• Nenhum resultado encontrado

Nietzsche e O Caso Wagner: da metafísica do artista à política

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "Nietzsche e O Caso Wagner: da metafísica do artista à política"

Copied!
18
0
0

Texto

(1)

Nietzsche e O Caso Wagner: da metafísica do artista à política

Nietzsche and The Case of Wagner: from the metaphysic of artist to

politics

Jamile Queiroz Gomes, jamileqgomes@gmail.com Paula Priscila Braga (Orientadora)

Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo, São Paulo

Submetido em 01/03/2017 Revisado em 01/03/2017 Aprovado em 02/05/2017

Resumo: Inicialmente crítico do filisteísmo, Nietzsche estudou a origem da tragédia grega em busca de um renascimento cultural e acreditava ter encontrado em Wagner o aliado necessário para a renovação do espírito alemão. Anos depois, reavaliando as suas concepções da juventude e, decepcionado com o romantismo, Nietzsche toma Wagner como seu antípoda, no que ele chamou de decadência da cultura, ideia importante para a crítica à moral e à cultura europeia.

Palavras chave: Estética. Decadência. Política. Música

Abstract: At first a critic of philistinism, Nietzsche studied the origin of greek tragedy in search of a cultural renaissance, being sure to have found in Wagner the necessary ally to renew the german spirit. Years later, revaluating his youth's conception and disappointed with Romanticism, Nietzsche takes Wagner in as his antipode, in what he called cultural

decadence, an important idea to criticism against european moral and culture.

(2)

Revista Brasileira de Iniciação Científica, Itapetininga, v. 4, n. 4, 2017,

Introdução

O tema da cultura e dos valores sempre incomodaram o filósofo Friedrich Nietzsche, de tal forma que os encontramos em toda a sua filosofia, com nuances e ênfases diferentes. Em sua primeira fase, ainda ligado com uma certa concepção metafísica, influenciada por Arthur Schopenhauer, suas reflexões sobre a cultura possuem um projeto afirmativo que pretende expressar e efetivar uma possibilidade de cultura alemã potente e afirmadora da vida, tendo em vista o contexto da Alemanha recém-unificada. Ao mesmo tempo, ele desenvolve uma forte crítica aos estabelecimentos de ensino de sua época e ao o que identifica como uma cultura filisteia.

Nesse momento o compositor Richard Wagner parecia-lhe bem afinado com suas próprias ideias sobre o passado grego e a artificialidade do momento atual, refletindo assim sobre o que era preciso para renovar as artes e por fim, projetar uma cultura afirmativa adiante. Nietzsche com seus estudos filológicos e filosóficos e Wagner com seus dramas musicais e seus trabalhos teóricos sobre música convergiam no interesse pela definição de uma cultura unificada, alemã.

Em uma segunda fase de escritos, Nietzsche rompe progressivamente com a metafísica schopenhaueriana, desenvolvendo a crítica à moral com a ideia de genealogia e crepusculando os ídolos com a filosofia do martelo. Agora suas reflexões sobre a cultura tratam de diagnosticar o estado lamentável em que se encontra a Europa, através da noção de décadence. Finalmente em uma terceira fase de trabalhos sobre a cultura alemã, Nietzsche abre fogo contra a música de Wagner que, anteriormente, havia lhe servido como um farol para o futuro, mas tornara-se por volta de 1889 pura expressão da moral niilista, além de um reflexo dos perigos que assolavam o final do século XIX, a saber, o nacionalismo exacerbado, a cultura de massa, o antissemitismo e o fracasso do espírito romântico.

Mais do que uma querela entre amigos, essa discussão está permeada de política, estética, filosofia, música e ópera em torno de uma mesma questão: o que precisamos fazer para a criação de valores, dessa vez mais afirmativos e dionisíacos?

(3)

Considerações iniciais acerca da cultura na filosofia nietzscheana

Na elaboração da crítica ao niilismo pervasivo na cultura alemã, o filólogo Nietzsche recorre à Grécia antiga e à origem da tragédia. Sua admiração pelos gregos antigos era uma forma de entrar em contato com outras formas de vida e outras concepções filosóficas, artísticas e existenciais. Mesmo que essa civilização tenha deixado de existir, suas obras são fruto desse florescer e perecer, o que pode ser de grande importância para nós no sentido de que as coisas como estão nem sempre foram assim. Por isso, a preocupação com os processos pelos quais a cultura passa e como participar ativamente desses processos.

Podemos dizer que desde o princípio de sua filosofia, a decadência está lá enquanto foco de combate, ainda que não apareça exatamente com esse termo. Seus primeiros escritos sobre O futuro dos nossos estabelecimentos de ensino (1872), O

nascimento da tragédia (1872) e as Considerações Extemporâneas (1876) possuem uma

atenção especial ao tema da educação, das artes e da massificação cultural presentes em meados do século XIX, refletindo no que ele chamou de uma cultura filisteia.

Segundo Bittencourt (2011, p.2), a questão sobre o declínio cultural oitocentista para Nietzsche é “marcada pela exorbitante massificação da cultura e a perda da unidade de estilo; esse processo foi gerido socialmente pelo 'filisteu da cultura'”. Esta figura faz uso da arte e da criatividade para a obtenção de seus fins, que são puramente mercantis e vulgares. “Detendo o poder econômico propício para o financiamento das artes, o 'filisteu da cultura' insere o seu padrão estético distorcido nas determinações estéticas em voga”. Em Considerações Extemporâneas, a crítica ao filisteísmo aparece nas reprovações à figura de David Friedrich Strauss, ideário de pequeno burguês.

