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A vida para além da morte: o mundo dos mortos na narrativa do canto VI da Eneida

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA III: LINGUAGENS, IDENTIDADES & ESPACIALIDADES

A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO CANTO VI DA ENEIDA

MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA III: LINGUAGENS, IDENTIDADES & ESPACIALIDADES

A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO CANTO VI DA ENEIDA

MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA

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A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO CANTO VI DA ENEIDA

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa III: Linguagens, identidades & espacialidades, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da Profa. Dra. Marcia Severina Vasques

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Câmara, Matheus Breno Pinto da.

A vida para além da morte: o mundo dos mortos na narrativa do canto VI da Eneida / Matheus Breno Pinto da Câmara. - Natal, 2019.

144f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Marcia Severina Vasques.

1. Virgílio - Dissertação. 2. Morte - Dissertação. 3. Espaço - Dissertação. 4. Roma Antiga - Dissertação. 5. Eneida -

Dissertação. I. Vasques, Marcia Severina. II. Título.

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A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO CANTO VI DA ENEIDA BANCA EXAMINADORA _________________________________________ Nome do Orientador __________________________________________ Nome do avaliador externo

________________________________________ Nome do avaliador interno

____________________________________________ Nome do Suplente

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Agradeço imensamente ao meu pai, Edmilson Soares da Câmara, a minha mãe, Maria da Conceição Pinto da Câmara e a meus irmãos, Madson Diego Pinto da Câmara e Mayonara Christiane Pinto da Câmara, por todo amor e confiança, nos maus e bons momentos, nas alegrias, tristezas, brigas e sorrisos. Cada um está em meu coração e toda minha gratidão não será suficiente para demonstrar a importância de vocês em minha vida.

Agradeço à minha Orientadora, a professora Dra. Marcia Severina Vasques. Obrigado por não desistir do seu aluno, por aceitar os desafios e por todos os conselhos, opiniões, conversas e paciência por todos esses anos. Minha gratidão por tudo que me ensinou, dentro e fora de sala de aula, com seu exemplo, sua generosidade e dedicação aos estudos acerca da História Antiga.

Muito obrigado também aos professores Dra. Lyvia Vasconcellos e a Dra. Airan Borges, pelas contribuições na banca de qualificação que foram tão caras para a dissertação.

Agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa, a qual sem esse auxilio não seria possível realizar a pesquisa do modo que pude fazer.

Agradeço aos membros e amigos do MAAT – Núcleo de História Antiga da UFRN, por acompanharem a pesquisa ao longo dos anos, pelos conselhos em reunião, pelas conversas fora do departamento, por toda convivência e risadas, por ensinarem que podemos trabalhar e sorrir. Em especial sou muito grato a Elian Jerônimo de Castro Júnior, pela amizade ao longo da graduação e pós-graduação e por todos os anos que seguirão. A Ruan Kleberson, pelos conselhos, vivências e momentos decisivos em várias partes dessa trajetória. A Arthur Fabrício, um eterno exemplo de amigo e pesquisador, a qual sei que poderei sempre contar.

Agradeço também aos amigos que considero minha família de coração e mente. A estes que acompanharam, em maior e menor grau, a produção dessa dissertação:

A Jorge Livraga e Délia, por sonharem o mais bonito dos sonhos.

A Catharine e Aurélio, por serem exemplos de vontade, amor e inteligência em minha vida. A Fabiana, Luiza, Hayssa, Eugênio, Mônica, Mauriceia e Fernando, por me ensinarem a jamais desistir.

A Bruno, Fabrício, Mariana, Ingrid, Rodrigo, Pedro e Fernando Mosca, por me ensinarem a rir frente os desafios.

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o tanto que preciso agradecer pelos ensinamentos diários.

Também agradeço aos amigos de longa data, que por mais que não estejam em meu dia a dia, sempre estão em minha mente e coração:

Antônio, Erick, Raffael, Nicholas e Wendel, pela amizade que mesmo distante, mantém-se forte, tal qual uma rocha em meio ao quebrar das ondas.

Não posso deixar de agradecer a Clara Jéssica de Medeiros Silva. Obrigado pelo companheirismo, pelo amor e força diária. É um privilégio e honra estar ao seu lado. Muito obrigado por todo incentivo, sem você talvez essa dissertação não teria acontecido.

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Eneida, é um marco fundamental na literatura latina na qual é conhecida como Era de Ouro dos poetas. Entretanto, para além da sua função na literatura, a Eneida também nos apresenta importantes concepções quanto à cultura, política e a religião romana do século I a.C. A presente dissertação busca analisar o espaço habitado pelos mortos no Canto VI da Eneida, entendendo a função deste para a narrativa e sua relação com o imaginário romano acerca da morte. Nosso objetivo é analisar como Virgílio constrói esse espaço imaginário a partir de elementos narrativos e alinha a viagem de Eneias pelo Orco com a cultura mortuária romana no século I a.C. As práticas funerárias romanas também são objeto de estudo para consolidação dessa análise. A metodologia utilizada para o presente trabalho se faz tendo como base a análise de discurso, mais especificamente o método de totalidades narrativas, para o qual toda narrativa gira em volta de um tema central e que os versos e parágrafos de um texto alimentam e reforçam essa concepção. A partir disso, cria-se as bases lógicas da narrativa que são construídas para atender ao enredo e desfecho da história. O autor então espelha-se no real e desenha os elementos que seguem uma linha narrativa lógica para criação de sua história.

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point in Latin literature, in a period known as the Golden Age of the poets. However, beyond its funcion in literature, Aeneid also show us some important conceptions to the roman culture, politics and religion in the 1st century B.C. This research aims to analyze the space inhabited by the romans dead in the Aeneid’s cantus VI, seeking to understand the function of this space to the narrative and the relation with the roman imaginary about the afterlife. Our goal is to analyze how Virgil builds that imaginary space with narrative elements and aligns Aeneia’s journey through the Orco with the roman mortuary culture in the 1st century B.C. The roman funeral pratices are also a study object in order to support our analysis. The methodology used in this research is the speech analysis, specifically the method of narrative totalities, in which all narrative encircles the central theme and the structure narrative feed this central idea. After that, logical bases are created to support the plot and the outcome of the story. The author is inspired on the real and draws the elements which follow a logical narrative line to create his story.

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70 a.C. – Públio Virgílio Maro nasce, na Mântua. No mesmo ano Pompeu e Crasso tornam-se cônsules.

60 a.C. – Inicio do Primeiro triunvirato composto por Júlio César, Pompeu e Crasso.

55 a.C. – Virgílio recebe a toga Viril, mudando-se para Mediolano (atual Milão) para estudar. César cruza o Reno com suas legiões e conquista parte da Gália. Nesse mesmo ano data-se o início dos primeiros textos do poeta, na qual comumente chamam “Virgílio Menor”.

53 a.C. – Virgílio continua seus estudos em Roma. Crasso é vencido e morto pelos partas.

52 a.C. – Virgílio começa a estudar retórica com Epídio. Nesse período relata-se o encontro do Poeta com Otávio e Valério Messala, ambos condiscípulos do retórico Epídio.

49 a.C. – Virgílio vai para Nápoles ser discípulo do epicurista Sirão. No mesmo ano inicia-se a guerra Civil entre Júlio César e Pompeu.

48 a.C. – Pompeu é derrotado por Júlio César na batalha de Farsália. O general derrotado tenta conseguir asilo no Egito, mas é assassinado a mando do rei Ptolomeu XIII.

45 a.C. – César derrota os filhos de Pompeu, Cneu e Sexto, dando fim à guerra civil.

44 a.C. – César é assassinado no fórum romano na conspiração conhecida como Idos de Março. 43 a.C. – Inicia-se o segundo Triunvirato, composto por Otávio, Marco Antônio e Lépido.

43 ou 42 a.C. – Virgílio deixa Nápoles e a convivência com Sirão. Nesse mesmo período inicia a escrita das Bucólicas.

42 a.C.- César é divinizado. Devido ao pagamento dos exércitos de Otávio e Marco Antônio, as terras de Virgílio são confiscadas. Virgílio escreve a segunda, terceira e quinta Églogas.

41 a.C. – Virgílio escreve a sétima Égloga. Nesse mesmo ano tenta-se escrever uma epopeia, mas sem sucesso.

40 a.C. – Otávio entrega à Virgílio suas terras, tomadas em 42 a.C. São escritas a sexta, nona, quarta e primeira Églogas.

39 ou 38 a.C. – Virgílio escreve A oitava Égloga e publica as Bucólicas. Nesse mesmo período inicia sua amizade com Mecenas.

