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Introdução. Portugal e a Europa nos séculos XV e XVI

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Academic year: 2021

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Portugal e a Europa

nos séculos XV e XVI.

Duas centúrias de contacto,

continuidade e também redefinição.

Os séculos XV e XVI são cruciais nas relações entre Portugal e a Europa, mas também no percurso individual de cada uma destas entidades, uma nacional e outra supranacional. Uma ideia há a reter: são duas centúrias impossíveis de desligar uma da outra, independentemente de tratar-se do campo da política, da cultura ou da religião. Por isso, preferimos ousar a afirmação os “longos séculos XV e XVI” à sentença mais tradicional e limitadora do “longo século XVI”1.

Em termos da Europa propriamente dita, trata-se de duzentos anos de redefinição, sem dúvida – basta pensarmos na Reforma protestante ou na presença otomana efectiva em solo europeu –; mas de uma redefinição sempre no sentido das continuidades, isto é, pautada a cada momento por estas. Os dois exemplos acima referidos bastam para demonstrá-lo: nem a Reforma surgiu despegada do que a antecedeu (pensemos, por exemplo, em John Wycliffe, c.1328-1384, João Huss, 1369-1415, ou no próprio movimento da devotio moderna, que, iniciado na segunda metade de Trezentos, tem largas e impactantes repercussões no continente europeu); nem a presença otomana teve início na segunda metade do século XV, mas sim muito antes.

1 Veja-se sobre esta temática John Rigby HALE, A Civilização Europeia no Renascimento, Lisboa,

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Sobretudo, em sentido lato, é simplista e redutor falar de uma simples e quase automática passagem da Respublica Christiana para uma Europa conce-bida enquanto cenário emergente das monarquias nacionais e das grandes Casas dinásticas. Nunca tal aconteceu de forma absoluta e muito menos se tratou de um processo maquinal, isto é, nem a Cristandade deixou de existir2, apesar dos

pro-cessos assinalados, nem a concepção de “Europa” surgiu abruptamente do nada. Na verdade, há muito que já se falava dela no sentido de uma realidade emocional, portanto, bem mais palpável do que uma noção meramente geográfica.

É caso para sublinhar de forma veemente o quanto é pouco operacional o recurso à tradicional noção de corte ou ruptura entre uma Idade Média cono-tada como um período estático e fechado sobre si mesmo e uma fase seguinte, a Idade Moderna, já inteiramente diversa, tendo pelo meio, qual ponte purifica-dora, o Renascimento. A interpretação oitocentista de Jacob Burckhardt sobre o Renascimento, e portanto também sobre a época medieval, apesar da sua impor-tância, deixou há muito, como sabemos, de ser funcional. Como assinala Jacques Le Goff, “Esse período de transição, a que a época das Luzes chamaria Dark Ages – o Tempo das Trevas –, foi desde as origens definido pela expressão ‘Idade Média’ — um conceito pejorativo – como um período, se não negativo, pelo menos inferior ao que se lhe seguiu. […] Esta definição cronológica e pejorativa da Idade Média tem sido, de há decénios a esta parte e, principalmente, nos anos mais recentes, ataca-da pelos dois extremos. […] A oposição Iataca-dade Média/Renascimento é contestaataca-da em muitos aspectos. […] O passado respinga, sem dúvida, quando pretendemos sujeitá-lo e domá-lo com periodizações. Certas divisões são, contudo, mais desti-tuídas de fundamento que outras para assinalar a mudança. Aquela a que se deu o nome de Renascimento não me parece pertinente. A maioria dos sinais caracte-rísticos por meio dos quais se tem pretendido reconhecê-la surgiu muito antes da época em que a situamos (séculos XV-XVI).”3 É, pois, fundamental ter presente a

fragilidade e o perigo das grandes classificações e periodizações estanques, como é precisamente o caso da relativa ao mundo medieval versus Renascimento/Idade Moderna. O que se designa tradicionalmente por Renascimento começou bem mais cedo do que se considera; por outro lado, a Idade Média não terminou com a queda de Constantinopla (1453) ou com as viagens pioneiras de Colombo (1492) e de Vasco da Gama (1497-1498). A “continuidade” é, mais do que nunca, um dado irrefutável e operatório para qualquer tentativa sólida de hermenêutica histórica, em particular tratando-se dos campos cultural, religioso e político, na viragem do século XV para o século XVI. Daqui resulta que a mundividência medieval é algo

2 Como poderia tal ter acontecido sendo a Cristandade tão elástica desde a sua fundação. 3 Jacques LE GOFF, O Imaginário Medieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 20.

