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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

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Academic year: 2019

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UNIVERSIDADE DO ESTADO

DE SANTA CATARINA

CENTRO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

Nicole Chagas Lima

REGIMES DE LUZ:

A FOTOGRAFIA NA PRODUÇÃO

DE DESCONTINUIDADES.

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Nicole Chagas Lima

REGIMES DE LUZ:

A FOTOGRAFIA NA PRODUÇÃO

DE DESCONTINUIDADES.

Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/ UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Orientador: Prof. Dr. José Luiz Kinceler – CEART/UDESC

________________________________________________

Membro: Prof. Dr. Mário Ramiro – ECA/USP

________________________________________________

Membro: Profa. Dra. Regina Melim –CEART/UDESC

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Nicole Chagas Lima

REGIMES DE LUZ:

A FOTOGRAFIA NA PRODUÇÃO

DE DESCONTINUIDADES.

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

Orientador: Prof. Dr. José Luiz Kinceler

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AGRADECIMENTOS

Ao apoio de todos aqueles que tornaram esse trabalho, senão menos árduo, possível.

Aos membros da banca, pela honestidade e generosidade de suas colocações no exame de qualificação, as quais contribuíram imensamente para o desenvolvimento deste trabalho.

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"I would say rather that every photograph is answerable to art, except (paradoxically) art photographs."

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RESUMO

A fotografia enquanto corpo, movimento, alteração, subtração, repetição. Quais vértices tensionam essa trama formada entre imagem, espectador, espaço e tempo? A partir de uma análise fenomenológica do processo de artistas que utilizam a fotografia como meio e suporte para suas obras, paralelamente ao meu processo de trabalho, busquei tecer uma lógica de efeitos e descontinuidades, a partir da qual formei três grupos ou paradigmas. No capítulo 1: “O corpo da imagem: ocupações”, estabeleço que a fotografia oscila entre ver e ser vista, ora fazendo-se objeto de seu espectador, ora fazendo dele seu próprio objeto, capturado em sua armadilha. A isso chamo corpo da imagem. Para sustentar essa afirmação, percorro a extensão do meu corpo na fotografia enquanto espaço, revisitando o processo de construção de dois trabalhos: Gravitação e In_versos:Tão frágil me sinto agora, seguidos da análise de obras de Vito Acconci e Gabriel Orozco. No capítulo 2: “O movimento: alteridades”, observo a construção da imagem em pleno vôo, uma fotografia que existe em função do interesse em acessar e se deixar alterar pelo Outro, seja partindo em direção a ele ou ressurgindo do trauma da colisão. Neste capítulo também apresento o processo de construção de dois trabalhos: Oi Nicole Lima e Sobre, seguidos de uma análise de fotografias de Cindy Sherman e Diane Arbus. No terceiro capítulo, intitulado “A coisa real: lateralidade e deslocamento”, descrevo o processo de elaboração de um de meus trabalhos mais recentes, a obra 100 importâncias, paralelamente a trabalhos de artistas como Nan Goldin, Ivars Gravlejs, Elina Brotherus e Rosângela Rennó, que apresentam fotografias apropriadas e deslocadas de arquivos, pessoais ou alheios – fotografias “do mundo” reapresentadas “ao mundo” numa operação que parece confirmar: imagens não são criadas, mas repetidas. O que podemos alterar são suas combinações. Ao final de cada capítulo, faço uma breve pausa entre análises e teorias, para apresentar uma pequena e nova série de imagens intitulada Geografias,

que ofereço ao leitor deste texto como uma forma de reflexão (um reflexo, não uma conclusão) sobre os processos apresentados.

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ABSTRACT

The photograph as body, movement, change, subtraction, repetition. What vertices tense this net weaved by image, viewer, space, and time? From a phenomenological analysis of the process of artists who use photography as a means and support for their work in parallel to my own work process, I sought to gather them in a logical ensemble of effects and discontinuities, which resulted in three groups or paradigms. In Chapter 1: "The body of the image: occupations," establishes that the image wavers between seeing and being seen, at times becoming the object of its viewer, others making it its own object, caught in its trap. This I called the body of image. To support this assertion, I walk the length of my body in the space of photography, revisiting the process of two works: Gravitation and In_verses: Now I feel so fragile, followed by the analysis of works by Vito Acconci and Gabriel Orozco. In Chapter 2, "Movement: otherness", I observe the construction of the image in full flight, photographs that are formed by the interest to access and be accessed by the Other, be it moving towards him or rising back from the trauma of the collision. This chapter also presents the process of two other works: Hi, Nicole Lima? and Over, followed by an analysis of photographs by Cindy Sherman and Diane Arbus. In the third and last chapter, entitled "The real thing: laterality and displacement", I describe the development process of one of my most recent works, 100 importances, alongside works by artists such as Nan Goldin, Ivars Gravlejs, Elina Brotherus and Rosângela Rennó, whose works present photographs rearranged from files, be them from their personal lives or those of others – pictures “of the world" restated "in the world" through an operation that seems to confirm: images are not created, but repeated. What we are able to change is their infinite combinations. At the end of each chapter, I make a brief pause between analysis and theories to present a short and new series of images entitled Geographies, which I offer the reader of this text as a form of reflection (not a conclusion) on the processes presented.

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SUMÁRIO

Prólogo... 10

Introdução... 11

Capítulo 1 – O corpo da imagem: ocupações ... 19

Gravitação ... 25

In_versos: Tão frágil me sinto agora ...38

Vito Aconcci ...46

Gabriel Orozco ... 63

Geografia #1 Capítulo 2 – O movimento: alteridades ...88

Sobre...91

Oi, Nicole Lima? ...100

Incidências e Reflexos: Arbus x Sherman ...106

Diane Arbus ...110

Cindy Sherman ...116

Geografia #2 Capítulo 3 – A coisa real: lateralidade e deslocamento ...130

100 importâncias ... 135

Rosângela Rennó ... 173

Nan Goldin ... 179

Elina Brotherus ... 188

Ivars Gravlejs ... 197

Geografia #3 Considerações finais ...208

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Prólogo

Tenho marcas em meu corpo. Desde que eu nasci. Desde que você nasceu.

Porque crescemos, até nossas tangentes, vamos nos tornando, be-coming. Tão devagar que nos escapa aos olhos; tão depressa que nos escapa às mãos. Até que alcançamos todo o espaço, sentimo-nos tocar as margens. É o peso do mundo, a gravidade do que eu não sou: você, que me contém.

Tenho muitas marcas em meu corpo.

Em seu perfeito equilíbrio, o universo seria finito e terminaria ali, onde eu termino. Mas tenho marcas em meu corpo. Assim, num desamparo dos pés, a colisão. Você, sístole.

(aqui, o inominável se estende) Eu, diástole, a parte-partida.

(tenho marcas do meu corpo que agora é seu)

Desejo voltar ao tempo que eu era apenas eu. Mas o tempo, essa linha, é invenção, assim como eu, assim como você. Há apenas esse ponto de luz que acende e apaga tão rápido que não percebemos seu fluxo, então acreditamos estar vendo o que acabamos de ver. Tão devagar que acreditamos estar, esse verbo, plano de inércias.

Desejo então uma parte sua igual ou maior a que me tirou. Algo mais do que a minha falta me move em sua direção. Vingança. Que o pedaço arrancado de mim te atravesse de golpe. Quero sujar suas mãos, até que meu gosto se perca em você.

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Introdução

“Tudo que não invento é falso”1, escreveu Manoel de Barros. Como falar de meu próprio processo sem inventá-lo? O maior desafio de escrever sobre meus próprios trabalhos foi me esquivar de transformá-los em tratados de “boas intenções”. Principalmente porque eles existem e estão disponíveis ao confronto. Falar das intenções de meus trabalhos seria falar de tudo o que de fato eles não se tornaram. Era preciso compreender seus efeitos, aqueles que até mesmo me escaparam à intenção.