37 a.C. – Virgílio inicia a escrita das Georgicas.

31 a.C. – Otávio derrota Marco Antônio na batalha do Accio e torna-se princeps.

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22 a.C. – Virgílio Começa a ler alguns cantos da Eneida para um público privado. (Otávio Augusto e sua irmã).

19 a.C. – Virgílio morre em Brundisium. Pede, em seu leito de morte, para que a obra inacabada não seja publicada. A Eneida é publicada.

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CAPÍTULO I: VIRGÍLIO: UM HOMEM E O SEU TEMPO ... 27

O homem... 28

1.1.1 Os caminhos de um poeta ... 32

1.2 O seu tempo ... 37

1.2.1 O horizonte de expectativa da Roma Antiga no século I a.C. ... 44

1.3 Virgílio: entre a estrutura e a agência ... 51

CAPÍTULO II: A TRADIÇÃO LITERÁRIA DA ENEIDA ... 57

2.1 A tradição literária: a tradição literária grega na Eneida ... 58

2.2 Os princípios da narrativa épica na Eneida de Virgílio ... 61

2.2.1 O princípio axiológico ... 61

2.2.2 O princípio teleológico ... 63

2.2.3 O princípio onomasiológico... 65

2.2.4 O princípio metodológico ... 68

2.2.5 O princípio arqueológico e etiológico ... 70

CAPÍTULO III: A CONSTRUÇÃO DO MUNDO DOS MORTOS NA ENEIDA ... 73

3.1 – Sobre a morte, a religião e os ritos funerários na Roma Antiga ... 73

3.2 – O espaço Mítico, Imaginário e Simbólico do Orco ... 84

3.3 – Análisando os espaços do Orco ... 89

CAPÍTULO IV: AS TOTALIDADES NARRATIVAS NO CANTO VI DA ENEIDA ...107

4.1 A chegada em Cumas e o encontro com Sibila ...108

4.2 Abrindo a entrada do Mundo Inferior ...112

4.3 O orfismo na narrativa do Canto VI ...118

4.4 Um encontro de romanos ...125

CONCLUSÃO: SOBRE UM MUNDO EM PASSAGEM ...131

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“A morte não é nada Eu somente passei Para o outro lado do Caminho” (Santo Agostinho)

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INTRODUÇÃO: OS CAMINHOS DE UMA PESQUISA

A morte é uma questão existencial. É a fronteira entre o conhecido e o desconhecido. Ao longo da história diversas filosofias, religiões e doutrinas tentaram (e tentam) responder essa questão, mas nenhuma pôde nos oferecer respostas concretas e definidoras sobre esse inexorável destino de todo ser vivo. Tudo que é vivo, morre. A morte é um fato biológico, incontestável, mas como lidamos com esse fato é uma questão cultural. O modo que lidamos com nossos mortos e com a morte é diferente de como os gregos, egípcios e romanos antigos lidavam. Entre eles há também grandes diferenças, pois as particularidades de cada cultura também se apresentam ao encarar a morte.

Portanto, antes de tudo devemos refletir a respeito do aspecto cultural da morte. Philippe Ariès (1975)1 ao analisar a questão cultural sobre a morte nos mostra as mudanças ocorridas com o modo de encarar a morte ao longo da história. Da morte domada até o interdito, Ariès nos colocou a pensar a respeito da formação cultural como base para entendermos a alteração dessa visão sobre a morte, sendo assim a cultura o fator que nos leva a construir imagens sobre o que seria o morrer e a relação do indivíduo com esse fenômeno biológico. Mesmo não abordando o recorte histórico dessa pesquisa, a leitura se faz válida pela contribuição teórica do autor a respeito do tema e a convergência de pensamentos a respeito do assunto, ao qual abordamos de um mesmo ponto de vista, mesmo que estejamos mirando objetos distintos.

Visto essa primeira questão, a presente pesquisa pretende debruçar-se acerca do espaço do além-vida, também denominado de Orco, no canto VI da obra “Eneida”, escrita pelo poeta Públio Virgílio Maro, popularmente conhecido como Virgílio. Nosso principal interesse de investigação está em demonstrar como a narrativa do Canto VI constrói o espaço do Orco, criando imagens e representações desse mundo dos mortos com base em elementos culturais próprios do mundo em que o poeta conheceu. Sendo uma obra inacabada e publicada em 19 a.C., a Eneida é um objeto de pesquisa já analisado por diversos pesquisadores ao longo dos séculos, entretanto a epopeia narrada por Virgílio envolve elementos diversos e uma temática complexa, as quais várias lacunas mantêm-se em aberto. É em uma dessas lacunas em que nossa pesquisa busca mantêm-se inmantêm-serir a qual diz respeito aos mortos e ao espaço habitado por eles no imaginário da Roma Antiga. Sabe-se que os mortos

1 1975 é a data de publicação da obra de Ariès, entretanto, para esta dissertação usamos uma edição lançada em 2014

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tinham uma posição intermediária dentro da cosmovisão dos romanos, estando entre os deuses e os homens. Os mortos recebiam cultos, oferendas e festividades em sua homenagem, como por exemplo as lemúrias2. Porém, antes de mergulharmos na densa questão que envolve os mortos e seus diversos ritos, precisamos pensar um pouco sobre aspectos do contexto em que a obra e seu autor estavam inseridos, uma vez que não pode haver descontinuidade entre estes três elementos: autor, obra e sociedade.

O mundo romano é caracterizado, principalmente, por uma forte rede de comunicação e interações culturais com outros povos da Antiguidade. O caráter militar e expansionista de Roma trouxe consigo trocas culturais múltiplas que emergiram nos seus ritos, religião e costumes. Ao escrever sobre a origem mítica desse povo, Virgílio expressa a diversidade cultural que o permeava no turbulento século I a.C. O Canto VI da Eneida, que será analisada nessa pesquisa, é um exemplo significativo da diversidade cultural romana no que tange aos ritos funerários e visões sobre a morte. Nossa proposta, entretanto, não é simplesmente localizar a visão romana sobre o outro mundo, muito menos elencar elementos que sejam considerados “romanos” ou “não-romanos.” Para além disso, o tema dessa pesquisa se debruça sobre a imagem construída por Virgílio sobre o Orco, o além-vida, e como essa construção mostrada ao longo da narrativa harmoniza-se com a experiência de vida do autor.

Cabe-nos, para tal tarefa, perceber como a narrativa do Canto VI nos apresenta os elementos que compõem esse espaço e como estes permeavam a cultura romana. Desse modo, é possível entender o processo dialético em que a cultura do mundo romano interage com o indivíduo e, consequentemente, nas suas produções, sendo esta (a produção), o resultado da cultura social e a experiência do indivíduo, que alimenta e reverbera a cultura dessa sociedade.3 Dessa maneira podemos entender a perpetuação de certos elementos ao longo da história romana e o acréscimo de outros, advindos de novas interações com outros povos.

A escolha da Eneida como fonte para a pesquisa se fez baseada em alguns critérios: riqueza de detalhes ao descrever o espaço do Orco no Canto VI, o que possibilita-nos entender um pouco a construção narrativa do mundo dos mortos na obra; a relevância da epopeia no seu tempo (século

2 Ao morrer o morto tornava-se um ser sobrenatural chamado Manes e passava a interagir com os vivos, geralmente

afetando positiva ou negativamente no cotidiano dos indivíduos. Nas lemúrias, o rito é realizado para apaziguar os mortos que não tiveram seus ritos funerários bem executados, o que discutiremos mais a frente.

3 A formação base desse pensamento da cultura e indivíduo advém da teoria da estruturação de Anthony Giddens, ao

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I a.C.) e a receptividade que teve entre os romanos; a singularidade da obra, quanto ao tema abordado e seu gênero, a poesia épica. Partindo desses critérios, a análise da descrição do Orco possibilita ao leitor construir uma imagem desse espaço a partir da narrativa virgiliana. Nesse sentido, nenhuma outra obra na literatura latina reuniu tantos detalhes sobre o além-vida na cultura romana como a Eneida, o que abre margem para diversas interpretações e estudos acerca desse tópico. Outro ponto que devemos entender é a importância da Eneida em sua época histórica. Apesar das discussões sobre a saga de Eneias ser uma propaganda do Principado de Otávio Augusto, é inegável que não foi por puro acaso ou favoritismo que Virgílio foi considerado o maior expoente da literatura latina antiga e a Eneida a sua obra-prima. Para além de seu conteúdo político, as características literárias da obra, assim como sua repercussão ao longo dos séculos, atestam a favor da habilidade do poeta e sua epopeia.

