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Fundação de capelas na Lisboa quatrocentista: da morte à vida eterna

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Academic year: 2021

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F U N D A Ç Ã O D E C A P E L A S N A L I S B O A

Q U A T R O C E N T I S T A : D A M O R T E À V I D A E T E R N A 1

T ER E SA COSTA • FIL IPE CA LV Ã O ••

Introdução

O presente trabalho aborda a tem ática da morte no Portugal m edieval através do estudo da fundação de capelas fúnebres, na Lisboa da Baixa Idade Média. Parte de um acervo documental até agora quase inexplo­ rado: um a série de tombos de capelas, depositadas na Torre do Tombo, no sub-fundo arquivístico intitulado “ Provedoria das capelas de Lisboa e seu term o”, integrado pelos autores do recente Guia de Fundos da Torre do Tombo no fundo “Casa da Suplicação" . A série em questão terá sido, segundo tudo indica, elaborada numa data tardia (séc. XVIII) a partir dos tombos originais produzidos pela Provedoria das Capelas de Lisboa, que funcionava nesta cidade desde finais do século XV 4. Estes tom bos.

• L icenciada cm H istória - variante A rqueologia (FCSH - UNL). •• L icenciado em H istória (FCSH - UNL).

' O presente trabalho é uma versão muito reform ulada de um texto elaborado no âm bito das licenciaturas dos autores, sob orientação da Prof.“ Maria de Lurdes Rosa.

Guia G eral das F undos da Torre do Tombo. ed. D irecção de Serviços de Arqui-

vístiea. vol. I, pp. 167-171, Lisboa. 1AN/TT, 1998. O sub-fundo arquivístico trabalhado será adiante designado por IAN/1 l-JCRLP. O s testam entos inéditos objecto da nossa investigação arquivística encontram -se com pilados nos livros 1188, 1189, l l 9 0 e 1191.

’ N ão isenta de incorrecções e devendo portanto ser utili/.ada com as necessárias precauções. P rocedem os âs correcções de todos os erros encontrados ( C f. p.e. Reg. n" I (Q uadro I): a data indicada para a m orte de Pedro N unes, D outor cm Leis, era an terio r à da elaboração do testam ento).

* M aria de Lurdes R osa. “A vontade dos fin a d o s é lei am tre o s C ristãos. "A v o n ­

tade dos fin a d o s é lei untre o s C hristãos": os direitos das alm as e a reform a das capelas

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T E R E S A C O S T A F I L I P E C A L V À O

feitos no início do século XVI. contêm quase sem pre o testam ento ou a instituição de capela original, na sua quase totalidade feitos nos séculos XIV c XV '.

A partir do conjunto da docum entação levantada, procurou-se obter um universo docum ental coerente, em term os tipológicos, cronológicos e de proveniência espacial. Privilegiámos os testam entos, num total de c in ­ quenta. e lim itám os a amostra à cidade de Lisboa e seu term o \ Ao tratar um espaço circunscrito, possibilita-se a percepção de realidades que de outro modo não seriam tão conclusivas '. De facto, tentám os estabelecer uma análise espacial através do cruzam ento dos dados recolhidos, quer no âm bito do local de morada do testador, quer da sua relação com a funda­ ção da capela.

Em term os de âmbito cronológico, lim itámos o nosso estudo à cen tú ­ ria de Q uatrocentos apesar do imenso manancial de inform ações contido em testam entos anteriores ou posteriores a esta centúria. A nossa intenção

no reinado dc D. M anuel " (com unicação après ao colóquio "D M anuel e a sua ép oca". G uim arães O utubro de 2001 (no prelo).

' A intervenção do Provedor das C apelas linha com o finalidade g arantir a m edição e confrontação dos bens da capela e. por outro lado. de assegurar o cum prim ento dos encargos instituídos pelo testador. Esta intervenção dava-sc em caso de dúvidas quan to ù realização dos encargos estabelecidos. Para esse efeito, o adm inistrador apontado pelo in s­ tituidor era designado réu. alegando m uitas vezes ignorância sobre os seus deveres,

* Cf. A.H. dc O liveira Marques. Iria G onçalves. Amélia Aguiar Andrade. “ Lisboa". In Atlas tias Cidades Portuguesas M edievais. H istóna M edieval I. Lisboa. C entro dc Estudos

Históricos da UNL. 1990. p. 55. Santa Iria da Azóia. Ociras. A rranhó. Fnelas ou Santa M ana do Paraíso são localidades consideradas termo da cidade dc Lisboa no século XV.

A sem elhança, aliás de boa parte dos estudos sobre a m orte na Idade M edia, c ir ­ cunscritos a núcleos urbanos geograficam ente lim itados. C f os exem plos de Siena (C O H N . Sam uel. D eath and property in Sienna (1 2 0 5 -1 5 0 0 1. Slategies fo r lhe a fterlife. B altim ore and London, The John H opkins U niversity Press. 1988); Lavaour. T ouluse e C ordes (FO U R N IÉ , M ichelle, Le ciel p eu t-il attendre? Le culte du Purgatoire dans le

M idi dc la F rance. Paris. C erf. 1997); Avignon (C H IFO L L E A U . Jacques, lui com ptabilité de l'A u -d elà . Les hom m es, la m ort et la religion dans la région d ’A vignon à la fi n du M oyen-Â ge Ivers 1320-vers I4H0), Rom a, École française de R om e. 1980); Paris (CO U R-

TEM A N C H E . D aniclle. Œ uvrer p o u r la po stérité: les testam ents p a risie n s des gens du

roi au début du XVèm e siècle. Paris. L’H arm attan, 1997); Zam ora (LO R E N ZO PIN AR.

F rancisco José. M uerte y ritual en la Edad M odcm a: cl caso de Z am ora (1500-1800). Salam anca. U mv.de Salam anca. 1991). C om o refere D aniclle C ourtem anche. a lim itação dos acervos u regiões geograficam ente circunscritas tem virtudes interpretalivas: «Il est préférable d 'a n a ly se r le testam ent en fonction dc région où la pratique testam entaire est attestée et d 'a u tre s régions où l'a c te ne sem ble pas encore s 'ê tre enraciné» (op. cil., p 18).

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toi operar uma análise sincrónica mais exaustiva, uma v e / que a relativa escassez de docum entos (sobretudo se a com pararm os com am ostras de outras regiões europeias ") não nos perm itiria abordar de form a correcta tem áticas mais extensas, dado as importantes variações dos séculos XIV, XV e XVI. nom eadam ente ao nível dos viáticos escolhidos para alcançar os céus \

Privilegiar o século XV. por outro lado. perm itir-nos-ia confirm ar a caracterização que é apresentada para esse período por vários autores: o refluxo das esm olas com o viático para o Além, em benefício das práticas de sufrágio. Com o explica M aria Angela Beirante “durante o século X V os pobres vão rareando nas preocupações dos testadores, enquanto o número de m issas e sufrágios (...) ia aumentando. A oração sobrepôs-se à esmola".

Por fim. quanto à opção pelo docum ento testam entário, resta-nos referir que as suas inform ações deverão ser analisadas em conjunto com o posicionam ento vivencial face à morte no século XV. De facto, o uso do testam ento enquanto instrum ento de trabalho e as questões que se impõem no seu tratam ento foram já abordadas por vários autores, cujas considerações tom ám os em conta no nosso estudo ". Em term os de reco­ lha e levantam ento da inform ação, concentrám o-nos nas inform ações tes- tam entárias relativas à vivência da m orte, negligenciando inform ações de outra natureza, com o seja a fundiária Após a recolha da inform ação procedeu-se ao seu tratam ento, tendo-se seguido dois m odelos distintos:

Cf. M arie-T hèrese L orcin, " I x s clauses rcligieuses dans les testam ents du plat

pays Lyonnais aux X lV èm e ct X V èm e sièclc. In Le M oyen Age, 4 et 5. I. LX V III, 1972, pp. 287-323. parte de um acervo docum ental constituído por 950 testam entos p ro v e n ie n ­ tes da cidade e diocese de Lyon. cujo intervalo cronológico é. no entanto, m ais alargado: de 1301 a 1545.

* C f. M aria A ngela B eirante. Hora a história da M orte em P ortuga! (séculos XII ■XIV). sep. de Estudos de H istória de Portugal. Vol. I: X-XV. H om enagem a A.H. de

O liveira M arques. L isboa, Ed. Estam pa, 1982. a respeito dos clérigos e pobres enquanto viático para alca n çar o A lém e as suas variações ao longo do final da Idade M édia.