Efeitos, no entanto, não são palpáveis ou claramente comprováveis; não se constituem propriamente de objetos, mas de fenômenos, “algo” que se passa entre corpos. Dada a natureza de fenômeno, onde observá-los? Na busca de respostas, esperava encontrar algum alento na teoria – a aura de Benjamim, o punctum de Barthes, os afetos e

perceptos de Deleuze, o real de Foster, os dispositivos de Foucault – e rapidamente me vi

imersa na incansável busca destes filósofos e teóricos para definir algo que permanecia suspenso, indecifrável, até mesmo: inominável.

Voltei ao princípio e decidi começar pelo mais simples, o que eu acreditava conhecer do meu processo: a fotografia, matéria prima dos meus trabalhos. Que efeitos eu me aventurava a produzir com esse meio que oscila entre o virtuoso e o automático, capaz de produzir e reproduzir, apresentar e representar? O que torna a fotografia, “prática paradigmaticamente ambivalente entre arte e não-arte, atividade e passividade” (RANCIÈRE, 2009, p.107), possível enquanto matéria para se produzir arte?

1 Epígrafe do livro: BARROS, M.

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Obviamente eu não poderia responder a essa última pergunta totalmente, quiçá parcialmente, tomando por base os efeitos (afetos) que algumas obras que trazem a fotografia como meio, produziram em mim. Identificados esses, teria então uma hipótese: que seriam os mesmos que eu tentava repetir em meus trabalhos. O processo de elaboração dessa dissertação se daria assim, da identificação à compreensão de gestos e de suas repetições em mim.

Tomando de empréstimo a definição de Vilém Flusser, que define um fotógrafo como aquele que “insere na imagem dados não previstos pelo aparelho fotográfico” (2002, p. 77), o conjunto de artistas e obras para essa análise foi definido pela reverberação que seus autores agregavam às fotografias que apresentavam. Busquei reunir trabalhos que me levassem, através da fotografia, justamente a esses “dados não previstos” - mínimos imprevistos – sobre os quais me debrucei em uma investigação essencialmente fenomenológica: era preciso um embate não mediado, uma exposição direta à luz que emanava dessas obras.

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seu contexto original para o campo da arte? Demandas que nortearam uma investigação mais aprofundada do processo de cada artista.

À medida que discorria em minha análise, os ecos da teoria acumulada ganhavam mais sentido. Pensando a fotografia sob a ótica do dispositivo2, encontrei os termos que mais se aproximavam do que eu tentava elaborar e que passaram a integrar o título dessa dissertação: regimes de luz e descontinuidades.

A expressão “regimes de luz” foi cunhada por Gilles Deleuze em seu ensaio “O que é um dispositivo?”3, onde reflete sobre os conceitos de visibilidade e enunciação afirmando que cada dispositivo tem seu “regime de luz próprio o qual determina a forma como será distribuído o visível e o invisível.” (DELEUZE, 1996, p. 84) Deleuze também menciona os regimes de enunciados, que se constroem em linhas sobre as quais são distribuídas as posições dos elementos de um dispositivo. Os regimes de enunciados, no entanto, não são estáveis, pois não consideram apenas a posição do autor do dispositivo, mas também as posições de todos os outros elementos (tempo, lugar, distância, contexto histórico4, e espectador, para citar alguns) que ocupam o espaço criado por ele e tensionam os extremos do que Deleuze chamou de linhas de enunciação. Ao artista cabe projetar a arquitetura das imagens, distribuir sobre elas e entre elas o visível e o invisível, revelar seus regimes de luz.

Assim, cada conjunto analisado não poderia ser visto apenas pelas fotografias dadas, enquadradas em suas superfícies, mas pela forma como esses autores distribuíam entre

2 Conceito elaborado por Michel

Foucault e ampliado por Giorgio Agamben e Gilles Deleuze.

3 In: DELEUZE, G. O mistério de Ariana.

Lisboa: Vega, 1996.

4 “Assim como o regime de luz

durante a idade média era um (religioso). Regimes que hoje são complexos e rizomáticos por um lado, mas também controladores,

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elas e, no tempo, o visível e o invisível. Cada imagem ou conjunto de imagens deveria ser analisado por seu regime de luz próprio.

As descontinuidades seriam o resultado progressivo dessa equação: o que deixamos de ser e o que nos tornamos ao atravessar o espaço do dispositivo. O que ele (o dispositivo) deixa de ser e se torna ao sofrer os efeitos desse atravessamento. Para Foucault5, a descontinuidade é uma cisão do instante, uma espécie de bombardeamento da subjetividade. Deleuze agrega a essa condição (de não ser em um não instante) com o que denomina “arquivo” e “atual”:

Nós pertencemos a dispositivos e agimos neles. A novidade de um dispositivo em relação aos precedentes pode ser chamada de sua atualidade, nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas antes o que nós nos tornamos, aquilo que estamos nos tornando, isto é o Outro, nosso tornar-se outro. Em todo dispositivo, é preciso distinguir aquilo que nós somos (aquilo que nós já não somos mais) e aquilo que nós estamos nos tornando: a parte da história, e a parte do atual. A história é o arquivo, o desenho daquilo que nós somos e que paramos de ser, enquanto que o atual é o esboço daquilo que nós nos tornamos. De modo que a história ou o arquivo é o que nos separa ainda de nós mesmos enquanto que o atual é este Outro com o qual nós já coincidimos. (DELEUZE, 1996, p. 159)

Relendo A Câmara Clara, percebi que esse mesmo princípio de alteração – alteridade, esse tornar-se Outro – era descrito em outras palavras por Roland Barthes, quando no final de seu livro ele amplia o conceito de punctum, baseado agora não mais no “detalhe”, mas no “tempo”: “Sei que agora existe um outro punctum (um outro ‘estigma’) que não o ‘detalhe’. Esse novo punctum, que não é mais de forma, mas de intensidade, é o

5 FOUCAULT, M. A ordem do discurso.

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Tempo, é a ênfase dilaceradora do noema (“isso foi”) sua representação pura.” (BARTHES, 1984, p. 141)

No texto original, em Francês, a expressão “isso foi”, apresentada com o verbo “être” tem três sentidos: ser, estar e existir. Dessa forma, o tempo a que Barthes se refere não é apenas o passado cronológico que deu origem à imagem, mas um condensamento do tempo (presente, passado e futuro): “isso está morto e isso vai morrer”, simultaneamente a imagem fotográfica é o seu “arquivo” e o seu “atual”.

Barthes também afirma que o punctum “trata-se de um suplemento: é o que acrescento à foto e que todavia já está nela.” (1984, p. 85) Minha investigação tratará pois desse acréscimo, que é também uma subtração (para que eu acrescente à imagem, o que ela me subtrai?), um ponto a partir do qual nem eu nem ela continuamos os mesmos.

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O primeiro paradigma, que sustenta o capítulo 1: “O corpo da imagem: ocupações”, estabelece que a fotografia tem a propriedade de oscilar entre ver e ser vista, ora fazendo-se objeto de seu espectador, ora fazendo dele seu próprio objeto, capturado em sua armadilha, mas que por vezes também é abjetado6 da imagem, em movimento de ruptura com essas duas posições. A isso chamei de corpo da imagem. Pensando essas fotografias então como corpos, logo concluí: corpos que ocupam um lugar no espaço.7 Espaço que não se resume a uma configuração física de elementos e posições marcadas, mas que se refere também a um interstício8, uma abertura paralela onde determinadas práticas e relações são possíveis. Como a percepção desse espaço-interstício criado pelo artista é ativada pelo espectador? Que resíduos da imagem são esses que permanecem impregnados no corpo daquele que a compartilha? Como se entrecruzam o tempo circular9 da imagem com o tempo linear do espectador? Questões que serviram de base para as análises tanto do meu processo como de algumas obras de Gabriel Orozco e Vito Acconci, selecionadas para esse capítulo.

O segundo paradigma, que sustenta o capítulo 2: “O movimento: alteridades”, observa a fotografia em pleno vôo, do movimento ao gesto, vetor que se lança em direção ao Outro. Não um discurso sobre o ato de fotografar (que em si é o inverso do movimento, um congelamento), mas uma investigação sobre essa fotografia que existe em função do interesse em acessar e se deixar alterar pelo Outro, seja partindo em direção a ele ou ressurgindo do trauma da colisão. Como se aproximar? Quão perto se pode chegar? Aqui, subjetividade e alteridade são construídas mutuamente, numa relação de intrínseca dependência. O desejo é força motriz, de olhar ou ser olhado, tomar ou

6 No capítulo 1, discorrerei sobre o

termo ‘abjeto’.