Não por acaso, poucos anos após sua publicação, a Eneida começou a ser utilizada para educar crianças romanas no latim. Também teve ao longo dos séculos diversos comentadores, como, por exemplo, Sérvio Honorato4. Ademais, Virgílio e a Eneida foram fonte de inspiração para Dante Alighieri (Século XIII-XIV), Camões (Século XVI) entre outros grandes expoentes da literatura. Outro fator que atesta a favor da Eneida é a que obra trata de um assunto praticamente inédito na história romana. Apesar da narrativa sobre a fundação de Roma já ter existido durante o período Republicano5, a Eneida destaca-se por buscar uma narrativa mitológica explicando a fundação do povo romano. Tendo Eneias, o herói Troiano, como protagonista do épico, Virgílio remonta a origem Romana através de um passado mítico.

Apesar disso, há algumas questões a serem problematizadas quando entramos no universo da Eneida: a primeira delas é até que ponto podemos inferir que a visão de Virgílio sobre o Orco, no Canto VI, reflete um traço do imaginário romano em relação ao outro mundo e onde seus mortos habitam. Esse campo reflete uma dúvida quanto à dimensão do indivíduo frente à sociedade. Seria então a narrativa de Virgílio uma visão específica (e utilitária) do além-vida frente ao horizonte de expectativa em que vivia, ou a expressão literária de um tema que está em sintonia com a cultura da sociedade romana frente à questão dos mortos?

4 Sérvio Honorato foi um gramático romano do século IV d.C.

5 Ênio, escritor romano do século II a.C escreveu a história de Roma em seu livro Annales. Também cabe destacar o

historiador Tito Lívio (século I a.C.) que também produziu diversas obras sobre a história romana, mostrando esse ser um tema recorrente para os romanos. Porém, a obra de Virgílio destaca-se por buscar uma origem mitológica da cidade de Roma e do povo romano, diferente do viés mais prático sobre a fundação da cidade trazida pelos outros dois autores citados.

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Outra questão que nos debruçaremos está conectada com o questionamento anterior. Afinal, como podemos distinguir o que o poeta usa como elementos narrativos, que servem para a dinâmica e lógica interna da obra, de um aspecto da cultura romana acerca desses elementos narrativos? O que, de fato, pode ser considerado como pontos da cultura romana e o que foi colocado na obra de forma narrativa, cumprindo uma função no enredo, para dar lógica no texto do poeta?

Sobre a ideia do além-vida que iremos analisar também nos cabe inferir alguns questionamentos: o primeiro deles diz respeito a como podemos compreender o espaço do além-vida a partir de uma narrativa literária. Como a narrativa do Canto VI nos ajuda a conceber a ideia de além-vida para os romanos? E como os ritos funerários poderiam determinar o acesso do morto a espaço ao qual deve pertencer? Buscaremos responder essas perguntas ao longo dos capítulos, apesar de saber que a maioria dos questionamentos giram em torno de hipóteses e agregam valor a discussões anteriores a essa pesquisa.

Um desses elementos trata da relação dos vivos com os mortos na Roma Antiga. Aos mortos eram dedicados festivais, celebrações e dias especiais no calendário romano, o que indica uma estima e importância destes na cultura romana. Para pensarmos essa relação entre vivos e mortos na Roma Antiga o trabalho de Bustamante (2014) nos foi fundamental, pois nos auxiliou a entender melhor como as práticas culturais, nesse caso as celebrações e festivais, apresentam uma forma de lidar com os mortos. Percebe-se que o papel do morto é, em diversos momentos, ambíguo e tem conotações positivas e negativas. Quando positiva, o morto é visto como um manes, um espírito protetor, intermediário entre os seres vivos e os seres divinos. Quando negativa, os mortos são vistos como Lêmures, espíritos malignos que assombram os vivos. No primeiro caso, as festividades buscavam celebrar e honrar os manes dos antepassados, no segundo, a função das festividades estava em apaziguar esses espíritos malignos. Percebe-se, portanto, que o morto não é um elemento “estático”, com uma posição e função definida dentro da lógica cultural na Roma antiga.

Visto isso, nosso segundo desafio para entender a relação entre vivos e mortos estava em compreender que fatores determinariam a transformação desse morto em manes ou lêmure. Um dos fatores, e talvez o principal, estava ligado a correta execução dos ritos funerários. Os ritos garantiriam a condição de di manes para o espírito do morto. Em contrapartida, este antepassado poderia ajudar os vivos, guiando-os e trazendo bons agouros. Nesse aspecto, o trabalho de Jocelyn Mary Catherine Toynbee (1971) nos deu embasamento acerca das práticas e ritos funerários

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romanos. Foi-nos possível perceber, a partir do estudo da autora, a abrangência dos ritos, desde os dedicados a figuras de autoridade, como imperadores, até os direcionados à população e aos soldados. Percebe-se, logo, que a morte também é um fator de diferenciação dentro da estrutura social romana, tendo o morto ritos mais complexos ou mais simples a depender de sua posição social. Nesse ponto, outro importante estudo que nos auxiliou acerca dessa problemática das práticas funerárias romanas foi o livro “Práticas funerárias no Mediterrâneo Romano”, sob a organização de Pedro Paulo Funari e Luciane Munhoz de Omena (2016). A partir dos textos, foi possível compreender a estratificação social a partir das práticas funerárias e o papel da preservação da memória do morto nos processos de legitimação e apoteose de um novo imperador, questões que, apesar de não estarem no escopo da pesquisa se fazem essenciais para entender o papel do morto na construção e legitimação de aspectos sociais, tal como a transferência de poder para um novo imperador.

Esses estudos trouxeram contribuições significativas para a compreendermos o papel dos mortos dentro da sociedade Romana. Entretanto, apesar de apresentarem com propriedade os aspectos formais de enterramento e práticas funerárias, uma questão que ainda nos escapava era a dimensão de uma ideia de além-vida dentro do mundo romano. Foi no trabalho de Franz Cumont (1922) que a percepção de um espaço para os mortos surgiu dentro da presente pesquisa. Apesar de ser considerado um autor antigo, foi possível, a partir de seus estudos, vislumbrar uma perspectiva de resposta que rompe a dimensão física e social da problemática dos mortos, entrando no campo da religião romana.

A religião, de maneira geral, abrange os aspectos da morte e do morrer tentando apresentar respostas para essa questão existencial. Na religião romana, podemos perceber essa perspectiva quando analisamos os cultos e festividades dedicados aos mortos. Mais do que isso, percebe-se que a religião é um elemento central na vida sociopolítica dos romanos. Logo, não é possível conceber a dinâmica política e social do mundo romano sem nos debruçarmos sobre as características de sua religião. Esses pontos nos levaram aos estudos de John Scheid (2003) e Mary Beard (2005). Ambos os historiados mostram que a religião romana foi sendo adaptada e ressignificada junto com os aspectos sociais e políticos da história da República e do Império. Desse modo, não podemos pensar aspectos culturais isoladamente, uma vez que a religião, sociedade e política estão intrinsecamente ligadas. Nesse ponto, outra excelente contribuição para nossa perspectiva de trabalho veio de Cláudia Beltrão da Rosa (2014), pois a autora nos ajudou a pensar sobre os ritos

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funerários e a preocupação da religião romana com a correta6 execução dos ritos. Essa especificidade do rigor para com os ritos distingue a religião romana de outras religiões da Antiguidade. Os ritos funerários também serão fundamentais na narrativa da Eneida, sendo o meio de acesso do morto a o mundo ao qual pertence.

Portanto, para entendermos a construção desse mundo dos mortos na cultura romana devemos compreender sua religião e também se faz necessário percebermos questões sociais e políticas. Partindo desse ponto tão caro à pesquisa, a análise do Canto VI da Eneida não pode se constituir apenas de uma formulação literária ou percepção religiosa do mundo, mas também abrange aspectos sociais e políticos romano. Entretanto, ao longo do século XX, a historiografia acerca da Eneida e do além-vida voltou-se para explicações pragmáticas e sociais, atentando demasiadamente sobre os aspectos de memória e legitimação do poder a partir do uso dos antepassados. Dessa maneira, pouca atenção a aspectos subjetivos dentro da composição do poema, além da percepção do indivíduo que produziu a obra foram dadas. Apesar disso, conseguimos encontrar autores que dialogam com nossa problemática.