10 Cf. Maria A ngela B eirante, "A s 'heranças das alm as' nu D iocese de Évora no iní­

cio do século XVI". In Actas do C ongresso de História do IV C entenário do Sem inário de

Évora, Vol. I. Instituto Superior de Teologia / Sem inário M aior de Évora. 1994. pp. 1 05-117.

" A cerca das lim itações inerentes à fonte para os estudos da m orte. Cf. M tchel Vovelle, "L 'h isto ire des hom m es au m iroir de la m ort", in D eath in the M iddle A ges. H erm an Bract e W erner Verbek (ed.). Louvain. Leuven U niversity Press. 1983.

u S alientam os porém a grande riqueza desta docum entação, para o estudo da p ro ­ priedade dos leigos em L isboa e seu termo.

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o de Herm ínia Vasconcelos Vilar 11 e o de Isabel C astro Pina De tacto, estes trabalhos incidem sobre docum entação e tem ática afins, e funciona­ ram com o modelos de análise e como elem entos de com paração

T estam en to s e testa d o re s

A garantia de alcançar uma vida serena após a morte é apontada com o um dos objectivos da elaboração dos testamentos ainda obtida em vida através de um comprom isso assumido perante terceiros. O adm inistrador designado pelo instituidor da capela zelaria pela perpetuação dos encargos estabelecidos (ou outro tipo de sufrágios pios), mesmo após a morte deste último Este papel, assumido habitualmente por pessoas próxim as do defunto, não era de somenos importância, pois cabia-lhe, na terra, assegu­ rar o bem -estar do morto no céu. O desejo de partilhar a Santa Glória do Paraíso atravessava toda a sociedade, pelo que as com pensações destina­ das a redim ir a alma de pecados com etidos cm vida se tornaram prática comum.

Em grande m edida, estas disposições testam entárias eram um elo de ligação ao m undo celeste. A fundação de capelas, fenóm eno de origem

u Cf. H erm ínia V asconcelos Vilar, A vivência da M orte no P ortugal M edieval. A E strem adura P ortuguesa 11300-15001, s. I.. Patrim onia H istórica. 1995.

'* C f Isabel C astro Pina, "R itos e Im aginário da M orte em testam entos do século

X V ” , In O Reino dos M ortos na Idade M édia P eninsular, José M attoso (d ir.). pp. 12 5 - 164, Lisboa, Ed. João Sá da C osta. 1995.

' Im porta ainda referir o método seguido em term os de seriação dos (estam entos e da sua num eração de registo. C onfrontados com inúm eros testam entos elaborados por mais do que um instituidor (norm alm ente casais) optám os pelo desdobram ento individual desses m esm os testam entos conjuntos (em bora tendo em conta, para outras análises, a relação de casal). Isto perm itiu-nos uma análise m ais criteriosa c porm enorizada das ú lti­ mas vontades dos instituidores (foi o caso, p.e.. dos registos n" 41 e 4 2. em que se optou por atribuir diferentes núm eros de registo a este testam ento de realização conjunta entre m arido e m ulher, dada a diversidade dos seus últim os anseios, que im portava realçar).

'* Cf. Paul Binski. M edieval D eath: ritual a nd representation, s.l., C ornell U niver­

sity Press, 1996, p 33: "T he w ill, as an instance o f the grow ing reliance o f the m edieval society upon w ritten transaction, stands as an im portant source for ordinary social, as well as devotional concerns. ( ...) Will perform ed tw o functions: like the ancient rom an will, the m edieval will w as a legal m eans o f settling an estate, but it was also a religious d o c u ­ m ent. the aim o f w hich was to settle the soul."

'' Cf. Reg. n" 47. D iogo Jácom e institui um encargo, de m issas às Sextas-feiras, que

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m edieval, com preende dois objectivos aparentem ente contraditórios: o bem da alm a, em term os de com prom isso religioso, c o assegurar de um destino idóneo aos bens do defunto ls. Assim sendo, as esferas religiosa e laica aparentam contradizer-se. Há ainda que analisar as preocupações expressas aquando da atribuição dos bens terrenos, tanto mais que o des- pojam ento da alm a. que não podia ser só) moral, era condição essencial para participar da corte celestial.

Am bos os factores são indissociáveis, dado que o objectivo leigo dependia necessariam ente do religioso e vice-versa. A tribuir determ inada propriedade a um certo adm inistrador era uma form a de assegurar que a m esm a ficaria no seio da fam ília ou. pelo menos, na posse de pessoas a ela ligadas. Mas era ao mesm o tem po uma forma de assegurar o cu m ­ prim ento das disposições testam entárias, pois estas cabiam a um dado adm inistrador m ediante a prática correcta das obrigações contidas no tes­ tamento. Por outro lado. o factor religioso era visto com o dependente da questão laica - a posse de bens perm itia custear os sufrágios e obras de caridade. A entrada definitiva no mundo do Além só se daria se no m undo terreno houvesse quem a proporcionasse. Importa, pois, interpretar todo o conjunto de pressupostos e atitudes subjacente à fundação de capelas e outros sufrágios pios no âm bito da antropologia histórica

C aracterizem os agora um pouco melhor os autores destes docum en­ tos. Em term os de distribuição por sexo Jl, o presente estudo dem onstra uma m aior incidência do sexo fem inino, com cerca de 60% das am ostras

'* Cf. M aria  ngela B eirante. "C apelas de É vora". In a C idade de É vora. 1982. pp.

21-50: "/A F undação de C apetas I lendo com o objectivo am a fin a lid a d e religiosa - o bem

da a lm a - im plica um objectivo laico: a vinculação de um dado patrim ó n io a quem e s ti­ ver nas condições de fa z e r cum prir as cláusulas religiosas preceituadas no com prom isso. Esta vinculação concretiza-se freq u en tem en te na instituição de m orgados, com todas as consequências de natureza económ ica, social e política que tal p rá tica co m p o rta ” (p. 2 1 ).

'* Inúm eros instituidores condicionam os bens atribuídos em herança ü não divisão, partilha, venda ou escam oteam ento dos bens fundiários ou im obiliários do defunto.

w Cf. M ichel Vovclle, ob. cit., p. 10 : « il v a p o u r la reconstitution des attitudes des m asses anonym es cette tentation de l'a nthropologie historique du trésor d 'o b s e r v a ­ tion que les fo lk lo r iste s ont a ccum ulé depuis le siècle. En saisissant ù la veille de sa d is ­ p a rition des traits de la civilisation traditionelle. ils ont d onné à la m o rt et aux gestes qui l'en to u ren t la p la ce qui lui conviennent. Un passage obligé dans toute aven tu re hum aine après la naissance et le m a ria g e .»

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recolhidas ;2. Este valor deve ser analisado tendo em conta a superioridade numérica da condição de viuvez no sexo feminino. Quanto ao estado civil dos instituidores M, confirma-se a ideia anterior. Do conjunto total de mulheres, 62% elaboram a sua disposição testamentária enquanto viúvas, ao invés do conjunto representativo do sexo masculino, constituído apenas por 15% de viúvos. Em termos globais, as mulheres representam 85. 7% dos casos de viuvez, pelo que se demonstra a disposição para só se elabo­ rar a redacção deste tipo de documentos após a viuvez. O núm ero de casa­ dos apresenta, em contrapartida, a relação inversa. A discrepância entre sexos quanto ao casamento, ainda que menos marcante, é nítida, pois 61, 1% dos casados são homens. Este dado demonstra dois factos: por um lado, muitos homens não elaboravam o seu testamento conjuntam ente com o cônjuge, na medida em que, caso contrário, os resultados seriam equilibra­ dos para ambos os sexos J4; por outro, o facto de só 24% das mulheres se apresentarem casadas revela, como afirmado anteriormente, uma condição de viuvez com maior incidência neste sexo. Por fim, de referir que cerca de 20% dos documentos não apontava o estado civil do instituidor. Seria pre­ maturo e incorrecto deduzir deste valor idêntica percentagem de solteiros, dado que estes referiam-no habitualmente de uma forma explícita.

