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The speckled people de Hugo Hamilton: vidas matizadas e os matizes da tradução

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Academic year: 2021

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Departamento de Estudos Anglísticos

THE SPECKLED PEOPLE

de Hugo Hamilton:

VIDAS MATIZADAS E OS MATIZES DA TRADUÇÃO

Cristina Bensassy Costa

MESTRADO EM ESTUDOS INGLESES E AMERICANOS

Estudos de Tradução

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2

Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Departamento de Estudos Anglísticos

THE SPECKLED PEOPLE

de Hugo Hamilton:

VIDAS MATIZADAS E OS MATIZES DA TRADUÇÃO

Cristina Bensassy Costa

Projecto orientado por Prof. Doutora Maria Teresa Casal

MESTRADO EM ESTUDOS INGLESES E AMERICANOS

Estudos de Tradução

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3 AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar à Prof. Doutora Maria Teresa Casal a disponibilidade e o empenho com que aceitou orientar este projecto reconhecendo a sensibilidade e o estímulo assim como a colaboração que dispensou desde o primeiro momento. As críticas, os comentários e as sugestões que apontou foram fundamentais na reflexão indispensável a todo o processo.

É também à minha orientadora que devo o privilégio de ter conhecido pessoalmente Hugo Hamilton a quem estendo os meus agradecimentos, não só pela autoria da obra que o presente trabalho apresenta, mas sobretudo pela brevidade e simplicidade com que respondeu a cada contacto.

Agradeço igualmente a todos os professores que, no mestrado como na licenciatura, contribuíram para que nunca deixasse de acreditar que qualquer objectivo pode ser conseguido quando há um compromisso de esforço e determinação.

Ao meu marido agradeço a paciência e a generosidade com que enfrentou os longos períodos em que a minha atenção foi quase exclusivamente dedicada ao mestrado.

Aos meus filhos, aos meus pais, ao meu irmão e aos meus amigos agradeço a confiança e o estímulo.

Com saudade, dedico o resultado deste projecto à memória de meu pai. Foi dele que sempre recebi o exemplo.

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4 RESUMO

Submetido no âmbito do Mestrado em Estudos Ingleses e Americanos, o presente Projecto em Tradução partiu do objectivo de traduzir The Speckled People (2003), da autoria do escritor irlandês Hugo Hamilton (Dublin, 1953). Por se tratar de uma obra extensa, reunimos alguns capítulos de onde extraímos exemplos representativos de diferentes desafios tradutórios.

A tradução é precedida de uma introdução à obra de um autor até à data não traduzido em Portugal, bem como de um relatório sobre os critérios tradutórios adoptados, que se caracterizam por um compromisso entre adequação e aceitabilidade.

O suporte teórico deste trabalho consiste sobretudo nas normas de tradução de Gideon Toury (1986 e 1995), nas estratégias tradutórias de Andrew Chesterman (1997) e nos fundamentos da disciplina de Estudos de Tradução de Susan Bassnet (1980,1991, 2002). Serão ainda referidos outros autores cujas abordagens corroboram algumas das decisões assumidas.

Palavras-chave: The Speckled People, Hugo Hamilton, Tradução, Processo tradutório

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5 ABSTRACT

Submitted within the M.A. in English and American Studies, this Project in Translation aims to translate the autobiographical narrative The Speckled People (2003) by the Irish writer Hugo Hamilton (b. Dublin, 1953). Due to the length of the original corpus, this project will present selected chapters which include a representative sample of the main translation problems.

The translated chapters will be preceded by an introduction to Hugo Hamilton’s work, as well as a description about the criteria governing the translation.

Gideon Toury’s translation norms (1995), as well as Andrew Chesterman’s translation strategies (1997) and Susan Bassnett’s contribution to Translation Studies (1980, 1991, 2002) provide the theoretical framework for this work. Other authors whose approaches have proved relevant to our decision making process will also be mentioned

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6 ÍNDICE

Capítulo I – Hugo Hamilton. Quem é e o que escreve……….… 9

1.1 Dados biográficos……….…… 9

1.2 Dados bibliográficos………... 12

1.3 Corpus………... 15

Capítulo II – Processo tradutório………... 21

2.1 Moldura teórica………..…. 21

2.2 Desafios e decisões……….… 26

Capítulo III – Tradução ………... 33

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7 INTRODUÇÃO

So we are the speckled-Irish, the brack-Irish. Brack home-made Irish bread with Germans raisins. (Speckled 2003:7-21)1

Este projecto intitulado «Vidas Matizadas e os Matizes da Tradução» partiu do objectivo de traduzir The Speckled People (2003) da autoria de Hugo Hamilton (Dublin, 1953). Por se tratar de uma obra extensa, o projecto selecciona alguns dos capítulos de onde extrai exemplos de diferentes desafios tradutórios.

Hugo Hamilton é um autor ainda desconhecido no panorama português da literatura traduzida. Assim, e apesar de editada em cerca de vinte países, a obra que serve de corpus a este trabalho não tem qualquer tradução para português. Por isso consideramos importante incluir um primeiro capítulo introdutório dedicado à apresentação do autor e sua obra, com especial destaque para The Speckled People.

O carácter memorialista, o registo coloquial e o ritmo da narrativa são alguns dos factores que motivaram a selecção de The Speckled People para o corpus deste trabalho. Por sua vez, o período histórico em que decorre a acção representa um repto adicional, pois encontramos no texto referências histórico-culturais a acontecimentos ainda presentes na memória colectiva, bem como histórias de experiências vividas na primeira pessoa, e ainda outras de experiências alheias, citando quer familiares quer figuras públicas, episódios particulares e eventos públicos, tudo isto num contexto mesclado de línguas e tradições, o que tornou ainda mais aliciante o desafio tradutório.

No segundo capítulo, dedicado ao processo de tradução, começamos por apresentar a moldura teórica utilizada, designadamente as normas de tradução de Gideon Toury, as estratégias tradutórias de Andrew Chesterman e os fundamentos da disciplina de Estudos de Tradução propostos por Susan Bassnett; seguidamente expomos os principais desafios e decisões que, para uma melhor apreciação, ilustramos com exemplos retirados do texto de partida e do texto de chegada.

Um terceiro e último capítulo reúne os oito capítulos que incluem os desafios referidos. Dos trinta capítulos que compõem o livro, seleccionámos os seis primeiros que introduzem não só os principais intervenientes como a temática central da obra. O

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Doravante as citações à obra The Speckled People (2003) serão identificadas com a primeira palavra do título da obra seguida da informação sobre página e linha.

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8 narrador infantil que surge nestes primeiros capítulos contrasta com o narrador mais amadurecido que figura nos restantes capítulos seleccionados ‒ 28 e 30 ‒ e direcciona o leitor para a possibilidade de continuar a acompanhar a narrativa com a leitura de um segundo volume publicado em 2005, The Sailor in the Wardrobe.

O projecto inclui ainda uma bibliografia e sitografia primárias sobre o autor e uma bibliografia e sitografia secundárias bem como os sítios da internet onde encontrámos informação adicional e ainda uma secção dedicada à filmografia referindo alguns títulos de filmes e documentários visionados com vista a uma melhor familiarização com a realidade irlandesa.

Três anexos acompanham a relatório. O anexo I inclui fotocópias do texto original dos capítulos incluídos no relatório, o anexo II reúne a tradução dos capítulos 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 21 não incluídos no relatório e o anexo III reúne fotocópias do respectivo texto de partida.

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9 Capítulo I ‒ Hugo Hamilton, quem é e o que escreve

1.1 ‒ Dados biográficos

Hugo Hamilton, o mais velho de seis irmãos, nasceu em 1953 em Dublin, na República da Irlanda, e cresceu em Dun Laoghaire, cidade portuária a escassa distância da capital. Originalmente foi registado como Sean O’hUrmoltaig, o mesmo nome do pai, um engenheiro activamente envolvido no movimento nacionalista e particularmente comprometido com a defesa da língua irlandesa como primeira língua nacional da então recente república.