Um destes trabalhos foi do historiador Carlos Ascenso André (1984), que destaca a relação de vida e morte no épico de Virgílio. Compreender essa perspectiva dual na narrativa de Virgílio mostra-se uma tarefa árdua e instigante, apesar de apresentar-se ao longo da obra. O poeta, em determinados versos do Canto VI, reflete sobre a própria história, colocando na boca de Caronte uma pergunta que possivelmente poderia passar pela cabeça do leitor: o que um mortal está fazendo num mundo destinado aos mortos? (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 390 – 391). Para além disso, a narrativa de Virgílio estrutura-se, em muito momentos, a partir de uma lógica de vida e morte. Sobre esse aspecto, a análise de Issaly e Morales (2001) nos ajudou a perceber a forte relação entre a vida e a morte na Eneida ao apresentarem diversas visões de uma morte fundadora dentro da narrativa de Virgílio. Dessa maneira, a morte funda sempre algo novo, dando ao épico uma concepção cíclica. Tal perspectiva nos possibilitou pensar no caráter tênue dessa linha que divide a vida e a morte. Aparentemente duais, porém complementares, uma vez que só pode existir a morte se houver a vida e o contrário também se faz verdadeiro. Ainda sobre esse ponto, cabe a nós destacar o artigo de João Pedro Mendes (1994) que nos suscitou, para além da concepção cíclica presente no Canto VI, o caráter filosófico da obra. Dessa maneira, o estudo de Mendes nos ajudou

6 Entende-se por uma execução “correta” na Roma Antiga o rito que segue rigorosamente todos os procedimentos do

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a pensar acerca da construção de pensamento e visão de mundo de Virgílio. Esse aspecto também nos é caro pois buscamos compreender, a partir da análise do Canto VI, elementos que na obra apresentam as intenções do poeta, tal como seus objetivos para além de narrar o épico.

Partindo dessas reflexões filosóficas, tentamos mapear algumas ideias de doutrinas que circulavam pelo território romano no século I a.C. e como possivelmente Virgílio estaria em contato com elas. Ademais, ao analisarmos a narrativa do Canto VI mostrou-se perceptível os elementos referentes a algumas doutrinas que, em maior e menor medida, circulavam por Roma durante o século I a.C. É o caso do epicurismo, marcado pelo filósofo latino Lucrécio e também, em menor medida, o orfismo, que apresenta-se de forma sutil nos versos de Virgílio. Um estudo que nos foi muito caro nessa perspectiva foi a dissertação de Thiago Eustáquio da Mota (2011) e sua tese (2015), ao qual buscamos estabelecer um forte diálogo nessa pesquisa com o objetivo de desenvolver novas perspectivas e ampliar o debate acerca do espaço do mundo dos mortos no Canto VI. Na presente dissertação enveredamos pela construção narrativa desse espaço, percebendo os elementos que o poeta utiliza para montar a lógica interna do texto e atender seus objetivos. Para tanto, como falado acima, Virgílio trabalha com aspectos diversos de uma cultura multifacetada.

A confluência dessas diversas correntes de pensamento e costumes dentro do que chamamos cultura romana é um tema recorrente nos mais diversos trabalhos atualmente. Roma apresenta-se como uma sociedade marcada pela diversidade, resultado de séculos de conquistas e trocas comerciais. Nesse sentido, os aspectos culturais, e em nossa análise a religião romana, podem ser explicados por intermédio de uma troca cultural intensa que não pode ser compreendida como uma via de mão única, unilateral, mas como uma relação de absorção de outras formas de se ver o sagrado e moldá-la de acordo com sua experiência. Ao observarmos a relação com o sagrado no mundo romano percebemos uma religião ritualística, preocupada com ritos e sacrifícios bem definidos para a manutenção de uma ordem cósmica. O calendário romano, como mostra Ovídio no livro “Fastos”, está repleto de datas cerimoniais. Nos parece razoável afirmar, a partir desse aspecto, que a sociedade romana demonstra uma preocupação com os deveres e ritos para com os seus deuses.

Conceitualmente, para pensarmos o espaço nessa dissertação partimos da ideia do geógrafo Yi-fu Tuan sobre espaço mítico. Tuan busca compreender o espaço a partir da experiência, trabalhando assim a dicotomia espaço-lugar e as relações criadas entre o meio e o indivíduo como base de suas representações e identidades. O espaço mítico, em linhas gerais, representa a visão de mundo de

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um indivíduo ou sociedade acerca do desconhecido (TUAN, 1983, p.99). Esse espaço torna-se mítico por orbitar na esfera do imaginário, no campo subjetivo, entretanto, também tem sua materialidade quando fixado por um rito, na qual o fixa no plano material. Desse modo, as cosmovisões apresentadas na religião romana sobre o espaço habitado pelos mortos representam o espaço mítico, que tem como matéria formadora o que não se conhece, sendo estas vivenciadas a partir dos ritos funerários, o que demarca uma linha entre vivos e mortos. Tuan nos mostra que o espaço, seja ele qual for, é construído pelo homem a partir do seu intelecto e sua ressignificação, tornando-se um lugar, com seus significados e sentidos. Nesse sentido, o espaço mítico é construído a partir da imaginação dos indivíduos quando confrontados pelas necessidades humanas fundamentais, o que no nosso caso é a morte. (TUAN, 1983, p. 112). A explicação sobre a morte e o que acontece após morrermos encaixa-se como uma necessidade humana uma vez que até os dias atuais esta é uma das grandes questões existencialistas.

O espaço construído por Virgílio, entretanto, não é apenas fruto de uma visão acerca da morte. É um constructo não apenas mítico, mas também imaginário. Imaginário por não se tratar de um espaço pragmático, real, mas que a partir de elementos da realidade se constrói. Os bosques, os rios, as construções, os mortos que habitam em cada um dos espaços do Orco têm como base a realidade do autor, tanto objetiva quanto subjetiva. Pensando sobre tal questão, nos debruçamos sobre a perspectiva de Marc Augé (1998) que demonstra a construção desses espaços imaginários a partir das relações sociais. Desse ponto de vista, o espaço do Orco vai sendo modulado à medida que os elementos narrativos projetam imagens e representações. Logo, ao mesmo tempo que o além-vida expressa-se como uma resposta ao dilema da morte, este também é um espaço imaginário, uma vez que é produto de uma obra literária que, a rigor, não tem base pragmática.

Ademais, quando nos aprofundamos na análise espacial do Orco foi possível perceber um terceiro modo de pensar essa espacialidade: o campo simbólico. Ao organizar os diferentes espaços que compõem o que chamamos de Orco, Virgílio divide rigorosamente estes de acordo com as especificidades de cada morto. Há o espaço para os guerreiros, para os que morreram por culpa de um amor mal realizado, para os vis e soberbos e também para os imaculados, de almas puras e seres divinos. Todos esses espaços criam significações, símbolos que nos remetem a uma conduta. Nesse ponto, o estudo de Maria Luisa La Fico Guzzo (2005) se fez fundamental para compreendermos como esse espaço simbólico se apresenta no Canto VI e como se constrói, a partir dessa perspectiva, uma forma ideal de conduta do cidadão romano.

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Saindo um pouco da questão espacial na Eneida, também tivemos que travar contato com aspectos da literatura latina. Fomos impelidos a nos debruçar sobre o estudo dos gêneros literários e analisá-los de acordo com sua natureza. Visto isso, ao estudarmos os escritos de Conte (1999) nos inteiramos acerca dos gêneros literários que compõem a literatura latina. Partindo dos gêneros literários, a Eneida é classificada como uma poesia épica, um gênero literário marcado pelo tempo mítico, pelas grandes histórias e saga dos heróis. A Eneida não foge dessas características. Sua narrativa está imersa em mitologias, tendo como objetivo criar uma origem divina do povo romano. Para harmonizarmos a literatura latina com a análise histórica tivemos a ajuda do trabalho de Gonçalves (2013) a qual nos mostra que a literatura e a história eram saberes similares, que misturavam narrativa histórica com imaginação, dando ao real a beleza e poética própria da literatura (GOLÇALVES, 2013, p. 2). Nesse sentido, uma análise literária não parte apenas da extração de informação acerca de um determinado assunto, mas sim um estudo detalhado sobre o contexto que a obra foi escrita, sobre o autor e a motivação do mesmo. Toda obra literária tem uma intenção e motivações diversas, portanto, todos esses aspectos devem ser pensados quando refletimos sobre criação de uma obra literária, pois a partir dessa análise podemos compreender suas intenções e a relação da obra produzida com os aspectos reais e seu contexto histórico.