Em termos sociológicos, a amostra é representativa das várias catego­ rias sócio-profissionais existentes. A recolha das informações sociológicas dos instituidores baseou-se em duas formas distintas de caracterização: uma directa, quando a categoria era explicitada pelo próprio instituidor, relativa a si; outra indirecta, baseada em dados obtidos no próprio testa­ m ento que pudessem caracterizar indirectam ente a origem social do insti­ tuidor. O ptou-se, em alguns casos, por esta últim a form a de identificação social verificada, sobretudo, nos instituidores do sexo fem inino, pois a única inform ação apresentada era relativa ao cônjuge ou. na inexistência deste, ao adm inistrador \ Assim, os diferentes escalões distribuem -se de

Para este resultado

não

foi lido em linha de consideração um dos dois testam en ­ tos de João de Flandres. do conjunto total do acervo docum ental, pela sobreposição de inform ação que im plicaria. O mesmo m otivo levou ã exclusão deste docum ento dos re s ­ tantes quadros. Cf. Reg. n" 11 e 12

** Cf. Q uadro III.

E tam bém de realçar o facto de nem todos os testam entos elaborados c o n ju n ta­ m ente por dois ou mais instituidores serem fruto de um a relação m atrim onial. Cf. Reg n" 46 e 47. T rata-se de um caso de um pai e de um filho, entre outros casos sem elhantes cm term os de ju n ção de m ais do que um instituidor num só testam ento.

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uma form a aproxim adam ente equitativa, desde os m ais desfavorecidos, lavradores ' e pescadores . às camadas altas da sociedade vedores do rei doutor em leis contador do rei No entanto, é tam bém de real­ çar o facto de cerca de 30% dos docum entos analisados não m encionarem a categoria sócio-profissional do instituidor. Os mais com uns são funcio­ nários. de diferentes escalões, com 19. 2% das am ostras recolhidas, c o n ­ gregando instituidores de diferentes proveniências e estatutos sociais. A rtífices ", nobre 32 e m ercadores 11 apresentam -se em idênticas propor­ ções. A análise das categorias sócio-profíssionais dem onstra a riqueza do estudo destes acervos docum entais, pelas informações sociológicas que proporcionam ao investigador e pela textura das relações económ icas c e n ­ tradas naqueles que as desem penham .

A fu n d a ç ã o de cap elas

A diocese de Lisboa tinha, nos séculos XIV e XV. aproxim adam ente 137 paróquias u. Cada uma das paróquias incluía, entre as suas inúm eras invocações. C risto Salvador e Santa Cruz. sendo igualmente frequentes as dedicações a Nossa Senhora Virgem Maria ou Santos 1

A ssiste-se tam bém neste período à expansão e consolidação das ordens m endicantes, com a sua maior expressão entre os Franciscanos e D om inicanos. À entrada do último quartel do século XV. 45% dos m os­ teiros existentes pertenciam a ordens m endicantes. A este crescim ento não

vista form al da construção histórica, que os mem bros de um casal pertenceriam a um m esm o estrato social. Do m esm o modo. um adm inistrador, excepto quando nom eado o fici­ alm ente. serviu, na m esm a linha de orientação, para definir, hipoteticam ente, o instituidor.

* C f Reg. nu 35.

" C'f. Reg. n" 7 (adm inistrador). “ C f Reg. n" 10.

* Cf. Reg n" 2.

" Cf. Reg. n" 8.

O leiro. C f Reg. n " 4 4 (adm inistrador).Cf. Reg. n” 15 (adm inistrador).

" Cf. Reg n" 3.

u C f Fortunato de A lm eida. H istória da Igreja em P ortugal, vol. I. Porto. P o rtu ca­

lense E ditora. 1967.

” A. H de O liveira M arques. P ortugal ita crise dos séculos X IV r X V . pp. 365-397

(vol. IV da N ova H istória de P ortugal, dir. A.H. de Oliveiru M arques e Joel S errão), Lisboa, Ed. Presença, 1987.

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foi totalm ente alheio o apoio declarado por parte de certos m onarcas, nem, de igual modo, o facto de estas ordens m endicantes estarem unidas internacionalm ente, facilitando a propagação de um novo ideário de pobreza e despojam ento O seu campo de intervenção estava centrado nos grandes núcleos urbanos, no qual se incluía Lisboa, com o m osteiro de São Francisco e o m osteiro de São Dom ingos, entre outros.

Dado que se introduz um factor novo na esfera espiritual, antagónico ao modelo até aí existente de paróquias, o estudo da fundação de capelas deverá ter necessariam ente em linha de consideração estes dois cam pos religiosos. Para esse efeito, e tendo em conta a estreita ligação que unia os fiéis às paróquias “de quem eram fre g u e se s” ” , os frades e a restante hierarquia religiosa das ordens acim a referidas intervieram de diferentes modos no sentido de ganhar esse espaço, tradicionalm ente destinado às paróquias. Esse espaço conquistava-se, tam bém, pela inclusão dos m os­ teiros m endicantes na escolha do local de fundação de capela ou local de enterram ento. Nesse sentido, era usual a presença de um frade aquando da elaboração do testam ento, como modo de assegurar a religiosidade do tes­ tam ento Por outro lado, “a transm issão da palavra de Deus pela pre­ gação sistem ática de terra em terra, quase de porta em porta, norteou os esforços de toda uma legião de clérigos" ” . A caridade, sob a forma de apoio e assistência a pobres e enfermos, e. de igual modo. pela fundação de hospitais e albergarias, seduziu inúmeros fiéis, numa época de grande instabilidade espiritual. A pobreza, o despojam ento ou a esm ola, por exem plo, tornaram -se referências quase inevitáveis nas disposições testa- m entárias da Baixa Idade Média, sobretudo em term os de viático para o Além Foram assim períodos de grandes oscilações a esse nível, dado que no século XV, em contraponto ao anteriorm ente afirm ado, se assiste ao crescim ento da intercessão em detrim ento da esm ola. Neste ritual

* Pese em bora não haver referências ao Purgatório no conjunto tcstam cntário a n a ­ lisado. é de salientar o papel desem penhado pelas ordens m endicantes na difu são deste novo culto. Sobre este assunto. Cf. M ichelle Foum iê. op. cit.

" A título de exem plo, Cf. Reg. n" 44.

'* Este hábito já é referido para os séculos XII e XIII: «le caractère religieux du te s ­

tam ent est a ffirm é dans le préam bule de cet acte qui fa i t fig u r e de profession de fo i« . Cf.

Joseph Avril «La pastorale des m alades et des m ourants au X lle X llle siècles», In D eath

m the M tddle A ges, cit.. pp. 88-106.

" Cf. M aria H erm ínia Vasconcelos Vilar, ob. cit.

40 M aria José Pim enta Tavares, Pobreza e M orte na Idade m édia em Portugal, Lisboa. Ed. Presença. 1989.

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F U N D A Ç Ã O DE C A P E L A S NA L IS B O A Q U A T R O C E N T I S T A 3 4 5

sufragístico, os clérigos tinham um papel mais activo. É. portanto, com estas duas perspectivas distintas de intercessão salvífica que im porta a n a­ lisar os locais de fundação dos instituidores.

O resultado da inform ação recolhida patenteia as duas perspectivas acim a focadas. De facto, a escolha dos locais de fundação dem onstra um grande equilíbrio entre paróquias e mosteiros. Este factor por si é pouco conclusivo. Deverá ser analisado tendo em linha de consideração o motivo desta escolha. Para além da mera constatação que 54% dos insti­ tuidores optaram pelas paróquias para aí fundar a sua capela, cruzando a inform ação relativa às categorias sócio-profissionais dos instituidores com os respectivos locais de fundação e de morada, deduz-se não ser esta condicionada por estes critérios. De resto, a única ilação im ediata é a da aparente exclusividade da Sé para os mais abastados J'. Tanto nas paró­ quias com o nos m osteiros, verifica-se presença da totalidade das d iferen ­ tes categorias sociais. Estes factos constatam , ao contrário do que m uitas vezes se afirm a, a abertura dos mosteiros enquanto local de sepultura a classes sociais m enos abastadas. Por outro lado, a perda de espaço reli­ gioso por parte das paróquias não foi significativa, sobretudo após um século onde o papel reservado às ordens mendicantes e à esm ola se sobre­ pôs ao das paróquias. Por fim. o sentim ento de “freguês" face à paróquia era ainda muito forte. Se por um lado a escolha da igreja dependia da paróquia que servia a freguesia da morada, por outro, havia um sen ti­ m ento de responsabilização relativo à mesma. M esmo em casos em que a escolha de sepultura recai num m osteiro, há quase sempre preocupação em deixar ofertas m onetárias "por falhas” à paróquia de proveniência ‘ .

