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A propaganda bélica contra os infiéis da fé na última cena do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente

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Academic year: 2021

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A PROPAGANDA BÉLICA CONTRA OS INFIÉIS DA FÉ NA ÚLTIMA

CENA DO AUTO DA BARCA DO INFERNO DE GIL VICENTE

THE MILITARY ADVERTISING AGAINST THE INFIDELS OF FAITH IN

THE LAST SCENE OF THE AUTO DA BARCA DO INFERNO BY GIL

VICENTE

Flávio Antônio Fernandes Reis

DELL/PPGMLS - UESB – Vitória da Conquista

Resumo: Nossa comunicação pretende

mostrar a última cena do "Auto da Barca do Inferno" de 1517, na qual se representa a beatitude inquestionável dos cavaleiros cruzados, destacando os efeitos prováveis que a encenação poderia ter produzidos nos seus primeiros expectadores e, principalmente, na Casa Real. Tendo em conta a representação dos ditos "infiéis" em discursos diversos, pretendemos mostrar que, embora a última cena do "Auto da Barca do Inferno" seja breve, assim mesmo produz persuasão eficaz no público, levando em conta a expectativa da encenação na sua recepção. Mais ainda, a encenação enaltece feitos militares similares aos realizados nas companhas do rei D. Manuel contra os inimigos da Fé.

Palavras-Chave: Gil Vicente; Quinhentismo; Fé.

Abstract: Our communication intends to

show the last scene of the "Auto da Barca do Inferno" (1517), in which the unquestionable beatitude of the crossed knights is represented, highlighting the probable effects that the staging could have produced in its first spectators and especially in the Royal House. Taking into account the representation of the so-called "infidels" in various discourses, we intend to show that, although the last scene of the Auto da Barca do Inferno is brief, it also produces effective persuasion in the public, taking into account on his reception. Moreover, the staging praises military feats similar to those carried out in King Manuel I's cruzades against the enemies of the Faith.

Keywords: Gil Vicente; Quinhentismo;

Faith.

Vêm quatro cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a cruz de Cristo, pelo qual senhor e acrescentamento de sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena por privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da paixão daquele por quem parecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja; e a cantiga que assim cantavam quanto à palavra dela é a seguinte:

À barca, à barca segura, guardar da barca perdida! À barca, à barca da vida!

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Senhores, que trabalhais pela vida transitória,

memórias, por Deus, memórias desde temeroso cais!

À barca, à barca, mortais! Porém na vida perdida se perde a barca da vida. Vigiai-vos, pecadores, que depois da sepultura neste rio está a ventura de prazeres ou de dores! À barca, à barca, senhores, barca mui enobrecida, à barca, à barca da vida!

E passando por diante da proa do batel dos danados assim cantando, com suas espadas e escudos, disse Arrais da perdição desta maneira

Diabo: Cavaleiros, vós passais

e não me perguntais onde is?

Cavaleiro: Vós, Satanás, presumis?

Atentai com quem falais?

Outro cavaleiro: E vós, que nos demandais?

Sequer conheceis-nos bem: morremos nas partes d além, e não queirais saber mais.

Diabo: Entra cá! Que cousa é essa?

Eu não posso entender isso!

Cavaleiro: Quem morre por Jesus Cristo

não vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e tanto que chegam diz o anjo

Ó Cavaleiros de Deus, A vós estou esperando, por Cristo, Senhor dos Céus! Sois livres de todo mal, mártires da Madre Igreja, que quem morre em tal peleja merece paz eternal.

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E assim embarcam.1

Primeiramente, gostaríamos de destacar a rubrica que antecede o Auto da barca do inferno, segundo a edição de 1562. As rubricas interessam porque aproximam-nos da circunstância primeira de recepção da obra, conferindo-lhe, pelo menos na sua preservação como discurso escrito, os efeitos prováveis da obra na primeira audiência. Desse modo, como vai na Rubrica, o Auto de moralidade foi realizado sob o patrocínio da sereníssima e mui católica rainha Dona Lianor e mandado representar ao rei D. Manuel. Sendo auto de moralidade , trata-se de discurso que se insere nas perspectivas da filosofia moral, aquela parte dos saberes antigos que trata da excelência do agir, do dever ser , preconizado em obras diversas que aconselham ao príncipe e aos fidalgos.