A mãe, Irmgard Kaiser, imigrante de origem alemã, deixara uma Alemanha destruída pela Segunda Guerra Mundial para procurar trabalho na Irlanda, onde veio a conhecer o pai do autor.

Ao crescer, Hugo Hamilton enfrentou a proibição de falar inglês, imposta pelo pai, que, sendo um activista na defesa do uso da língua irlandesa para a consolidação da recém-conseguida independência nacional, proibia que se falasse inglês dentro de casa. Era proibido ouvir estações de rádio transmitidas em inglês, proibia até que se escutassem canções cantadas em inglês e que se desenvolvessem relações de amizade com quem não falasse irlandês. Dentro de casa, só a língua irlandesa e a alemã eram autorizadas e qualquer desobediência era severamente punida com castigos físicos. Fora de casa as circunstâncias obrigavam as crianças a falar inglês, a língua que todos falavam e compreendiam. De certa forma, também aqui o narrador experimentava uma espécie de punição, já que as reacções à língua irlandesa, e sobretudo à língua alemã, eram naturalmente de suspeição. Uma porque lembrava um período conturbado dentro do próprio país, que muitos preferiam esquecer e temiam que se repetisse, a outra porque evocava uma guerra de cujas consequências o mundo ainda mal tinha recuperado.

Em casa Hugo Hamilton podia falar alemão porque a mãe era alemã, mas a língua dominante era a irlandesa. Sendo de origem alemã, a mãe evocava muitas vezes as próprias memórias do longo período de intolerância Nazi, do qual sentiu necessidade de fugir. Mas era exactamente a origem alemã da mãe que estimulava preconceitos nos vizinhos, sobretudo nos jovens ali residentes que perseguiam e perturbavam o autor.

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10 Não foi uma luta fácil, esta de enfrentar o nacionalismo convicto do pai e a saudade ambivalente que a mãe sentia pela Alemanha da sua juventude. Hugo Hamilton refere diversas vezes, tanto na sua obra como em diferentes artigos e entrevistas, que a própria roupa que vestia o denunciava como diferente:

I wanted to be like everyone else on the street, not the icon of Gaelic culture that my father wanted neither us to be, nor the good German boy either. My mother dressed us in lederhosen and my father not to be outdone, bought us Aran sweaters from the west of Ireland. So we were Irish on top and German below. (Hamilton, «Speaking to the walls in English»)

Viver a infância nesta confusão de línguas e culturas, de proibições e condicionamentos, levou a criança a criar dentro de casa dois países distintos daquele que via lá fora, onde tentava tantas vezes passar despercebida. Mais tarde, o confronto com o pai leva o jovem a referir-se àquilo a que chama «the language war». As recordações de uma infância e juventude de convivência simultânea com três línguas, num contexto arbitrário de imposições e proibições, condicionaram o homem e o escritor, como o próprio afirma:

In many ways it was inevitable that writing would become the only way for me to explain this deep childhood confusion. The prohibition against English made me see that language as a challenge. (Hamilton “Speaking to the walls in English”)

É visível que desde cedo Hugo Hamilton se interessou pelos matizes das línguas bem como das culturas a elas associadas. É notória a sua curiosidade pelas palavras e pela possibilidade que estas oferecem tanto de construir como de destruir. Atento, criava trocadilhos com o valor das palavras, mostrando, talvez de forma ainda inconsciente, que o que realmente importa é a compreensão e aceitação das diferenças em vez do distanciamento ou da exclusão apregoados pelos diferentes discursos.

O interesse pela História e por histórias, aliados a um poder de observação e uma sensibilidade natural, levaram-no a procurar explicações. Encontrou algumas no passado dos pais, na vergonha mal disfarçada do pai por ser filho de um irlandês que

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11 fora marinheiro ao serviço dos ingleses durante a Primeira Guerra Mundial e encontrou muitas outras nas histórias que a mãe tinha por hábito contar, principalmente nos escritos e recordações que ela reunia em forma de diário. Mas foi sobretudo o contraste entre o mundo exterior e o exacerbado nacionalismo do pai, forçando a completa exclusão de tudo o que fosse inglês, que impulsionou a determinação do escritor: «And perhaps this is the fundamental question that still faces us today, the question that forced me to become a writer and tell my story.» (Hamilton Speaking to the walls in English)

Além de romances, Hugo Hamilton publicou também contos e artigos de opinião. Tem viajado até onde o solicitam para dar múltiplas palestras em que testemunha sobre a sua vida e obra, convidando à reflexão sobre as questões de identidade e de pertença que tanto perturbam o mundo de hoje. Sendo também um activista pelos direitos humanos, é actualmente um dos autores predilectos do público irlandês.

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12 1.2 Dados bibliográficos

Hugo Hamilton é autor de várias obras que enunciamos aqui por ordem cronológica e divididas em dois grupos distintos: antes e depois de The Specked People. Deixemos que sejam a s próprias palavras do autor a justificar este nosso critério:

Becoming a writer was the only way of liberating myself from this silence, the only way that I could come out from my hiding place and finally tell the story of my childhood, a story that was so full of shame and embarrassment that my only impulse was always to run away from it. […] I was always a person without a story, without identity, without language. In many ways, I never thought I had a story until I began to write it down. (Hugo Hamilton “Speaking to the walls in English”)

Indicamos de seguida os títulos das obras de ficção que Hugo Hamilton publicou durante a passada década de 90.

Antes de The Speckled People, Hugo Hamilton publicou Surrogate City (1990), The Last Shot (1991), The Love Test (1995), Headbanger (1996) e Sad Bastard (1998). Em 1992 foi agraciado com o prémio Rooney Prize for Irish Literature

Na década seguinte publicou os dois volumes de memórias The Speckled People (2003) e The Sailor in the Wardrobe (2006) e foi a divulgação do primeiro destes dois livros de memórias que lhe trouxe o reconhecimento internacional que tem hoje como escritor. The Speckled People (2003), traduzido já para cerca de vinte línguas, valeu-lhe prémios como Femina Étranger em França, com a tradução Sang Impur (2004), e Giuseppe Berto em Itália, com Il cane che abbaiava alle onde (2004).

Vejamos aqui alguns dos títulos escolhidos pelas diferentes traduções: Gescheckte Menschen (Alemanha, 2004); Sang impur (France, 2004); Il cane che abbaiava alle onde (Itália, 2004); El perro que ladraba a las olas (Espanha, 2005); Sproetenkoppen (Holanda, 2006); Gent mestissa (Andorra, 2007); Белязаните (Bulgária, 2008). Este projecto é um trabalho em tradução e estudos de tradução e desde já chamamos a atenção para as diferenças nos critérios seguidos nestes exemplos. Nem todos seguiram a proposta do título no texto de partida. A mera enumeração dos títulos

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13 das traduções aponta para a diferença nos critérios adoptados, assunto a que regressaremos no capítulo II, dedicado às dificuldades tradutórias.

No segundo volume de memórias, The Sailor in the Wardrobe (2006), o autor complementa alguns dos acontecimentos narrados em The Speckled People com um discurso de um narrador mais maduro, resultante da experiência adquirida pela certeza de que o mundo é amplo e tem lugar para todos.

Após os volumes de memórias, Hugo Hamilton publicou dois romances. Em Disguise (2008), Hugo Hamilton leva o leitor até Berlim do pós-guerra e apresenta Gregor Liedmann, um fugitivo revolucionário cuja origem é confusa. Na tranquilidade do presente Gregor procura na memória as respostas para questões que o atormentaram toda a vida.

No seu mais recente romance, Hand in the Fire (2010), Hamilton transporta-nos a uma Irlanda contemporânea, desta vez através do olhar de um imigrante sérvio que enfrenta a dificuldade da aprendizagem da língua e dos costumes.