No entanto, ainda que as fundações de capelas fossem exclusivas de um único local, rituais litúrgicos diversos podiam ser instituídos em outros espaços. Esta opção pode ser analisada tendo em consideração uma maior abrangência das vias para o Além, bem com o a m anutenção do elo de ligação entre o pároco e a família do defunto que fundara capela num local que não a igreja à qual sempre esteve ligado em vida. Finalm ente perm ite uma distinção nos sufrágios destinados à alma do defunto.

41 Cf. M aria de Lurdes Rosa, "D inheiro, poder e caridade: elites urbanas e e stab ele­

cim entos de assistência ( 12 7 4 -1345)" in H istória Religiosa de P ortugal. Vol. I, p. 64. Neste artigo a autora refere o caso do m ercador Bartolomeu Joanes que funda capela na Sé. para que aí "só se sufraguem a alm a de Bartolom eu Joanes e as vidas da fam ília real", reser­ vando para outras fundações pias sufrágios mais privados, nom eadam ente os das alm as dos seus progenitores, que deveriam ser realizados na Igreja de São M am ede de Lisboa.

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3 4 b T E R E S A C O S T A / F I L I P E C A L V Ã O

A visão d» Além : a p re p a ra ç ã o d a M o rte

“ Un passeport pour le ciei" 4‘. Assim define Jacques Le G off a impor­ tância da função do testamento, assente num claro objectivo: garantir a vida para além da morte através da salvação da alma do instituidor. Este objec­ tivo poderia ser alcançado pela redenção dos seus pecados, com o conse­ quente perdão divino e pelo redimir do seu percurso de vida na terra u. Um a das perspectivas era direccionada para o Além, através da entidade divina que decidiria a sua entrada ou não na “Corte Celestial dos Céus 45” . A outra concretizava-se na resolução dos problem as terrenos. Por outras palavras, a preparação da morte também passava pela redenção da própria postura social do defunto *\ Assim, a m em ória do morto seria m ais facil­ mente perpetuada. Neste ponto residia a im portância de todo o ritual que se proporcionava em torno da elaboração dos testam entos e pelo qual se instituíam encargos e atribuíam heranças 41 e ofertas 4\ No entanto, uma vez mais, ambas as perspectivas não são dissociáveis, pelo que os apelos à M isericórdia Divina sucedem-se no que respeita à salvação da alma da “carne pecadora” 4". Daí a importância fulcral do testam ento no processo de passagem para o mundo Celeste: é este que perm ite a ligação entre um mundo e o outro.

A inevitabilidade da morte im plicava uma preparação por parte de quem sentia aproxim ar-se o momento final. A elaboração da redacção da disposição testam entária era um desses passos, constituído por inúmeras

45 Jacques Le G off citado por A. R ucquoi. "L e corps et la m ort en C astille aux X lV èm e e X V èm e siècles ". in L ' im age du corps dans la littérature et l ’histoire m édié­

vales. R azo. nu 2. 1981, pp. 89-97.

44 O caso de Luis A nes c disso exem pio. ao pedir, no m om ento da m orte, o perdão à sua criada. Cf. Rcg. n” 45. Do m esm o m odo. Isabel H enriques (Rcg. n° 3) perdoa q filho

“se ele f o i d eso b ed ien te".

44 Cf. Rcg. n" 3, 4 e 50.

“ D aí a frequência, por exem plo, de atribuições e reconhecim entos a criados. C atarina G onçalves atribui uma doação à criada após a m orte da d oadora por "descarrego

de consciência". Cf. Reg. n" 50.

v A título de exem plo, registe-se a preocupação m anifestada por M argarida M artins (Reg. n° 9) em estabelecer herdeiros ao longo de várias gerações, ou. por outro lado, as atribuições m onetárias para se retirar um cativo de "terra de m ouros". Cf. L° 1189. fi. I I I .

44 N um a interessante relação sagrado-profano. C atarina A nes (Reg. n" 49) oferece ás suas herdeiras um objecto devocional de N ossa S enhora da C onceição da T rindade para ser colocado no seu colo em ocasiões festivas.

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F U N D A Ç Ã O Dl t'AIM I AS NA L IS B O A Q U A T R O C E N T I S T A 347

fases. Necessárias para validar o docum ento, as fórm ulas oficiais eram fundam entais e inevitáveis. Se com parados com idênticos docum entos estrangeiros, os m odelos de redacção analisados na presente am ostra apresentam curiosas sem elhanças *. Este factor explica-se pela herança legal e constitucional do direito privado rom ano ” , com um a todo o m undo latino. Sendo assim , e tecendo uma breve com paração com testa­ m entos em castelhano e francês deparam o-nos com surpreendentes afinidades, principalm ente ao nível das condições de redacção (estado de saúde do instituidor) uma das prim eiras fases do docum ento. Q uanto a estas últimas, a expressão mais reiterada nos docum entos é a que exprim e a condição mental “sizo e entendim ento cumprido Dado que a funda­ ção de um a capela, em geral, e de um testam ento em particular, têm sub­ jacente a atribuição de inúm eros bens fundiários, im obiliários e m one­ tários - a sanidade m ental é um factor preponderante e condição sine qua rum para a legalidade deste tipo de documento. No entanto, outros facto­ res. com o a doença nas suas diversas expressões, condicionam a elab o ra­ ção de um testam ento - “doença de dor natural ou “jazend o em cam a doente v". Ainda assim , em contraponto, surgem expressões com o “São" ou “Sem dor" ' 7. “Andando por seu próprio pe é igualmente uma form a

Segundo Jacques C hifollcau. oh. cit.. p. 119; - la convention notariale laisse en

apparence p eu J e p la c e à l'in itia tiv e p e rso n elle».

' Cf. Ivo C arn eiro Sousa. "L egados Pios do C onvento de São F rancisco do Porto.

As fundações de m issas nos séculos XV e X V I” , In Boletim do A rquivo D istrital d o Porto. Voi t. P orto. 1982. p.66: “O testam ento constituía unia p eça fu n d a m e n ta l do d ireito p r i­

vado rom ano que assegurava, precisam ente, a instituição do herdeiro.''

" Cf. M aria José P arejo D elgado. "C ostum bres M ortuorias R ccogidas en los te sta ­

m entos ubetenses de fines de la Hdad M edia", in Actas d ei VI C aloquio In tern a cio n a l de

H istoria M edieval de A ndalucia - Las ciudades andaluzas Isiglos XIII-XVI). José F. l.ópez

C asiabcr. Angel G alan S á n c h e / (ed.). M álaga. Univ. M álaga. 1991. pp. 319-334. “E stando

sano de m i cuerpo v en mi libre e générant cntendiniiento”: “E stando doliente “p o r m a n to que esloy en peligro de m uerle v aquejado de una penosa e n fe r m e d a d '

Cf. Robert B outruche. "L a N oblesse aux origines d 'u n e crise nobiliaire: d o n a ti­

ons pieuses et pratiques successorales en Bordelais du X llèm c au X V Ièm e siècle, in

Annales il H istoire économ ique e t sociale, t. 1. n" I. 1939. pp. 161-177: ■•Malade de son corps, m ais en son bon sens et en sa bonne m ém oire, et voulant po u rvo ir au salut de son âm e avant I heure où D ieu fe r a son com m andem ent de lu i-.

“ Cf. Reg. n" 3. 4. 5. 12. 17. 21. 23. 24. 26. 29. 30. 38. 40. 44. 46. 47. 48 " Cf. Reg. n" 4. 17. 23. 30. 36. 43. 46. 47.

* Cf. Reg. n“ 18.Cf. Reg. n° 12. 2 1 .2 5 .

Cf. Reg. n° 25 e 48. A ssinale-se. contudo, o caso de G onçalo A lonso (Reg n" 17):

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T E R E S A C O S T A F I U P K C A L V À O

frequente de expressar a vitalidade de um instituidor. Há. portanto, ver­ tentes de análise dos testamentos enquanto m aterial histórico: o testa­ mento com o forma de expressar as vontades últim as, m om entos antes da morte e. por outro lado, como forma de impor uma vontade e um desejo, por parte de um instituidor apto a iniciar uma nova vida, para além da ter­ rena. A prim eira e a segunda função do testam ento não representam necessariam ente estágios diferentes na vida de uma pessoa. São antes duas form as distintas de encarar a passagem para o Além. dado que dos testam entos analisados poucos foram os instituidores que não redigiram o seu testam ento numa fase Final da vida *.