Um dos aconselhamentos mais comuns dos tratados de ensinamento de príncipes e reis são aqueles preceitos que garantem a conservação e ampliação do reino, duas das principais prerrogativas das figuras régias. A conservação e a ampliação pressupõem, muitas vezes, a guerra e, no caso do século XV e XVI, a chamada guerra justa , que se empreende contra os inimigos da fé, como mostra Diogo Lopes Rebelo no pequeno tratado que escreveu e ofertou a D. Manuel I por ocasião de seu entronamento, em 14962. No De republica gubernanda per regem,

Rebelo fornece aconselhamentos úteis para a governação do reino e entre eles, os relativos à guerra justa . Trata-se de aconselhamentos ao rei, da pena de um clérigo, preocupado com a cabeça do corpo místico do reino e, portanto, a partir de suas possibilidades e como súdito fiel a serviço do reino, compõe o que Amílcar Mesquita considera um tratado de Direito Político, no qual legisla, entre outras questões de direitos e deveres, a guerra justa , mais precisamente, o Cap. XII, em que trata do dever de ter paz com os reis cristãos, e do de algumas vezes fazer

1 VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. In: VICENTE, GIL. O velho da Horta, Auto da Barca do

Inferno, Farsa de Inês Pereira. Introdução, comentário e estabelecimento do texto de Segismundo

Spina. São Paulo, Ateliê Editorial, 2007, p. 164-166.

2 REBELO, Diogo Lopes. Do governo da república pelo rei (De republica gubernanda per regem).

Reprodução fac-similada da edição de 1496. Introdução e notas do Doutor Artur Moreira de Sá. Instituto para a alta cultura. Lisboa, 1951, p. 50-51: Pensando que espécie de presente devia oferecer a Vossa Ilustríssima Senhoria, nada me pareceu mais belo e mais útil do que definir as instituições e artes com que Vossa Real Majestade poderá mui formosa e felizmente governar o reino .

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guerra 3.

O livrinho de Diogo Lopes Rebelo é aconselhamento moral, e, como defende Amilcar Mesquita, com estofo jurídico, já que os conselhos que preconiza têm como fim a ação régia e sua legalidade e legitimidade formal e política. Nesse sentido, aquilo que vai como lei formal nos tratados morais representa-se como dever ser régio em obras fabulosas, tais como o Clarimundo de João de Barros, de 1521. Segundo Isabel Almeida, no Clarimundo, mais especificamente nas oitavas do mago Fanimor: É a aniquilação do mouro hereges imigos da fé v; : que freneticamente se exalta, como parte gloriosa da história portuguesa, na extensa profecia de Fanimor . Essa mesma sanha contra os inimigos da fé e a exaltação da guerra justa é matéria de rimas do Cancioneiro Geral, de 1516, como por exemplo os versos atribuídos a Diogo Velho da Chancelaria, exaltando que caça tão real/ que se caça em Portugal :

O grão Rei D. Manuel A Jebusseu e Ismael Tomará, e fara, fiel, A Lei toda universal4.

Na Miscelânea de Garcia de Resende, fidalgo de três reis (D. João II, D. Manuel e D. João III), lemos trovas provavelmente compostas entre 1530 e 1536, como reminiscências das coisas mais notáveis do reino, segundo o letrado. Em dada passagem, lembra-se a guerra que se quer justa e legítima por direito, e enaltece-se a política bélica portuguesa contra os infiéis da Fé:

Quãdo dous Reys te[m], Hu[n]o ha de ter ho directo, ho que ho tem estaa bem, ho outro por ter mao fecto concerto e paz lhe convem: se se nom quer concertar, com razam justificar,

3 Mesquita, Amilcar. Diogo Lopes Rebelo e o De Republica Gubernanda per Regem. Real Monasterio

de el Escorial la Ciudad de Dios, 218, 189-209, 2004.

4 Apud CIDADE, Hernani. A literatura portuguesa e a expansão ultramarina: as ideias, os factos, as

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por cobiça ou contumaz, quanto mal nisso se faz he obligado a pagar. (...)

Guerra dina de louvor, de perpétua memória, de honra, fama, glória tem El-Rei, nosso senhor, com muyto grande vitoria, com os Mouros Africanos e Gentios Asianos, Turcos, Rumes e pagãos, e muita paz com cristãos, inimigos de tiranos5.

