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A constituição identitária do tradutor: a questão da (auto-) censura

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Academic year: 2021

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Revista Brasileira de Tradutores

Nº. 17, Ano 2008

Maria José Coracini

Universidade Estadual de Campinas

mjfcoracini@uol.com.br

A CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA DO

TRADUTOR: A QUESTÃO DA (AUTO-)

CENSURA

RESUMO

Partindo da análise de relatos de dez tradutores brasileiros, obser-vam-se pontos de emergência da presença constitutiva da (auto-) censura, proveniente da relação com o outro. Se, em alguns casos, há referência a regimes políticos anteriores; em outros, percebe-se a internalização de normas, leis às quais o tradutor se submete sem questionar: marcas do componente sócio-cultural, incorporadas via memória discursiva ou experiências pessoais; (auto-)censura alimentada pela mídia que, através de manuais de ampla divulga-ção, utilizados como instrumentos por alguns tradutores, exercem o papel de “polícia” discursiva, para que o texto se mantenha nos padrões do “politicamente correto”, de modo a evitar efeitos de sentido indesejáveis. Discute-se, ainda, o caso recente de censura imposto por feministas à tradução da Bíblia, nos Estados Unidos. Palavras-Chave: Tradutores brasileiros, (auto-)censura, memória discur-siva, manuais, “polícia” discursiva.

ABSTRACT

Based on the analysis of ten Brazilian translator’s reports, we ob-serve instances from which emerge traces of (self)censorship, as part of one’s relationship with the other. If, in certain cases, there are references to previous political regimes, in others a certain in-ternalization of norms is perceived; rules to which the translator is subservient without questioning: social-cultural features incorpo-rated through discursive memory or personal experiences; (self)censorship encouraged by the media through widely pro-moted manuals, used by some translators as a tool for exercising the role of discursive "police", so as to maintain the text under “po-litically correct” patterns, thus avoiding undesirable meaning ef-fects. We also discuss a recent case of censorship imposed by feminists on the translation of the Bible, in the USA.

Keywords: Brazilian translators, (self)censorship, discursive memory, manuals, discursive "police".

Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato

Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP. 13.278-181

rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação

Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original

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1.

INTRODUÇÃO

Parte de um projeto de pesquisa em torno da questão da identidade do sujeito entre-línguas-culturas, dentre os quais se encontram os tradutores1, este texto se apóia

teori-camente em teorias do discurso – sobretudo nos trabalhos de Michel Foucault –, em conceitos da psicanálise, para tratar de aspectos ligados ao sujeito, e na desconstrução derrideana, entendida como “uma reflexão sobre o sistema, sobre a clausura e a aber-tura do sistema” (DERRIDA, 1992, p. 225), isto é, como uma problematização das es-truturas dicotômicas, excludentes, tidas como verdades, da epistemologia ocidental.

Nesse contexto teórico, complexo e heterogêneo, cabe observar, desde já, que a noção de identidade sofre deslocamentos importantes: de estática e estabilizada, tal como é considerada em grande parte dos estudos sociais, passa a instável e em cons-tante mutação, apreendida apenas em momentos fugazes de identificação. A identida-de não passa, portanto, da ilusão identida-de um ego que se vê inteiro e coerente, mas que se constitui de fragmentos e contradições.

A fim de discutir a temática que nos interessa, isto é, a questão da auto e hete-ro-censura, analisamos relatos – gravados em áudio e, depois, transcritos – de dez tra-dutores brasileiros a respeito de sua tarefa e de sua relação com a(s) línguas que os constituem em sujeitos entre-línguas. Cabe observar que quatro desses tradutores são também professores de língua; três trabalham com a língua inglesa, três com a língua francesa e dois com a língua espanhola; um com inglês e alemão e outro com inglês e francês. Desses relatos extraímos alguns recortes relevantes para o tratamento da temá-tica em pauta, ou melhor, escolhemos recortes que remetem a alguma forma de (auto-) censura, que, a nosso ver, é parte constitutiva da identidade híbrida, complexa e em constante mutação do tradutor.

A fim de expandir nosso corpus, buscamos em jornais e revistas online maté-rias que discutem a questão da censura de modo geral e da auto-censura em particular, embora uma esteja inserida na outra.