Im porta descobrir de que forma, no século XV. se via a morte face ao desconhecido e, sobretudo, face ao que estava para além dela Para isso, dividim os esta análise em três fases: a) apreender quais os receios sen ti­ dos no m omento da elaboração do testam ento; b) saber a que entidade se dirigia o instituidor nos seus sucessivos apelos e rogos; c) alcançar a con- ceptualização da divindade no século XV, a expressão m aior do Reino dos Céus, ponto de partida para o estudo do Além.

a) Receios

A angústia da incerteza face ao dia preciso do "fina m ento ” surge com o um dos receios mais apontados nos docum entos, com um total de dezassete referências 61, nom eadamente a sua não preparação. Esta obter- se-ia através de um apoio espiritual protagonizado por um elem ento da hierarquia religiosa, capaz de interceder junto das entidades celestiais ®\

” Tal com o cm m uitos outros casos estudados ( c / .p . e. Robert Dinn, "D eath and rebirth in late m edieval Bury St Edm unds” , in D eath in tow ns: urban responses to the

dying a n d the dead. 1000-1600, Leicester, Steven Basset (ed.), L eicester U niversity Press.

1992. pp. 151-169).

“ A cerca do trabalho de construção histórica e das atitudes que um h istoriador deverá assum ir perante estes estudos, ver E rm elindo P ortela e M aria dei C arm en Paliares, "L os espaeios de la m uerte” . In La ida y e l sentim iento de la m uet te en ta historia y en el

arte de la E dad Media. II. Santiago de C om postela, U niversidad de Santiago de C o m ­

postela, 1992. pp. 27-35.

61 O m edo de uma morte súbita e sem acom panham ento é um a tem ática tam bém presente na literatura da época. C f M arie T hérèse L orcin. ob. cit.. p. 63.

M Cf. Pierre Pégeot. «La N oblesse com toise devant la mort a la fin du m oyen âge».

in F ra n eia .\o \. Il, 1983, pp. 303-318, sobre a im portância do clérigo aquando das e x é ­

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F U N D A Ç Ã O D h C A P K L A S NA L I S B O A Q U A T R O C E N T I S T A 3 4 9

Para além disso, o receio de falecer desacom panhado e longe do local de enterram ento levava os instituidores a considerarem com o factor de ap re­ ensão e angústia o facto de "o dia do falecim ento não saberem quando luí-

de ser" Ao m esm o tempo, a maioria dos instituidores apresentam -se

tem entes a Deus w. ainda que tais expressões tenham de ser entendidas na óptica do seu papel divino de Julgador e Juiz dos Pecados m ortais, que decidirá a entrada ou não no Reino dos Céus. No entanto, a um nível to ta l­ mente distinto, as referências à figura do Diabo são. com o em outros e stu ­ dos 45, m uito pouco frequentes. Surgem sobretudo enquanto pedido de auxílio à entidade divina para intervir, afastando o poder do Diabo

b) Rogos

As invocações efectuadas eni testamentos destinam -se a assegurar uma passagem tranquila para o Além M. Os rogos apelam a um interm edi­ ário divino para que este interviesse junto de uma entidade suprem a, à qual com petia decidir sobre a entrada da alma do defunto no Reino dos Céus. Assim , os rogos devem ser vistos como últimas súplicas feitas em vida, variando no seu grau de intensidade e sentim ento. Por um lado, ocorrem rogos a entidades às quais os testadores estão ligados por laços emocionais, dado serem, por exemplo, os patronos das paróquias onde são fregueses. Por outro lado. as escolhas dos rogadores reflectem em grande medida a imagem criada de certas entidades divinas, como veremos adiante. No entanto, regra geral, o rogo e a invocação fundamentam-se na necessi­ dade de “amercear a alma para o que é necessário o consentim ento

w Cf. Rcg n° 15. Á lvaro L opes adverte para a necessidade de. eni c aso de m orte

fora de L isboa. Irasladação da sua ossada para o local de fundação: “tragam -m e a ossada

para a dita sepultura |n a C ap ela do m ercador já citado Bartolom eu Joanes) onde m ando deitar o corpo e em a cidade fin a r '.

M Cf. Reg n° 6 e n° 7. "Tem endo nós ao N osso Senhor D eus"

“ Isabel C astro Pina, ob. cit., p. 156. A figura do D iabo só é invocada urna vez no conjunto total de lestam entos analisados.

** C f Reg. n° 1. “ (■••) pedindo-lhe [a Santa M aria| p o r m ercê, e p o r m isericórdia, que a levem do p o d er dos diabos que não hajam dela p a rte."

*’ Cf. Paul B inski, ob.cit.. p .24: “The doctrine o f lhe intercession o f the saints was based upon the capacity o f the saints to break the ancient boundaries betw een the living a n d the dead. Hut the notion o f intercession could be w idened into a fo r m o f tw o-w ay tr a f­ f ic w hereby not o n ly the saints, but also living could act. by prayers o r o th er a ctio n s on

b e h a lf o f llie dead".

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3 5 0 T E R E S A C O S T A t F I L I P E C A L V Ã O

divino. Q uanto mais intercederem em favor do defunto junto a Deus ou a Jesus Cristo (as entidades mais apontadas com o destinatários finais dos rogos M). mais certa se torna a ascensão e entrada no m undo do Além 7U.

Em term os absolutos, a entidade mais invocada, num universo de setenta e oito rogos, é Nossa Senhora Virgem M aria, representada com cinco expressões distintas 71 e um total de vinte e nove invocações u. Esta clara predom inância de Nossa Senhora ultrapassa inclusivam ente o pró­ prio dom ínio dos rogos, dado que o seu culto “conheceu um surto m a r­ cado a partir do século de Duzentos e, nomeadam ente, nos dois seg u in ­

tes". Trata-se de uma entidade muito ligada “às aflições características

da época e à necessidade geral de implorar m isericórdia ao Ser Supremo por intervenção de medianeiros". 74 Para além disso, é igualmente m uito associada aos cultos nas paróquias, pelo que congrega diferentes caracte­ rísticas. abonatórias para o invocador. No entanto, registaram -se outras vinte e oito entidades divinas. Com destaque para os "Santos e Santas da

Glória do Paraíso" , é de realçar a variedade de invocações, o que

aponta para um bom nível de cultura religiosa de certos instituidores, por um lado, e, por outro, para a grande abrangência das invocações efectua­ das, que aum entariam proporcionalm ente, na óptica do instituidor, as pos­ sibilidades de entrada na Corte do Céu. “para a í ser digno de sempre viver 76,\

Cf. Reg. n" 41 e 42: “Rogam os a M aria Sua Madre, e M adre de C onsolação advogada dos P escadores, que ella rogue ao seo B ento Fillio p o r nos no dia do Juízo (...) quando se partirem |a s nossas ulm as| destas n o ssas carnes p eca d o ra s”.

"E s difícil determ in ar por que un testante optaba por d eterm inado santo ya que cada unt) poseía sus propias cualidades". Cf. L orenzo Pinar, F rancisco José, ob.ctt, p. 77.

Santa M aria N ossa Senhora (Reg. n" 50); V irgetn M aria (R eg. n° 23. 24. 26. 30. 34, 35. 36, 43. 44. 4 5); M adre Santa M aria (R eg. nu 5); V irgem Santa M aria (R eg. n” 12.

15).

Para o caso de Zam ora. Lorenzo Piflar detecta 17 diferentes denom inações: reina

de los ãngeles, m adre de Dios, m adre de m isericórdia, m adre de consolacíon, m adre v am paro de pecadores, refugio de los afligidos, fu e n te de piedad. reina celestial, bendita madre, bienaventurada. seriora, gloriosa, sacratísm a. rogadora, ayudadora. intercesora o sem pre virgen. Cf. Lorenzo Pinar. Francisco José. ob. cit.. p. 77.

' A. H. de O liveira M arques, ob.cit., p. 372. '4 A. H. de O liveira M arques, idem.

'' Cf. Andrade G em adas, José M „ Lu im aginário de la m uerte en G alicia en los siglos IX a XI. C oruna, Editos do C astro, 1902. p. 6X. “Lo m as fre c u e n te es m encionar a los santos genericam ente, sin especificadores”.