7 Encontrei em De Certeau,

A invenção do cotidiano (1994), algumas respostas que elucidaram os termos lugar x espaço (o espaço como lugar praticado) ao longo do primeiro capítulo.

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Nicolas Bourriaud descreve o interstício como “um espaço de relações humanas que sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema. É exatamente esta a natureza da exposição de arte contemporânea no campo do comércio das representações: ela cria espaços livres, gera durações com um ritmo contrário ao das durações que ordenam a vida cotidiana, favorece um intercâmbio humano diferente das zonas de comunicação que nos são impostas. (...) No interior desse interstício social, o artista deve assumir os modelos simbólicos que expõe: toda representação (mas a arte contemporânea cria modelos, e não propriamente representações; ela se insere no tecido social sem

propriamente se inspirar nele) remete a valores transferíveis para a

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tornar-se o Outro. Encontros que deixam marcas, deformidades, descontinuidades.10 Alteridade e descontinuidade serão palavras fundantes das análises do meu processo nesse capítulo, através das obras intituladas Sobre e Oi, Nicole Lima?,em confronto com uma seleção de fotografias de Cindy Sherman e Diane Arbus.

O terceiro paradigma afirma que a fotografia é repetição. Mais que um paradigma, quiçá seja uma hipótese sobre o futuro da fotografia, a de que imagens não são criadas, mas repetidas. Nelas o que podemos alterar são suas combinações.11 No terceiro capítulo, intitulado “A coisa real: lateralidade e deslocamento”, analiso alguns trabalhos meus e de outros artistas que se utilizam de fotografias de arquivos, sejam estes provenientes das vidas pessoais de seus autores, como é o caso da minha obra-instalação 100 importâncias, e também de fotógrafos como Nan Goldin, Elina Brotherus e Ivars Gravlejs ou de fotografias “do mundo”, como é o caso de Rosângela Rennó. Imagens em estado quase bruto, que com sua crueza tentam “chegar mais perto”12, não do objeto fotografado, mas de quem as vê. Fotografias que são acessadas e apresentadas ao mundo através de dois processos, o primeiro paralelo à experiência, que eu chamo de lateralidade, e o segundo, paralelo ao tempo-espaço, que eu chamo de deslocamento.

Corpo, movimento, alteração, subtração, repetição. Palavras com as quais convivi intensamente nos últimos meses e que me levaram a construir uma nova série, intitulada Geografias que ofereço ao final de cada capítulo como uma forma de reflexão (um reflexo, não uma conclusão), mas também uma pausa, uma praça onde o leitor pode sentar os olhos em meio ao burburinho urbano das palavras.

9 Flusser, em Filosofia da Caixa Preta,

traz reflexões sobre o tempo circular da imagem: “O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para

contemplar elementos já vistos. assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois”se torna o “antes”, O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno.” (FLUSSER, 2002, p.8).

10 Conceito elaborado por Michel

Foucault em A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

11 Em The Future of Image, Jaques

Rancière afirma que a arte deve provocar “uma reorganização local, um rearranjo singular de imagens circulantes.” (RANCIÈRE, 2007, p. 24. Tradução própria.)

12 Em alusão à célebre frase de Robert

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Geografia #1 trata do lugar (fixo) que se converte em espaço através da busca pelo encontro (móvel). Todos os dias paro em determinado ponto da paisagem e tento tirar a mesma foto, exatamente idêntica a que fiz no dia anterior. Mesmo agora, que não estou lá, inevitavelmente, refaço o movimento. O recorte é simples: ordena-se a realidade em três partes: céu, vegetação, chão. Da direita para esquerda, a um terço da borda, introduz-se um elemento exótico: uma palmeira cuja base se apoia no ponto áureo do retângulo. Ao espectador ofereço a repetição do gesto, até que ele mesmo o faça sem minha permissão. Nesse instante estamos juntos. Não repetimos o olhar, e sim uma configuração da ordem do pensamento. Confrontamos a imagem que esperamos reencontrar, com a imagem que se põe diante de nós. Eis a fotografia.

Geografia #2 trata da busca, do movimento entre mim e o outro, vetor de forças que se

atraem e se repelem. Sete fotografias do céu formam uma sequência marcada pela busca e a colisão: em algum ponto o encontro se dá (pequenos pássaros, pipas, aviões), e torna a se desfazer. E o jogo recomeça.

Geografia #3 é um movimento às avessas: um ato de pausa. O contrário da busca, o

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Capítulo 1 – O corpo da imagem: ocupações

Antes de mais nada, cabe explicar o uso da palavra que elegi como parte do título desse capítulo: corpo. É necessário dissociá-la dos usos convencionados ao corpo na arte, relacionado principalmente não à condição de ser corpo, mas à sua representação, seja em retratos (que não costumam ser pensados como corpos, e sim indivíduos, como se um estranhamente ignorasse o outro) ou nus (em sua esmagadora maioria femininos), ou ainda do uso do corpo do artista diretamente na performance e na body-art.

Nenhum desses é o corpo a que me refiro. O corpo que procuro descrever é um interstício: algo que oscila entre o ser sujeito e o ser objeto, autor e espectador da imagem. Um corpo que se constrói a partir da imagem, expandindo suas bordas, construindo relevos e abismos em sua superfície. Um jogo de posições, ou de ocupações, intrinsecamente conectadas a lugares específicos. Ou ainda, a fotografia que expulsa de si ambas essas condições – nem sujeito, nem objeto: abjeto1. A palavra corpo também remete a uma materialidade, densidade, consistência: a fotografia enquanto corpo tem território e peso próprios, tem espessura. Em uma primeira hipótese, o que procuro descrever poderia estar aí, entre a fotografia enquanto corpo e o meu corpo, nesse embate em que somos sujeito e objeto cativos um do outro, alternadamente. Nesse espaço fronteiriço em que nossas bordas quase se tocam; a imagem do meu corpo; o corpo da imagem. Mas o que o meu corpo sabe da fotografia?

1 Em O Retorno do Real (1996), Hal

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Gabriel Orozco - , 1990.

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Quando vejo essa imagem (e sempre a vejo, mesmo quando não estou olhando para ela), tenho a impressão nítida de estar diante da última imagem, como se depois dela nada mais precisasse ou devesse existir. Tudo parece ter encontrado seu equilíbrio final, do vulcão que fez a rocha deslizar a todas as coisas que se sobrepuseram umas às outras, dobrando-se em nervuras de tempo solidificado: um cão dorme. Nenhuma ação, inércia. A menos que, num espasmo de suas pernas, ou bocejo fatídico, o cão deslize e caia, será um precipício? Não é permitido o saber, apenas acreditar que o cão está e estará

dormindo.

Por que fotografar o sono? É recorrente essa imagem na fotografia. A fotografia de alguém em sono profundo contém uma atmosfera enternecida daquele que não apenas testemunha, mas observa o descompasso entre a vigília e o repouso, ou ainda, daquele

que guarda o sono do outro (eu guardo o sono do cão). Por outro lado, um corpo

encontrado adormecido é sobretudo um corpo. Tem peso e gravidade acentuados pela sua falta de sustentação. Um corpo frágil e perecível (nós frágeis e perecíveis) também pode ser um corpo morto, por isso o observamos com cuidado, até sentir sua respiração.