A partir dessa reflexão, buscamos trabalhar com o conceito de Estrutura e Agência de Anthony Giddens para pensarmos no papel de Virgílio enquanto sujeito dentro da sociedade romana.7 A teoria da estruturação nos ajuda a pensar no autor da Eneida e na própria obra como uma ação consciente do indivíduo que entra dentro da estrutura romana e a modifica a partir da sua limitação e parâmetros. Dessa maneira, o poeta não faria da sua obra uma mera propaganda ou a feito por encomenda, mas sim como resultado de suas crenças e visão de mundo enquanto romano.

Como metodologia para essa pesquisa faremos uso da análise textual de Jerzy Topolski8, ao qual se debruça sobre as totalidades narrativas. Apesar do autor buscar essa análise na narrativa histórica, percebemos que a estrutura metodológica utilizada para esse tipo de narrativa também se harmoniza com o texto de Virgílio. As totalidades narrativas nos mostram que a construção de todo o texto está ligada por uma ideia que perpassa os parágrafos, estrofes, versos e estes constituem,

7 Abordaremos a teoria da estruturação ao longo do capítulo I e II, ao qual poderemos relacionar melhor tais elementos

com o contexto histórico de Virgílio e sua obra.

8 Jerzy Topolski foi um historiador polonês ao qual escreveu, entre outros assuntos, sobre teoria e metodologia da

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em última análise, as pequenas partes de um texto orgânico com alto grau de conectividade.9 Desse modo, ao analisarmos a estrutura narrativa do Canto VI poderemos compreender a sua lógica interna, inferindo, a partir da comparação dos elementos culturais romanos, suas diferenças e similaridades entre a realidade e a imaginação do poeta. Portanto, ao “sair” do texto e relacionar a narrativa do épico com a cosmovisão romana, seremos capazes de criar hipóteses acerca das intenções e funções da obra de Virgílio. Nesse sentido, em um primeiro momento devemos analisar a narrativa virgiliana por ela mesma para que, em seguida, contrapor tal narrativa aos elementos que compõem e cercam a cultura do autor, e assim conectar as percepções do autor com esses elementos aparecem no texto.

Para tanto, é preciso definir bem alguns pontos sobre o épico e problematizá-lo: para quem Virgílio escreve? Qual a sua intenção ao escrever um épico sobre a origem da civilização romana? O que difere a visão de Virgílio sobre os mortos do horizonte de expectativa de sua época? Tais questões podem encontrar respostas suficientes a partir da análise do discurso produzido na narrativa do épico virgiliano e sua receptividade diante do público ao qual sua obra fora destinado. Os capítulos estão distribuídos a partir da seguinte lógica: o capítulo I tratará do horizonte de expectativa do autor. Nosso objetivo foi traçar uma relação de aspectos da vida de Virgílio, conhecido a partir de suas biografias, com o período histórico ao qual viveu. Uma relação entre o homem e o seu tempo. Nesse capítulo discutimos ainda os conceitos de “horizonte de expectativa”, a partir da teoria da receptividade de Hans Robert Jauss e o conceito de estrutura e agência, de Anthony Giddens. Dessa forma, visamos compreender como a ação prática do poeta se relaciona com a sociedade à qual pertencia.

O capítulo II buscará aportar na discussão acerca do gênero épico e na construção da Eneida enquanto obra literária. Situando a literatura de Virgílio não apenas ao seu contexto histórico, mas em toda a tradição do gênero épico e aproximando-o de outros grandes épicos como a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Demonstraremos as influências dos épicos gregos na Eneida e, ao mesmo tempo, a partir dos princípios da narrativa épica relacionaremos aproximações e especificidades da obra de Virgílio. Sendo assim, o capítulo nos ajuda a entender a relevância da obra, sua construção a partir de uma formação e conhecimento literário, além de suas diferenças acerca dos épicos

9 No capítulo IV discorreremos mais detalhadamente acerca das totalidades narrativas, reservando para a introdução

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gregos. Partindo dessa ótica, poderemos distinguir o que Virgílio usa como estrutura narrativa, necessárias para compor o texto, e os elementos específicos de sua cultura.

O capitulo III abordará a análise espacial do Canto VI. Nesse capítulo entramos definitivamente na fonte ao analisar os versos e a construção narrativa do espaço do Orco. Nele abordaremos os diversos tipos de espaço que podemos encontrar na narrativa de Virgílio e efetivamente como essa construção é feita dentro do épico. Ainda dentro desse capítulo abordamos questões relevantes à cultura funerária romana, seus ritos e aspectos da sua religião, além de uma discussão sobre a morte. Tais aspectos nos auxiliam na análise do Canto VI, uma vez que fazemos as relações dessas percepções com a narrativa.

O capítulo IV tem por objetivo analisar, a partir da metodologia das totalidades narrativas, o Canto VI da Eneida buscando demonstrar como a narrativa de Virgílio gira em torno da legitimação do principado de Otávio Augusto. Para tanto, fizemos uma análise do discurso a partir da comparação de traduções da Eneida, além de tentar perceber o desenvolvimento do Canto VI orbitando sobre essa ideia central. Em nossa análise percebe-se a ligação de diversos versos, como uma linha que vai e volta, entrelaçando os personagens e amarrando a narrativa, concedendo-lhe sentido lógico e, ainda assim, chegando ao objetivo do autor. Também buscamos analisar o papel narrativo do Canto VI para o épico, uma vez que o mesmo tem uma função dentro do épico em si, uma vez que não está isolado de toda a narrativa.

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CAPÍTULO I: VIRGÍLIO: UM HOMEM E O SEU TEMPO

Nossa caminhada começa com um homem. Necessitamos desse elemento para entendermos o canto VI da Eneida e sua importância para os antigos romanos. Como toda análise literária, é inerente ao estudo de uma obra um estudo também do ser humano que a escreveu: suas ideias, as ideias que pairavam ao seu redor, por onde andou e o que provavelmente pode ter visto, ouvido e lido nesses lugares.

Entretanto, como bem sabemos, um homem não se constrói sozinho e sempre está em ressonância com seus semelhantes e opositores. Ao observamos a trajetória de uma pessoa, por exemplo, percebemos que não é possível analisar profundamente uma ação específica se não observamos o que a levou até esse momento. Devemos, portanto, entender e situar o nosso homem em um tempo, suas perspectivas, experiências e possibilidades. Esse tempo, obviamente, deve ser o tempo em que esse homem esteve vivo e corresponde, por conseguinte, aos espaços que percorreu, suas experiências e feitos, o que comumente chamamos de “contexto histórico”.

A partir desses dois elementos básicos (o homem e o seu tempo), podemos ter margem para as hipóteses acerca de suas obras e intenções, para o erro e a imprecisão em muitos casos. Por isso que o presente capítulo não se propõe, nem de longe, a buscar afirmações definitivas sobre esse homem que estudaremos. Uma biografia tende a trazer dados mais concretos, fechados, determinantes, mas não buscamos exatamente isso. Queremos as hipóteses, as possibilidades.

Visto isso, o presente capítulo busca introduzir um horizonte de expectativa da Roma Antiga do século I a.C., entendendo a relação de Virgílio com as mudanças, ideias e relações sociais de seu tempo. Nesse sentido, procuraremos observar que a relação do indivíduo com a sociedade ao qual está/estava inserido se faz essencial para a compreensão dos motores psicológicos que podem ter motivado a escrita e construção de suas obras. Colocamos a palavra “obras” no plural por entendermos que não apenas a Eneida se configura a partir dessa relação indivíduo-sociedade e sim todas as obras escritas pelo poeta latino, sendo reflexo de aspectos da sua vida e intencionalidades. Entretanto, não nos cabe nesse momento uma análise mais aprofundada sobre cada uma das obras de Virgílio, nos reservando a apenas, ao longo do capítulo, pontuá-las rapidamente. Nesse momento estamos interessados em nos debruçar, mesmo que em algumas páginas, sobre a vida de Virgílio. Afinal, quem foi este homem?