No mesmo período, em O nascimento da tragédia Nietzsche revela seus estudos sobre o surgimento e declínio da tragédia grega e como através dessa compreensão, seria possível pensar numa postura afirmativa: num projeto que significasse de fato a vida e tornasse a cultura autêntica. Assim, juntando esses textos vemos uma crítica ao momento da cultura vivido pelo filósofo, seus perigos e superficialidades, e em seguida seu projeto de anunciar uma transformação positiva, com o intuito de tirar a cultura do seu péssimo caminho, contornando assim, o decaimento em direção à sua real grandeza.

(4)

Revista Brasileira de Iniciação Científica, Itapetininga, v. 4, n. 4, 2017,

Tendo em vista a relevância da decadência para a análise dos valores, veremos como esta ideia aparece em O nascimento da tragédia (1872) e depois de forma mais incisiva em sua obra posterior O caso Wagner (1888).

O nascimento da tragédia

Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) arqueólogo e historiador da arte possuía uma interpretação dos gregos antigos que influenciou não só o neoclassicismo, mas também a poesia, a literatura e a filosofia alemã nos séculos posteriores. Em

Reflexões sobre as obras gregas na pintura e na escultura (1755), ele defende que o

modelo da arte grega deve ser um exemplo para os artistas iniciantes e de que a arte da Grécia antiga era caracterizada pelo duplo ideal: a beleza da nobre simplicidade e a calma grandeza, facilmente observáveis nas esculturas do período. O bom gosto é o belo orientado pela racionalidade, tão bem apreendida pelos gregos; se quisermos ser grandes, precisamos aprender a imitar esse critério, mesmo que este seja inimitável.1

Essa tese muito comum no período clássico alemão influenciou a maioria dos estudos de filologia clássica, de estética e de literatura e é justamente a essa tese que Nietzsche se oporá. Na obra O nascimento da tragédia (1872), temos um estudo filológico, histórico e filosófico de como e porquê surgiu a tragédia grega num povo considerado tão pacífico e tranquilo, como anunciou Winckelmann.

Partindo de uma elaboração de que existem impulsos artísticos constantes, Nietzsche defende que a arte se desenvolve através do jogo entre o apolíneo e o dionisíaco. Em resumo, o apolíneo refere-se ao deus Apolo e representa o figurador plástico, a escultura, a forma e a medida; ele será associado ao princípio de individuação apresentado por Arthur Schopenhauer em O mundo como vontade e representação (1819), filósofo de grande influência para Nietzsche nesse período. O apolíneo é “o princípio de individuação a partir do qual as coisas ganham forma na multiplicidade da aparência.” (BENVENHO, 2007, p. 36-37). É também referido como o véu de Maia que encobre o mundo com belas aparências, sendo assim, esse impulso é caracterizado pela

(5)

formação de individualidades, tendo os preceitos do deus solar: conhece-te a ti mesmo e nada em demasia.

O dionisíaco é claramente a expressão do deus Dionísio, deus do vinho, da embriaguez, do êxtase dos sentidos e do horror. Sua manifestação se dá através da música e na metafísica de Schopenhauer ela corresponde à vontade, ao uno primordial. Isso ocorre devido a capacidade do dionisíaco extasiático de dissolver os indivíduos num todo com a natureza; o horror está em justamente acessar essa existência sem o véu de Maia, na dolorosa desintegração dos indivíduos. Portanto, a experiência dionisíaca é um misto de pavor e delícia, os seres inebriados se reconectam com o todo: “Sob a magia do dionisíaco torna-se a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa da reconciliação com seu filho perdido, o homem”.2

Para descobrir o dionisíaco, fundamental para rebater a tese do povo exclusivamente sereno, é preciso “demolir a cultura apolínea”, ou seja, mostrar como a experiência de horror provocada pelo dionisíaco, era uma presença conhecida pelos gregos.

Analisando o período antes do dionisíaco se instaurar entre os helenos, os cultos do deus do vinho eram marcados pela licença sexual, volúpia e crueldade. A música era radicalmente diferente da tocada nos templos de Apolo, possuía uma intensidade melódica e rítmica que chegavam a assustar. A tentativa de se manter imune a esse impulso é identificada pelo filósofo no período dórico, como uma recusa ao abalo que o dionisíaco poderia lhes causar:

Só consigo, pois explicar o Estado dórico e a arte dórica como um contínuo acampamento de guerra da força apolínea: só em incessante resistência contra o caráter titânico-barbaresco do dionisíaco podia perdurar uma arte tão desafiadoramente austera, circundada de baluartes, uma educação tão belicosa e áspera, um Estado de natureza tão cruel e brutal. (NIETZSCHE, 2007, p.39).