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c) Atributos divinos

A construção de um personagem divino, m oldado a partir de ex p res­ sões em pregues nas disposições testam entárias. deixa antever a visão da vida após a m orte, pela obtenção das figuras m aiores desse período. C ruzando as várias inform ações e atributos enunciados pelos instituidores nos sucessivos apelos a essas entidades suprem as, é-nos perm itido tecer uma frágil rede de considerações acerca de uma realidade totalm ente estranha, mas da qual se sentiam cada vez mais próxim os em vida. c h e ­ gado o m om ento da morte. Dessa interligação resulta uma textura de uma possível visão do A lém . por aqueles que, ao longo do século XV. para lá cam inhavam .

Podem -se destrinçar quatro entidades divinas naquilo que diz respeito à caracterização de que são alvo. Por um lado. Deus, expoente m áxim o de espiritualidade religiosa, em toda a sua sapiência e om nipotência; Jesus Cristo, "Bento Filho a Virgem, intercessora privilegiada, “ Benta e

Gloriosa e a Trindade, “três pessoas e um só Deus verdadeiro vn'.

Ainda que pertencentes a uma mesma esfera espiritual são patentes as dife­ renças entre cada uma. Assim. Deus apresenta-se aos olhos dos fiéis do século XV. com o o "C riador e Fazedor da salvação É inacessível, pelo que se recorre à m ediação da Virgem Maria para interceder ju n to d'E le. "Todo Poderoso sl” . é ao seu "Grão Poder que os fiéis se apresentam tem entes e hum ildes. E infinitamente bondoso e m isericordioso, detentor da verdade suprema. E através de Deus que os fiéis recebem o seu siso e entendim ento, fazendo "a alma de cousa nenhuma

Nos finais da Idade M édia será com a Paixão e m orte de C risto que os fiéis se vão identificar, sobretudo na sua vertente de sofrim ento *4. É tam bém a M isericórdia do Bento Filho que os fiéis reconhecem em Jesus

Cf. Reg. n" 4. 8. r* Cf. Reg. n" 1. 13. N C f Reg. n° 3, 1 .2 1 . 29. 34. 35. 38. *' C f Reg. n" 15. 24. 36. 38. 43. 44. 45. 48, 50. " C f Reg. n° 1. 13. 2 1. 25. 29. 44. 46. 47. 48. 50. « C f Reg. n" I. 3 ,4 . " C f Reg. n" 26. 36. 45. 50.

Cf. John Bossy. A C ristandade na O cidente 1400-1700. L isboa. Ed. 70. L ugar da

H istória. 1985. p. 21: "N ão p o d ia haver lim ites à pietá ou com paixão que tão fr a te r n a l

pied a d e inspira. D urante o século XV. a com paixão seria estim ulada nos m ais sim ples p o r um a santa p ro fusão de lascas de m adeira, espinhos, pedaços de vestuário e fra sq u in h o s de sangue e. p a ra os m ais sofisticados, p ela cultura da im aginação interior".

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3 5 2 T E R E S A C O S T A / F I L I P E C A L V Ã O

Cristo. M isericórdia tanto mais presente quando alcançada através do sofrim ento, com ungada na hora da morte pelos fiéis.

Nossa Senhora, a «Bem-Aventurada», é, das quatro entidades, a mais invocada para interceder pelos m oribundos angustiados do século XV. Surge assim , com o “Advogada dos Pobres w” , em todo o esplendor e

“Am or da Sua Humanidade “Madre da C onsolação ,r", é pela “Sua

Preciosidade e Glória que os fiéis apelam à M isericórdia Divina.

Por fim , “Deus Pai. deus Filho e Deus Espírito Santo surgem co n ­ gregados num só Deus “ Verdadeiro E na Santíssim a Trindade, na Sua total perfeição e piedade, que muitos crentes afirmam a fé. crendo em três pessoas distintas num só Deus.

Da m o rte à se p u ltu ra

Na época medieval o m omento da morte era crucial para a definição do futuro da alma e do corpo, entendidos enquanto entidades distintas e separadas É neste processo, prolongado do falecim ento ao enterra­ mento, que os rituais litúrgicos se tornavam decisivos para o destino eterno. Daí a imperativa necessidade de fazer acom panhar a morte com a celebração desses mesmos sufrágios. Por outras palavras, é com o advento da morte que se define a vida futura, no Reino dos Mortos. Trata- se de um processo para o qual se prevêem inúmeras disposições testa- m entárias, revestindo-o de um carácter público mas igualmente privado, nom eadam ente cm term os de intercessões celestes.

De acordo com a historiografia mais recente, o m om ento da morte seria provavelm ente aquele que, entre os vários existentes no processo existentes no processo fúnebre e de passagem para o m undo do além , se apresentaria mais “anti-social" v:. Da elaboração do testamento à realização

" Cf. Reg. n" 34. 35. “ Cf. Reg. n" 15. " Cf. Reg. n °4 3 .C f Reg. n” 2 1 .2 9 " C f Reg. n* 1 . 13. * C f Reg n" 5

Cf. Paul Binski. oh cil.. p. 70: " Christianity brought together the living a n d the dead, but it also divided the bodv a nd the soul, thereby creating tw o spheres o f representa­ tion: that which n os know n a nd manifest, am i that which was unknown - not onlv the p r o ­ cess o f death, but the slate o f death, which by its nature was beyond ordinarx experience’’.

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de m issas pela m em ória do morto, passando pelo próprio cortejo fúnebre, este era o acto com um carácter mais reservado. Para além da presença certa de um m em bro da hierarquia religiosa, mais nenhuma se afigurava com o garantida, ainda que fosse habitual o acom panham ento de fam ilia­ res. No fundo, a morte pode ser entendida como a passagem de ob stácu ­ los vários até à entrada na Santa Glória do Paraíso, percorrida isolada­ mente. Da m esm a m aneira, o início desse percurso deveria ser realizado independentem ente de intervenções ou auxílios exteriores. Cabe ao m orto, e só a ele. assegurar esse m omento de passagem. Há um certo indi­ vidualism o exacerbado nos m oribundos da Baixa Idade M édia, decididos a encarar a morte solitariam ente, sem qualquer apoio que não o espiritual, garantido pelos clérigos e pelas preces do círculo mais íntimo.

A vários outros níveis, porém, o acto da morte era objecto de m aior participação social. De facto, expressava-se uma grande preocupação quanto ao local de falecim ento, por exemplo, prevendo-se inclusivam ente num erosas soluções para o caso da morte não ocorrer no local de hab ita­ ção, lugar onde se aguardava a morte, com a estreita ligação espiritual e social que tal facto implicava. Daí resulta a previsão de situações e x trao r­ dinárias. nom eadam ente relacionadas com a actividade profissional - so l­ dados ou m ercadores - que evitavam viajar aquando da aproxim ação da m orte Por outro lado. era frequente a alusão nas disposições testam en- tárias a um local de sepultura provisório, caso a morte ocorresse longe do

para um a sociabilidade da própria morte. No entanio. distinguim os o m om ento da m orte, necessariam ente m ais reservado e íntim o, do restante cerim onial fúnebre, esse sim m ar- cadam ente social e público. De registar estas duas visões distintas: Cf. John Bossy. ob. cit.. p. 42. "N a s suas linhas fe r a is , os ritos da m orte eram p ra tica m en te a n ti-so cia is (...)

D eixavam -na |a a lm a | só com o padre, defendida p o r preces e bênçãos, contra a terrível sequência de p erig o s e p ro va s que teria de ultrapassar no seu cam inho p a ra o Paraíso, para se ju n ta r a o s santos e à gloriosa com panhia do c é u Cf. C olette B eaunc. "M o u rir

noblem ent à la fin du M oyen A ge", in Lu M ort au M oyen Age. C olloque de la S o ciété des

H isto rie n s M éd ié v a liste s de L ’E n seig n em en t S u p érieu r P u b lic -S tra sb o u rg , 1975,

E strasburgo, Lib. Istria, 1977, pp. 125-143. «La m ort au XVèm e siècle est un phénom ène

sociale que interèsse non seu lm en t l ’individu m ais, à travers lui. sa fa m ille et son group social tout entier. On m eurt et on est en terré noblem ent, en public com m e on est né et com m e on a vécu.»