Depois de uma breve incursão teórica, discutiremos a questão da (auto-) cen-sura à luz de excertos de entrevistas, além de exemplos e comentários esclarecedores, extraídos de textos jornalísticos, a respeito de dois tipos de censura: aquela explicitada

1 Trata-se do Projeto “O espaço híbrido da subjetividade: o ser (estar) entre línguas”, apoiado pelo CNPq, que, por sua vez, insere-se no Grupo de Pesquisa inter-universitário, sob minha coordenação, “Da Torre de Marfim à Torre de Babel”, inscrito no CNPq.

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no “Manual de Redação” de A Folha de São Paulo e outra, a respeito da tradução da Bí-blia que, ao mesmo tempo em que levanta a bandeira do feminismo, constroem uma barreira, buscando recriminar o que considera uma censura imposta por certo ma-chismo histórico, se não universal, ao menos, inerente à cultura ocidental.

2.

ALGUNS VISLUMBRES TEÓRICOS

Em sua tarefa, o tradutor se vê constantemente exposto a situações que Derrida (1992; 1996) denomina situações de indecidibilidade, e que, segundo o filósofo, são necessá-rias a qualquer tomada de decisão. Derrida explica que onde não há indecisão, dúvida, também não pode haver o ato decisório; onde há planejamento, premeditação, cálculo, estratagemas, não há indecidibilidade, mas também não há decisão; há imposição, de-terminação, poder. Essa indecidibilidade – também nomeada double bind, em que direi-to e avesso se confundem, assim como interno e externo – provém, como sabemos, do caráter paradoxal das línguas e dos textos que são, ao mesmo tempo, traduzíveis e in-traduzíveis. Por isso, retomando Derrida, é possível dizer que todo texto pede para ser traduzido, para ser lido, gesto necessário à sua sobrevida, para além da morte do au-tor, para além de suas intenções, mas também é possível afirmar que todo texto escapa, escorrega, desliza nas e das mãos do tradutor, que, paradoxalmente, deseja aprisioná-lo, segurar, controlar o seu sentido na ilusão de poder mais facilmente “transpô-lo” pa-ra outpa-ra língua, papa-ra a língua de chegada, também denominada língua 2 (L2). E é exa-tamente porque o texto na língua de chegada não captura – e não pode fazê-lo – os sen-tidos disseminados no texto de partida, sensen-tidos que carregam cultura, diferentes for-mas de ver e de ser, que se pode dizer que todo tradutor é um devedor: deve para o autor, deve para o texto na língua de partira. Mas, o inverso também é verdadeiro: não raro – doce vingança, inconsciente, do tradutor! – é o autor que fica em dívida com o tradutor: termos da L2 de que dispõe o tradutor estão prenhes de sentidos que não se fazem presentes nos termos da L1, ao menos no texto em tradução. Por essa razão, al-gumas traduções ultrapassam, em qualidade, o seu original.

No exemplo precedente, fica evidente o trabalho singular do tradutor que se impõe na escolha feliz das palavras, no estilo que (re)vela sua diferença e que se intro-duz em sua escrita como uma marca identitária. Mas, por que essa marca do tradutor parece-nos tão importante? Porque, como veremos, esses mesmos termos são escolhi-dos pelo autor na L1 e pelo tradutor na L2 em função da internalização de certas for-mas que provêm da censura constitutiva ou não das formações discursivas nas quais se

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inserem e que variam conforme as experiências de vida, a formação – pessoal, intelec-tual – de cada um, o grupo social ao qual pertencem, ao qual aderem e a eles adere.

Da mesma forma, manifesta-se aí, na interpretação que se faz tradução – seja ela escrita ou oral, pensada, refletida, trabalhada, ou espontânea, simultânea, consecu-tiva – a marca igualmente identitária de uma constituição híbrida, cultural e lingüísti-ca, porque, inevitavelmente, o tradutor se encontra entre-línguas-culturas, como afir-mam Sibony (1991), Derrida (1996) e Coracini (2007).

Traduzir e/ou falar-compreender mais de uma língua não significa simples-mente ora estar numa ora estar noutra língua, transpor o texto de uma língua para ou-tra como se, estando numa das margens de um rio (ou de uma ponte), pudéssemos simplesmente atravessá-lo e fincar-nos do outro lado (onde se encontraria a outra lín-gua)2.