2 NIETZSCHE, 2007, p.28

(6)

Revista Brasileira de Iniciação Científica, Itapetininga, v. 4, n. 4, 2017,

No entanto, é possível que esse impulso não lhes fosse tão estranho assim. Na sabedoria popular dos gregos, conta-se a história que durante muito tempo o rei Midas perseguiu o sábio Sileno3. Quando por fim o capturou, perguntou-lhe qual seria a coisa

mais preferível para o homem. Por fim, o semideus lhe responde da seguinte maneira: “O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer” (NIETZSCHE, 2007, p.33). Essa história mostra como os gregos tinham também uma concepção pessimista da vida. No imaginário grego o Olimpo só surge depois de sucessivas lutas titânicas, e aqui o apolíneo age novamente: o equilíbrio onírico encobre o bárbaro titânico com a bela aparência e tranquilidade.

Apenas a arte consegue inverter a sabedoria de Sileno, superando os sentimentos de nojo e de absurdo em relação à existência, que o dionisíaco pode causar àqueles que sobrevivem ao seu poder tragador. Ao conseguir unir esses impulsos a arte dá significado à vida, tornando-a possível:

3 [62] O helênico não é nem um otimista, nem um pessimista. Ele é essencialmente um homem, que contempla realmente o horrível e não o oculta a si mesmo. A teodiceia não era um problema helênico, pois a criação do mundo não era um ato dos deuses. A grande sabedoria do helenismo, que também compreendia os deuses como submetidos à ἀνάγκη4. O mundo dos deuses gregos é um véu flutuante que ocultava o que havia de mais terrível. São os artistas da vida; possuem seus deuses para poder viver, e não para se alienar da vida.(2005, p.7)

A tragédia é resultado desse encontro do apolíneo e do dionisíaco, numa breve reconciliação. Na união entre a música, a palavra e a cena, conflui na tragédia uma só

3 “Semideus, preceptor e servidor de Dionísio. Filho de Pã ou segundo outras versões, de Hermes e Géia, era representado como um velho careca, de nariz chato arrebitado, sempre bêbado montado num asno ou amparado por sátiros, que acompanhava o cortejo do deus por toda parte e cuja ebriedade falava sempre a voz mais profunda do saber e da filosofia” (GUINSBURG, 2007, p.145).

4 Em jônico: force, constraint, necessity, natural want or desire, such as hunger. Actual force, violence: hence bodily pain, suffering. Liddel ans Scott's greek-english lexicon. 1891, p. 48.

(7)

experiência. Nietzsche acredita que entre os gregos, a tragédia permitia viver o sofrimento com alegria, no sentido em que a vida terrena era valorizada e que apesar de tudo, a existência se mostrava incrivelmente poderosa, defendendo assim que a vida só se justifica como um fenômeno estético. Eis, portanto, a metafísica do artista: o homem passa a ser obra de arte do impulso criador do uno primordial e ao manejar estes dois modos (representação e vontade), aprende criativamente a viver esta existência apesar do absurdo, afastando desse modo uma atitude ascética e repugnante diante da vida, construindo uma metafísica para e deste mundo.

Édipo é o exemplo dado por Nietzsche de como a tragédia tinha um papel central na vida do povo grego. Esse personagem encarna o ideal de heroi trágico que, sofrendo, se eleva. Aqueles que presenciam sua dor sem sentido e sua elevação também podem se consagrar:

7 [128] […]

A forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou o fato de alcançar a vitória na derrota. A cada vez, o indivíduo é derrotado: e, apesar disso, percebemos seu aniquilamento como uma vitória. Para o heroi trágico, é necessário sucumbir por aquilo que ele deve vencer. Nesse grave confronto, intuímos algo da já aludida estima suprema da individuação: aquela de que um originário precisa para alcançar seu último objetivo de prazer. De modo que o perecer se revela tão digno e respeitável quanto o nascer, e de modo que o nascimento deve cumprir, ao perecer, a missão que lhe é imposta como indivíduo. (NIETZSCHE, 2005, p.12).

Em vista disso, a cultura grega atinge seu ápice com arte e vida se imiscuindo na experiência dos indivíduos, que não precisavam negar as vicissitudes da existência para continuar vivendo. Para Nietzsche esse período na cultura helênica não é só profícuo, mais também autêntico, justamente por essas características apontadas, de não separar arte, vida e conhecimento. Vejamos como a tragédia veio a perecer e como em meados do século XIX em meio a concepções artísticas como a ópera, completamente imersas em artificialidades segundo o autor, podem se refazer com o renascimento do dionisíaco.

(8)

Revista Brasileira de Iniciação Científica, Itapetininga, v. 4, n. 4, 2017,

A morte da tragédia

Se é pela união dos impulsos que a tragédia efetiva suas potencialidades, é através da separação do apolíneo e dionisíaco que este decaimento se dará, mas não só por isso. O motivo que levou a tragédia ao “suicídio” é principalmente a atuação de Sócrates e Eurípedes na inserção da racionalidade e da explicação na tragédia grega.

Nietzsche vê um princípio racional regendo a composição das obras de Eurípedes na necessidade que o público entenda a tragédia, por meio de explicações prévias, descrições e antecipações no prólogo; na negação do herói dionisíaco em nome do homem comum; na diminuição da presença da música, na noção de palco e espectador; no recurso do deus ex machina 5 e demonstra como Eurípedes via os mestres Ésquilo e

Arquíloco como confusos e estranhos.