Insisto na pergunta: o que o meu corpo sabe da fotografia? Esforço-me para explicar por que a fotografia de um cão dormindo serenamente sobre uma pedra, mais ainda: a fotografia de um cão dormindo sobre uma pedra, impressa serenamente sobre uma página de livro (tão distante de onde veio, ou de quem a tirou, ou trouxe até mim, pouco importa), me comove? Seria o punctum2 de Barthes? Mas se o punctum fosse mesmo um próprio da fotografia, digo, se estivesse impresso em algum “detalhe” da superfície

2 Em A Câmara Clara (1984),Barthes

nos apresenta sua dificuldade em determinar o que, em “algumas fotos”, tinha para ele um caráter perturbador. Na primeira parte do livro (que é escrito sob forma de registro de um processo, um fluxo de pensamento, mais que um ensaio conclusivo sobre as questões que ele aborda), Barthes chega a acreditar que esse poder de pungir é uma latência que habita o “detalhe” “Com freqüência, o punctum é um ‘detalhe’, ou seja, um objeto parcial. Assim, dar exemplos de

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fotográfica, então eu saberia exatamente quais fotografias e em que ponto precisamente me feriam. Bastaria não olhá-las mais, retirá-las do álbum, dos porta-retratos, como quem arranca uma erva daninha do jardim, ou cortar fora apenas esta parte (castrar o medo e o desejo em um único golpe), ou ainda: rasgá-las, queimá-las, enterrá-las, e então estaríamos seguros, protegidos daquele objeto puntiforme capaz de nos ferir “ou mesmo matar”3.

Mas o cão não dorme sobre a fotografia, dorme sobre a imagem. A imagem não pode ser destruída, porque não está impressa sobre o papel, a imagem está em mim.4 A pedra onde o cão dorme é também onde eu estou agora, nosso tempos estranhamente coincidem, e ele sente meu calor, e eu sinto seu frio, e respiramos juntos, e respiraremos até o fim.

3 Em O Retorno do Real (1996), Hal

Foster traz a figura da imagem apolínea com a função de domesticar o olhar, citando Lacan: “De fato, Lacan imagina o olhar não apenas como malévolo, mas também como violento, como uma força que pode deter ou mesmo matar, se não for primeiramente desarmado” (p. 170).

4 Mais adiante, em A Câmara Clara,

(1984) Barthes admite que o punctum

pode não estar impresso na fotografia: “No fundo – ou no limite – para ver bem uma foto mais vale erguer a cabeça ou fechar os olhos. (...) deixar o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva.” Quando abandona a imagem ao fechar os olhos para ver, Barthes nos conduz a um campo cego, que nos leva para fora do enquadramento da fotografia: “O

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A imagem do cão dormindo tem um efeito ainda mais perturbador, não bastasse o fato de ser indelével, tem o poder de gerar cópias, não reproduções técnicas (outras fotografias idênticas), mas cópias de suas repetições: a partir dela, toda fotografia de alguém em sono profundo será sua imitação. Ela foi a primeira, a única, e também a última foto do último sono. Eu nunca poderei fotografar essa imagem (isso foi5), e ninguém mais poderá. Mesmo as fotos de outros seres adormecidos sobre outras pedras que vieram antes dessa, melhores ou piores, de alguma forma são anuladas por seu efeito, pois também parecem estar tentando imitá-la. O mundo assim se configura em antes e depois da foto do cão sobre a pedra. Ironicamente crua, ela não se pretende melhor que suas circunstâncias, não exalta a destreza do fotógrafo, não dignifica ou menospreza o cão adormecido: nem moribundo nem realeza, apenas um corpo estendido sobre a pedra, sobre a parede, sobre o livro, sobre mim, sobre você.

5 Na segunda parte de A Câmara Clara

(1984), após a morte de sua mãe, Barthes deixa de lado sua análise arbitrária de “algumas fotografias” e parte em uma busca obstinada por “aquela foto” que poderia conter a essência de sua mãe. “Eu as percorria, mas nenhuma me parecia verdadeiramente ‘boa’: nem desempenho fotográfico, nem ressurreição viva da face amada.” (p. 96). Ele finalmente a encontra em uma foto na qual, curiosamente, sua mãe não está retratada. “A foto do Jardim de Inverno era minha Ariadne, (...) doravante seria preciso interrogar a evidência da Fotografia, não do ponto de vista do prazer, mas em relação ao que chamaríamos de amor e morte.” (p. 110) Nessa reestruturação do seu discurso, Barthes expande o conceito de punctum: “Sei que agora existe um outro punctum

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Para confrontar e ampliar as questões da fotografia enquanto corpo, descreverei neste capítulo meu processo de construção de dois trabalhos: Gravitação (2006) e In_versos:

Tão frágil me sinto agora (2009). No primeiro procurava tensionar (ou equilibrar) dois

pólos de força entre corpos: o desejo de atração e o desejo de expulsão. No segundo, retrato o meu próprio corpo enquanto “corpo estranho”, descolado da consciência do Eu, à medida que o aproximo de sua condição perecível: a morte.

Complementando a análise do meu processo, sob o efeito de alguns trabalhos fotográficos de Vito Acconci e Gabriel Orozco, buscarei ampliar o entendimento da fotografia enquanto corpo. Em Acconci, discutirei a imagem fotográfica enquanto sujeito do corpo do espectador, o que chamarei também de “imagem consciência” – que estranhamente não é a mesma consciência do artista, mas uma consciência atribuída à imagem pelo aparelho6. Com Orozco, refletirei sobre a fotografia enquanto índice de um movimento do corpo (do artista ou do espectador), vestígio de uma ocupação.

Como produto das reflexões e afetos aqui nomeados, apresentarei ao final desse capítulo a proposição Geografia #1, não como pretensa forma de conclusão, mas como uma possibilidade de desdobramento e, de certa forma, também um convite à construção de descontinuidades do leitor/espectador deste texto.

6 Em Filosofia da Caixa Preta, Flusser

problematiza o que se passa no interior do aparelho como algo misterioso e de difícil alcance, pois só temos claro acesso ao input (desejo? realidade?

experiência?) e output (fotografia? realidade? experiência?), mas nunca dominaremos o que se passa no interior da caixa preta: “Aparentemente, pois, imagem e mundo se encontram no mesmo nível do real: são unidos por cadeia ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem parece não ter símbolo e não precisar de deciframento. Quem vê imagem técnica parece ver seu significado, embora indiretamente. (...) O complexo ‘aparelho-operador’ é demasiadamente complicado para que possa ser penetrado, é caixa preta e o que se vê é apenas input e output. Quem vê input e output vê o canal e não o processo codificador que se passa no interior da caixa preta. Toda crítica da imagem técnica deve visar o

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Gravitação

Exposição fotográfica.

Técnica/Dimensões: duas séries de 6 e 13 imagens feitas em filme fotográfico 35mm, ampliadas em papel fotográfico aplicado sobre MDF em formato 26cm x 35cm.

Ano de realização: 2006 – 2007.

Este foi meu primeiro trabalho autoral. Até então tinha a fotografia como um fim em si (produzir “boas fotos”, em seus âmbitos técnicos e compositivos, com ínfimas ambições humorísticas, documentais, ou narrativas). Mas como se faz um trabalho de autor? Na época aluna do NEF7, procurava meios de “resolver questões” com a fotografia8. “Qual a sua questão?” Era uma pergunta recorrente. Eu não tinha uma questão, apenas um incômodo generalizado. Trouxe para a aula um cartão postal de um quadro de Edward Hopper9: imagem de uma moça sozinha em um café. A cadeira vazia diante dela denunciava um lugar a ser ocupado. Por que estava sozinha? Esperava por alguém ou acabara de expulsá-lo? Concentrei-me no desejo de preencher aquela cadeira, e ao mesmo tempo de desocupá-la, para então refazer o movimento.

Como fotografar ao mesmo tempo o desejo de atração e expulsão? A força que partia do desejo de preencher o vazio deveria também obrigatoriamente existir em sentido contrário: o desejo de tornar a esvaziar. Chamei esse equilíbrio entre forças de gravitação: “atração mútua que existe entre corpos e que varia com as massas dos objetos e com a distância que os separa.” Porque se Newton estava certo, supondo que

7 De 2003 a 2006 fui aluna do Núcleo

de Estudos da Fotografia em Curitiba.

8 Em Leituras de portfólio em rodas de

fotógrafos era comum a pergunta: “mas qual a sua questão?” À qual, supostamente o trabalho apresentado deveria responder inteiramente. Percebi, no entanto, que pouco me interessavam os trabalhos bem sucedidos em responder às suas questões fundantes. Muito mais me valeram os trabalhos que as

respondiam apenas parcialmente, ou ainda, que não as respondiam em absoluto e as deixavam inteiramente abertas ao espectador.