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O homem

Escrever sobre a vida de Virgílio não é uma tarefa fácil. As poucas e não tão confiáveis fontes existentes sobre a biografia do poeta não nos leva tão adiante ou muito a fundo acerca da sua infância, círculos sociais ou estudos. Nas palavras de Pierre Grimal, infelizmente o que sabemos nunca é absolutamente certo e, quando acreditamos que nossas fontes não se enganam, o que elas nos dizem é sempre parcial (GRIMAL, 1992, p. 15). Visto isso, como falar algo concreto acerca do poeta romano? Apesar de uma missão árdua, esta não é impossível. Para as próximas páginas iremos pensar e utilizar, basicamente, uma biografia de Virgílio escrita por Suetônio10 e uma biografia histórica escrita pelo historiador francês Pierre Grimal, ambos contando sobre a vida do autor da Eneida. Utilizaremos Suetônio pois este pode nos trazer, mesmo que indiretamente, alguns elementos sobre fatos subjetivos de Virgílio, como suas doenças e traços de personalidade, além de objetivamente nos apresentar alguns dados confiáveis. Também é o biógrafo que esteve, cronologicamente, mais próximo do poeta. A escolha pelo francês, entretanto, se dá baseado em sua metodologia de análise dos dados oferecidos pelos biógrafos. Partindo do pressuposto que todos os dados das fontes não são confiáveis, Grimal alinha o que é contato sobre Virgílio e se suas obras refletem o que lhe contam. Segundo o historiador:

É a obra que devemos interrogar, pois ela representa e exprime a história de um pensamento: uma história ao mesmo tempo interior e exterior ao poeta, onde se encontram forças diversas, algumas vindas das regiões mais profundas da sensibilidade, outras oriundas das influências inseparáveis de qualquer criação literária, outras, ainda, que são o resultado das pressões exercidas por um mundo em evolução rápida, no qual as relações entre os homens sofreram transformações radicais (GRIMAL, 1992, p.1).

Partindo dessa perspectiva, o historiador produziu uma biografia histórica de Virgílio na qual podemos aferir certa confiabilidade e compreender um pouco mais entre a relação indivíduo– sociedade que é feita ao longo do livro. Ademais, a busca, a partir da comparação de fontes e relatos com o horizonte de expectativa de Virgílio, entrelaça de forma palpável elementos da vida do poeta com os eventos ocorridos no século I a.C. Também nos mostra um homem ligado ao seu tempo e espaço, não apenas um personagem deslocado de suas origens e jornada. Visto isso, acreditamos que a proposta de Grimal alinha-se bem com a condução de nossa pesquisa e faz-se essencial para

10 A obra chamada Vita Vergili é atribuída a Suetônio, porém nos chegou a partir dos escritos do gramático Elio Donato

(Século IV d.C) como sendo uma biografia escrita por Suetônio. Visto isso, é necessário cautela ao analisar uma fonte tão distante de seu objeto.

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percebermos as relações entre obra, autor e sociedade ao qual nos é tão cara. Comecemos, então, falando um pouco de Virgílio a partir do que escreveram sobre ele.

Um de seus biógrafos foi Caio Suetônio Tranquilo, que foi responsável por escrever diversas obras biográficas, sendo mais conhecido pela sua obra Vida dos doze césares. O biógrafo, entretanto, tem sua data de nascimento no ano 70 d.C. Nesse mesmo ano a morte de Virgílio estava para completar quase dez décadas de ocorrida, o que mostra que o biógrafo e o biografado não foram contemporâneos. Entretanto, esse é um dos menores problemas quando tratamos de biografias de personagens da antiguidade, visto que praticamente todas foram escritas muito depois do seu tempo. O próprio Virgílio, por exemplo, tem outras biografias escritas após séculos de sua morte. Tais fontes que tratam da biografia do poeta latino nos remetem ao século IV d.C., o que as torna ainda menos confiáveis no que tange à veracidade dos fatos, visto a distância temporal ao qual estão submetidas11. Porém, os dados mais confiáveis e completos nos remetem à obra de Suetônio, a qual iremos tomar como norte para entendermos a trajetória de Virgílio, sendo esta uma fonte utilizada largamente quando se trata da vida do poeta.

Públio Virgílio Maro, apresenta Suetônio, nasceu em Mântua, advindo de uma família modesta, no ano de 70 a.C (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 1-3). Mântua é uma região ao norte da península itálica, sendo uma província romana desde o século III a.C. Seu biógrafo descreve o nascimento de Virgílio com elementos mágicos, tal qual os diversos mitos conhecidos na antiguidade.12 Segundo Suetônio, a mãe de Virgílio teria sonhado que dava à luz a um ramo e este, ao tocar o solo, transformava-se em uma árvore cheia de frutos. Quando finalmente pariu seu filho, o recém-nascido Virgílio não teria chorado, apenas apresentando um semblante tranquilo, o que fora interpretado como um presságio que o seu destino seria mais agradável do que o de seus pais (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 3-5). O fato de Suetônio narrar o nascimento de Virgílio com aspectos “mágicos”, como se este fosse um indivíduo que, desde seu nascimento, estivesse predestinado a grandes feitos apenas nos atesta a importância do poeta dentro da cultura romana em geral. Mesmo após sua morte, essa “aura” de um homem diferenciado deixou marcas ao ponto de ser retratado em sua biografia. Certamente não podemos confiar nesses sinais atemporais de forma literal, mas sim entender o simbolismo e poder que essa representação demonstra sobre o poeta.

11 SUETÔNIO, Vida de Virgílio, traduzido por Martha Elena Montemayor Aceves, nota introdutória, p. 207-208. 12 Podemos pensar, para exemplificar, no mito de Perseu. Este fora concebido a partir de uma chuva dourada realizada

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Fiquemos então com a origem modesta em Mântua, o que pode ser constatado nos primeiros poemas escritos por Virgílio, que têm como tema a tranquilidade dos campos e da vida pastoril.13 A imagem que Virgílio cria do campo reflete de forma perceptível nas suas experiências, quando contrapõe, muitas vezes, a vida rural ao da urbs romana (VIRGÍLIO, Geórgicas, Canto II, v. 493-497). Entretanto, uma primeira pergunta nos surge: como um jovem de família modesta pôde ter acesso a círculos tão fechados como o de Mecenas e Otávio Augusto? O historiador Pierre Grimal, em seu livro Virgílio ou o segundo nascimento de Roma, nos explica que Virgílio caiu nas graças do seu sogro e este proveu seu sustento material (GRIMAL, 1992, p. 17), sendo este o meio pelo qual o mantuniano conseguiu estudar e escrever suas obras. Em uma sociedade que a adoção era um hábito comum, especialmente no meio da elite (devemos lembrar que o próprio Otávio Augusto foi adotado por Júlio César, além de outros casos famosos como o do imperador Marco Aurélio) não é de se espantar que essa narrativa contenha em si alguma verdade. O fato é que os primeiros estudos de Virgílio aconteceram em Cremona, região da Gália Cisalpina (GRIMAL, 1992, p. 23; Suetônio, vida de Virgílio, 6). Lá o poeta começou seus passos estudando gramática e noções de latim e grego, duas línguas essenciais para se ter domínio no século I a.C. O latim devido ao uso habitual e cotidiano, sendo a língua predominante na Roma Antiga, e o grego, pelas obras e cultura helênica que permeavam a cultura romana.14

No ano 55 a.C. Virgílio atinge a toga viril, aos 15 anos de idade. Nesse mesmo dia, aponta Suetônio, o epicurista Lucrécio morre (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 6). É interessante notar a coincidência entre os momentos de passagem entre os dois indivíduos. Se pensarmos que, mais tarde, Virgílio entraria em contato com a filosofia epicurista (o que não significa dizer que o próprio Virgílio tenha sido um epicurista) e escreveria inspirado por essa doutrina, talvez esse detalhe apresentado pelo biógrafo Suetônio não seja apenas uma coincidência ou mera curiosidade. De qualquer modo, a chegada de Virgílio à toga viril marca um momento importante na sua trajetória, assim como para todo romano. Virgílio dá continuidade aos seus estudos indo para Milão, uma importante província e centro de estudos. Grimal nos alerta, sobre esse fato, de que a ida do poeta para um centro tão famoso (e provavelmente de alto custo) não prova que Virgílio provenha de uma família rica. Segundo o historiador, era comum, mesmo pelas famílias mais modestas, a busca

13 Uma obra principal de Virgílio se detém ao tema dos campos e do pastoril, sendo esta as Geórgicas, geralmente

apresentando uma visão idílica do mundo rural.

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desses centros para construção de uma formação intelectual aos seus filhos (GRIMAL, 1992, p. 27). Portanto, a origem humilde e modesta de Virgílio ainda segue em vigor.