Para confirmar o aliciamento de Sócrates a essa mudança, o autor lembra-se de seu julgamento. Sócrates dizia nada saber e investigando profissionais em geral (artistas, estadistas, artesãos entre outros) percebeu que eles não tinham um saber certo e seguro do seu ofício, seguiam-no apenas por instinto. O fato de não saberem racionalmente tornava toda criação intuitiva inútil. Desse modo, o princípio estético euridipiano “tudo deve ser consciente para ser belo” é similar ao princípio socrático de que “tudo deve ser consciente para ser bom”. (NIETZSCHE, 2007, p.80,81).

Essa inserção da racionalidade tirou o poder dos impulsos e primou o intelecto. Frios pensamentos paradoxais foram postos no lugar das introvisões apolíneas e afetos ardentes substituíram o êxtase dionisíaco. Apolo permanece, mas dessa vez enfraquecido e Dionísio foge para um culto secreto. Não há mais uma relação entre impulsos naturais, e sim estados artificiais interpretados racionalmente.

Aqui Nietzsche inverte a concepção usual do que é considerado apogeu e declínio, otimismo e pessimismo, um recurso constante em suas obras. Esse otimismo racional é problemático, visto que desmerece a criação e a expressão artística através dos impulsos e que, no limite, permeia o saber científico quando este acredita que tudo pode ser

5 “deus trazido pela máquina”. Era o momento em que o deus intervinha na cena como um truque para resolver conflitos insolúveis. Eurípedes utilizou esse recurso na maioria das suas peças.

(9)

revelado. Entretanto percebe-se como incapaz de concluir essa tarefa e, por desprezar a arte, não consegue conferir significado de fato à existência, enfraquecendo os indivíduos.

Tendo isso em mente, a luta que se trava desde então é entre a insaciável sede de conhecimento otimista e a necessidade trágica da arte no mundo.

O dionisíaco como renovador da cultura

Nietzsche refaz uma história da ópera que, basicamente, seguiu essa linha de imitação artificial das pulsões artísticas, mesmo que em sua gênese houvesse a tentativa de recriar como teria sido a tragédia grega6. Portanto, desde o princípio a ópera seguiu a

tendência socrática, por se valer majoritariamente da retórica e mimetização de sentimentos.

A crítica à ópera se estende à cultura alemã, no sentido de uma falta de originalidade, dado que naquele momento a arte era tratada como um simples entretenimento e a avaliação estética era usada como marca de status quo. Havia uma tendência de se institucionalizar o teatro como formador moral da sociedade, de um público com qualidades de crítico de arte e ao mesmo tempo douto. Essas características demonstravam a necessidade real de uma renovação da cultura alemã, tendo por base os gregos, pois é somente através dos impulsos artísticos e não de concepções advindas do otimismo científico que a criação autêntica é possível. Existe aqui uma preocupação com a formação do indivíduo alemão de efetivar suas capacidades em algo de fato significativo e único.

Ressaltando diversas vezes a necessidade de resgatar o caráter dionisíaco uma vez suprimido da cultura e de revigorar a identidade alemã, Nietzsche faz elogios a Beethoven e Shakespeare em O Nascimento da Tragédia (1871) por recorrerem à genialidade grega, assim como Schiller e Goethe. Porém, exclusivamente o compositor alemão Richard Wagner é descrito como o representante capaz de renovar a música e a

6 A ópera consiste na combinação de solilóquio, diálogo, ação e música contínua (ou quase). Atribui-se o seu surgimento ao final do século XVI como uma tentativa de retomada da antiguidade grega na confluência entre música e teatro. Sobre o desempenho da música na tragédia havia duas correntes: uma acreditava que só o coro era cantado e a outra que a música passava por todo o texto (posição defendida por Girolamo Mei). A ópera também possui a influência dos madrigais. (GROUT; PALISCA, 1994, p.318-319).

(10)

Revista Brasileira de Iniciação Científica, Itapetininga, v. 4, n. 4, 2017,

cultura através do dionisíaco. Em um excerto de Tristão e Isolda, o filósofo analisa como união e aniquilamento, dor e alegria são trabalhados no 3º ato desse drama musical.

Nesta obra wagneriana a atração dos amantes é fortíssima, a ponto de que, mesmo com os empecilhos terrenos parecendo intransponíveis, eles se unam na noite, referência à morte em busca de liberdade, mesmo que signifique a dissolução. A música é intensa, apaixonada, por vezes calma, por vezes incontida. Desde o prelúdio que inicia a ópera vemos um jogo de forças, de trechos que se sobrepõem e se intercalam.

Para Candé, nenhuma obra pode ser apontada como aquela que foi a emancipadora da dissonância, como usualmente se assume, mas se a posteridade atribui tal feito a Tristão e Isolda, “é porque nessa obra o mito de civilização ocidental mobiliza os recursos extremos do sistema ‘tonal’ com uma intensidade excepcional. É a continuidade da tensão musical – da inefável paixão – que faz a importância de Tristão e não três compassos exemplares tomados aqui e ali.” (2001, p.71).

O mito, aqui no caso de referência celta, é celebrado por Nietzsche como a canção da Terra que nunca morre, uma referência atemporal e sempre viva de inspiração e força.

Nesse processo de retorno do dionisíaco é possível também modificar o ouvinte esteticamente no sentido de torná-lo mais afeito a obra de arte como fundamento e não como anteriormente descrito (douto e moral).