Ser/estar entre-línguas-culturas significa ser impregnado por elas; não estar nunca apenas num dos lados da ponte ou do rio, mas na travessia, onde as margens se con-fundem, co-existem e se interpenetram. A concepção teórica de cada um a respeito de tradução, de língua, de cultura, que pode, evidentemente, não corresponder à que acabamos de expor, constitui igualmente um aspecto importante a considerar, se qui-sermos compreender a tradução como processo que depende de um sujeito que acredi-ta, ilusoriamente, ser capaz de controlar os efeitos de sentido de seu dizer e de seu agir, mas que, não raro, se surpreende diante do inesperado, do contingente, do inefável. Na tentativa de explicar suas escolhas lexicais, morfossintáticas ou textuais, de raciona-lizar o inexplicável, o sujeito-tradutor acaba por se confundir mais ainda.

Afinal, a (auto-)censura – constitutiva da identidade do tradutor – que, a nos-so ver, atravessa todo o procesnos-so tradutório e, portanto, os momentos de indecidibili-dade, provêm, não apenas do que Freud denominou superego, marcas do componente sócio-cultural, mas, também, de regimes políticos anteriores, integrados via memória discursiva (discursos outros que se imbricam, arquivos rastreados, documentos encon-trados) ou, mesmo, traços de experiências pessoais, transformadas, elas também, em narrações, ficções de si, do outro e do outro de si.

Aliás, vale ressaltar que o prefixo “auto”, entre parênteses, marca que a censu-ra decorre sempre do outro: ela se constrói a partir do outro, daquilo que se torna valor na sociedade ou no grupo social ao qual pertencemos (família, religião, escola, etc.) e

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que, pouco a pouco, vai sendo internalizado, corporificado, de tal modo que não se sa-be se é do outro ou de si próprio que aquele valor provém; certamente é dos dois, ou melhor, do “outro de si”: sem que nos demos conta, assumimos aquele valor ou aquele ponto de vista como verdade e passamos a defendê-lo como se outras verdades, outros modos de ser não existissem.

Tal fenômeno resulta do que Foucault (1978) denominou (auto-) governamen-talidade, espécie de panopticum internalizado, de modo que, a partir de certo momento, a presença física do outro não se faz mais necessária para lembrar o que pode ou deve ser feito ou dito: a vigilância – e por vezes a punição – já foi (foram) assimiladas (Fou-cault, 1975). Em A Ordem do Discurso, Foucault faz referência às sociedades de discurso que definem, em dado momento, para dado espaço geográfico, formas de falar, de agir e de se comportar. Ora, essas formas de falar, que, espontâneas (o que não significa de modo algum transparentes), deveriam carregar modos de ser ou aspectos culturais, quando são impostas, como no caso do “politicamente correto”, camuflam ou escon-dem esses aspectos culturais. Voltaremos a isso mais adiante. De toda forma, essas so-ciedades de discurso funcionam como interditoras da linguagem em uso, porque são formas de manifestação do poder.

Sobressaem, portanto, dois tipos de censura: aquela que se impõe por um re-gime totalitário, que, agindo por interesses escusos, interdita idéias, pensamentos, comportamentos e, portanto, o livre arbítrio (se é que ele existe), considerados “perigo-sos” para o regime; e aquela, constitutiva dos discursos, interdições que se fazem cor-po, que penetram no campo simbólico de cada sujeito. Ambas coíbem o livre pensar; ambas resultam de relações de poder; ambas permitem reações que se manifestam em atitudes de resistência, cujas razões podem ser conscientes ou inconscientes.

3.

A QUESTÃO DA (AUTO-)CENSURA

O primeiro tipo de censura, marcado pelo longo regime político ditatorial, deixou tra-ços que ainda se ressentem na sociedade brasileira. Nos registros por nós analisados, importa citar o caso de um entrevistado que, tendo vivido nos tempos do Estado Novo, recorda-se de um colega tradutor que confessou sentir-se constrangido todas as vezes que se via diante de textos literários que lhe pediam para traduzir, sobretudo diante das partes que faziam descrições físicas de jovens belas ou de personagens abertamen-te anticlericais, contrárias aos bons costumes da época ou, ainda, quando “os abertamen-textos

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poderiam atingir o sentimento nacionalista dos leitores” (T1)3. Afinal, tratava-se de um

tempo (entre 1940-1960) em que religião, pudor e nacionalismo eram qualidades inter-nalizadas e, quando não o eram, deveriam ser respeitadas, sob pena de permanecer na penumbra do anonimato. E, lembra ele,