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estivesse, ainda que num plano de condições favoráveis, o desejo é uma força de atração diretamente proporcional à distância entre desejante e desejado (quanto maior a distância, maior o desejo). Mas o desejo é também irreconciliável, pois, à medida que se aproxima do objeto desejado, a força de atração estranhamente se converte em força de expulsão que, no instante em que os dois corpos se chocam, passa a separá-los.

Como fotografar essa força? Meu primeiro teste foi com objetos, fotografei coisas que aludiam de alguma forma a continentes e conteúdos (líquidos e copos, côncavos e convexos, para citar exemplos). Nessa primeira série, nenhuma das fotos evidenciava a tensão que eu buscava, resultando apenas em uma pilha de fotos de coisas dentro ou ao lado de outras coisas. Não me interessavam propriamente os objetos, mas como se relacionavam, era o campo de forças entre eles que eu procurava ampliar.

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Parti para a fotografia encenada.10 Desenhava as cenas, mas sem a intenção de criar uma narrativa (nada se pressupunha como anterior ou posterior à imagem. Procurava torná-las imagens circulares11, desprovidas de tempo linear). Aliás, aquelas imagens tinham mais de música do que de cinema: eram como acordes em que várias notas deveriam ser tocadas ao mesmo tempo.

Tinha os esboços, precisava executá-los. Sabia que queria fotografar mulheres e não homens (após algumas tentativas mal sucedidas com homens na série com objetos). Como critério de escolha, elegi as mulheres que fotografaria não pelo desejo de possuí-las, mas sobretudo pelo desejo de me torná-las (era a minha falta que elas carregavam). Estaria aí o movimento.

O primeiro ensaio encenado foi num quarto de hotel, no centro velho da cidade. Tinha imaginado criar uma atmosfera de estranhamento e imaginei que um hotel ajudaria a neutralizar uma potencial familiaridade com o espaço. Também levei minhas próprias roupas para que vestissem “a minha pele”. O resultado foi melhor do que o anterior mas o quarto de hotel converteu-se em uma interferência, havia um excesso de elementos (objetos, roupas, arquitetura).

Pensei que fotografá-las nuas poderia ser uma solução, mas não queria que o estar nu se tornasse a questão principal (que fizessem poses, ficassem desconfortáveis, “vestidas

10 A fotografia encenada ou “staged

photography” envolve uma cena montada diante e para a câmera, dirigida ou manipulada pelo fotógrafo. Um dos exemplos mais antigos de fotografia encenada é o Afogado (1840) de Hippolyte Bayard, um autorretrato concebido como um protesto contra a indiferença do governo francês ao desenvolvimento do processo fotográfico em papel. No século XX, retratos e autorretratos encenados tornaram-se alvo da fotografia de moda e publicitária. Na arte, a fotografia encenada levanta questões como a autenticidade da narrativa versus a crença numa “verdade documental”. A partir da década de 1970, surgem diversos trabalhos autorais como Cindy Sherman (sua obra será mais profundamente comentada no capítulo a seguir), Jeff Wall, Joel-Peter Witkin, Gregory Crewdson, Duane Michals, Rose Farrell, George Parkin, e Colin Gray.

11 “o vaguear do olhar é circular: tende

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de nu”12). Eu precisava que se despissem, mas era preciso também despir o espaço, ou a arquitetura as “vestiria”.

Convidei-as à minha casa. Na época, um apartamento vazio e recém alugado, arquitetura antiga, anos 1960, talvez. A luz era difusa, havia muitas janelas e as paredes na cor bege tinham uma certa qualidade de pele. O piso era de taco bem brilhante e aproveitei essa qualidade para explorar os reflexos invertidos dos seus corpos e objetos deitando-me inteiramente no chão para fotografá-las.

Pedi para que tirassem suas roupas apenas até o ponto em que continuassem confortáveis. A medida que as fotografava sentia que estava fazendo as imagens que buscava (com a fotografia analógica, essa confirmação viria sempre depois). Trabalhava o tempo a meu favor: já com meu corpo deitado no chão, posicionava a cena e rastejava lentamente em direção à imagem, que se construía centímetro a centímetro. Buscava deixá-las se perderem de mim, seus corpos estavam ali, mas o olhar delas era distante, comportavam-se aparentemente despreocupadas em relação ao meu olhar, como eu as percebia, ou como seriam retratadas. Eram corpos em relação a outros corpos, onde o copo não é mais frágil que a mão que o segura. As cenas não resultaram exatamente como as que tinha desenhado, havia, claro, uma distância entre a imagem e o imaginado, mas eram muito próximas.

Essa experiência resultou em uma série de seis fotografias que foram expostas pela primeira vez na Galeria Estreita (Curitiba, 2007). Em 2008, fiz uma reedição do

12 Como escreveu John Berger em Modos

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material, com treze fotografias que expus em um bar noturno, chamado Wonka, também em Curitiba. O número maior de fotografias nessa segunda edição se justificava pelas condições do novo espaço, muito maior, o que permitia uma separação física entre uma e outra imagem, e assim também, uma certa redundância ou aliteração visual. As novas imagens funcionavam como pontes naquele espaço mais rarefeito. Algumas das fotografias originais também foram substituídas, o que tornava essa série inteiramente nova.

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In_versos: Tão frágil me sinto agora

Peça fotográfica.

Técnica/Dimensões: 7 imagens digitais ampliadas em papel fotográfico em tamanho 20cm x 26cm, aplicadas sobre PS e dispostas na parede de modo a formar um mosaico de 60cm x 80cm.

Ano de realização: 2009.

Esse trabalho fez parte de uma instalação colaborativa, intitulada In_versos, realizada por mim e outros 20 artistas convidados13 na Galeria Estreita (Curitiba, 2009), da qual também fui curadora.

A proposta surgiu da leitura do poema “Desfile”14 de Carlos Drummond de Andrade, que me havia tocado uma ferida recorrente: a vida como um ensaio para a morte:

(...)

Vinte anos ou pouco mais, tudo estará terminado. O tempo fluiu sem dor. O rosto no travesseiro, fecho os olhos, para ensaio.

O poema enquanto espaço: um corredor de palavras, a vida em linha reta, nada espetacular no fim. A Galeria Estreita, um corredor que eu atravessava todos os dias, um fluxo, um cheio (de atravessamentos) e não um vazio. O corredor e o fim, o poema

13 Fernando Franciosi, Marisa Weber,

Luana Navarro, Maikel da Maia, Elenize Dezgeniski, André Malinski, Inara Vidal Passos, Juan Parada, Nicole Lima, Albert Nane, Tom Lisboa, Cláudio Celestino, Patrícia Lion, André Mendes, Alex Cabral, Antonino Canetta, Lidia Ueta, Paula Monteiro, Rimon Guimarães, Guilherme Caldas, e Deborah Bruel.

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e a morte. A morte como uma – talvez a única – coisa universal. Seria? Enviei o poema a vários artistas, em um email-provocação para que dali fizéssemos algo. Vinte artistas responderam à minha mensagem. Dividi o poema em 20 versos e a parede em 20 pedaços. A cada artista enviei um verso (baseando-me no que eu sabia de cada um) e “60cm de parede”, pedindo que cada um produzisse, de forma absolutamente livre, algo para ocupar aquele espaço. O resultado seria uma surpresa tanto para mim quanto para todos os outros artistas, que trabalhariam isoladamente.

Nesse fluxo, partíamos da palavra buscando a imagem, o que também poderia ser uma tentativa de fuga, um descolamento: os versos estariam dispostos ao longo da parede esquerda e as imagens sobre o lado oposto, obedecendo a sequência do poema. Uma coisa não seria equivalente à outra, mas dialética: textos e imagens, versos e paredes. As imagens possíveis no verso, no avesso da palavra. O espectador da exposição precisaria parar várias vezes, virar-se, absorver o texto para então o buscar/abandonar nas imagens, ou vice-versa.

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Senti que estava sendo covarde diante daqueles que se dispunham a confrontar o poema, a morte imaginada, a vida perecível. Eu queria estar junto com eles.

Dormia e acordava com aquelas palavras: “Tão frágil me sinto agora.”

tão frágil (que se quebra que se deteriora

que é de consistência fraca pouco estável

mal seguro)

me sinto (estou viva) agora

(lat. hac + hora: esta hora o presente

é frágil).