Conclui-se então que o mito é de crucial importância para que a força criadora de uma cultura possa se desempenhar como tal, por isso a exaltação à Wagner como um aliado, pois ele também se mostrava empenhado em retirar a ópera do vazio de significado e preocupado em elevar a cultura alemã. Convergindo então para um mesmo ponto, Nietzsche e Wagner pretendem revolucionar a arte e a cultura de seu tempo, dando-lhes um caráter mais potente.

Richard Wagner e seu projeto alemão

O projeto wagneriano pode ser resumido na característica da obra de arte total (Gesamtkunstwek). Em suma, trata-se de congregar numa mesma obra diversas expressões artísticas: poesia, música, canto e teatro. O compositor prefere o termo dramas musicais à consagrada ópera, por entender que esta precisava ser reformulada. Também se conecta à ideia de obra de arte total o leimotiv, temas ou motivos musicais que podem ser atribuídos a seres, objetos e sensações, aparecendo diversas vezes

(11)

retrabalhado durante uma obra. Segundo Grout e Palisca (1994, p.647) o leitmotiv é um recurso cujo objetivo é manter a coerência formal e acumular referências quando aplicado em contextos diferentes.

Os mitos são as obras-primas para os enredos dos dramas wagnerianos. Encontra-se tanto lendas medievais cristãs como fragmentos da mitologia nórdica. A escolha não é por acaso, pois pretende enaltecer a cultura alemã resgatando um passado mítico, atemporal, fortalecendo assim uma ideia de nacionalidade.

No campo da estética musical, o compositor representou a consumação da ópera alemã e elevou ao extremo a tendência para a dissolução da estrutura tonal clássica. Tal feito influenciou o estilo harmônico dos compositores do romantismo tardio como: Bruckner, Mahler e Strauss, chegando até as transformações dodecafônicas da segunda escola de Viena: Schoenberg, Berg e Webern (GROUT; PALISCA, 1994, p.644-650).

Não nos deteremos sobre os pormenores da vida do compositor, mas como mostrou bem Rainer Patriota em seu artigo: Wagner e o romantismo (2013), a vida do compositor já expressa a dupla ambiguidade: a de sua própria biografia e da história da Alemanha. Inicialmente a favor dos movimentos da revolução de 1848, Wagner foi ligado às ideias anarquistas de Bakunin e Proudhon. Depois da formação do segundo Reich em 1871, ele celebra a sua união com o Estado. Em seu antissemitismo cada vez mais forte, publica panfletos promovendo o ódio aos judeus como O judaísmo na música; e termina seus dias no teatro de Bayreuth, projetado por ele para apresentação de suas obras.

Nietzsche inicialmente atribuiu ao dionisíaco o aspecto retumbante de chacoalhar a cultura de sua falsa calmaria e acreditou que Wagner era aquele que entendia o passado grego assim como ele: uma fonte viva capaz ecoar na cultura coetânea e rasgar a superficialidade filisteia. No entanto, aspectos ambíguos e dúbios da postura criadora de Wagner não passaram despercebidos a Nietzsche, ao mesmo tempo em que progressivamente se afastava dos aspectos schopenhauerianos do início da sua filosofia, desenvolvendo uma análise sobre a moral do ponto de vista genealógico. A visita ao teatro de Bayreuth foi fundamental para marcar sua decepção. O culto a personalidade de Wagner, a letargia dos sentidos através da música, a metafísica cristã embutida no enredo, a redenção demonstravam o esgotamento do romantismo e do pessimismo, que apareceram num primeiro momento como revolucionários e posteriormente revelaram suas faces de Caliban: ambíguos, obscuros e atônitos diante da vida, sem novos valores

(12)

Revista Brasileira de Iniciação Científica, Itapetininga, v. 4, n. 4, 2017,

e carentes diante dos velhos e moribundos. Nesse trecho, Nietzsche faz uma avaliação desse processo visto e vivido por ele:

Eu compreendi […] o pessimismo filosófico do século XIX como sintoma de uma mais elevada força de pensamento, de uma mais vitoriosa abundância de vida, do que tivera expressão a filosofia de Hume, de Kant e de Hegel – eu vi no conhecimento trágico o mais belo luxo de nossa cultura, sua mais preciosa, mais nobre, mais perigosa espécie de esbanjamento, mais ainda seu luxo permitido, graças a sua opulência. Do mesmo modo, interpretei a música de Wagner como a expressão de uma potência dionisíaca da alma, nela acreditei ouvir o terremoto com uma força primordial da vida, há muito represada, finalmente se desafoga, indiferente à possibilidade de que tudo o que hoje se denomina cultura começa a tremer. Vê-se o que entendi mal, vê-se também com o que presenteei Wagner e Schopenhauer – comigo mesmo… Toda arte, toda filosofia pode ser vista como remédio e socorro da vida em crescimento ou em declínio: elas pressupõem sempre sofrimento e sofredores. Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de superabundância de vida, que querem uma arte dionisíaca, e desse modo uma compreensão e perspectiva trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento da vida, que requerem da arte e da filosofia silêncio, quietude, mar liso, ou embriaguez, entorpecimento, convulsão. Vingança sobre a vida mesma – a mais voluptuosa espécie de embriaguez para aqueles assim empobrecidos!… À dupla necessidade destes corresponde a Wagner, bem como Schopenhauer – eles negam a vida, eles a caluniam, e assim são meus antípodas. (1999, p.59-60).