Apesar das prováveis expectativas e aspirações públicas destinadas a Virgílio, uma vez que sua educação fora patrocinada (ou uma forma de investimento), aparentemente ela não foi bem-sucedida. Sua natureza introspectiva não lhe dava as qualidades necessárias para um bom orador. Segundo Grimal, Virgílio era um amigo natural do silêncio, de espírito meditativo, interessado mais pelas causas que pelas coisas e criou, parece, uma aversão ao Fórum romano (GRIMAL, 1992, p. 30). Suetônio destaca, além dessas condições “internas”, o fato de Virgílio apresentar alguns problemas de saúde, o que inevitavelmente lhe afastariam do convívio público. Segundo o biógrafo, o poeta sofria frequentemente de dores de estômago, de cabeça e garganta, além de sangramentos (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 8-9). Nosso homem, então, provavelmente teria um estilo de vida mais voltado a ambientes privados, recluso em alguns momentos, muito diferente do que se espera de um cidadão da urbe romana. Talvez por isso o destaque de Grimal à educação do poeta retrata que o mesmo se interessou mais pela matemática e medicina e dedicou-se pouco à retórica (GRIMAL, 1992, p. 30). Tais conhecimentos buscam uma natureza mais interna, quanto a segunda, é exercida essencialmente em público.

A imagem de Virgílio como um indivíduo recolhido e pouco visto em ambientes públicos é apresentada na biografia escrita por Suetônio. Virgílio tinha apreço, segundo o biógrafo, em residir na Campânia e Sicília, mesmo tendo uma casa em Roma e diversos amigos pela Capital do Império (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 13-14). Essa característica tão marcante aparece refletida em suas obras, as Bucólicas e as Geórgicas, e podemos considerá-la como plausível e verossímil, visto a quantidade de relações que reforçam esse elemento no poeta.

Se lhe faltava habilidade para expressar-se em público, Virgílio encontrou na arte uma saída. Sua relação com a poesia apresentou-se desde cedo, segundo Suetônio, na adolescência Virgílio teria composto alguns poemas, esses conhecidos por Catalepton, Priapea, Epigramas,Dirae, Ciris e Culex (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 17-9). Todos com uma narrativa pastoril ao qual tratava-se de um pastor sob a sombra de uma árvore. Podemos pensar que, de fato, para alguém de natureza tão quieta e com tendência à introspecção, as palavras lhe fossem uma companhia mais interessante do que uma multidão.

A busca pela perfeição de suas obras, principalmente a Eneida, é uma prova de que Virgílio levava a construção de seus poemas como prioridade. Seu perfeccionismo e precisão da narrativa

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era tamanha que, segundo Oliva Neto, em seu leito de morte o poeta teria pedido para que sua obra fosse queimada, visto que não estava completa (OLIVA NETO, 2014, p. 889-890). A epopeia, como sabemos, termina de forma abrupta com Eneias derrotando Turno, fazendo com que sua alma fuja para as sombras (Virgílio, Eneida, Canto XII, v. 952). Um final rápido e sem tanta grandiosidade quanto esperado de uma narrativa rica como a Eneida.15 Outra prova do

perfeccionismo de Virgílio é apresentada por Suetônio, que afirma na biografia do poeta que a saga de Eneias fora escrita primeiro em prosa, porém Virgílio não agradou-se e resolveu transformar o texto em versos (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 23-24). A busca pela precisão da narrativa acabou, indiretamente, tirando-lhe a vida. Em uma viagem para Grécia, para visitar um dos cenários narrados na epopeia, Virgílio acometeu-se de uma doença e em decorrência desta chegou a falecer, em Brundisium, no ano de 19 a.C. (OLIVA NETO, 2014, p. 889). Outro exemplo dessa busca pela precisão da escrita está nas Geórgicas. Segundo Suetônio, contava-se que no processo de escrita do livro, Virgílio escrevia muitos versos pela manhã, e o restante do dia era dedicado a revisá-los e acabava por deixar poucos, enquanto descartava a maioria do que havia escrito (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 22). Entretanto, estamos nos adiantando na trajetória do poeta. Antes de tudo, devemos entender como e por quais lugares esse homem introspectivo e perfeccionista passou, com quem aprendeu e como suas obras refletiram os ensinamentos e experiências acumuladas em vida. Portanto, vamos buscar um pouco dos caminhos que percorreu Virgílio até tornar-se o grande poeta da cultura romana.

1.1.1 Os caminhos de um poeta

A trajetória intelectual de Virgílio nos é tão difícil de precisar quanto outros detalhes de sua vida. As informações não são claras e por muitas vezes inexistentes, o que torna nosso trabalho mais aberto aos equívocos e erros. Ainda assim, buscaremos reconstruir pelo menos o que, segundo as fontes e a historiografia, nos parece algo possível no caminho do poeta. Sobre as imprecisões, Pierre Grimal, por exemplo, nos apresenta que alguns biógrafos colocam Virgílio como discípulo de Epídio, um retórico que ensinava em Roma, e que este teve como condiscípulo o jovem Otávio (GRIMAL, 1992, p. 37). Porém, o historiador mostra que seria praticamente impossível que ambos

15 Quando afirmamos que os últimos versos da Eneida não são tão grandiosos quanto sua narrativa, queremos

apresentar que o desfecho da saga de Eneias não deveria ser fechado com o seu duelo contra turno, mas sim, como previsto nos Cantos anteriores, com a fundação do que iria ser Roma.

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fossem alunos do mesmo mestre, no mesmo período, visto a diferença de idade (enquanto Virgílio estaria na casa dos vinte e dois anos, o futuro princeps estaria com apenas treze). Esses detalhes devem ser percebidos e refletidos para que não incorremos em erros que notadamente poderiam ser evitados. O que não exclui, outrora, a possibilidade de Virgílio e Otávio terem sido apresentados nesse período, mas por outras vias ou pessoas.

O fato de Virgílio e Otávio se conhecerem e terem como mestre Epídio pode não ter ocorrido, entretanto, a informação de que Virgílio teve contato com o retórico não nos parece incorreta. O fato de ter grandes homens ao seu redor nesse período também é uma afirmativa plausível, uma vez que a formação intelectual se passava em conjunto. Um exemplo disso é a amizade criada por Virgílio e Coruiniuis Messala16 nesse período em Roma. Segundo Grimal, essa amizade é sugerida pelo fato de Virgílio ter-lhe dedicado o poema intitulado Ciris (GRIMAL, 1992, p. 38). Devemos notar, portanto, que a origem social de um romano não tinha uma relação direta ou era determinante dentro dessas relações ou círculos intelectuais. Virgílio, advindo de uma família provinciana, teria tido uma oportunidade similar a ascender dentro da estrutura romana tal qual personagens nascidos em berços de ouro. Apesar disso, pelo que podemos perceber ao analisar sua vida, ocupar grandes cargos na sociedade romana nunca fora seu objetivo principal. Segundo Grimal, Virgílio só sentia gosto pela vida do espírito: estudo das leis que governam o universo, descoberta do espetáculo oferecido pelo mundo, busca da serenidade interior e, no fundo de si mesmo, um amor irresistível pela poesia (GRIMAL, 1992, p. 39).

Entretanto, o que se estudava no século I a.C.? Essa, sem dúvida, é uma pergunta vasta e que, certamente, não conseguiremos abordar em sua plenitude aqui. Mais interessante do que saber o que se poderia estudar nesse período é entender o que provavelmente interessaria ao nosso ilustre poeta. Naturalmente, visto as características apresentadas até aqui, podemos aferir que seu interesse se voltava, como já dito, às ciências mais internas. Dentre elas, a filosofia, certamente, foi um de seus maiores interesses. Muito se discute sobre as inclinações filosóficas de Virgílio em suas obras, entretanto, colocar o poeta em uma “caixa filosófica” mostra-se uma tarefa árdua, visto a diversidade de referências que podemos encontrar em suas obras.17 Apesar disso, podemos aferir

16 Marcus Valerius Messalla Coruiniuis (64 a.C. – 13 d.C.): foi um político, militar, orador, poeta, gramático e patrono

dos poetas durante o governo de Otávio Augusto (REZENDE, Antônio Martinez de, TACITO. Diálogo dos oradores, 2014 p. 129, nota 55)

17 Para exemplificar a capacidade do poeta em articular e combinar diversos conhecimentos, no capítulo IV abordamos

como a doutrina órfica, oriunda da Grécia do século VI a.C., aparece e costura a narrativa do Canto VI. Junto a isso, podemos perceber ideias como a da imortalidade da alma, de Platão, presente em toda construção narrativa da Eneida.

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com uma boa margem de certeza que Virgílio teve contato e foi um estudioso de algumas correntes filosóficas de sua época. Dentre elas, a mais conhecida, talvez, tenha sido o epicurismo, o que não implica dizer, obviamente, que Virgílio tenha sido um epicurista.

