquer situações97, extremamente serena no trato com a humanidade e nos cuidados com sua conduta98’. (Sêneca, De uita beata, IV, 1-2; grifos nossos). As passagens citadas nos informam, portanto, que tanto Cícero como Sêneca aceitariam a uariatio como recurso que conferiria maior exatidão à definição de um. Referido por nós acima. Equidem soleo etiam, quod uno Graeci, si aliter non possum, idem pluribus uerbis exponere. Et tamen puto concedi nobis oportere ut Graeco uerbo utamur, si quando minus occurret Latinum. (Cícero, De finibus, III, 15) 94 Si una uirtus, unum istud, quod honestum appellas, rectum, laudabile, decorum - erit enim notius quale sit pluribus notatum uocabulis idem declarantibus -, id ergo, inquam, si solum est bonum, quid habebis praeterea, quod sequare? Aut, si nihil malum, nisi quod turpe, inhonestum, indecorum, prauum, flagitiosum, foedum - ut hoc quoque pluribus nominibus insigne faciamus -, quid praeterea dices esse fugiendum? 95 Plura proponere tutius est, ne una finitio parum res comprehendat et, ut ita dicam, formula excidat. Cabe lembrar que formula também pode significar “um sistema de ensino” ou “um estatuto governamental” (OLD, sentido 3). 96 Entenda-se, aqui, o “bem supremo” conforme definição da escola estóica. 97 A passagem é de difícil interpretação. Costa traduz por “with practical experience of life”; Basore por “wise from experience”. 98 Potest aliter quoque definiri bonum nostrum, id est eadem sententia non isdem uerbis (...) [2] Idem itaque erit si dixero“summum bonum est animus fortuita despiciens uirtute laetus” aut “inuicta uis animi, perita rerum, placida in actu cum humanitate multa et conuersantium cura”. 92 93. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

(18) 24. Considerações sobre a presença e a prática da tradução em excertos selecionados de Cícero e Sêneca. conceito, e, de igual maneira, que esse mesmo procedimento poderia ser utilizado em caso de dificuldade na tradução de palavras gregas. Observar o modo como ambos os autores tratam esse recurso responde à pergunta que fizemos anteriormente, acerca da possibilidade de se transportar ao latim as nuanças semânticas e etimológicas de um conceito filosófico grego. É o que se verifica ocorrer com o grego homología, nosso exemplo anterior. Em De finibus, III, 21, Cícero (por meio do personagem Catão) o traduz por conuenientia (“convergência”), mas ao longo de seu texto, no mesmo livro III, utiliza outros vocábulos para se referir à mesma idéia99, cada qual destacando um ou outro elemento contido no conceito original. Observa-se que, ao longo da exposição do sistema estóico, alude-se ao conceito pelo emprego dos verbos “consentir100”, “combinar”101, e “concordar”102. Sêneca apresenta esse mesmo conceito com variedade terminológica ainda maior. Além das traduções possíveis apresentadas por Cícero (estar de acordo; consentir; concordar; e combinar), Sêneca ainda oferece “soar junto” (consonare) e “soprar em uníssono” (conspirare). O emprego dessas palavras não é aleatório, e nosso estudo anterior103 sobre sua presença nas Cartas104 indicou que cada uma evidencia determinado aspecto do conceito estóico de homología: “consentir” (consentire), por exemplo, costuma remeter ao acordo que o estoicismo requer que exista entre a vontade do indivíduo e seu destino105, e “soar junto” (consonare) designa a harmonia entre elementos distintos dentro de um mesmo sistema, como as cordas de uma lira ou os pensamentos de um ser humano106. Portanto, constata-se que determinado termo técnico, que em grego podia transmitir todo seu campo semântico por meio de uma única palavra, poderá ser encontrado expresso no latim de Cícero e Sêneca por diferentes vocábulos e perífrases, que, não pontualmente, mas em conjunto, apontariam para o sentido original. Em outras palavras, dando continuidade ao nosso exempo, a tradução ciceroniana pela perífrase “organização das ações que devem ser realizadas”107 não anuncia o conceito grego de homología em sua totalidade, mas uma parte deste. Em outro. 99 “A côté de ce néologisme specialisé [sc. conuenientia], Cicéron emprunte aussi au fonds commun de la langue consentire (naturae), ainsi que congruere (naturae) e congruenter”. Cf. M. Armisen-Marchetti, Sapientiae facies, p. 219. 100 Consentire e correlatos: De finibus, II, 34; III, 20; De officiis, I, 96. Cf. M. Armisen-Marchetti, op. cit., p. 243, nota 53. 101 Congruere e correlatos: Tusculanae, V, 82; De finibus, IV, 26; V, 6. Cf. M. Armisen-Marchetti, op. cit., ibidem. 102 Concordare e correlatos: De finibus, I, 47; Tusculanae, IV, 30. Cf. M. Armisen-Marchetti, op. cit., p. 243, nota 54. 103 Sobre a presença e exposição do conceito estóico de homología em passagens selecionadas de Sêneca, confira-se M. C. De Pietro, Faces da “harmonia” nas Epistulae morales de Sêneca (Mestrado) IEL-Unicamp, 2008. 104 As Epistulae morales ad Lucilium (“Cartas morais a Lucílio”) são um conjunto de 124 cartas de cunho moral, escritas por Sêneca para seu discípulo Lucílio. 105 Ver, por exemplo, Sêneca, Ep. 107, 7. 106 Ver Sêneca, Ep. 31, 8.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 7-27.

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