As obras referidas, apesar de traduzidas para diversas línguas, surgem todas escritas em inglês, a língua de eleição de Hugo Hamilton, excepção feita a uma obra publicada em alemão ‒ Die Redselige Insel (2010), onde recupera uma viagem feita à Irlanda pelo escritor alemão Heinrich Böll (1917-1985), distinguido com o prémio Nobel da Literatura em 1972, estabelecendo comparações entre a Irlanda de então e a Irlanda de hoje.

Numa palestra realizada em 2010 na biblioteca central de Dublin, sob o título “In Other Words…Irish Literature in Translation in Your Library”, é o próprio Hugo Hamiltom quem comenta acerca da dificuldade que sente em escrever em alemão: «I’ve written in German, I’ve tried to do that, but it’s not easy, […] I would have to live there.» (Hugo Hamilton Transcript, 2011, in www.dublincitypubliclibraries.com/hugo-hamilton-transcript)

Hugo Hamilton é também autor de variados artigos de opinião nos quais aborda temas como os direitos humanos, a questão da identidade, o passado e a Irlanda.

Ainda acerca da boa recepção que tem tido a obra The Speckled People, realçamos que se encontra actualmente na fase final de preparação um filme sobre a vida e obra de Hugo Hamilton, dirigido por Martina Durac, produtora e directora cinematográfica a trabalhar com a empresa Loopline desde 1995. Na produção How to Belong o protagonismo caberá naturalmente à personagem de Hugo Hamilton (Hugo

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14 Hamilton ‒ How to belong in www.loopline.com). E m Dublin, no palco do Gate Theatre, no início de Outubro do corrente ano estreará também uma adaptação da obra. (The Speckled People in www.gate-theatre.ie)

A receptividade que a obra tem tido, patente nas múltiplas traduções e na sua transposição para outros suportes artísticos, atesta a sua capacidade de ultrapassar fronteiras linguísticas e culturais: justamente aquelas fronteiras que criaram o ambiente de guerrilha cultural no qual o narrador cresceu e a partir do qual teve de aprender a lidar com uma identidade matizada. Nesse sentido, a capacidade de esta narrativa sobre uma experiência singular encontra ecos noutros contextos hitóricos, linguísticos e culturais constitui um testemunho sobre as potencialidades e desafios da comunicação humana, bem como sobre o papel da tradução nesse processo.

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15 1.3 Corpus

Nesta narrativa autobiográfica coexistem o eu narrador adulto e o eu narrado infantil e adolescente. A relação dinâmica entre ambos reflecte-se num olhar retrospectivo capaz de simultaneamente imprimir à narrativa a ingenuidade e curiosidade próprias da criança e a objectividade do adulto que, num registo coloquial feito de repetições tão próprias do discurso infantil, constitui um desafio no que respeita a estratégias semânticas e sintácticas e imprime uma cadência que permite acompanhar o crescimento físico e psicológico do autor/narrador, patente posteriormente em The Sailor in The Wardrobe (2006), onde o mesmo tema continua a ser contado agora na perspectiva do olhar do narrador já amadurecido pela experiência.

O narrador autodiegético adopta uma focalização interna quando nos conta as suas experiências e externas quando as intercala com as experiências alheias que, apesar de ocorridas num passado anterior mesmo à sua existência, tiveram uma influência mais ou menos directa na sua própria história. Num momento, o leitor está num presente histórico onde as recordações são narradas vivamente com recurso a todos os sentidos: referindo cores, aromas, texturas, sons e sabores. Noutro, viaja a um passado mais distante onde teve lugar toda uma sucessão de acontecimentos e personagens que se encontram nesta narrativa.

Numa outra perspectiva pode dizer-se que a experiência pessoal de Hugo Hamilton narrada em The Speckled People se enquadra no parecer transmitido pela poeta irlandesa Eavan Boland (Dublin, 1944) no prefácio da obra Irish Writers On Writing (2007) acerca da circularidade quase permanente entre passado e presente na tradição literária irlandesa: « If the Irish literary tradition is a living web, it is also a nonstop conversation between the present and the past.» (Boland 2007: xiii)

Será difícil separar a obra do autor já que o próprio carácter memorialista da narrativa contribui para a confluência entre uma e outro. Não incluiremos aqui uma descrição exaustiva da obra, mas sim uma sinopse das principais temáticas.

Herdeiro de duas histórias nacionais, a irlandesa e a alemã, marcadas, de diferentes modos, por conflitos e violência, o narrador é a cada passo confrontado com as implicações dessa dupla herança. É evocado o repertório da herança irlandesa, nomeadamente a presença do passado, a terra, os senhorios, a igreja, as dificuldades, a emigração e a luta pela independência, mas já o percurso do pai e do tio mostram que

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16 o presente não é necessariamente um decalque do passado: a educação surge como uma alternativa à emigração:

My father and his younger brother Ted were going to emigrate too. They lived in a house at the end of the town with their mother and a picture of a sailor over the mantelpiece. They had plans to go to America to work with their uncle, but then they got a scholarship and went to school instead. (Speckled: 34-12)

The Speckled People reúne algumas das memórias que fizeram parte da infância de Hugo Hamilton. Esta narrativa na primeira pessoa representa a experiência da confusão que desde cedo sentiu por ter de conviver simultaneamente com três línguas, num contexto arbitrário de imposições e proibições que provocam ansiedade e conduzem à necessidade de encontrar explicações no passado, enquanto no presente se defende criando a ilusão de viver simultaneamente em três países diferentes:

So we have to be careful in our house and think before we speak. We can’t speak the words of the Garda, or the workers, that’s English. We speak Áines’s words from Connemara, that’s Irish, or my mother’s words, that’s German. I can’t talk to Áines in German and I can’t talk to my mother in Irish, because she’ll only laugh and tickle me. I can talk to my father in German or Irish and he can speak to the Garda and the workers for us. Outside you have to be careful, too, because you can’t buy an ice pop in German or in Irish, and lots of people only know the words of the Garda and the workers. (Speckled: 28-29)

Não é só do seu próprio passado que Hugo Hamilton fala nesta obra. Histórias sobre o pai, a mãe, os tios, os avós e mesmo de outras personagens não familiares são igualmente narradas em diferentes episódios, sendo possível identificar algumas das razões evocadas pelo narrador na tentativa de perspectivar o que vai observando e analisando.

Em The Speckled People são óbvias as dificuldades que sente em compreender não tanto as línguas, mas sobretudo as limitações impostas quer pelo poder paternal, quer pelas circunstâncias político-sociais. Exemplos tais como o da escola, o hospital, a

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17 casa onde passou algum tempo enquanto a mãe esteve internada, e até mesmo o contacto com a vizinhança são bastante ilustrativos:

So, you have to be careful what country you kick your ball into, and what song you stand up for in the cinema. You can’t wave the wrong flag or wear the wrong badges, like the red poppies with the black dot in the middle. You have to be careful who to be sad for and not commemorate people who died on the wrong side. (Speckled: 46-14)

O tema transversal a toda a narrativa é aquilo a que Hugo Hamilton chama « a guerra das línguas». Trata-se de uma guerra com duas frentes de combate distintas. Uma diz respeito à posição assumida pelo pai perante a sociedade que ele enfrenta com tenacidade quando, por exemplo, discursa na rua em irlandês, o que, na opinião do filho, afasta os apoiantes, não porque o discurso não seja interessante, mas porque simplesmente perderam há muito o contacto com aquela língua:

He had the crowd in his pocket when he put his hand on his heart, and he could have stolen all the flying hats from de Valera and Larkin and Cosgrave, but he started speaking in Irish and not everybody understood what he was saying. (Speckled: 39-1)

A outra frente de combate da guerra das línguas acontece dentro de casa, particularmente entre Hugo Hamilton e o pai. Aquilo que começa por ser desobediência infantil cedo se transforma em provocação voluntária: «I like giving the wrong answers» (Speckled: 278-11). Mas nem sempre foi assim: «My father is different to other men. He has no moustache, but he has glasses and he has a limp, too» (Speckled: 27-11) «So when the time came, my father jumped. He didn’t emigrate or drink whiskey or start making up stories either» (Speckled: 37-10).