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enraizado nesta sociedade de charneira, pelo que é impossível que novas práticas e orientações, quer políticas quer culturais e religiosas, se manifestem sem o peso da herança dos séculos anteriores. É um facto a coexistência de técnicas, ideias, estilos, modelos e gostos4.

Partindo da análise de fontes tipologicamente muito diferentes (cronísticas, documentais, epistolares, iconográficas, entre outras), quer portuguesas quer es-trangeiras, é objectivo desta antologia reflectir de forma crítica sobre a composição e descrição de paisagens5 europeias no período em questão. Naturalmente, uma

atenção especial é dada à relação entre Portugal e o continente de que faz parte: se por um lado se visa indagar sobre a forma como em Portugal, nos séculos XV e XVI, se projectava o espaço europeu, por outro ambiciona-se identificar a natu-reza das representações construídas entre Portugal e a Europa. Noutra vertente, buscam-se respostas válidas para questões centrais como o carácter e a constância das relações mantidas com os diversos territórios europeus.

As representações que suportavam as figurações desenvolvidas denunciavam identidades cada vez mais marcadas, mas também traziam consigo, ainda que na maioria das vezes de forma pouco declarada, evocações de uma consciência relati-vamente a um espaço e uma herança cultural comuns. Um sentimento precursor (ainda que, como destacámos, em continuidade, pois, os seus fundamentos locali-zam-se num “longo” tempo anterior), que não se identifica já exclusivamente com o conceito de Cristandade ou com a ideia imperial, mas que respeita à definição de uma “outra” identidade europeia6 fundada especialmente no contacto com o Turco

e com as novidades oriundas dos territórios longínquos recentemente alcançados pelos reinos ibéricos (o Eu-civilizacional literalmente explode e expande-se neste 4 A história é contínua como salienta António José Saraiva: “Não que novas e miraculosas entidades

tivessem descido ao palco ou mudado a substância das coisas. Na verdade, nenhum dos factos que apontamos pode considerar-se sem precedentes. (…) O renascimento é o resultado de um processo histórico iniciado no seio do mundo feudal. (…) Seria, pois, um erro pensar que o Renascimento é uma irrupção miraculosa de forças nascidas do nada; e seria um erro também considerá-la como uma entidade feita, uniforme, acabada, independente do espaço e do tempo”. O mesmo realça Jean Delumeau para quem é profundamente errónea a ideia de que “um corte brutal terá separado um tempo de trevas de uma época de luz”. António José SARAIVA, História da Cultura em Portugal, vol. II, Lisboa, Jornal do Fôro, 1953, pp. 16-17; Jean DELUMEAU, A Civilização do Renascimento, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 9.

5 Preferimos o conceito de paisagem às noções de espaço ou território devido à maior abrangência

e amplitude interpretativa do mesmo. É uma opção metodológica importante ao nível da análise, pois a paisagem consiste no resultado da interacção dos elementos físicos (formações geológicas), naturais (fauna e flora) e culturais, ou seja, fruto da intervenção humana (por exemplo, obras de arquitectura, urbanismo e paisagismo). Estamos, assim, perante um conceito bastante flexível que decorre das correlações entre elementos antrópicos, biológicos e físicos. Entre a natureza e a sociedade. De tal combinação resulta que as paisagens constituem uma síntese viva de pessoas e lugares, sendo por isso vitais para qualquer construção identitária (local, regional e/ou nacional). É esta, afinal, a essência do que faz diferenciar uma região de outras regiões. Noutra vertente, o conceito de paisagem implica logo à partida uma dimensão viva e diacrónica, que tem em conta a evolução e o desenvolvimento.