S1 quando não havia uma censura internalizada / o editor fazia o papel de cen-sor / porque tinha receio que suas publicações / literárias no caso / não vendes-sem bem

A esse respeito cabe trazer um excerto de Monteiro Lobato (apud MILTON, 2002, p. 68), que, na função de editor da Revista do Brasil, se viu na contingência de cen-surar um dos textos de Godofredo Rangel:

S2 [...] Mas, Rangel, onde ficam as minhas leitoras puritanas? Onde fica a honesta pruderie da Revista do Brasil, essa vestal? Se te publico e Noé Matos, decaio e decai a revista no conceito dos seus 3 mil assinantes envergonhadíssimos – gente que só faz as coisas atrás das portas. E este meu rebanho é precioso. Tenho de evitar estouros de boiada. Mande-me coisa moral, com casamento no fim e o dedo de Deus.

Parece evidente que a grande preocupação, tanto em S1 quanto em S2, já nos tempos da ditadura militar, era econômica; afinal, temia-se perder parte do público lei-tor (S1: “receio que suas publicações / literárias no caso / não vendessem bem”; S2: “este meu rebanho é precioso”). Mas, a preocupação econômica não é declarada em S2, como o é em S1; ela aparece, no dizer de Monteiro Lobato, camuflada pelo desejo de manter a boa reputação da revista (S2), atendendo às exigências do público, zeloso pe-los bons costumes e pela moralidade, ainda que meramente aparente (“gente que só faz as coisas atrás das portas”).

Embora censuras com base na moralidade e nos bons costumes, ainda existam no Brasil, nos dias de hoje, a mais evidente manifesta-se em torno do racismo, de pre-conceitos contra a mulher, contra o homossexual (o chamado preconceito de gênero), contra a liberdade de religião, dentre outros – enfim, em torno do que se tem denomi-nado, por vezes de modo insensato e apressado, “politicamente correto”. Essa censura, que, quando internalizada, naturalizada, torna-se (auto-)censura, porque é o próprio tradutor que (se) censura sem que disso se aperceba, é alimentada, inclusive pela mídia que, através de manuais de ampla divulgação, exerce o papel de “polícia” discursiva, verbalizando o que e como se deve dizer e colaborando para que o texto traduzido se mantenha nos padrões do “politicamente correto”, de modo a não provocar efeitos de sentido indesejáveis (racistas, sexistas, etc.).

3 T = tradutor; S = segmento ou seqüência

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A título de exemplo, tomemos o Manual da Redação da Folha de S. Paulo (2001), já que foi citado por um dos tradutores participantes da pesquisa que empreen-demos. Nele observemos alguns itens do capítulo referente a “Padronização e Estilo”.

Além de recomendações que se espalham em vários verbetes – do tipo: em vez de “colisão” use “batida”; de “contundido”, use “machucado”; de “óbito”, use “morte”; em vez de “miserável”, use “pobre” etc., sob a alegação de que não se deve “complicar”; depois de uma lista de 82 “cacoetes de linguagem”, dentre os quais “an-tes de mais nada”, “calorosos aplausos”, “vítimas fatais”, “trocar figurinhas” (2001, p. 56) – aparece, em ordem alfabética, uma lista de termos com uma explicação mais ou menos longa dizendo como devem ou não ser usados. Por exemplo, a entrada “etnias” toma meia página e se inicia da seguinte maneira:

S3 Etnias – Evite usar a palavra raça quando se referir à espécie humana. Para designar aspectos físicos de grupos étnicos use o termo que os qualifica: o apar-theid segrega os negros, em vez de a raça negra.4

Mais abaixo, prossegue:

Não use, ao menos em textos noticiosos, palavras que sabidamente têm carga pe-jorativa, como crioulo ou preto para designar negro, japa para japonês, gringo

para qualquer estrangeiro, ianque para americano, polaco para polonês. [...] (2001, p. 68)

O mesmo tipo de recomendação se faz com relação ao palavrão: recomenda-se que, em casos corriqueiros, não se repita o palavrão, mas apenas se informe que “Os torcedores xingaram o juiz”, por exemplo. E com relação ao preconceito, como por e-xemplo: “A Folha não utiliza termos que denotem preconceito, como bicha, sapatão, crioulo, papa-hóstia” (2001, p. 94).