" E rm elindo Portela e M aria Del C arm en Paliares, ob. cit.: " E l viaje es, en reuli-

dad. la única circunstancia que desencadena la prévision de la m uerte accidentai. D e este m odo, la m uerte exterior a l espacio propio. a la casa y a su entorno, se identifica en los testam entos con la m uerte accidentai. A l exam inar las causas d e l viaje, dos profesiones. dos actividades, destacan con claridad: e l com ercio y la guerra”.

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local de fundação ‘M. Esta urgente necessidade de enterram ento im ediato no local onde a morte se dava, por parte do instituidor, resulta do receio do corpo não ser enterrado. Esse receio com preende-se pela corrupção que a exposição do corpo não enterrado im plicava e pelo desam paro e sp i­ ritual do mesmo, sem receber a extrem a-unção ,5 , essencial para desen­ cadear o justo percurso da alma. É por isso evidente a tentativa de garan­ tir acima de tudo o enterram ento do corpo. Em alguns casos, nas situações acim a descritas, era prevista uma trasladação da ossada do m orto após um período de um a dois anos Esta trasladação poderia vir a ter vários objectivos, sendo um deles a tentativa de m anter o corpo ligado a mais de um local de fundação.

Sobre o m omento que sucede imediatam ente à m orte, as inform ações existentes nos docum entos analisados neste estudo, ainda que escassas, revelam um conjunto de rituais totalm ente antagónicos se com parados com a morte em si. De facto, se a morte é tida com o um acto de cariz menos social, todos os rituais que lhe sucedem , em term os de sociabili­ dade, eram o expoente m áxim o da liturgia funerária m. Com o contraponto ao individualism o exacerbado, o intervalo que ia da anunciação da morte ao enterram ento envolvia um grande núm ero de pessoas. Para esse efeito.

94 Cf. Reg. n" 15. Á lvaro Lopes: " E isto seja |s e r sepultado na S é | se eu em tal lugar finar, que m e possam logo hy deitar, e se o m eu fin a m e n to f o r alongado da cidade de Lisboa donde quer que soterrem m eo corpo tanto que o corpo jo rg a sta d o tragam -m e a ossada para a dita sepultura onde m ando deitar o corpo se em a cidade se fin a r ”.

Cf. M an a José Parcjo D elgado, “C ostum hres m ortuorias recogidas en los te sta ­

m entos ubetenses de fines de la hdad M edia", in ob. cit.. pp. 319-334. "Q uando el enferm o

agravaha sus parientes llam abam al m édico y a! sacerdote p a ra que éste recibiese la Extrem aunción. (...) se p id e a los m édicos que incilen a los enferm os a confesar y com ul- gar y que se preocupen p o r su alm a antes que p o r su cu erp o .”

* Cf. Reg. n° 2. Pedro Nunes. “Q uero que no dia da m inha sepultura a dous annos a m inha osada seja levada a Sintra e tom em a osada de m eu p a d re que ja z na igreja da Santa M aria do dito loguo e ajuntem todo, e p o n h ã o as ditas osudas na igreja de Sam M ortinho com a osada de meu avou que ja z sepultado no a d ro ”. Este testador prevê não

só a sua traslad a rão com o a do pai, para que, dois anos depois da sua m orte, um círculo fam iliar de três gerações voltasse a ser reconstruído.

Este período de um a dois anos é a data prevista para o desgaste do corpo e sua transform ação em ossada. No entanto, esse período variaria entre um a dois anos.

" Cf. John Bossy. ob.cit. p. 43, “ ( ...) a m orte p o d ia ser um acontecim ento in d ivi­ d u a l p ara o que m orria, m as era um acontecim ento social p a ra os que fic a v a m . Enquanto o padre se encam inhava p ara a cabeceira do m oribundo, o b ater dos sinos a lerta va a vizi­

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F U N D A Ç Ã O D F C A P H l . A S NA L I S B O A Q U A T R O C E N T I S T A 3 5 5

o soar dos sinos teria duas finalidades possíveis: desencadearia o en v o l­ vimento das pessoas próxim as ao defunto caso servisse para anunciar a morte à vizinhança; daria um outro relevo à passagem para o além com o culm inar da sua fase inicial, caso os sinos só dobrassem aquando da pas­ sagem do cortejo fúnebre w.

Após o anúncio da m orte, a organização da vigília cabia ao círculo fam iliar acom panhado por m em bros religiosos e próxim os do defunto. O corpo nunca poderia ser deixado sozinho, dado ser nesta fase, anterior ao enterram ento e à libertação da alm a, que o corpo se apresentava m ais v u l­

nerável a ataques m aléficos em preendidos contra a viagem ascética da alm a. encetada em breve. Dado estar profundam ente enraizada no c o s­ tume da tradição da liturgia cristã, esta fase do processo fúnebre era rara­ mente aludida nas disposições testam entárias. São por isso insuficientes as inform ações relativas a este assunto. Por outro lado, aspectos mais p rá­ ticos sobre estes rituais eram do conhecim ento da família do defunto, não se tornando relevante a sua inclusão no testam ento

Após estes prim eiros rituais litúrgicos de vigília do corpo, iniciam -se im ediatam ente os preparativos do funeral e do seu respectivo cortejo, in e­ rente ao próprio acto de enterram ento. Em ambas as situações tratava-se de cum prir as disposições incluídas no testam ento, onde, regra geral, se previa ao mais ínfimo porm enor todo o ritual. No entanto, havia quem sim plesm ente fizesse questão de só ver incluído um pequeno porm enor em todo o acontecim ento; eram também frequentes as disposições que deixavam a preparação do enterram ento totalmente a cargo dos adm inis­ tradores l(". bem com o aqueles que. nada especificando, exigiam , no entanto, o cum prim ento "tia mais pequena honra que se puder f a z e r '. "’2 O que representava então o funeral e o respectivo cortejo e qual o seu peso em term os de progressão da alm a para o Além? Quanto ao cortejo, tratava­ -se de garantir um acom panham ento final do defunto à sua m orada eterna.

Cf. Reg. n” 21 e 29. M arlini Ferreira e V iolante Lourcnço. "N o dia do fin a m e n to m ondam os tanger os sinos em Santo Justo donde som os freg n ezes p o r m em ória do nosso m orte, os quais tengeròo atlie que nossos corpos sejam en terra d o s".

11,1 Na am ostra por nós analisada não há qualquer referência aos rituais realizados no m om ento da morte.

" Cf. Reg. n" 38. M argarida V icente. "C om aquelas solcm nidadcs e honras que meu

testam enteiro ao diante nom eado fizer, assim com o ao m ês e ao ano sendo ele c o n stra n ­ gido ao m ais fazer.”

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3 5 6 T E R E S A C O S T A I F I L I P E C A 1. V Ã O

Por se tratar da fase final, prévia ao desprendim ento do corpo, havia quer garantir um acompanhamento espiritual c religioso grandioso ln\ Este era um acto assum idam ente social e com carácter público, para o qual a popu­ lação era avisada com o tanger dos sinos, desde o início do percurso até à sepultura "M. A presença de clérigos e frades era indispensável, variando em núm ero e origem religiosa l0S. No entanto, seria uma m ais-valia im por­ tante se um cortejo fúnebre contasse com a presença de altos dignitários da hierarquia clerical De realçar igualm ente o facto de as presenças serem sobretudo garantidas pela paróquia da qual o defunto era freguês, ou. em caso do local de fundação não coincidir com esta paróquia, pelos frades e pelos clérigos do m osteiro ou igreja no qual havia sido instituído o local de fundação l07. Era ponto assente, contudo, a im portância que representava a presença de clérigos ou religiosos neste actos funerários: o pedido "dos m ais clérigos que se puderem achar dem onstra-o bem.

O percurso decorria numa atm osfera religioso-espiritual. para a qual contribuíam as orações proferidas durante o mesmo. A sacralização de todo este ritual era conseguida também pela “ornam entação” do cortejo com cruzes, círios, tochas, incenso, castiçais e candeias 'm "°.

"" Cf. E rm elindo Portela e Maria Del C arm en Paliares, ob. cit., para um retrato do cortejo fúnebre: “El laãido de las cam panas p o r ioda la ciudad, el recorrido D el cadáver

p o r las calles. con su cortejo de clérigos, de cofrades con lam inarias, de parienies vesti - dos de Uao. de vecinos, de pobres - todo eito m as o m enos solem ne, m ás o m enos n u m e­ roso, en fu n c ió n de la riqueza y e l poder, de la considerat ion del defunto - hacem que el espacio de la m uerte se identifique con e l espacio urbano. El espectáculo de la m u erte f o r ­ m aba parte de la vida cotidiana de la ciudad."