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processo proto-globalizador de contacto com o Outro) – processos que têm lugar sobretudo neste binómio de tempo.

Já então, ainda que de forma algo incipiente, a diversidade das nações do

Velho Continente indiciava uma unidade, que, de forma absolutamente

“infor-mal”, transcendia a individualidade de cada uma das partes. A tese de Patrick Geary em relação a uma pseudo-história é aqui pertinente: “Esta pseudo-história começa por partir do princípio de que os povos europeus são unidades sociais e culturais distintas, estáveis e objectivamente identificáveis, e de que se distinguem uns dos outros pela língua, pela religião, pelos costumes e pelo carácter nacional, características estas que são inequívocas e imutáveis. Supostamente, terão sido formados num momento remoto da pré-história ou então o processo de formação étnica aconteceu nalgum momento da Idade Média, tendo terminado, no entanto, para sempre.”7 Com efeito, e apesar das múltiplas convulsões que os marcaram,

os séculos XV e XVI constituem um período de tempo com uma extraordinária coerência própria, expressa precisamente na já referida continuidade dos fenóme-nos que então tiveram lugar, nomeadamente o facto de o continente ter recebido um quadro de referências civilizacionais, ideológicas e, consequentemente, iden-titárias (por exemplo, ao nível cartográfico e técnico, de que o nascimento da imprensa é paradigmático), que o tornou claramente distinto dos que com ele coexistiam8. E, nas diversas fases deste processo, é indiscutível a relevância do

contributo português.

O percurso da Europa per se, bem como ao nível da relação que foi estabele-cendo ao longo dos séculos com as unidades que a compõe, constitui um processo transformador modelar em relação àquela mutação de que Braudel fala quando evoca a história de “amplitude secular”9 e as “grandes permanências”10, ou seja,

a “história de longa, e mesmo de muito longa, duração”11. Dito de outro modo,

o que está aqui em questão não é uma transformação momentânea e, por isso, superficial – relacionada com o tempo breve, do acontecimento, do indivíduo, isto é, a história de curta duração (événementielle)12. Também não se trata da história

de média amplitude, conjuntural, “do ciclo e até do ‘interciclo’ – que oferece à nossa escolha uma dezena de anos, um quarto de século e, em última instância,

7 Patrick J. GEARY, O mito das nações. A invenção do nacionalismo, Lisboa, Gradiva, 2008, p. 19. 8 Aqui é forçoso realçar a contribuição, ainda que muito lenta e diversificada, dos relatos tardo-medievais

de viagens. Veja-se Paulo Catarino LOPES, “Os livros de viagens medievais”, Medievalista (on-line), Instituto de Estudos Medievais (IEM), ano 2, número 2, 2006.

9 Fernand BRAUDEL, História e Ciências Sociais, Lisboa, Editorial Presença, 1990, p. 10. 10 Idem, Gramática das Civilizações, Teorema, Lisboa, 1989, p. 42.

11 BRAUDEL (1990), 10.

12 Fernand Braudel designa-o de “tempo breve, à medida dos indivíduos, da vida quotidiana, das

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o meio século do ciclo clássico de Kondratieff”13. Trata-se antes de uma mutação

ontológica, de movimentos profundos, que revolve os alicerces do quadro mental e, consequentemente, das estruturas do imaginário que, assim, se vê irremedia-velmente alterado14. Daí ser inútil utilizar balizas cronológicas e periodizações

estanques, pois foi no entretanto (bastante flexível) dos duzentos anos aqui em causa que esse processo transformador ganhou novos contornos de uma forma mais clara e objectiva em relação ao passado.

Se bem que, nos últimos anos, se tenha vindo a aprofundar, sob o ponto de vista documental e historiográfico, o conhecimento das relações entre Portugal e a restante Europa, a verdade é que muito há ainda a fazer no sentido de compreen-der o carácter e a configuração das concepções e representações portuguesas do continente europeu nos séculos de Quatrocentos e Quinhentos, assim como de identificar e apreender os mecanismos de reconhecimento das realidades do Velho

Continente nos círculos cultos do reino português.