Parece evidente o papel de tal Manual na Redação não apenas para os jornalis-tas que devem necessariamente submeter seus textos a esse tipo de censura, obrigatori-edade essa que se manifesta, nos excertos aqui trazidos, pelo uso freqüente de modais deônticos ou de tempos verbais, como o imperativo – que funcionam como deônticos (deve-se, não se deve; use, não use; evite) – e de asserções com efeito de verdades taxativas como “A Folha não utiliza...” (o que pode ser parafraseado por “você, redator da Folha, está proibido de utilizar...”), que cerceia o ato de uma escrita, ao mesmo tempo em que previne ou impede acareações, críticas previsíveis, com efeitos prejudiciais à empresa jornalística, ao jornalista e, certamente, ao próprio tradutor. Entretanto, sabe-se que tais restrições mostram-se ineficazes, porque não alteram a mentalidade dos autores ou dos

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leitores; apenas camuflam, tapeiam um estado de discriminação e opressão, que vaza, de alguma forma, pela linguagem porosa, equívoca, opaca.

Resta, então, perguntar se, no caso da mídia, esse tipo de censura interessa à empresa jornalística e, talvez, ao próprio jornalista, no caso da tradução, a quem ele in-teressa? Certamente, aos editores que precisam garantir a venda de seus produtos e, em certa medida, ao próprio tradutor, porque disso depende, talvez, a sua fama, a venda dos livros traduzidos e o seu futuro como tradutor numa sociedade marcada-mente capitalista e neoliberal.

Chamou-nos a atenção o fato de manuais como esse servirem, em certas situa-ções, de instrumento auxiliar na difícil tarefa de tomar decisões quanto à escolha voca-bular na língua de chegada, ainda que esta seja a chamada língua materna do tradutor. Instrumento esse que, pouco a pouco vai sendo abandonado porque “suas leis” já estão internalizadas: é ao menos assim que interpreto o recorte seguinte, extraído do relato de um dos entrevistados. (T2) diz o seguinte:

S4 Lembro-me de uma tradução que fiz para um jornal a respeito de uma crítica feita por um texto em francês a uma onda de racismo que estava invadindo o país / não me lembro bem... a época // é evidente que eu tinha de ficar atenta para o uso de certas palavras em português ahn que não implicassem em discriminação / essa preocupação era maior porque se tratava de um texto para jornal / e você sabe... esse cuidado é importante // quando eu comecei a fazer traduções desse tipo / eu tinha sempre à mão / além é claro de dicionários / Manuais de Reda-ção ahn / principalmente o da Folha que é mais completo / agora não preciso mais / já sei como fazer (T2).

Observe-se o uso freqüente de modalizações lógicas (“é evidente”, “é claro”) e apreciativas do tipo, “é importante”, que apontam para a assimilação progressiva do que se considera uma obrigação do tradutor em sua tarefa árdua de tomar decisões lingüístico-culturais que não se choquem com o imaginário e com os valores do públi-co leitor. Essa obrigação de obediência a regras é internalizada, de tal modo que parece inquestionável e entra na constituição da identidade do tradutor: ser tradutor é, entre outras coisas, buscar instrumentos que o auxiliem a melhor cumprir sua função na re-lação com o autor do texto de partida e com o leitor do texto de chegada.

Com relação aos aspectos sensuais do que estamos chamando de (auto-) cen-sura, um tradutor entrevistado, que também é professor, narra uma experiência com um aluno particular, em nível avançado de língua francesa: como atividade, solicitou que escrevesse, em francês, um poema sobre o assunto que quisesse; o aluno optou por escrever sobre o amor. Na semana seguinte, ele pediu ao mesmo aluno que traduzisse o seu poema para o português; o resultado foi surpreendente: segundo o professor-tradutor entrevistado,

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S5 o aluno eliminou termos fortemente sensuais do poema em francês e colocou em português palavras mais românticas / mais neutras que podiam ser lidas por um / sem que ficasse vermelho... de vergonha. (T5)

Observem-se os termos “palavras mais românticas / mais neutras”, como se fosse possível categorizar palavras em neutras e românticas e, ainda por cima, colocá-las numa linha de progressão que vai do menos para o mais neutro ou romântico. Ca-beria, ainda, indagar sobre que palavras seriam românticas e quais seriam neutras. A bem da verdade, o que há são palavras que passam por uma censura interna proveni-ente de leis ou normas que regem nosso modo de pensar e de agir, fragmentos de uma moral interiorizada, proveniente da educação, das restrições impostas pela sociedade ou pelo grupo social em que se vive, de modo que dizer certas coisas, pronunciar cer-tas palavras, naquela que denominamos de língua materna, parece-nos contra a ética ou contra o que chamamos de “nossos princípios”.