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Na manhã seguinte, semi-acordada, peguei a câmera para um primeiro ensaio. Tentei vários ângulos, mas as imagens não me “obedeciam”. O fracasso era técnico: na minha câmera digital a lente grande angular (28mm), se converte em normal (50mm). Impossível criar a sensação de queda, de distância do pescoço aos pés. Talvez a solução fosse fotografar com filme.

De todo modo, vesti-me e fui ao escritório ver ampliadas as imagens que tinha feito e estudar o que faria a partir daí. Como já esperava, nenhuma delas continha o corpo imaginado. A sexta foto da composição final, onde está meu corpo inteiro, era a que mais se aproximava, mas ainda assim não era A Imagem, faltava um espaço em torno do meu corpo, estava cheia demais, carente de vazio.

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Um corpo estranho

Transcrevo aqui, como contraste, um email que recebi em resposta à exposição. O relato de um espectador em confronto ao meu próprio relato.

(...) bonito. corajoso. vc se expõe bastante... e tbm triste, não? despertou-me sentimentos de tristeza e languidez desinteressada (não estou falando de vc, mas da obra: a topografia da solidão). quase azulejaria. quase quebra-cabeça assimétrico, sem a última peça, e que, de qq forma, mesmo completo, não daria um sentido acabado e apaziguador. um encrespamento visual - e o corpo sempre nítido, focado, em primeiro plano - que nos impede de ser acariciados pela harmonia. imagino que vc tenha visto as fotos e se espantado: como pode meu corpo ser tão estranho a mim mesma? todo ser humano é uma solidão, um corpo torto em pé, um corpo torto na cama. (...) não são fotos históricas. pelo contrário, são fotos tão a-históricas que flertam com a "eternidade" e o nada - incorporando, em negação ao "horror vacui" aristotélico, a falta do próprio corpo. e são tão íntimas essa fotos, tão materiais, tão físicas, tão próximas que subvertem o corpo e flertam com o abstracionismo. desordenação (ou caotização) do espaço corporal. gosto tbm da lacuna (fotografia do vazio), da ausência no canto inferior esquerdo. se passar o dedo naquelas bordas, rasga. lembro do verso de vinicius sobre o cinema de eisenstein: "o cinema é o que não se vê". a fotografia tbm. a fotografia tbm pode ser uma elipse, "o que não se vê". o que seria? luz? vazio? soluço, espasmo? hiato? furto a si mesmo? esquecimento? o que falta ali, no conjunto do que foi revelado, é tz o mais perturbador. (Rodrigo Madeira)

Uma frase me chama a atenção: “você se expõe bastante”. A afirmação me causa um certo espanto, porque não pensava aquele corpo como “eu”, ainda que o pensasse como “meu” quando o fotografei – como um olhar sobre, uma visão lateralizada15 para formar uma imagem que sequer se parecia comigo: um corpo alheio, universal, perecível. Mais estranho ainda: perceber que nas outras pessoas a exposição do meu corpo causou mais desconforto do que em mim. “Corajoso”. Suspeito que a coragem que ele me atribui não se relacione ao (f)ato de estar nua, mas, novamente, ao de estar despida16.

15 Aprendi a expressão “lateralidade” no

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A fragilidade que eu buscava atingir requeria a exclusão da pose, do disfarce, do ego – nem sujeito nem objeto, abjetada de mim mesma. A posição de descanso sobre a cama e o fato de fotografar apenas com as mãos, sem os olhos (meu corpo visto pelo meu corpo através do aparelho17

) favoreciam essa condição.

16 Ver nota número 14.

17 Para Flusser, “pouco vale a pergunta

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Vito Aconcci

“Holding a camera, aimed away from me and ready to shoot.”

A frase acima foi extraída das anotações de Vito Acconci (Estados Unidos, 1940).18 A tradução exata para o português não é possível, mas se aproxima de “segurando uma câmera, apontada para longe de mim e pronta para disparar.” Em inglês, a expressão “away from me” tem uma conotação mais abrangente do que a palavra “longe”, pois não tanto se refere a algo que está distante de mim, mas funciona, sobretudo, como um vetor de forças que irradiam a partir de mim (from me) em direção ao universo exterior (away). O verbo “shoot”, que em português significa “atirar, disparar um gatilho, estar pronto para um duelo”, também torna a frase na língua original muito mais impactante do que a tradução que aqui posso oferecer.

Essa frase de Acconci aparece com frequência em diversas anotações de suas proposições produzidas com fotografia especificamente no ano de 1969. A partir de 1970, no entanto, a câmera mudou progressivamente de direção e passou a enquadrar o corpo do artista em ação. Aqui, poderia especular sobre que motivos levaram Acconci a voltar a câmera para (contra) si, mas particularmente me interessam justamente essas fotografias que antecederam essa mudança de direção, essas primeiras imagens que parecem personificar, tomar o lugar do próprio corpo do artista.

18 Esta e todas as outras citações de Vito

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Esses dois vetores que Acconci nos apresenta ao apontar a sua câmera “a partir de” ou “em direção a” seu corpo, talvez nos dêem também pistas da linha que separa a fotografia enquanto ação da fotografia enquanto registro de ação. Na fotografia enquanto ação o tempo habita o durante. O espectador da fotografia é também o sujeito da ação (o espectador incorpora o aparelho e enxerga não através da câmera, mas de um ponto privilegiado de visão como se este conhecesse o interior da caixa preta19). A câmera é a consciência e o olho desse sujeito-espectador. Já na fotografia enquanto registro de ação, o tempo é póstumo, habita o depois. O espectador é observador da ação enquanto passado, ainda que esse passado seja constantemente renovado, presentificado pelo espectador que revive a ação: “isso está morto e isso vai morrer”. (BARTHES, 1984, p. 142) Essas fotografias trazem consigo um resíduo de um onde o fotógrafo esteve e a ação aconteceu, que impõe um distanciamento – físico e temporal – ao espectador. Suspeito que a maioria das fotografias se encaixe nessa segunda categoria, ainda que não necessariamente em registros de performances, mas em registros de ações e testemunhos de outrem.

Traçando um paralelo à obra já descrita In_versos: Tão frágil me sinto agora, penso que nela tenho simultaneamente os dois movimentos – a câmera – consciência – me diz como é meu próprio corpo – objeto, onde sou ao mesmo tempo Eu e Outra. Condição de ser e estar “lateralmente” descrita por Julio Cortázar e que “se manifesta no sentimento de não estar totalmente em qualquer das estruturas, das teias que a vida constrói e onde somos ao mesmo tempo aranha e mosca.”20

19 Ver nota número 6.

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Para aprofundar essa reflexão sobre a câmera enquanto sujeito (a fotografia enquanto ação), concentrarei minha análise em seis peças fotográficas que Vito Acconci realizou no ano de 1969, aquelas que estão acompanhadas da anotação “Holding a camera, aimed

away from me and ready to shoot.” Mais do que um registro de performances, sãoregistros

que performam, onde o é uma operação de subtração do lugar que originou a foto,

substituído pelo lugar agora ocupado por seu espectador. Quais os resultados desse vetor (per)formado pela câmera nessa manobra em que ela assume o território que deveria ser ocupado pelo autor e se apropria da consciência do instante?

Tomei o cuidado de traduzir as anotações do artista21 para incorporá-las a essa análise, pois certamente o que Acconci escreve antes e depois22 desses trabalhos faz tanto parte deles quanto as próprias fotografias que apresenta.

21Vito Acconci: Diary of a Body 1969

-1973 (ACCONCI, Vito e VOLK Gregory, Milão: Edizioni Charta,2006).

22 Observa-se que as anotações de

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12 Pictures (12 fotos25)

Teatro, Nova Iorque, 28 de maio de 1969, 9:11pm. Performance

Luzes do teatro apagadas, luzes do palco apagadas. Começando pela entrada do palco, de frente para a platéia e olhando através da câmera, eu dou um passo à minha direita, para cruzar o palco. A cada passo, Eu pressiono o botão: o flash dispara, o palco é iluminado, o teatro é iluminado. A performance resulta em 12 fotografias.