O combate travado pelo pai contra o uso da língua inglesa dentro de casa está condenado à partida, pois a vida fora de portas decorre em inglês, a língua aceite e compreendida por todos. Qualquer desobediência é castigada com violência e cabe à mãe o papel de moderadora numa segunda frente de combate em que pai e filho se confrontam por questões relacionadas também com a língua. A relação conflituosa entre

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18 pai e filho proporciona muitos episódios de revolta e regista um crescendo que parece não ter limites:

He knew there were no sticks left, but there was a bowl of Apfelkompot on the table instead. He looked at me for a minute. Then he picked it up and threw it over my head. It was still warm. I felt it running down my face into the collar of my shirt. But I was smiling, because I knew that my father was losing the language war. My mother cleared everything up and tried not to laugh. She said you had to have an imagination to throw Apfelkompot over somebody’s head and maybe she should make it more often if we liked it so much. (Speckled: 278-18)

Após um momento de rebeldia e de abandono do lar, dá-se o regresso a casa, feito de raiva, frustração e agressividade em múltiplas direcções:

[…] I went home and told my father that I would kill him. I said I would not speak any dying language any more, only killer languages, and then I asked him how he would like to be killed by his own son. (Speckled: 279-12)

Sometimes I argue with my mother as well (Speckled: 280-5)

Sometimes I still hate everything, even the dog that had no name and no owner. […] There was nobody around and nobody to see what I was doing, I threw stones at him because I was Eichmann. […] I smile as I watched him trying to rescue himself. […] He was getting tired and then I started feeling sorry for him, because he was an old sea dog.

Em diferentes ocasiões Hugo Hamilton evoca a violência que acontece fora de portas, como o domingo sangrento (Bloody Sunday) de 1968 que desencadeou os Troubles na Irlanda do Norte, e sugere uma analogia com a violência dentro de portas.

Then one day British soldiers shot people dead on the street in Derry. They had lost the language war, too, and shot straight into a crowd of people marching for civil rights. On television we saw a priest crouched down waving a white

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19 handkerchief and maybe the British people are afraid of dying too. (Speckled: 282-12)

Estes acontecimentos sucedem já não na infância mas na adolescência, marcando o início do amadurecimento do autor. Continuam mistos os sentimentos que expressa em relação ao pai mas não deixa de reconhecer o arrependimento daquele e até uma espécie de pedido de tréguas:

He said he had never held a gun in his hand and there was no point in me doing it either. He said it was better to use the typewriter, because if you make mistakes, you can still correct them without killing anyone. I knew he wanted to make up for all the mistakes he made. (Speckled: 282-22).

As histórias que nos relata e as pessoas de quem nos fala ajudaram Hugo Hamilton a tomar consciência de uma diferença que, ao contrário do que ele começou por pensar, não o excluía, apenas acrescentava a sua diferença à de muitos outros, levando-o a compreender que a cada ponto de vista corresponde uma realidade. Um livro oferecido pelo tio Ted, a par com a tomada de consciência acerca da mudança que vê acontecer são um contributo para uma melhor aceitação e amadurecimento:

Onkel Ted came out and gave me a book called Black Like Me, about a man who changed his skin from white to black, just to see what it was like for other people. He said you have to be on the side of the losers, the people with bad lungs. You have to be with those who are home sick and can’t breathe very well in Ireland. A lot more people would be homeless if you speak the killer language. He said Ireland has more than one story (Speckled: 282-27)

No último capítulo, depois da morte do pai, Hugo Hamilton observa a desorientação da mãe que tenta um regresso ao passado numa viagem à Alemanha, mas as últimas décadas tinham sido de grande mudança:

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20 My mother went back to Germany one more time after my father died, just to visit everyone there and see where she grew up. But she was lost. She couldn’t recognise anything. (Speckled :296-3)

Desenraizada, a mãe procura agora na Irlanda outro regresso ao passado, o que escolheu como alternativa em busca de uma vida feliz. Apesar de não haver o esperado reencontro com o passado, há alguma felicidade neste capítulo:

Then it’s great to see my mother laughing and laughing because I threw an apple at her and she caught it. And when it was time to move on and she was trying to get up from the bench, we pushed her back down until she was laughing and laughing so much with tears in her eyes. (Speckled 297-1)

Há também uma manifesta sensação de liberdade e de recomeço nas palavras que Hugo Hamilton usa no último parágrafo. É marcante o contraste entre o estado de espírito actual e o estado de espírito que existia enquanto o pai era vivo.

My mother took out a cigarette because she was free to smoke after my father died. We stood on the road and watched her face lightning up with the match. We smelled the new smoke in the clean air and waited. She said she didn’t know where to go from here. We were lost, but she laughed and it didn’t matter. (Speckled 298-2)

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21 Capítulo II ‒ O Processo Tradutório

São muitos os autores e múltiplas as teorias propostas em Estudos de Tradução desde que, nos finais dos anos setenta, esta disciplina se tornou conhecida e aceite como tal. De uma maneira geral todos os autores concordam que a tarefa de traduzir abrange muito mais do que um acto de transferência de discursos de uma língua para outra.

De acordo com João Barrento:

A tradução é […] um processo único de leitura-escrita em que um texto é lido e reconstituído num outro código, como uma estrutura polifónica complexa em que a desconstrução pode ser feita estrato a estrato, mas em que a re-escrita deve deixar transparecer (tal como a do original) os modos de funcionamento em simultâneo dessa polifonia verbal. (Barrento, 2002: 23)

Por sua vez, Susan Bassnett defende:

A tradução não é somente a transferência de textos de uma língua para a outra ‒ ela é hoje correctamente vista como um processo de negociação em que ocorrem todos os tipos de transacções mediadas pela figura do tradutor. (Bassnet, 2002: 9)

2.1 Moldura Teórica

Os fundamentos da disciplina de Estudos de Tradução propostos por Susan Bassnett, as normas de tradução de Gideon Toury e as estratégias tradutórias de Andrew Chesterman constituem o suporte teórico das opções tomadas ao longo do processo tradutório.

Enquanto Bassnet analisa conceitos e deles extrai conclusões com que fundamenta a relevância da importância da disciplina de Estudos de Tradução, Gideon Toury expõe, sob a forma de normas, o resultado de décadas de estudo e análise de regularidades encontradas em múltiplas traduções feitas em lugares e épocas diferentes. Já Andrew Chesterman apresenta uma classificação sistemática de três conjuntos de estratégias a que o tradutor recorre habitualmente.

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22 Na obra Estudos de Tradução - Fundamentos de uma Disciplina (2002), Susan Bassnet propõe uma divisão em quatro áreas de estudo ‒ História da tradução, Tradução na cultura da língua de chegada, Tradução e linguística e Tradução e poética. Não são naturalmente áreas de estudo isoladas mas antes complementares.

No seu trabalho, Bassnett defende igualmente a importância de que, em tradução, a teoria e a prática não constituam conceitos isolados, atribuindo ao tradutor a obrigação de compreender cada etapa daquilo a que chama o como, ou seja, o processo a que toda a tradução é sujeita, e ao académico a necessidade de não se limitar ao processo sem dar igual relevância ao produto, à tradução.

Bassnet coloca o tradutor na posição prévia de leitor e afirma: «O tradutor é afinal, primeiro um leitor e só depois um escritor, pelo que deve tomar uma posição no processo da leitura» (Bassnett:132). Assim sendo o tradutor será julgado de acordo com a forma como entende o texto. Pode entendê-lo como um simples leitor ou pode ir mais além e descodificá-lo abordando-o a partir de mais do que um conjunto de sistemas. Bassnett afirma não fazer sentido defender que ao tradutor apenas compete traduzir e não interpretar: «A tradução interlinguística há-de reflectir seguramente a interpretação criativa que o tradutor faz do texto original». (Bassnett:136-6).