Estes são os objectivos centrais de um conjunto multidisciplinar de estudos, que se propõem aprofundar os diversos intercâmbios desenvolvidos entre Portugal e os diferentes espaços europeus nos séculos XV e XVI. A circulação cultural, os contactos político-diplomáticos, militares e estratégicos, bem como as relações de índole religiosa, comercial e mercantil estarão no centro de uma reflexão que se deseja crítica e ampla.

De alguma forma todos os textos aqui presentes cruzam-se e inclusivamente tocam-se em diversas problemáticas, ou não tivessem por pano de fundo o mesmo enquadramento temático: Portugal e a Europa nos séculos XV e XVI. Olhares,

re-lações, identidade(s). As mais diversas áreas de actuação humana que marcaram o

quotidiano português e europeu nos séculos XV e XVI estão de alguma maneira representadas nesta antologia.

Fruto do apoio conjugado de duas unidades de investigação sediadas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (o Instituto de Estudos Medievais e o CHAM – Centro de Humanidades), a presente antologia é, pois, composta por quatro partes principais – Alteridades e cons-truções identitárias; Intercâmbios e interculturalidade; Olhares e representações;

13 Ibidem, p. 12.

14 A este respeito é importante a contribuição de Georges Duby quando realça que “convém com efeito

aplicar ao estudo das mentalidades o esquema proposto por Fernand Braudel, que convida a distinguir no tempo passado diferentes patamares e especialmente três grandes ritmos de duração – dito de outro modo, três histórias […]. Micro-história, ‘atenta ao tempo breve, ao indivíduo, ao acontecimento’, a das pequenas notícias e do drama, a da superfície; história com oscilações de média amplitude, escandidas por fases de alguns decénios, que poderíamos chamar ‘conjuntural’ […]; história mais profunda, ‘de longa, mesmo muito longa duração’, que, ela, conta por séculos.” Georges Duby, Para uma História das Mentalidades, Lisboa, Terramar, 1999, pp. 34-35.

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Fronteiras e europeização –, as quais, no seu conjunto, pretendem responder às questões e aos objectivos em cima apontados. Como se pode inferir, a História cultural e das mentalidades é predominante, sem que isso signifique contudo o apagamento de outros campos, como por exemplo o económico e mercantil. De reter é o quadro conceptual que serve de base à totalidade dos estudos apresen-tados: paisagem, fronteira, centro/periferia, representação, identidade, alteridade, interculturalidade, comunidade, imaginário, espiritualidade e emoção.

Uma derradeira palavra para sublinhar que este conjunto de textos pretende também, perdoem-nos a ousadia, alertar para a necessidade, mais vital e urgente do que nunca – reside provavelmente aqui o seu maior altruísmo: o tentar estabelecer uma ponte directa entre o passado tardo-medieval e da primeira modernidade com o tempo presente –, de reflexão realmente crítica e de consciencialização de uma ideia que consideramos central e que Martim de Albuquerque expressou de forma irrepreensível no seu estudo já clássico: é inequívoca a “existência plurissecular de uma noção e de um sentimento europeu (…), de modo algum necessariamente incompatíveis ou opósitos com a ideia e a afectividade nacionais.”15 Com efeito,

o que os séculos em debate nesta colectânea demonstram é precisamente o con-trário, que Europa e Nação não se configuravam no passado como percepções antagónicas, antes se podiam harmonizar. Isto apesar de neste período a ideia de Europa, oriunda do mundo clássico e fortalecida durante a Idade Média, ser rela-tivamente à ideia de nação consideravelmente mais “fluida e débil”16. O processo

de “harmonização e transposição dos contrários desagregantes”17 é, assim, hoje,

como o foi nos séculos XV e XVI, um objectivo maior a atingir. Lisboa, 15 de Dezembro de 2019.

Paulo Catarino Lopes

15 Martim de ALBUQUERQUE, A ideia de Europa no pensamento português, Lisboa, Verbo, 2014,

pp. 11-18.

16 Idem, ibidem. 17 Idem, ibidem.

Referências

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