A decadência da cultura: a grandeza aniquiladora

Antes de partirmos para a crítica a Richard Wagner sob o foco da decadência moderna, precisamos compreender qual a fonte de Nietzsche quando fala da decadência e tudo indica que é a partir da concepção do crítico Paul Bourget. Veremos a semelhança da definição nietzscheana de decadência com a do crítico francês e qual a particularidade que Nietzsche quer trazer na sua análise à moral, ao romantismo e o culto a imagem wagneriana.

(13)

A neurose na literatura

De acordo com Maria Aparecida Romão, os dois volumes dos Ensaios de

psicologia contemporânea (1883 e 1885) do crítico e romancista Paul Bourget contêm

uma série de notas sobre o pessimismo e niilismo presentes na juventude contemporânea europeia. A decadência pode ser compreendida tanto na esfera psicológica quanto fisiológica, a partir da degeneração do organismo. Para Bourget, a crise de valores da vida moderna experienciada na religião, na ciência, na política, na nostalgia da época não permitia aos indivíduos encontrar mais recursos para manter aquela moral já desgastada e demonstravam a ruptura entre homem e mundo. Portanto, o crítico vê na sociedade essa desagregação moral: “O homem é afetado por uma crise moral que resulta na tortura da alma e do corpo: provoca o emagrecimento, o esgotamento dos nervos e músculos, a languidez e a neurose”. (ROMÃO, 2011, p.78).

Ou seja, em todos os domínios era visível essa desintegração e sentimento de vazio em relação a efusividade de termos, explicações, teorias, cosmopolitismo que assoberbavam a mente num turbilhão. Todos demonstravam essa raiz comum, a negação da vida na civilização ocidental. Do ponto de vista intelectual, Bourget reflete sobre a contestação crescente da autoridade e da tradição em geral e aponta especificamente a filosofia schopenhaueriana como um reflexo do pessimismo da época que impactou alemães e franceses. (2011, p.75)

Logo, o resultado disso é a vertiginosa busca do homem que não sabe mais em que acreditar e o diletantismo se revela de maneira tóxica: “uma disposição do espírito, muito inteligente e ao mesmo tempo muito voluptuosa, que nos inclina mais e mais em direção a formas diversas da vida e nos conduz a nos emprestar todas essas formas sem nos dar alguma” (BOURGET apud ROMÃO, 2011, p. 76).

Tomando a literatura como objeto de análise desse fenômeno, o estilo decadente pode ser entendido como a fragmentação das partes que compõem um livro ferindo a unidade da obra: “a unidade do livro se decompõe para deixar lugar à independência da página, onde a página se decompõe para deixar lugar à independência da frase, e a frase para deixar lugar à independência da palavra.” (BOURGET apud ROMÃO, 2011, p. 79).

Vemos como essas críticas estão presentes na obra de Nietzsche e como seu conceito de decadência toma muitas coisas emprestadas, inclusive a citação acima de Bourget aparece invertida em O caso Wagner: “Como se caracteriza toda décadence

(14)

Revista Brasileira de Iniciação Científica, Itapetininga, v. 4, n. 4, 2017,

literária? Pelo fato de a vida não habitar mais o todo. A palavra se torna soberana e pula fora da frase, a frase transborda e obscurece o sentido da página, a página ganha vida em detrimento do todo – o todo já não é um todo.” (CW, 1999, p. 23). Para o filósofo alemão, esse conceito aparece principalmente na crítica à Richard Wagner, pois é a partir dele que é possível identificar a decadência da cultura moderna, assim como Bourget se utilizou da literatura para a sua investigação.

Nietzsche e o combate à decadência

A decadência em Nietzsche aparece como a corrupção do gosto; a sedução dos sentidos que gera o entorpecimento; o apreço pelo espetáculo que impede a reflexão e a ação; a superexcitação dos nervos cansados. Também se manifesta pelo aspecto neurótico, histérico e megalomaníaco; o enfraquecimento da cultura e dos valores coberta sob uma camada de suntuosidade. Já vemos aqui um início da análise à cultura de massa: “[…] O belo tem seus espinhos: nós o sabemos. Logo, para que a beleza? Por que não o grandioso, o elevado, o gigantesco, o que move as massas? – Repito: é mais fácil ser gigantesco do que belo; nós o sabemos…” (NIETZSCHE, 1999, p.20). Nietzsche nos mostra que a característica mais brilhante da decadência é o fato dela não ser vista como tal e que a obra de Wagner é uma boa maneira de captar esse fenômeno.

Como Wagner faz isso? Claramente, através de suas óperas. Nietzsche critica várias delas apontando seus defeitos, mas é na tetralogia do Anel dos Nibelungos em que a vemos de forma mais detalhada, além do fato de Wagner ter se dedicado vinte e cinco anos para concluí-la, o que parece um bom alvo de ataque.

Não exporemos os pormenores da história, mas basicamente a tetralogia é baseada na mitologia nórdica e o enredo gira em torno de um anel que conduz poderes ilimitados àquele que o possuir, desde que este renuncie ao amor. Paralelamente a esta luta que move nibelungos, homens e deuses, a profecia do fim dos deuses nórdicos se aproxima.