Notas:

De frente para uma platéia: eles estão olhando em outra direção, antes que eu comece (eu posso usar o flash para permitir que eles vejam).

De frente para uma platéia: eu posso me apropriar do palco, me apropriar da platéia (eu terei posse de suas fotografias).

De frente para uma platéia: eu posso sentir medo deles, eu estou no escuro em relação a eles (controlar meu medo, controlar a platéia, eles são cegados pelo flash).

5 de agosto, cerca de 11 da noite: Eu colei as fotografias, na ordem em que foram tiradas, numa folha de papel branco de 10 ½” por 14”.

25

O título original “12 pictures” não encontra tradução exata na língua portuguesa, onde a palavra “picture” pode significar quadro, imagem, desenho, fotografia ou mesmo

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12 fotos: versão sobre papel: fotos como performance* da performance (performance como foto da performance); fotos como fim** da performance.

* “... algo que se cumpriu ou que se passou...”

** “... o ponto onde algo que se possui ou dotado de progressão temporal deixa de existir... o resultado de uma atividade...”

12 fotos existe em 3 outras versões:

Versão para parede: o leitor como performer móvel (movendo o leitor enquanto performer); fotos como o reverso da performance.

Versão para livro: leitor como performer em área de platéia móvel (leitor como platéia em área de performance móvel); leitor lendo dentro do livro.

Versão empilhada: leitor como releitor; leitor como formador da performance ( a forma como leitura da performance); leitor como performer indeterminado em área indeterminada (performer como indeterminado leitor em área indeterminada; performer como área indeterminada em leitura indeterminada; leitor como área indeterminada em performance indeterminada).

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Em 12 Pictures (1969) a câmera existe como instrumento de doma: permite que o autor controle a plateia (e também seu medo), que se aproprie de suas reações. O palco e a plateia no escuro, até que sucessivos disparos de flash constroem doze realidades que se fixam entre o breu e o breu. A fotografia marca um encontro entre o dedo que dispara do corpo da performance (a câmera é o corpo) e encontra o espectador, as margens da ação são torneadas pelo alcance dos disparos, pelos olhares que refletem a luz.

Os passos de Acconci do início ao final do palco (do início ao fim da performance) também são controlados pelo aparelho: doze passos para doze fotos (um rolo de filme pequeno). Uma limitação técnica que conduz seu percurso, subdivide o espaço e a duração da ação. O número doze se repete também em outras Ações de Acconci com fotografia, como Standing: Margins.

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Standing: Margins (Em pé: Margens)

(De pé em um ponto; tiro 12 fotografias do que me cerca)

Identificação:

Linha superior:

1. frente-centro

2. esquerda-frente-centro 3. esquerda

4. esquerda-atrás-centro 5. atrás-centro

6. direita-atrás-centro

Linha inferior: 1. direita (7)

2. direita-frente-centro (8) 3. acima-frente (9)

4. acima-atrás (foto mal sucedida por causa do sol) (10) 5. abaixo-frente (11)

6. abaixo-atrás (12)

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Lay of the Land (Configuração da terra)

3 de agosto de 1969; manhã Central Park, NYC;

Deitado de lado sobre um campo: segurando a câmera, apontada para longe de mim e pronta para disparar, em pontos diferentes ao longo do meu corpo.

Câmera na minha cabeça: tirar foto 1 Câmera no meu peito: tirar foto 2. Câmera na minha barriga: tirar foto 3. Câmera nos meus joelhos: tirar foto 4. Câmera nos meus pés: tirar foto 5.

Notas:

Modos de estar no espaço (modos de considerar modos de estar no espaço): ‘Eu estou aqui’—‘Eu’ sou diferente de ‘aqui’ – ‘Eu’ tenho que ir ‘aqui’ (não tenho?) – Eu tenho que continuar indo onde eu já estou (direcionando-me para onde eu estou – onde eu estou é direcionado ao meu corpo).

Onde eu estou (minha posição quando eu tiro as fotos) – onde eu posso ter estado, onde eu posso ainda estar (a paisagem fotografada: onde eu estou quando eu aponto naquela direção).

Meu corpo como um sistema de movimentos possíveis transmitidos do meu corpo para o ambiente (o ambiente como um sistema de movimentos possíveis

transmitidos do ambiente para o meu corpo).

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Tanto Standing: Margins como Lay of the Land são construídos a partir de uma (com)posição geográfica. Aqui, a câmera que aponta para longe (away from my me) registra inversamente a menor distância, contornando suas proximidades, construindo quadro a quadro uma realidade de contornos que se adere às margens do seu corpo.

Um mundo que o seu corpo, e não sua consciência, experiencia, uma alterconsciência da pele no lugar dos olhos. O sentir e o estar em estado bruto, distante do saber filtrado pelo olhar. A realidade do corpo é construída pelo aparelho que desliza pela extensão do espaço que ele ocupa. A câmera afere visão àquilo que era apenas tátil. A fotografia traduz em imagem o saber cego do corpo.

Em Lay of the Land a dimensão da realidade é linear. Posso deitar-me ao seu lado e voltar

meu rosto para a direita, mas o resto do meu corpo permanece na escuridão. Já em

Standing: Margins tenho a visão do corpo em três dimensões. Um ser oco construído

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Following Piece (Peça de Seguir26)

03-25 outubro de 1969. Atividade.

Nova Yorque, vários locais. 23 dias, variando vezes por dia.

Cada dia eu escolher, ao acaso, uma pessoa andando na rua.

Eu sigo uma pessoa diferente a cada dia, eu continuar a seguir até que a pessoa entra em um lugar privado (casa, escritório, etc.) onde eu não posso começar dentro.

Notas (1969):

Eu preciso de um esquema (seguir o esquema, seguir uma pessoa).

Rua (definição): ‘promissora linha de desenvolvimento’, ‘canalização de esforços’. ‘Na rua’: sem-teto, eu tenho que encontrar alguém para me agarrar.

Relação adjuvante: eu me adiciono a outra pessoa (eu desisto do controle / eu não tenho que me controlar / eu me torno dependente de outra pessoa / eu preciso dessa outra pessoa, essa outra pessoa não precisa de mim).

Relação subjetiva; relação subjuntiva.

Uma maneira de me locomover (uma maneira de sair de casa). Entrar no meio das coisas (eu estou distribuído sobre um domínio dimensional).

No espaço. Fora do tempo.

(Meu tempo e espaço são levados, tirados de mim mesmo, por um sistema maior.) Ocupar uma posição em um sistema. Eu posso ser substituído. Meu valor é posicional, não tenho valor individual.

26 Mais uma vez, o título original não

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Nota adicional (1972):

Fora do corpo. O que eu queria era sair de mim mesmo, ver-me de cima, como um observador do meu comportamento.

Hoje eu me preocuparia mais em entrar na pessoa que eu seguia: eu estaria muito perto da outra pessoa - muito perto de mim mesmo? – para observar a mim mesmo.

(Vito Acconci)

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Por um mês, Acconci escolhia todos os dias uma pessoa ao acaso e a seguia até que ela desaparecesse em um lugar privado onde ele não poderia entrar. O ato de seguir poderia durar alguns minutos, se a pessoa, por exemplo, entrasse em um carro, ou quatro ou cinco horas, se a pessoa fosse a um cinema ou restaurante.

Num primeiro olhar, a obra me remeteu à Suite Vénitienne de Sophie Calle (1980), que fotografava desconhecidos que seguia pelas ruas. A diferença está aí. Ao passo que Sophie Calle fotografava esses desconhecidos, Vito Acconci era fotografado.

Desconhecemos o autor das fotografias que Acconci nos mostra, pois a despeito de quem as tenha realizado, Acconci se coloca como autor da obra. Esse fotógrafo invisível que segue a ação poderia bem ser eu, espectadora, mas também perseguidora. É nesse lugar que ele me coloca.

As imagens que ele apresenta não permitem que eu escape. Juntas formam um ir e vir incessante, não posso apenas ir. Em algumas dois sujeitos caminham até mim, nos cruzamos (conhecemos nossa face), depois os persigo. A pessoa originalmente perseguida se torna apenas o extremo da linha que nos une: porque ele a persegue, eu o persigo. Três sujeitos caminham juntos pela rua. Sinto-me veloz, conseguiria alcançá-los? Novamente nos cruzamos (reconhecemos nossa face) e o jogo recomeça.