É de interpretação que nos fala Jakobson quando distingue três tipos de tradução:

1) Tradução intralinguística ou reformulação que acontece quando se interpretam signos verbais por meio de outros signos da mesma língua.

2) Tradução interlinguística ou tradução propriamente dita que acontece quando se interpretam signos verbais por meio de outra língua.

3) Tradução intersemiótica ou transmutação que acontece quando se interpretam signos verbais por meio de signos de sistemas não-verbais.

Segundo Bassnett, a questão da interpretação acompanha a necessidade de seleccionar na língua de chegada ocorrências de sentido minimamente parecido com as da língua de partida. No que respeita à responsabilidade do tradutor perante os leitores da língua de chegada, e tendo em conta que na tradução são eles e os ouvintes os receptores da ênfase, compete ao tradutor fazer com que o texto da língua de chegada corresponda ao texto da língua de partida.

De acordo com Gideon Toury, em tradução, a norma resume regularidade, simboliza o poder de decisão do tradutor e pode servir como modelo ideal a ser seguido

(23)

23 ou rejeitado. A propósito Toury afirma: «Every model supplying performance instructions may be said to act as a restricting factor: it opens certain options while closing others. » (Toury 1995:60-10)

Conforme afirma Toury, a multiplicidade de normas tradutórias resulta do seu carácter especificamente sócio-cultural. Não é necessário que uma norma se aplique total ou parcialmente a todos os sectores de uma sociedade, nem tão pouco que atravesse todas as culturas, por isso qualquer semelhança entre normas de diferentes culturas, sociedades ou sectores pode não passar de coincidência ou de uma manifestação de interferência.

A instabilidade característica das normas deve-se à natureza das mesmas, que podem ser mais ou menos duradouras em maiores ou menores períodos de tempo.

De acordo com a norma inicial proposta por Gideon Toury, traduzir em adequação permite ao leitor do texto de chegada uma maior aproximação à cultura de partida. Ou seja, ainda que esteja a ler uma tradução na sua língua nativa, o leitor não deixará de estar consciente de que a acção ocorre num contexto sócio-cultural diferente daquele de que o leitor é parte integrante. Ainda no que diz respeito à norma inicial, a alternativa seria traduzir em aceitabilidade, o que representa uma decisão pela adesão ao sistema de normas da cultura de chegada e um confronto inevitável com variações ao texto de partida.

É importante acrescentar que decidir inicialmente por uma das opções não significa que, ao longo do processo, todas as decisões de carácter mais específico tenham de ser concordantes. Como observa Toury: «In cases where an overall choice has been made, it is not necessary that every single lower-level decision be made in full accord with it. » (Toury, 1997:57)

Além da norma inicial Toury apresenta ainda o que classificou de normas preliminares e normas operacionais. As primeiras observam sobretudo a existência de políticas de tradução, decidindo que textos podem ou não ser traduzidos e qual a direcção da tradução numa determinada cultura, numa época específica. São normas a ter em conta durante o processo tradutório e que dependem sobretudo da tradição e do peso que a tradução tem no sistema literário da cultura em causa. As normas operacionais envolvem as decisões assumidas pelo tradutor, no decurso do processo tradutório, e estão divididas em dois grandes grupos: as normas matriciais, que são indicadoras do grau de interferência do recurso à omissão, à adição ou segmentação de

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24 um texto e à forma como esses procedimentos são, ou não, referidos no texto de chegada, sendo o recurso a esta estratégia mais marcante numa tradução em aceitabilidade, e as normas linguístico-textuais que reflectem a selecção do conteúdo do texto de chegada, destinado a substituir o conteúdo do texto de partida. Estas normas estão igualmente divididas em dois subgrupos: as normas gerais podem ser aplicadas a qualquer tipo de tradução e as normas particulares que são aplicadas apenas a um tipo específico de tradução de que são exemplo os textos técnicos.

Ter consciência de que a tradução é uma actividade regida por normas que resultam do estudo de regularidades no comportamento dos intervenientes do processo, numa determinada cultura e num dado momento, significa reconhecer que pode não ser praticável estudar todos os componentes em termos de igualdade.

Por sua vez, Andrew Chesterman em Memes of Translation (1997), no capítulo que dedica às estratégias tradutórias, desenvolve o que considera como estratégia em particular no que diz respeito ao processo tradutório:

A strategy is a kind of process […] Furthermore, strategies […] describe types of linguistic behavior […] they refer to operations which a translator may carry out during the formulation of the target text […] Strategies […] are thus forms of explicitly textual manipulation. They are observable from the translation product itself, in comparison with the source text. […]Chesterman 1997: 88) E conclui: «In other words, strategies constitute easily accessible descriptive knowledge concerning a certain kind of procedural knowledge» (Chesterman 1997: 92)

Chesterman agrupa as estratégias em três conjuntos distintos discriminados abaixo numa exposição que adopta a nomenclatura do autor: estratégias sintácticas ou gramaticais, que podem manipular a forma do texto executando alterações a nível sintáctico; estratégias semânticas, que podem manipular o sentido e, tendo em conta os níveis fonológico, morfológico, sintáctico e lexical, podem mudar as expressões de um nível para outro; estratégias pragmáticas, que podem manipular a mensagem, relacionando-se sobretudo com a informação que o tradutor inclui no texto de chegada que é orientada pelo seu conhecimento do público-alvo da tradução.

(25)

25 Grupo G - Estratégias sintáctico ou gramatical

G1 Tradução literal, próxima da LP (em regra, só excluída se não funciona).

G2 Empréstimo/Decalque - Mantém no TC a expressão da LP sem a traduzir.

G3 Transposição - Altera a classe de uma determinada palavra.

G4 Modifica tipo de unidade em TP na transferência para TC.

G5 Modifica a expressão alterando a estrutura interna.

G6 Modifica estrutura alterando os constituintes.

G7 Modifica estrutura de frase alterando-lhe a estrutura.

G8 Modificação na coesão alterando-a através de repetição, elipse ou substituição.

G9 Modificação de nível ‒ Altera nível fonológico, morfológico, sintáctico ou lexical.

G10 Modificação de esquema ‒ Altera esquema recorrendo a repetição, aliteração, métrica.

Grupo S ‒ Estratégias Semânticas

S1 Sinomínia ‒ Recurso a sinónimos.

S2 Antonímia ‒ Recurso a antónimos.

S3 Relação de hiponímia ‒ Substitui hipónimo por hiperónimo ou vice-versa.

S4 Contrários ‒ Recurso a ponto de vista diferente ou oposto.

S5 Modifica grau de abstracção ‒ Substitui termo abstracto por outro mais concreto

S6 Modificação distribucional: mais palavras ‒ expansão; menos palavras ‒ compressão.

S7 Modificação ênfase adicionando, reduzindo ou alterando nível de ênfase.

S8 Modificação de tropo alterando a expressão sem mudar o sentido.

S9 Paráfrase.

(26)

26 Grupo P ‒ Estratégias Pragmáticas

P1 Filtragem cultural ‒ Permite escolha entre aceitabilidade e adequação.

P2 Modifica grau explicitação permitindo maior ou menor explicação no TC.

P3 Modifica informação permitindo omitir ou adicionar informação no TC.

P4 Modificação interpessoal alterando grau de formalidade.

P5 Modificação ilocutória permitindo usar no TC perguntas ou exclamações ausentes noTP.

P6 Modificação na coerência permitindo alterar ordem de parágrafos ou de capítulos.

P7 Tradução parcial.

P8 Modifica visibilidade através de recurso a notas de tradutor.

P9 Transferência de edição permitindo ao tradutor uma reedição ou reescrita a nível geral.

P10 Outras estratégias como por exemplo escolha diferente de aspecto gráfico ou dialecto.