Em um determinado ponto, surge a figura revolucionária de Siegfried, filho de um incesto e um adultério. Seu nascimento é uma afronta a moral. Filho de uma dupla traição às leis, ele ataca, desrespeita, zomba da reverência e dos deuses, ao mesmo tempo em que possui a inocência diante do medo e da maldade. Diante de velhos acordos que

(15)

conduzem o mundo a desgraças, promovidas pela velha sociedade decadente, o que fazer senão lhe declarar guerra e buscar uma nova ordem?

Brunhilde, a filha adormecida do deus Wotan, salva Siegfried do isolamento e juntos o futuro parece apontar para uma nova era, os deuses ficariam para trás e agora surge a possibilidade de uma nova moral, pois ambos quebram as regras de autoridade em busca de algo novo:

Siegfried e Brunhilda; o sacramento do amor livre; o advento da era dourada; o crepúsculo dos ídolos da velha moral – o infortúnio foi abolido… Por longo tempo a nave de Wagner seguiu contente o seu curso. Sem dúvida, Wagner buscava nele o seu mais elevado objetivo. – O que aconteceu então? Um acidente. A nave foi de encontro ao recife; Wagner encalhou. O recife era a filosofia schopenhaueriana; Wagner estava encalhado numa visão de mundo contrária. (1999, p. 17).

O que aconteceu então? Schopenhauer surgiu e afundar se tornou uma meta. Nietzsche atribui o contato com a filosofia de Schopenhauer que Wagner teve essencial para sua reviravolta: impregnou-se do pessimismo e da metafísica da vontade.

Nietzsche já havia rompido intelectualmente com Schopenhauer e percebe como a tetralogia passa de uma possível afirmação da vida para uma negação e aceitação das forças destrutivas. Podemos afirmar que a vontade no final da tetralogia, o drama musical

Crepúsculo dos deuses subverte completamente o caminho inicialmente direcionado,

liquidando os indivíduos e levando as suas ações a nada, eliminando qualquer chance de uma aurora. Vimos surgir um novo mundo e ele é tão ruim quanto o velho. Siegfried é corrompido pela mesma inocência que o tornou grande e trai o seu amor verdadeiro; Brunhilde torna-se vingativa e depois resignada diante do destino subvertido; o deus poderoso Wotan quebra as mesmas regras que forjou, mas acaba por não lutar mais pelo adiamento do fim e agora o aguarda pacientemente. Tudo se encerra num majestoso

grand finale, todos mortos e em plena conformidade.

Tanto a música como o texto reforçam esse aspecto fragmentado e dúbio. Longas horas de drama psicológico levam ao ápice um êxtase tão grande que o indivíduo acredita estar diante de uma maravilha da civilização, que sua cultura tem um destino, que o mundo está contido naquela obra. É justamente essa sobrecarga de estímulos que Nietzsche chama de histeria, neurose, ela adoece pelo excesso, como um delírio que leva o corpo a exaustão e possui um objetivo claro: tornar crível que existe um futuro, que é a grandeza e superioridade alemã.

(16)

Revista Brasileira de Iniciação Científica, Itapetininga, v. 4, n. 4, 2017,

Esse nacionalismo radical evidente em Wagner, manifestado no culto a sua

persona e no seu antissemitismo é elemento do estado de decadência da cultura

apontado por Nietzsche. O período se debate numa atmosfera obnubilante com aparências solares, engolindo os opostos; em Ecce Homo (1908) o filósofo apresenta que seus alvos de ataques estão além do compositor de Tanhäusser:

[…] - ó tenho ainda “desconhecidos” inteiramente outros a desmascarar, que não um Cagliostro7 da música - seja mais ainda, por certo, um ataque a essa nação alemã cada vez mais indolente e pobre em instintos, cada vez mais respeitável, com invejável apetite prossegue se alimentando de opostos e engole tanto “a fé” como a cientificidade, tanto o “amor cristão” como o anti-semitismo, tanto a vontade de poder (de “Reich”) como o évangile des humbles [evangelho dos humildes], sem dificuldades de digestão… (EH, 2008, p. 96).

Conclusão

Mostramos como desde jovem, Nietzsche se preocupou com o estado da cultura de sua época e com os seus possíveis desdobramentos. A princípio, com a tentativa de conceber o surgimento da tragédia a partir dos impulsos apolíneo e dionisíaco, apresenta a metafísica do artista e, numa análise da cultura alemã, mostra um possível ressurgimento da força trágica através da música. Mesmo que ainda ligado a concepções schopenhauerianas, a metafísica aqui já se apresenta como anti-cristã e anti-científica, pois não tem como base a busca pela verdade e nem os dualismos realidade e ilusão, bem e mal, mas sim uma justificação estética da vida. Apolo e Dionísio refletem a vida complexa nos seus processos de destruição e criação, intimamente ligados.

O projeto wagneriano parecia corresponder às expectativas nietzscheanas de renovação cultural através dos mitos nórdicos e medievais e de uma retomada do que havia de musical e trágico no passado grego.

Acompanhando a trajetória de ambos os pensadores, vimos como a situação se inverteu radicalmente: Nietzsche torna-se completamente crítico das suas especulações da juventude sobre o espírito alemão e o pessimismo, assim como da influência de Richard Wagner. Este, agora manifestando toda sua ambiguidade de grandeza e de decadência, serviu muito bem ao filósofo como ponto de análise da cultura romântica, imersa na atmosfera obscura e inerte. Temos também uma crítica à cultura de massa,

7 Alessandro, Conde Cagliostro, viajante, ocultista, alquimista, curandeiro, hipnotizador e maçom do século 18.

(17)

que pelo espetáculo assola os sentidos e torna aquele que assiste um espectador passivo.