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Blinks (Piscadas)

23 de novembro, 1969; à tarde.

Segurando uma câmera, apontada para longe de mim e pronta para disparar, enquanto caminho continuamente em linha reta por uma rua da cidade. Tento não piscar.

Cada vez que pisco: tiro uma foto.

Notas

- Mantendo em vista: tendo em vista, mantendo em vista (a câmera como um meio para ‘continuar vendo’- quando eu pisco, eu não posso ver - quando eu tiro uma fotografia, enquanto eu pisco, eu tenho um registro do que eu não pude ver – ver mais tarde, sentir agora).

- Reação tardia: adiamento: antecipação (quando eu pisco, eu sei que vou estar vendo, mais tarde, o que estou perdendo agora).

- Performance como ‘tempo duplo’: eu vejo o que está diante de mim no

presente – agora e depois, eu sei que vou ver, no futuro, o que estava diante de mim no passado.

- O trabalho de arte como o resultado de processos corporais (meu

piscar ‘causa’, produz, uma imagem).

Câmera como armazenamento (ela me permite ver mais tarde). Câmera como prótese (permite-me ver o que eu não posso).

Câmera como simulação (ela me permite lembrar mais tarde o que eu não posso ver agora).

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A rua completamente deserta tem ares de siesta. O trajeto é curto: uma linha reta em 12 poses. Quanto tempo eu consigo caminhar sem ter que fechar os olhos? Conto seus passos (meus passos). Ouço o eco das galerias. Fecho os olhos para ver melhor cada foto. Desafio qualquer um a ver esta série sem fechar os olhos ao menos uma vez.

Essa série, como Following Piece, me coloca também na posição de perseguição, mas dessa vez eu o encontro e tomo seu corpo para mim. Vejo o que ele vê, estou onde ele está, fecho os meus olhos ao mesmo tempo que os seus.

Fixos e móveis

Nota-se que essas peças de Acconci têm em comum a presença do corpo (ou o lugar, carapaça do corpo) como um elemento fixamente posicionado no espaço. Mesmo em

Following Piece ou Blinks, onde o artista percorre um trajeto, a fotografia marca pontos

fixos de ocupações a serem retomadas pelo espectador.

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Gabriel Orozco

Gabriel Orozco (México, 1962), de todos que farão parte desse estudo, é o artista cuja obra tive contato mais recente, há cerca de um ano, já tendo dado início a essa pesquisa. Não seria, portanto, verdadeiro afirmar que Orozco influenciou diretamente minha produção passada, mas justamente por isso, os pontos em que sua obra coincide com minhas questões serão relevantes.

O peso de um corpo

Ainda que o conjunto da obra de Gabriel Orozco assuma formas aparentemente dissonantes – mesas, bolas de plastilina, crânios humanos, ossadas de baleia, esculturas em barro cozido, laranjas atrás de janelas, ou mesmo elevadores e tampas de iogurte – objetos, ações ou fotografias parecem sempre orbitar (essa é palavra) em torno de um motivo comum: o corpo, ou os corpos sob a ação do tempo no espaço. Ou ainda: corpos

em ação no tempo e no espaço. Em suas obras, Orozco frequentemente utiliza sua

própria mão, que lhe serve tanto como ferramenta quanto motivo, módulo ou matriz. A escala do corpo do artista também serve de base para outros trabalhos: uma bola de plastilina27 que tem o peso de seu próprio corpo, é empurrada pelas ruas onde absorve, agrega, toda sorte de resíduo urbano; tampas de iogurte28 são colocadas nas paredes de uma galeria na altura de sua boca, um elevador29 é cortado e reduzido à sua altura. A presença de um rastro de corpo também aparece em seus registros de ação. Um gesto, em todos os sentidos: os vestígios de um corpo, o seu corpo, a sugestão de manter

27Pedra que cede, Gabriel Orozco, 1992.

28Tampas de iogurte, Gabriel Orozco,

1994.

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contato com o gesto de alguém que nos passa ao mesmo tempo em que também nós o passamos (seus resíduos agregados à minha massa). Então esse corpo não é mais o meu nem o seu, mas um corpo em possibilidade que simbolicamente atravessa o contexto histórico dessa sociedade pela qual ele transita.

Apesar do meu interesse por todo o conjunto de sua obra, limitarei essa análise aos trabalhos que Orozco apresenta exclusivamente como fotografias, não apenas por nunca ter de fato estado fisicamente diante de suas instalações e esculturas – o que obviamente não tornaria inteiramente lícito comentar algo que exija um embate físico maior do que a fotografia pode transportar – sobretudo, a questão aqui é a da escolha: se é fato que, mesmo conceitualmente fortes e impactantes em seus registros, Gabriel Orozco escolheu não apresentar alguns trabalhos sob forma de fotografias, o que então determinou a escolha da fotografia como meio de apresentação especifico para outros trabalhos? Que propriedades esse meio ofereceu à carga de significância dessas obras? Como o uso da fotografia pode levar o processo de suas descontinuidades a reverberar em outros contextos?

Dentro do conjunto de fotografias na Obra do Orozco, encontrei duas subcategorias principais: as que foram tomadas após uma ação do artista num dado espaço e as que foram tomadas diretamente de uma cena, ou “encontro”. As primeiras talvez pareçam as mais fáceis, de início, pois permitem o que Barthes chamou de studium30: o artista claramente fezisso, ele dispôs esses objetos sobre esse lugar e os fotografou.

30

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Para melhor analisar essas fotografias, é importante esclarecer dois conceitos fundamentais: o de lugar e o de espaço.31 O espaço realiza-se enquanto vivenciado, ou seja, um determinado lugar só se torna espaço na medida em que indivíduos exercem dinâmicas de movimento nele através do uso, e assim o potencializam e o atualizam. Quando ocupado, o lugar é imediatamente ativado e transformado, passando à condição de espaço.

Nas fotografias de Orozco, essa operação se dá duplamente, pois há dois lugares a serem ocupados por duas ações distintas que, consequentemente, geram dois espaços também distintos. A primeira ação é sobre o lugar propriamente dito: uma praia, uma feira, um supermercado. Pode-se dizer que esse primeiro espaço é um espaço móvel, gerado pelo fluxo de sua atividade. A segunda ação é uma posição estratégica: o lugar em que ele se coloca para realizar a foto, o lugar que ele ocupa (o lugar do olho, mas também o da mão, ou do dedo32)e gera um espaço fixo.

O que torna essas fotografias de ações, no entanto, enigmáticas, é a sua aparente banalidade: nada de grandioso em colocar uma laranja sobre uma mesa e fotografar. Nada grandioso em colocar várias laranjas sobre várias mesas e mesmo assim, fotografar. Uma peça tão simples33 que se resume em um único ato, que quase não parece estar ali. O distraído poderia facilmente não vê-lo. Suponho que muitos de fato não o vejam – ao mesmo tempo em que afirmo, penso que essa suposição deve ser repetida por todos que o vêem, em comunhão e privilégio: eu vi, era tão pequeno, mas eu vi, poderia não ter visto, mas eu vi.

31 “Um lugar é a ordem segundo a qual se

distribuem elementos nas relações de coexistência. aí se acha, portanto, excluída a possibilidade de duas coisas ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar ‘próprio’ e distinto que define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um

cruzamento de móveis. (...) O espaço estaria para o lugar como a palavra quando falada, quando é percebida na

ambiguidade de uma efetuação, mudada em um termo que depende de múltiplas convenções, colocada como o ato de um presente (ou de um tempo).Em suma, o espaço é um lugar praticado.” (DE CERTEAU, 1994, p. 202)

32 Para mim, o órgão do fotógrafo não

é o olho (ele me terrifica), é o dedo (...) Gosto desses ruídos mecânicos de maneira quase voluptuosa, como se, da Fotografia eles fossem exatamente isso – e apenas isso – a que meu desejo se atém, quebrando com seu breve estalo a camada mortífera da Pose. (BARTHES, 1984, p. 30)

Referências

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