2.2 ‒ Desafios e Decisões

Perante uma narrativa que exibe marcas linguísticas, históricas e sócio-culturais, na sua maioria pouco conhecidas do nosso público-alvo, o leitor generalista, a nossa proposta de tradução pretende proporcionar ao leitor português a experiência e os desafios inerentes a um ambiente multilinguístico, uma vez que estes são centrais na obra de Hugo Hamilton.

De acordo com o que explica a norma inicial proposta por Gideon Toury, decidimos traduzir em adequação, o que significa trazer o contexto do texto de partida até ao leitor do texto de chegada.

Escrita em inglês, a língua de opção do autor, The Speckled People inclui no entanto várias ocorrências em alemão e em irlandês, recriando desta forma a vivência num ambiente multilinguístico que foi nossa opção transpor para a tradução.

Organizámos os desafios em dois grandes grupos. Num colocámos as questões gerais, que se prendem com as características textuais e com as diferenças entre os dois sistemas linguísticos e são extensivas a todo o texto. Noutro grupo colocámos questões

(27)

27 específicas, cuja descrição detalhada faremos de seguida. Com amostras retiradas do TP presente no Anexo I e amostras do TC contido no relatório, exemplificámos e justificámos as nossas opções acrescentando indicações sobre a página e a linha.

Relativamente ao primeiro grupo começámos por realçar a frequência do uso de repetições no texto de partida. São frequentes: o uso do pronome possessivo, que em inglês é indispensável, mas que em português pode afectar a fluência da leitura; o uso do verbo «to say»; e o uso de locuções adverbiais como «sometimes».

De acordo com Cunha e Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo 2005 (p. 202), em português o pronome possessivo corresponde à expressão de valores afectivos acentuando diferentes sentimentos. Consideremos o seguinte caso:

Onkel Ted is my father’s brother, a Jesuit priest, and he comes to visit us after his swim at the Forty Foot. His hair is still wet and combed in lines. He once saved my father’s life, long before he was a priest, when they were still at school and used to go swimming down in Glandore, not far from where they lived. My father started drowning one day so his young brother had to jump in his shirt to rescue him. (TP: 43-16)

O Onkel Ted é irmão do meu pai, é frade jesuíta e vem visitar-nos depois de ter ido nadar em Forty Foot Ainda traz o cabelo molhado, penteado às riscas. Uma vez salvou a vida ao meu pai, muito antes de ser padre, quando ainda andavam na escola e costumavam ir nadar em Glandore, não muito longe de onde viviam. Um dia o meu pai começou a afogar-se e o irmão mais novo teve de saltar, de camisa vestida, para o salvar. A seguir o meu pai ficou sem falar porque, durante muito tempo, só tiritava. (TC: 65-12)

Neste primeiro exemplo, tendo em conta o discurso infantil do narrador, mantivemos o número de ocorrências do pronome pessoal, pois retirá-lo representaria uma diminuição na ênfase que ele empresta ao discurso. Já no exemplo seguinte, a

(28)

28 One day my mother let us go down to the shop on our own, but she gave us a piece of rope and told us to hold on to it so we would not get separated. (TP: 44-13)

Um dia a mãe deixou-nos ir à loja sozinhos, mas deu-nos um pedaço de corda e disse-nos para a agarrarmos bem porque assim nunca nos separávamos. (TC: 65-27)

A decisão de não substituir a locução adverbial prende-se igualmente com a necessidade de conservar o registo coloquial que está presente em toda a obra, assim como o já mencionado discurso infantil usado pelo narrador:

Sometimes I throw Stones at the waves. Sometimes I just sit on the rocks and think I’m in the luckiest place in the world, with the blue sea in front of me and the sun stinging me in the back. Sometimes I think of escaping away to another country where nobody knows where I come from. And sometimes I am trapped, full of helpless hanger. Sometimes I still hate everything […] (TP: 280-26)

Às vezes atiro pedras às ondas. Às vezes fico apenas sentado nas rochas pensando que estou no lugar mais afortunado do mundo, com o mar azul pela frente e o sol a picar-me as costas. Às vezes penso em fugir para outro país onde ninguém saiba de onde venho. Às vezes sinto-me preso numa armadilha, cheio de uma fúria impotente. Às vezes ainda odeio tudo … (TC:75-27)

Ainda no que diz respeito à frequência das repetições, podemos reconhecer neste exemplo o recurso à estratégia S1 proposta por Chesterman: sinomínia:

But that’s impossible, she said. (TP: 4-25)

You know that dog that barks to the waves? » she said. (TP: 4-29) I am Eichmann, I said. (TP: 4-34)

(29)

29 ‒ Sabes aquele cão que costuma ladrar às ondas? – perguntou. (TC 37-6)

‒ Eu sou Eichmann ‒ repeti. (TC:37-9)

Outra questão central a toda a obra é a presença de termos estrangeiros, que, no TP, são grafadas na língua original, confrontando assim o leitor anglófono com a presença do alemão e do irlandês. Observe-se que o TP também destaca alguns termos em inglês, tais como walk on the wall, stone e boy.

Decidimos, por conseguinte, adoptar o mesmo critério. Conservámos os termos estrangeiros aplicando a estratégia de Chesterman G2: empréstimo ou decalque, optando por traduzir ou explicitar, sempre que necessário, com notas de tradutor em rodapé (NT). Desta forma reduzimos o grau de estranheza do leitor quando confrontado com um contexto que lhe pode ser estranho. De notar as formas de parentesco Maam, Mutti ou Ma Ma, Vati e Onkel sendo que esta última, ainda que alemão, também se aplica ao tio irlandês, Onkel Ted.

Outra questão que surge frequentemente no texto é a tradução do pronome you quando este assume o aspecto indefinido, sendo que em inglês representa uma forma informal do pronome indefinido one que é usado para referir as pessoas em geral. Mais uma vez foi importante ter em conta o registo coloquial do texto mas não foi possível uniformizar a decisão em termos de tradução, quer para a forma pessoal you, quer para a forma pessoal yours, como veremos de seguida:

When you’re small you know nothing. (TP: 1-1)

Quando somos crianças, não sabemos nada. (TC: 34-11)

A afirmação sugere uma reflexão, algo que o narrador constata e generaliza. Neste exemplo optámos por traduzir usando a 1ª pessoa do plural mas omitindo o pronome sujeito, mantendo desta forma a generalização identificada no texto de partida.

De seguida exemplificamos uma opção diferente, já que não está aplicada à generalidade das pessoas mas sim ao comportamento que o narrador observa nos pais. Naquele momento a dúvida é dele:

(30)

30 How do you know what that means when her shoulders are shaking and her eyes are red and she can’t talk? How do you know if she’s happy or sad? And how do you know if your father is happy or whether he’s still angry at all the things that are not finished yet in Ireland. (TP: 1-22)

Como hei-de saber o que significa quando os ombros lhe estremecem, os olhos ficam vermelhos e mal consegue falar? Como hei-de saber se está feliz ou triste? E como hei-de saber se o meu pai está feliz ou se continua zangado por causa de tudo o que ainda está por fazer na Irlanda. (TC: 34-24)

O uso do artigo definido usado antes dos nomes próprios, em particular os nomes de baptismo, é igualmente uma questão tranversal ao TP. Recorrendo a Cunha e Cintra (p. 225), confirmámos que, em português, está generalizado na linguagem corrente o uso do artigo definido antes dos nomes de baptismo, conferindo ao discurso um tom de familiaridade de afectividade. Vejamos o exemplo:

She lets us play with some of her things. My older brother Franz, my younger sister Maria and me examine everything on her dressing table ‒lipstick, scissors, nail clipper, rosary beads. (TP: 8-28)

A mãe deixa-nos brincar com algumas das coisas dela. O Franz, o meu irmão mais velho, a Maria, a minha irmã mais nova, e eu bisbilhotamos tudo o que está no toucador – o batom, a tesoura, o corta-unhas e o terço. (TC: 40-5)