A partir daí, duas questões, aparentemente paradoxais, se colocam em torno das seguintes constatações: a ausência de censura na língua do outro ou na chamada língua estrangeira, na qual, ao menos aparentemente, permitimo-nos dizer qualquer coisa, pronunciar qualquer palavra sem que ela atinja “nossos princípios”; e a forte censura na e daquela que denominamos língua materna. Foi o que aconteceu com o a-luno no exemplo acima exposto: em francês, a ausência de censura internalizada per-mitiu-lhe o uso de termos e expressões eróticos, enquanto na língua que o subjetivou não estava autorizada a expressão de sensações abertamente eróticas. O paradoxo con-siste em tomar como verdadeira a definição segundo a qual a língua materna é a língua do repouso, língua do gozo, da tranqüilidade, do “estar em casa”, enquanto a língua estrangeira seria a língua do outro, do estrangeiro, daquele que incomoda, que provo-ca em nós estranhamentos e, por isso mesmo, resistências. Segundo Melman (1992), sabemos (saboreamos, vivemos) a língua materna, mas só podemos conhecer uma lín-gua estrangeira, pois ela será sempre estranha. Melman parece ter esquecido do que Freud nos ensina em seu texto “O estranho” (Das unheimliche), ao apontar para a língua materna como sendo estranha e familiar ao mesmo tempo ou, melhor dizendo, estra-nhamente familiar, rompendo com a dicotomia língua materna/língua estrangeira.

Ora, no caso trazido pelo professor-tradutor entrevistado, seu aluno sentiu-se mais à vontade para abrir-se ao erotismo em língua estrangeira (em francês), e não em português, sua “língua materna”. Quem de nós, em contato com estrangeiros, vivendo há certo tempo em nosso país, não percebeu que, ao falarem português, usam uma va-riante que não corresponde ao nível daquela usada cotidianamente em sua língua? Ex-plicando melhor: expressam-se em português numa variante popular, cheia de gírias,

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lugares comuns e palavras de baixo calão, o que não se observa quando fazem uso de sua língua materna.

Situações como essas dão provas da internalização (inconsciente) de princí-pios, hábitos que impedem o uso de palavrões, por exemplo, em nossa primeira língua, o que não ocorre na língua do outro, que parece isenta dessa forte censura. É claro que, com o tempo, internalizamos também o que é censurado na cultura do outro, subme-temo-nos à língua-cultura do outro, mas, enquanto isso não ocorre, permitimo-nos dar vazão aos nossos recalques.

Essa constatação nos leva à seguinte reflexão: a chamada língua materna é a-travessada por interditos (recalques, traumas) e, portanto, não é tão repousante quanto se poderia supor; ela é causa de muito sofrimento, de muita angústia, de muito dese-quilíbrio, sintomas de traços, de marcas gravadas no inconsciente. E, por outro lado, a língua estrangeira pode ser repousante em certas circunstâncias e pode, quando não mais postularmos a dicotomia, constituir com a chamada primeira língua a verdadeira língua materna, híbrida, mestiça, complexa (CORACINI, 2007).

4.

A CENSURA DE GÊNERO

Ainda a respeito da tradução do artigo referido em S4, T2 esclarece:

S5 Bem / sempre tomo o cuidado de acrescentar o feminino todas as vezes que é necessário fazer referência aos dois sexos // você sabe / hoje isso é muito remendado / politicamente correto / mesmo que o texto francês não respeite / co-mo foi o caso do texto que eu ‘tou me referindo / parece que os franceses não gostam muito do feminino / será que é machismo?