Cf. Robert Dinn. ob. cit.: “The fu n e r a l cortege was a highly visual p a rt o f the ritual ( ...) . The procession, therefore, as the m ost public a sp ect o f the fu n e ra l, ensured that as m any peo p le as possible in the town were aw are o f the p e r s o n ’s death."

m O s pedidos de presenças no cortejo fúnebre diferem de testam ento para te sta ­

m ento. variando sobretudo quanto ao estatuto social do m orto: todas as ordens da cidade (Cf. Reg. n" 11, 17): todas as ordens da freguesia de habitação (R eg. n" 49); as ordens dos m osteiros das cidades e os clérigos da igreja (Reg. n° 2); um a ordem específica (Reg. n” 50); os frades c os clérigos de certo M osteiro e Igreja (Reg. n" 4 1. 42, 44); som ente os c lé ­ rigos de uma dada igreja (Reg n" 48);

“* C f. Reg. n" 18. C atarina G onçalves, que inclui no seu testam ento a presença do cónego do M osteiro de São Vicente de Fora.

Para m ais inform ações sobre a problem ática das presenças do cortejo fúnebre e do próprio cortejo, ainda que num contexto distinto, cfr. A. R ucquoi. ob. cit..

"* Cf. Reg. n" 34. 35.

"" São num erosas as referências a objectos propiciadores do acto fúnebre, nom eada­ mente tochas em grupos ofertados por vezes critérios num éricos. C inco testadores ofertaram

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F U N D A Ç Ã O D E C A P E L A S NA L I S B O A Q U A T R O C E N T I S T A 3 5 7

O objectivo do cortejo era, portanto, o acom panham ento do corpo e o seu apoio espiritual. No entanto, era com o enterram ento em si que se garantia o consolidar do viático para o além. Essa consolidação passava pelo carácter sim bólico do enterram ento como um elo de ligação terra- céu. Para esse efeito, há que analisar onde e com o se dava o funeral Sobre a fundação em si, importa analisar o local específico de en terra­ m ento para identificar as m otivações que presidiram a essa escolha, quer pelo carácter sim bólico de dado local, quer pelo significado devocional daquela " 2. Assim, nesta am ostra, apenas são previstos enterram entos no interior do espaço religioso, tanto na igreja como no m osteiro Para além disso, a escolha dos locais específicos estava sujeita a diferentes c ri­ térios, m aioritariam ente pessoais. A título de exem plo, era frequente o enterram ento ju n to de um a pessoa com quem o defunto m antivera algum tipo de relação durante a vida ou pelo qual nutria uma relação especial em term os de adm iração ou de respeito, nom eadamente em agradecim ento por favores prestados "4. A isto acresce-se a escolha de um espaço espe­ cífico m otivado pelo seu sim bolism o ou a sua associação a um tipo de devoção subjectiva "5. Assim, certos espaços eram tidos com o propicia­ dores da passagem da alm a ou com o forma de especial dedicação a uma

tochas em grupos de seis, enquanto, a titulo de exem plo, as tochas não discrim inadas num ericam ente só são referidas por dois instituidores.

11(1 N o acervo docum ental analisado não foi m encionada a presença de pobres, usual em cronologias anteriores ao âm bito deste trabalho. N ão o querendo d eix ar de referir, Cf. R obert D inn. ob. cit., p. 155. sobre a presença de pobres nos cortejos fúnebres.

111 A cerca dos locais de enterram ento, Cf. M arie Thérese Lorcin. ob. cit., pp. 2 23­ -244.

M arie T h érese Lorcin, ob. cit.. p. 245: «seuls les m em bres du clergé, en effet. ont le d ro it d ' y reposer».

" 3 C f Reg. nc' 30, B ernardo Anes. M anda que o seu corpo seja en terrad o no interior da Igreja.

'M Cf. Reg. n" 15, Á lvaro Lopes. Este instituidor m anda ser sepultado na capela de B artolom eu Joanes, na Sé de Lisboa. Rico m ercador lisboeta do século XV, m anteve estreitas relações com o próprio m onarca, fundando inclusivam ente um a m ercearia e um hospital. A pós a leitura do testam ento de Bartolom eu Joanes, (Cf. D. Luís G onzaga de L eneastre e T ávora, "A heráldica m edieval na Sé de L isboa", In Separata do B oletim

C ultural da A ssem bleia D istrita l de Lisboa. Ill série, n" 88, 1" Tom o. L isboa. 1982. pp.

40- 56), não se conseguiu estab elecer ao certo qual a relação entre Á lvaro Lopes e B artolom eu Joanes, provavelm ente pela distância cronológica que os separa.

"* Cf. Jonathan Finch, “According to the qualities a n d degree o f the p erson d e c e a ­

sed: fu n e ra l m onum ents a n d the construction o f social identities. 1400-1750", In Scottish A rcheological R eview . n° 8, U niversity o f G lasgow , 1991, pp. 1 0 5 -114.

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certa entidade divina "6. No entanto, precisam ente por certos locais serem tidos com o mais favoráveis para essa passagem , a escolha dos locais específicos de fundação de capelas, nom eadam ente em zonas com o o cabido "7, junto ao altar IMi. na óssia na capela m or 120 ou em frente ao altar do Santo de devoção ou à sua imagem m, têm precedência de acordo com o estatuto sócio-económ ico do instituidor l22.

A form a com o o corpo era mandado enterrar pode ser entendida tam ­ bém com o factor de grande importância na passagem para o Além Ser enterrado com uma vestimenta especial, com o é caso do hábito de uma certa ordem , geralmente mendicante, revelava uma preocupação religiosa profunda e pode ser analisado como uma ligação espiritual celeste feita na Terra. Há um total envolvimento do corpo na libertação da alma, que sai favorecida pela impregnação religiosa de que é alvo 124. Com o refere Hermínia Vasconcelos Vilar: "Esta opção por envergar um hábito m endi­ cante, expresso p or indivíduos que durante a sua vida não tinham abra­ çado a Regra, exprime um investimento claro num objecto m aterial enten­ dido como mais um acto propiciatório para a obtenção da salvação l25’\ Tal é o caso de Gonçalo e Maria Anes 12h, leigos da terceira ordem que optam por ser enterrados com um hábito.

"6 Cf. Reg. n° 45. Luís A nes. "diante Santa C a ta rin a ". 1,1 Cf. Reg. nu 2 1 .2 9 .

"* Cf. Reg. n" 38. M argarida V icente, "na C apela M aior ou ante a lta r de Nossa

Senhora".

"v Cf. Reg. n° 17. G onçalo A fonso, "na O ssia da Se'".

Cf. Reg. n° 38. M argarida V icente, "na C apela M aior ou ante a lta r de Nossa Senhora”.

121 Cf. Reg. n" 41. 42, "ante im agem de N ossa Senhora da C o n c e iç ã o ".

1 A inda que de 1631. a frase de John W eever é reveladora, extensível ao contexto das capelas estudadas, ainda que de uma form a mais explícita: "Sepulchres sh ould he

m ade according to the qualitie and degree o f the p erson deceased, th a t by the Tombe every one m ight be d iscerned o f what rank hee was liv in g ”. N o contexto por nós analisado, não

eram assum idas de uma form a tão clara as distinções e preferências feitas de acordo com um critério económ ico. No entanto, as circunstâncias que teriam de advir à ordem ou paró ­ quia que atribuíssem um local de fundação propício, eram incom portáveis para os mais hum ildes. Cf. Jonathan Finch. ob. cit.

De referir o papel da arqueologia, analisado p o r P atrick G eary. Living with the

d ea d in the M iddle Ages, London. Cornell U niversity Press. 1994.

1:4 Cf. Reg. n“ 3 e 4. G onçalo Anes e M aria Anes: “M andam os enterrar os nossos

corpos no M osteiro de São F rancisco ila dita cidade no habito da dita o rd em ".

125 De igual m odo. Cf. Isabel castro Pina. ob.cit.. “ainda que considerado desprezí­

vel [o corpo], m erecia, sobretudo depois da m orte, alguns cuidados e a tenções.", p. 127.

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