Outro desafio é a variação nos tempos verbais. No exemplo seguinte o Simple Past aplica-se a todas as frases do TP. Em português, no modo indicativo, podemos usar pretérito perfeito simples para indicar uma acção que se produziu num certo momento do passado e o pretérito imperfeito do indicativo para distinguir acções ainda não concluídas, acções contínuas e acções habituais ou frequentes. Consideremos o seguinte exemplo:

(31)

31 When I was small I woke up in Germany. I heard the bells and rubbed my eyes and saw the wind pushing the curtains like a big belly. Then I got up and looked out the window and saw Ireland. And after breakfast we all went out the door to Ireland and walked down to Mass. (TP: 1-2)

Em criança acordava na Alemanha. Ouvi os sinos, esfreguei os olhos e vi o vento empurrando os cortinados e fazendo-lhes uma barriga enorme. A seguir levantei-me, espreitei pela janela e vi a Irlanda. Depois do pequeno-almoço saímos todos para a Irlanda e fomos à missa. (34-12)

Optámos pelo pretérito imperfeito na primeira frase, pois nela a acção descrita refere-se a algo que acontece repetidamente cada manhã enquanto as restantes, ouvir sinos, esfregar os olhos e ver o que vento provoca nos cortinados, são acções que podem ou não acontecer diariamente. É possível identificar neste caso a presença da estratégia G5 de Andrew Chesterman, que permite alterar a unidade sintagmática sem alterar a estrutura.

Passemos agora a questões específicas como é o caso do adjectivo small na frase introdutória já referida acima:

When you’re small you know nothing. (TP: 1-1)

Quando somos crianças, não sabemos nada. (TC: 34-11)

Em inglês small e em português pequeno são termos que classificam uma medida de grandeza. Nas duas línguas a mesma expressão é também sinónimo de criança. Identificamos duas estratégias de Chesterman G3: transposição e S1: sinonímia.

Encontramos no TP uma expressão que faz parte da linguagem corrente em irlandês e que tem características fonológicas sendo por isso grafada de forma diferente: What the Jayses? Querendo manter a mesma especificidade e conservar a ênfase dada à diferença fonológica decidimos, tendo em conta futuras ocorrências, usar uma expressão corrente na linguagem da cultura popular portuguesa substituindo a interrogação por uma exclamação mas conservando o efeito pretendido: «Ai Jasus!» Negociámos e, de

(32)

32 acordo com Susan Bassnett, é essa uma das funções do tradutor, negociar avaliando perdas e ganhos.

Passemos ao título, mais concretamente à palavra speckled. No TP (7:15) encontramos diferentes sinónimos em inglês; dappled, flecked, spotted, coloured, que confirmámos em diferentes dicionários monolingues. No mesmo parágrafo percebe-se a dificuldade em associar o valor real da palavra speckled ao sentido atribuído pelo contexto. Quando traduzidas pelo seu valor literal o problema mantém-se e o valor polissémico de termos como manchado, salpicado, pintalgado, mesclado, sarapintado levou-nos a considerar todos eles como matizes de uma única ideia central. Não querendo afastar-nos do objectivo de tradução em adequação optámos por Vidas Matizadas. Duas palavras que resultam da interpretação que atribuímos ao título depois de o descodificarmos.

Porque a tradução também se faz comparando, aproveitamos, a propósito do título, para tecer um breve comentário às propostas apresentadas pelas traduções referidas no capítulo I.

Em casos como as traduções castelhana El perro que ladraba a las olas (Tropismos 2005) e italiana Il cane che abbaiava alle onde (Fazi 2004) é obvia a decisão de não seguir a sugestão do título no texto de partida. Procuraram dentro da obra um personagem não humano, aparentemente sem problemas de identidade nem de língua, mas presente em momentos importantes no processo de crescimento do narrador. Trata-se de uma decisão que cabe na classificação de adaptação atribuída por Jean Paul Vinay e Jean Darbelnet em A Methodology for Translation. A mesma decisão surge na tradução francesa Sang Impur (Phebus 2004), onde a prefixação negativa de impureza invoca o conceito de pureza. Já Gent mestissa (Andorra, 2007) adopta a questão do contexto do TP expondo-a na palavra mestiça. Recorrendo ao motor de busca Google, fazendo tentativas de retradução para inglês verifica-se que a proposta alemã Gescheckte Menschen (Alemanha, 2004) recupera o título do TP. Para a proposta holandesa Sproetenkoppen (Holanda, 2006) não foi possível concretizar. A proposta búlgara é Белязаните (Bulgária, 2008) o que em português significa rotulado.

Muitos são os matizes possíveis em qualquer tradução. Mostrámos nesta secção alguns exemplos do uso que fizemos das normas e estratégias de tradução de Gideon Toury e Andrew Chesterman, respectivamente. É nosso objectivo manter coerência nas decisões e apresentar um trabalho coeso de forma a conseguir a tradução em adequação.

(33)

33 CAPÍTULO III – TRADUÇÃO

(34)

34 1 VIDAS MATIZADAS 2 * 3

«Aguardo a ordem para mostrar a língua. Sei que a vai cortar e cada vez tenho 4 mais medo.» 5 Elias Canetti 6 7 8 Um 9 10

Quando somos crianças, não sabemos nada. 11

Em criança acordava na Alemanha. Ouvi os sinos, esfreguei os olhos e vi o 12

vento empurrando os cortinados e fazendo-lhes uma barriga enorme. A seguir levantei-13

me, espreitei pela janela e vi a Irlanda. Depois do pequeno-almoço saímos todos para a 14

Irlanda e fomos à missa. Depois descemos até ao enorme parque verde, em frente ao 15

mar, porque eu queria mostrar aos meus pais que era capaz de me equilibrar na bola e 16

contar até três, antes que me fugisse debaixo dos pés. Corri atrás dela, mas por causa do 17

sol que me batia nos olhos não via nada e tropecei num homem que estava estendido na 18

relva, de boca aberta. O homem sentou-se num repente e disse: 19

‒ Ai Jasus! – e disse-me para de futuro ver por onde andava. 20

Então, levantei-me, corri para ao pé dos meus pais e contei-lhes que o homem 21

tinha dito «Ai Jasus», mas estavam ambos de costas para mim, a rir para o mar. O pai 22

ria, e pestanejava por trás dos óculos, enquanto a mãe tapava a boca com a mão e ria, ria 23

para o mar, até ficar com lágrimas nos olhos e eu pensei que afinal talvez não estivesse 24

a rir mas sim a chorar. 25

Como hei-de saber o que significa quando os ombros lhe estremecem, os olhos 26

ficam vermelhos e mal consegue falar? Como hei-de saber se está feliz ou triste? E 27

como hei-de saber se o pai está feliz ou se continua zangado por causa de tudo o que 28

ainda está por fazer na Irlanda? Sabemos que o céu é azul e o mar é azul e que se juntam 29

lá longe, no horizonte. Vemos os barcos brancos à vela, parados na água, e vemos 30

pessoas a passar com cones de gelados. Ouvimos um cão a ladrar às ondas. Vemo-lo de 31

pé, dentro de água, a ladrar e a tentar morder a espuma. Conseguimos perceber o tempo 32

(35)