A questão do gênero, sabemos, é uma questão polêmica que parece ter inva-dido o mundo e a nossa maneira pessoal de falar e escrever: mesmo quando não acre-ditamos que a mudança lingüística possa interferir nos comportamentos, mesmo quando resistimos a adotar as práticas lingüísticas, acabamos, depois de um tempo, por aceitar e incorporar algumas como, por exemplo, trazer a desinência do feminino ao final das palavras, depois do masculino (ainda que seja entre parênteses, nos textos escritos), como aponta S5. Esse procedimento parece já ser consensual, embora não se percebam, necessariamente, profundas mudanças no que se denomina comportamento machista (que, aliás, é partilhado por homens e mulheres). Seria o caso de nos pergun-tarmos se uma sociedade que faça largo uso do masculino para profissões (como a francesa) ou que não tenha adquirido o hábito de acrescentar a desinência do feminino aos adjetivos e particípios verbais, seria mais machista do que outras que, ao contrário,

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têm o cuidado de ser politicamente corretas? A mudança lingüística não deveria de-nunciar a mudança de mentalidade? Observa-se, entretanto, que o tradutor se sente no dever de obedecer ao código do “politicamente correto”, como mostra o excerto em análise (“é necessário”, “é muito recomendado”).

Ainda com relação à (auto-)censura em tradução, no que diz respeito ao gêne-ro, parece-me pertinente trazer um caso bastante atual que permite elucidar o ponto de vista aqui defendido. Trata-se de uma notícia publicada em Lisboa, no Diário de Notí-cias, numa sexta-feira de outubro de 20065, a respeito da tradução da Bíblia. Esse texto

informa que “há 20 anos [...], no mundo anglo-saxônico, aparecem versões ‘politica-mente corretas’ da Bíblia, inspiradas na teologia feminista que denuncia o “androcen-trismo bíblico [...]” (2006, p. 14).

Segundo a teologia feminista, com base nesse artigo, há quatro ofensas especí-ficas na linguagem sexista da Bíblia: 1) o gênero masculino usado o tempo todo como se fosse neutro; 2) o discurso escrito por homens dirigido a homens; 3) a redução do papel das mulheres na narrativa; 4) as afirmações genéricas sobre “as mulheres”, tidas como insultuosas. Por exemplo: os mandamentos sexuais se dirigem apenas aos va-rões; as discípulas de Jesus são quase apagadas e há muitas frases “patriarcais, misógi-nas e androcêntricas” do Antigo Testamento até as Epístolas de São Paulo. As religio-sas feministas defendem uma tradução que faça uso de uma linguagem que não pro-pague estereótipos, preconceitos ou formas de dominação. Sob essa justificativa, partes do Antigo e do Novo Testamento deveriam ser omitidas ou alteradas.

No caso da Bíblia, o movimento politicamente correto teve algum impacto nas universidades e nos seminários por causa das traduções. Há algumas versões modera-damente alteradas e uma versão radical publicada pela Sociedade Bíblica Americana Contemporary English Version (1995) e o Novo Testamento Inclusivo (Inclusive New Tes-tament), publicado em 1994, em que os tradutores não apenas atenuaram as regras gramaticais, mas fizeram “traduções corretivas”, de acordo com idéias e termos aceitá-veis para o público progressista de hoje, incluindo modificações de passagens sexuais ou raciais e mesmo a supressão de partes do texto consideradas intoleráveis. Os textos de São Paulo foram especialmente recortados e alguns desapareceram completamente.

Eis como o Dr. Wayne Grudem, professor de Teologia Bíblica e Teologia Sis-temática na Trinity Evangelical Divinity School e presidente do Conselho sobre a Bíblia

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Masculina ou Feminina, diagnostica o perigo da NIVI e outras versões da Bíblia “[...] o uso genérico de ‘ele-o-seu’ tem sido insistentemente trocado por ‘nós’ e ‘você(s)’ e ‘e-les’”6. O resultado é que quaisquer leitores dessa linguagem inclusiva NIV7, ao lerem

as palavras “nós” e você(s)” e “eles”:

nunca saberão se o que estão lendo é o que Deus originalmente disse com sua Pa-lavra, ou, em vez disso, o que os tradutores decidiram que sua Palavra estaria di-zendo. Em centenas e provavelmente em milhares de lugares, os leitores nunca saberão se essas são as palavras de Deus ou as palavras do homem8. (WATKINS, 1998).