Não temos uma data precisa de quando ocorreu o contato de Virgílio com a doutrina de Epicuro. Pierre Grimal, mais uma vez, busca afirmar que esse contato tenha ocorrido antes de 49 a.C., porém, o próprio historiador afirma que essa data não é muito confiável (GRIMAL, 1992, p.40). Mesmo assim, certamente em um período próximo o poeta foi para Nápoles e encontrou-se com Sirão para aprender sobre o epicurismo. Sabemos que o epicurismo, nesse período, era difundido nos círculos intelectuais romanos. Lucrécio, um dos mais famosos epicuristas de Roma, apresentava seu livro De rerum natura (Sobre a natureza das coisas). Suas ideias devem ter sido bem difundidas na época, uma vez que Cícero escreveu um livro (Da natureza dos Deuses) contestando algumas de suas ideias.18

Um outro ponto entre o epicurismo praticado em Roma era o de que, em tese, a doutrina não aconselhava o envolvimento político de seus discípulos. Segundo Grimal:

O epicurismo não implicava nenhum compromisso político, e não se pode pensar que alguma vez tenha constituído um “partido”. Isto teria sido, aliais, contrário ao espírito da doutrina, que, diferentemente do estoicismo, aconselhava a não se participar da vida da cidade, pois, dizia Epicuro, se nos imiscuirmos na competição política, se disputarmos as magistraturas ou, de modo mais geral, se nos ocuparmos com assuntos públicos, não deixaremos de expor-nos ao ódio dos rivais que encontramos e dos cidadãos cujos interesses não favorecemos (GRIMAL, 1992, p. 44-45).

O trecho acima nos permite pensar em mais um motivo de atração entre a doutrina filosófica e Virgílio. Bem sabemos, nesse caso pela ausência de informação em sua biografia escrita por Suetônio, que o poeta não buscou, de forma direta, exercer cargos políticos em Roma. Mesmo ligado a pessoas de poder, até mesmo o princeps¸ Virgílio não teve inclinações dessa natureza. Talvez tenha sido esse mais um fator positivo em que o epicurismo possa ter agregado a vida de Virgílio: uma resposta ou posição ao qual a sua personalidade introspectiva tenha apreciado. Grimal nos aponta também, em outra passagem, uma relação interessante entre as Bucólicas e o período em que a série de elegias foram escritas e sua postura filosófica:

Pouco importam outros ensaios, eis que as bucólicas o ocupam inteiramente; compõem-nas, dizem os comentadores antigos, entre 42 e 38 ou 38, ou seja, durante o período

18 Abordaremos esse assunto mais a frente, no capítulo III, ao falarmos sobre a relação entre as ideias difundidas em

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conturbado de que falamos. Mas seria absurdo acreditar que as tenha escrito para obter uma notoriedade capaz de protege-lo contra os confiscos. Na realidade, ele encontrou, nessa poesia da terra, um modo de expressão que satisfazia nele o que há de mais profundo: o amor pela vida rústica, que lhe parece trazer toda felicidade à qual os homens podem aspirar e, ao mesmo tempo, graças à sua experiência epicurista, a convicção de que essa vida no campo realiza os imperativos da filosofia que Sirão lhe ensinou (GRIMAL, 1992, p.57).

O período demarcado pelo historiador são as disputas políticas entre Otávio e Marco Antônio, ao qual falaremos mais adiante. O que nos chama atenção aqui é a posição que Grimal coloca para Virgílio, na qual busca na poesia uma forma de expressão de suas convicções filosóficas frente ao mundo. Também nos chama atenção a relação de dualidade que se apresenta entre os escritos do poeta e sua época. Enquanto um busca a paz e tranquilidade, relatando a vida simples e rústica do campo, o outro é marcado por diversas guerras e conflitos, sendo oposto à poesia de Virgílio. Essa calma e posicionamento frente à vida é uma marca em sua escrita não por acaso, como alerta Grimal, mas sim uma resposta que encontrou nos ensinamentos epicuristas de Sirão e que o acompanharão em sua jornada.

Devemos salientar, porém, que o fato de Virgílio não ter ambições para com a vida pública, no sentido de obter cargos e participar ativamente da política romana, não significa dizer que não era um homem político, uma vez que sua área de atuação estava na poesia e não no Senado. Sabemos que a maioria das suas obras foram dedicadas a grandes personagens da política romana, não apenas a Otávio Augusto. Sua relação com Gaius Asinius Pollio19, por exemplo, mostra que apesar de não buscar uma ascensão política, Virgílio estava cercado de homens poderosos e que, certamente, exerceram influências múltiplas dentro de suas esferas. Devido a essas relações, podemos aferir que o poeta foi um homem político, mesmo sem exercer diretamente cargos dessa natureza. Essa relação entre Virgílio e as grandes figuras da sociedade romana lhe rendeu, como bem sabemos, várias críticas quanto a sua obra: a historiografia por muito tempo não lhe poupou da imagem de uma propagandista, um “mercenário” a serviço do princeps Otávio Augusto e que a Eneida não seria nada mais que uma mera forma de legitimar o poder do herdeiro de Júlio César20. Entretanto, trataremos desse assunto mais à frente. Por hora, devemos nos deter a entender que a formação intelectual do mantuniano talvez tenha causado sobre ele mudanças na sua forma de pensar, posições acerca de sua visão de mundo e cultura, assim como a interação com outros poetas,

19 Servidor nos exércitos de César, exerceu papel na administração da província da Gália Cisalpina entre os anos de 43

a 40 a.C. Virgílio dedicou-lhe a quarta e oitava éclogas das Bucólicas

20 Atualmente muitas pesquisas superaram esse lugar comum de apresentar Virgílio como um indivíduo passivo, o que

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políticos e intelectuais de sua época, colocaram Virgílio em uma situação favorável e de prestígio, absorvendo e devolvendo ao mundo romano aquilo que lhe coube.

Acerca da formação intelectual do poeta, podemos pensar que em larga escala ela se fez sobre autores e filosofias gregas. Suas leituras, como conseguimos ver, não se limitaram apenas ao campo da poesia, nem das epopeias homéricas, o que, no século I a.C., apresenta-se como comum dentro da formação intelectual desses homens.21 No caso de Virgílio, já na antiguidade, alguns de seus contemporâneos não viram sua inspiração em Homero com bons olhos. Suetônio nos apresenta que após a morte do poeta, em 19 a.C., muitos dos seus críticos o acusaram de copiar o poeta grego em sua narrativa épica (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 43-45). A situação parece plausível, uma vez que o biógrafo apresenta o nome dos detratores e as críticas aos quais eles submeteram o poeta. Também apresenta um livro intitulado “contra os detratores de Virgílio”, escrito por Asconio Pediano, no qual o autor sai em defesa do autor da Eneida (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 46). Vale salientar que essa discussão foi alimentada (talvez ainda seja) até a metade do século XX.

Apesar de nos dias atuais a historiografia defender a originalidade da Eneida, é um lugar comum falar na demasiada semelhança entre a obra de Virgílio e as epopeias gregas. Francis Cairns, em seu livro Virgil’s Augustan Epic (1989) trata bem essa relação entre as obras homéricas e a Eneida, partindo de semelhanças de temas, estrutura narrativa e, por fim, sua finalidade dentro da sociedade romana. Apesar de grandes semelhanças, o autor deixa claro a originalidade da obra, dando à epopeia de Virgílio um sopro de autenticidade. Cairns não é o primeiro nem o último a fazer tais comparações, entretanto, o fato em si não é, necessariamente, surpreendente. Podemos considerar como um fato previsível e, na verdade, apresenta-se até como esperado que exista críticos e comentadores de grandes obras. Todavia, o que nos chama atenção e nos leva a refletir é o quão imerso na cultura grega Virgílio esteve para receber tal crítica, da antiguidade até os dias atuais.

Torna-se, assim, mais interessante perceber, como veremos no capítulo seguinte, a absorção e transformação dessa cultura grega em uma forma romana. Portanto, percebemos, a partir das críticas, o valor e peso da filosofia e arte grega na formação intelectual dos círculos que Virgílio fez parte.22Já vimos que Virgílio travou contato com o epicurismo, mas devemos compreender que

21 No capítulo II dessa dissertação, ao comentar sobre a tradição literária da Eneida, aprofundamos acerca desse

assunto.

22 Podemos pensar, por exemplo, que algumas obras latinas foram escritas em grego, como é o caso do livro meditações

Referências

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