35 que o som do latido demora a chegar, como se viesse de outro sítio qualquer e tivesse 1

deixado de pertencer ao cão, como se ele ladrasse tanto, tanto, que ficasse rouco e 2

perdesse a voz. 3

Quando somos crianças, não sabemos nada. Não sabemos onde estamos nem 4

quem somos nem o que perguntar. 5

Foi então que um dia os meus pais fizeram uma coisa curiosa. Primeiro que tudo 6

a mãe escreveu para a família, na Alemanha, e pediu a uma das irmãs que mandasse 7

calças novas, para mim e para o meu irmão. Queria que usássemos alguma coisa alemã, 8

umas lederhosen. Quando chegou a encomenda, mal podíamos esperar para as vestir e 9

sair para corrermos até ao fim da viela que ficava nas traseiras. A mãe nem queria 10

acreditar. Chegou-se para trás, bateu palmas e disse que assim já parecíamos rapazes a 11

sério. Dizia que por mais árvores ou paredes que trepássemos, estas calças de couro 12

alemãs eram indestrutíveis. E eram mesmo. Depois o meu pai também quis que 13

usássemos alguma coisa irlandesa. Foi à rua e comprou umas camisolas das ilhas Aran, 14

tricotadas à mão. Grandes, brancas, com pontos entrançados, umas camisolas de lã, 15

típicas do oeste da Irlanda, também indestrutíveis. Então, eu e o meu irmão saímos, com 16

umas lederhosen e umas camisolas Aran, cheirando a lã cardada e a couro. Irlandeses 17

em cima e alemães em baixo. Éramos indestrutíveis. Podíamos deslizar sobre as pedras 18

de granito. Podíamos cair em cima de pregos e sentarmo-nos sobre vidros. Agora, nada 19

nos atingia e corríamos, rua abaixo, mais depressa do que nunca, roçando por urtigas tão 20

altas que nos davam pelos ombros. 21

Quando somos crianças, somos como papel em branco, sem nada escrito. O pai 22

escreve o nome dele em irlandês, a mãe escreve o dela em alemão e sobra um espaço 23

em branco para todos os outros que falam inglês. Somos especiais porque falamos 24

irlandês e alemão e gostamos do cheiro destas roupas novas. A mãe diz que é como 25

voltar a estar em casa e o pai diz que a nossa língua é a nossa casa, que o nosso país é a 26

nossa língua e que a nossa língua é a nossa bandeira. 27

Mas nós não queremos ser especiais. Lá fora, na Irlanda, queremos ser iguais a 28

toda gente e não um falante de irlandês, nem um alemão, nem um Kraut2, nem um Nazi. 29

A caminho das lojas, chamam-nos irmãos Nazis. Dizem que a culpa é nossa e volto para 30

2

(36)

36 casa a dizer à mãe que não fiz nada. Mas ela acena a cabeça e diz que não posso dizer 1

isso. Não posso negar, não posso ripostar nem posso afirmar que sou inocente. Diz ela 2

que o importante não é ganhar. Ensina-nos antes a rendermo-nos e a andarmos de 3

cabeça erguida, ignorando-os. 4

‒ Temos sorte em estar vivos – diz a mãe – vivemos no lugar mais feliz do 5

mundo, sem guerra e sem nada a temer, com o mar por perto e com o cheiro da maresia. 6

Temos muitos bancos azuis onde nos podemos sentar e ver as ondas e temos muitos 7

sítios para nadar. Temos muitas rochas para trepar e lagoas onde podemos apanhar 8

caranguejos. Lojas que vendem linhas de pesca, anzóis e muitos óculos de plástico, para 9

o sol. Quando está calor, podemos ir comprar um gelado e podemos ver como as 10

montras são cobertas com papel de jornal para impedir que o chocolate se derreta. Às 11

vezes, o calor é tanto que o sol pica as costas, parece uma agulha por baixo da camisola. 12

No alcatrão da rua, o sol faz bolhas que podemos rebentar com o pauzinho do gelado. 13

Vivemos num país livre – diz ela – onde há sempre vento e onde se pode inspirar 14

profundamente, mesmo até ao fundo dos pulmões. É como estar de férias toda a vida, 15

porque logo de manhã ouvimos as gaivotas, vemos veleiros junto às casas e as pessoas 16

até têm palmeiras nos jardins. Dublin, onde crescem palmeiras, porque, diz a mãe, 17

parece um paraíso e o mar nunca está longe, como um copo de água azul esverdeada ao 18

fundo de cada rua. 19

Mas isso não muda nada. 20

− Sieg Heil! − Gritam. – Achtung! Schnell, schnell! Donner und Blitzen!3 – Sei 21

que vão levar-nos a julgamento. Têm escrito coisas nas paredes, ao lado da loja e nas 22

vielas. Um dia destes, apanham-nos e vão fazer-nos perguntas a que não saberemos 23

responder. Vejo como olham para nós, à espera do dia em que estejamos sozinhos, sem 24

ninguém por perto. Sei que vão executar-me pois chamam Hitler ao meu irmão mais 25

velho e a mim dão-me o nome de um SS que foi encontrado na Argentina e trazido para 26

ser julgado por causa de todas as pessoas que matou. 27

3

Donner e Blitzen ‒Trovões e relâmpagos, em alemão. Exclamação associada a um equívoco que teve lugar no final da Primeira Guerra Mundial, quando do ataque da marinha inglesa à frota alemã estacionada no porto de Zeebrugge na Bélgica, e que foi aproveitada pela imprensa inglesa para comentar o alarme sentido pelas forças alemãs. (NT)

(37)

37 Um dia, disse à minha mãe:

1

− Eu sou Eichmann! 2

− Mas isso é impossível – respondeu. Ajoelhou-se de maneira a olhar-me nos 3

olhos. Pegou-me nas mãos e levantou-as como se lhes tomasse o peso. Depois fez uma 4

pausa procurando o que iria dizer a seguir: 5

‒ Sabes aquele cão que costuma ladrar às ondas? – perguntou. – Aquele que não 6

tem dono e passa o dia a ladrar às ondas até ficar rouco e deixar de ter voz? É tudo o 7

que sabe fazer. 8

‒ Eu sou Eichmann! ‒ repeti. ‒ Sou Adolf Eichmann e vou comprar um gelado. 9

Depois vou até ao mar, ver as ondas. 10

‒ Espera, espera pelo teu irmão! ‒ disse a mãe. 11

Fica à porta, com a mão sobre a boca. Pensa que vamos para a Irlanda e que 12

nunca mais regressamos. Tem medo que possamos perder-nos num país estrangeiro, 13

onde a nossa língua não existe e onde ninguém nos percebe. Está a chorar porque eu sou 14

Eichmann e não há nada que ela possa fazer para nos impedir de sairmos e de sermos 15

Nazis. Diz-nos para termos cuidado e fica a ver-nos ir pela rua fora, até dobrarmos a 16

esquina e deixar de nos ver. 17

É então que tentamos ser irlandeses. Na loja, pedimos um gelado, em inglês 18

dando a entender que não sabemos alemão. Receamos parecer alemães, por isso vamos 19

até ao mar, no nosso melhor estilo irlandês, para garantir que ninguém dê por nós. 20

Ficamos junto ao gradeamento, vendo as ondas que se desfazem contra as rochas e os 21

borrifos brancos que se elevam no ar. Saboreamos o sal e vemos a espuma que escorre 22

nas fendas como se fosse leite. Somos irlandeses, e repetimos «Jasus» de cada vez que a 23

onda enrola e bate nas pedras com um grande baque: 24

‒ Jasus, ai Jasus! – disse eu. 25

‒ Jasus, mas que Jasus tão barrigudo! – disse o Franz, e depois rimos e corremos 26

praia fora, acenando com os punhos. 27

‒ Ondas valentonas! – gritei. 28

Elas nunca conseguiriam apanhar-nos e sabiam-no. Peguei numa pedra e atingi 29

uma, mesmo por baixo da barriga, no momento exacto em que se levantava e se 30

precipitava na nossa direcção, com aquele ventre enorme e redondo e uma franja de 31

cabelo branco a cair-lhe sobre os olhos. 32

(38)

38 ‒ Para baixo, onda grande e barriguda! – E ríamos quando a pedra atingia a 1

onda com um estalido e à onda nada mais restava senão render-se e deitar-se na areia de 2

braços estendidos. Algumas tentavam escapar, mas nós éramos rápidos demais para 3

elas. Apanhávamos cada vez mais pedras e, uma a uma, atingíamos todas, porque 4

éramos irlandeses e ninguém dava por nós. O cão ladrava, ladrava e nós ali, a fazer 5

parar as ondas porque era tudo o que sabíamos. 6

Referências

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