Por fim, em meio a este cenário crítico, o que podemos chamar de um exemplo afirmativo? Para Nietzsche, a música de Bizet, especificamente sua ópera Carmen, se mostrou como uma lufada de ar e na sua apologia a Bizet ele afirma como esta obra o torna um melhor músico, filósofo e ouvinte… Exibia as qualidades que ele admirava e parecia se contrapor a seriedade pesada com a qual o wagnerismo se instaurou, por ter uma tragicidade alegre:

De Mérimée ainda possui a lógica da paixão, a linha mais curta, a dura necessidade; tem sobretudo o que é da zona quente, a secura do ar, a limpidezza no ar. Em todo aspecto o clima muda, aqui fala uma outra sensualidade, uma outra sensibilidade, uma outra serena alegria. Essa música é alegre, mas não é de uma alegria francesa ou alemã. Sua alegria é africana; ela tem a fatalidade sobre si, sua felicidade é curta, repentina, sem perdão. Invejo Bizet por isso, por haver ter tido a coragem para esta sensibilidade, que até agora não teve idioma na música mais cultivada da Europa – esta sensibilidade mais meridional, mais morena, mais queimada… Como nos fazem bem as tardes brônzeas de sua felicidade! (NIETZSCHE, 2009, p.12 e 13).

Outro aspecto interessante desta ópera é que, apesar de situada no romantismo e com um traço marcado pelo exotismo, característico do período, já apontava para outro movimento, favorável ao realismo e de retorno à vida comum. Do ponto de vista musical, “A música da Carmen apresenta uma extraordinária vitalidade rítmica e melódica; de textura leve e com magnífica orquestração, obtém sempre os mais vigorosos efeitos dramáticos com uma grande economia de meios.” (GROUT; PALISCA, 1994, p. 632).

Desde o início, Nietzsche defende a arte como um tônico para a vida, de potência transvaloradora. Extremamente decepcionado com a cultura alemã, com o romantismo e sofrendo da música como uma ferida aberta8, a pergunta de autocrítica, escrita dezesseis

anos9 após a publicação de O nascimento da tragédia, continua ecoando: o que seria

uma verdadeiramente música dionisíaca, desta vez não mais romântica?

8 NIETZSCHE. Ecce Homo, 2008, p. 96.

(18)

Revista Brasileira de Iniciação Científica, Itapetininga, v. 4, n. 4, 2017,

Referências

BENVENHO, Célia Machado. Arte trágica como Alternativa para a Racionalidade. Tempo da Ciência (14) 28: 31-43. 2º semestre 2007.

BITTENCOURT, Renato Nunes. O trágico na música: a Carmen de Bizet como expressão da tensão apolíneo-dionisíaco. Revista Exagium, Minas Gerais, número 9, 2011, p. 67-86.

CANDÉ, Roland. História Universal da Música Volume 2. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

GROUT, Donald J; PALISCA, Claude V. História da música ocidental. Lisboa: Gradiva. 1994.

LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A lexicon abridged from Liddell and Scott's Greek-English lexicon. Oxford, GBR: Oxford University Press, 1891.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras. 2007

________. Ecce Homo. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.

_________. O caso Wagner: um problema para músicos/ Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 1999.

________. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção de fragmentos póstumos: Heinz Friedrich; tradução: Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.303.

PATRIOTA, Rainer Câmara. Richard Wagner e o Romantismo Alemão. Princípios Revista de Filosofia. Natal (RN), v. 20, n. 34. Julho/Dezembro de 2013, p. 239-252. Disponível em:

<http://www.principios.cchla.ufrn.br/arquivos/34P-239-252.pdf> Acesso em: 01/06/2016

ROMÃO, Mariane Aparecida. Sobre a influência de Paul Bourget no pensamento tardio de Friedrich Nietzsche. Revista filogênese, Unesp Marília. Vol. 4, nº 2, 2011, p.73-89.

SÜSSEKIND, Pedro. A Grécia de Winckelmann. Revista KRITERION, Belo Horizonte, nº 117, Jun./2008, p. 67-77. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/kr/v49n117/a0449117.pdf> Acesso em: 01/04/2017

Referências

Documentos relacionados

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

Apesar do glicerol ter, também, efeito tóxico sobre a célula, ele tem sido o crioprotetor mais utilizado em protocolos de congelação do sêmen suíno (TONIOLLI

Finally,  we  can  conclude  several  findings  from  our  research.  First,  productivity  is  the  most  important  determinant  for  internationalization  that 

Em outro aspecto, a intoxicação exógena por psicofármacos foi abordada como o método mais utilizado nas tentativas de suicídio, sendo responsável por 33,3% do total de

5 Cs e 1 contexto : uma experiência de ensino de português língua estrangeira conforme os parâmetros de ensino de língua norte-americanos – Standards for Foreign Language Learning

A democratização do acesso às tecnologias digitais permitiu uma significativa expansão na educação no Brasil, acontecimento decisivo no percurso de uma nação em

A ideia da pesquisa, de início, era montar um site para a 54ª região da Raça Rubro Negra (Paraíba), mas em conversa com o professor de Projeto de Pesquisa,