Nessa mesma matéria publicada no Diário de Notícias aparece transcrita a opi-nião da teóloga Catherine Innes-Parker, que corrobora o que já defendemos neste arti-go – à exceção do que ela denomina “preconceito masculino”9 –, não apenas com

rela-ção à Bíblia, mas com relarela-ção ao “politicamente correto” em geral, que prega a mudan-ça da linguagem com o intuito de modificar comportamentos, sem que isso ocorra de fato. Vejamos sua opinião, citada também no site Bible Researcher:

Alterando a linguagem patriarcal, corremos o risco de apenas mascarar em vez de eliminar, os padrões ancestrais contra os quais lutamos [...] mudar a linguagem não remove necessariamente o preconceito e o sexismo, que continuam nos pensamen-tos, imagens e metáforas de um texto. Na verdade, alterar a linguagem sexista só obs-curece o preconceito masculino, de modo que nem o vemos, enquanto continua tran-qüilamente no nosso subconsciente [...]. O preconceito masculino não foi alterado; a-penas se tornou mais subtil e, portanto, mais perigoso, porque mais difícil de distin-guir e denunciar.

Esse mesmo texto afirma que, nos Liceus americanos, aconteceu de tirarem os livros de Mark Twain das bibliotecas porque Twain usa a palavra “nigger” (preto). Fa-to semelhante ocorre, nos Estados Unidos, ainda hoje, com os livros didáticos que são também censurados em nome do “politicamente correto” (COURTINE, 2004). O artigo de jornal termina declarando que “o ‘politicamente correto’ passa, assim, de

6 Em inglês, o pronome pessoal de terceira pessoa do plural - “they” - serve aos dois gêneros, diferentemente da língua portuguesa.

7 NIV: Nova Versão Internacional (New International Version).

8 "…the generic use of "he-him-his" has consistently been changed to "we" or "you" or "they." The result is that when-ever readers of this inclusive-language NIV read the words "we" and "you" and "they," they will nwhen-ever know whether what they are reading is what God originally caused his Word to say, or what the translators have decided his Word should say instead. In hundreds and probably thousands of places, readers will never know whether these are the words of God or the words of man.

9 O termo “preconceito masculino” remete à idéia de que o machismo é prerrogativa dos homens. Entretanto, defendo a idéia de que tal preconceito é partilhado por homens e mulheres, inseridos num momento histórico-social que admite a polarização das tarefas, habilidades e tendências de modo polarizado.

(13)

tação e de contestação à manipulação e à censura”. E isso se aplica fortemente à tradu-ção.

5.

CONCLUSÕES

Dos excertos aqui trazidos, é possível depreender que a censura vem sempre do outro, da sociedade, da tradição, do que se considera correto num dado momento histórico-social e para uma dada formação discursiva. Entretanto, o exterior se faz interior, tra-ços do imaginário são simbolizados e habitam o sujeito, corporificando-se. E isso que acontece com todos acontece também com os tradutores que se vêem o tempo todo em situação de conflito entre a obra original e o possível leitor a quem se dirige a tradução, sem falar do editor que também funciona como censor, por razões obviamente econô-micas.

Assim, não é apenas nos momentos em que a censura de regimes políticos au-toritários se faz presente para impedir que se digam certas coisas, silenciando o que não pode e não deve ser dito (no caso em questão, traduzido), mas é no dia-a-dia do tradutor: censura que vem de dentro, que habita o simbólico e nele faz corpo, pene-trando em sua constituição identitária.

Gostaríamos de terminar lembrando que a (auto-)censura, vista como a inter-nalização de aspectos oriundos de mecanismos de censura em ação ou em discurso na sociedade contemporânea, reforça o lugar desconfortável (lugar entre) em que se en-contra o tradutor, lugar da indecidibilidade, da escolha lingüístico-discursiva, resul-tante de um trabalho de interpretação que, inevitavelmente, o coloca entre o desejo de fidelidade e sua frustrante impossibilidade, entre a necessidade e a impossibilidade de traduzir, que o situa na posição incômoda de eterno devedor, entre a indecidibilidade e a urgência da decisão, entre querer dizer e não poder, entre-línguas-textos-culturas.

REFERÊNCIAS

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______. La gouvernementalité. In : Dits et Écrits (1976-1979), v. III, p. 635-657. Paris: Gallimard, 1978.

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FREUD, Sigmund (1919). O estranho. Edição Standard das Obras Completas de S. Freud, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

MELMAN, Charles. Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua e país. Trad.: Rosana Pereira. São Paulo: Escuta, 1992.

MILTON, John. O Clube do Livro e a Tradução. Bauru: EDUSC, 2002. SIBONY, Daniel. L’Entre-Deux: l’origine en partage. Paris: Seuil, 1991.

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