Essa mesma matéria aparece de modo significativo nas obras atribuídas a Gil Vicente que, segundo Hernani Cidade, comunga no ideal de todos os cultos de seu tempo: é dever de reis e cavaleiros cristãos levar a guerra ao Infiel [...] 6. Assim,

no Auto da Barca do Inferno, no último quadro da representação, preconiza-se o dever cristão e régio de defender a fé cristã e de declarar guerra aos infiéis, seus inimigos, tal como preceitua Diogo Lopes Rebelo:

Deve-se observar que ao rei cumpre, algumas vezes, fazer guerra, nomeadamente entre os infiéis, para que a virtude da sua fortaleza e dos seus soldados se mostre e possa brilhar no combate. Diz Salústio que é lícito tornar-se ilustre na guerra e na paz. Pode, finalmente, o rei cristão fazer guerra em certos casos: por exemplo, na defesa da fé cristã, e na dilatação do seu culto, contra os infiéis e nações bárbaras que blasfemam o nome de Cristo Senhor [...]. Para bem dirigir este negócio, é necessário que o rei tenha, e faça os seus ter, boas máquinas e armas bélicas, cavalos de guerra e outros gêneros de armas, necessário à defesa do seu reino e ao combate contra os infiéis e contra os que , em justiça, pode combater7.

Os aconselhamentos de Rebelo ao rei D. Manuel, seu leitor primordial, endossam os parâmetros de governação no que diz respeito à defesa da Fé cristã e

5 RESENDE, Garcia de. Miscellania e variedade de Historias. Edição de Joaquim Veríssimo Serrão.

Lisboa: INCM, 1991, p. 355-356.

6 CIDADE, Hernani. A literatura portuguesa e a expansão ultramarina: as ideias, os factos, as formas

da arte, op. cit., p. 80.

7 REBELO, Diogo Lopes. Do governo da república pelo rei (De republica gubernanda per regem), op.

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na relação com seus antagonistas. A representação vicentina alinha-se com esses parâmetros, recorrentes em outros discursos do tempo, todos concordes acerca da glória que se adquire na guerra. Para tanto, como argumento irrefutável e decisivo, Rebelo e Gil Vicente aludem a certa doutrina acerca da felicidade post-mortem, aquela que se reserva aos que tomam para si o dever de proteger e defender a pátria.

Dos antigos, entre as autoridades escolhidas por Rebelo e que podem muito bem repercutir na cena da salvação dos cavaleiros da Fé, destaca-se o Sonho de Cipião ciceroniano, em especial a passagem escolhida por Rebelo: Para seres muito alegre na defesa da república, fica sabendo que, para os que conservarem, ajudarem e auxiliarem a Pátria, está marcado um lugar no céu onde gozarão da felicidade eterna . Para corroborar a justiça no empreendimento da guerra, Rebelo conclui o capítulo com a peroração do argumento de que a arte militar deve submeter-se à devoção e à religião e rememora os grandes feitos dos ancestrais de D. Manuel na suas lutas contra os sarracenos:

Apoiado então na virtude divina com poucos derrotará mais do que outrem com muitos milhares de homens. Pudesse eu, neste lugar, lembrar as muito afamadas vitórias que os predecessores vossos pais, reis de Portugal, e vossos capitães alcançaram em África, derrotando, com pequenas forças, e somente ajudados de Deus, tantos milhares de sarracenos!8

Tanto nos preceitos acerca de como e por que fazer a guerra, quanto no auto de Gil Vicente, atribui-se prêmio certo na beatitude post mortem àqueles que empreenderem a guerra justa contra os infiéis da Fé. Desse modo, podemos sugerir como hipótese um fim e duas consequências: seria um dos fins da encenação a persuasão acerca dos saberes que garantem o fim último do homem a salvação da alma.

A primeira consequência: levando em conta a designação teológica das faculdades da alma: o entendimento, a memória e a vontade, tanto nos tratados como nas obras fabulosas que tenham como fim persuadir ao bem, em ambos

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serão convenientes os artifícios que vençam o entendimento, avivem a memória do bem e comandem a vontade retamente. Em Inferno de Gil Vicente articulam-se as doutrinas políticas e religiosas pressupostas na audiência e os artifícios do discurso cômico, resultando na persuasão advinda da correção do riso e sua necessária utilidade ética. Assim, em quadros sucessivos, com tipos fartamente conhecidos pela audiência, arrolam-se saberes que visam à rememoração do bem aos obliterados dele. No caso dos cavaleiros beatos do último quadro, é fartamente sabido os merecimentos da morte no ensejos da guerra justa . Todavia, a segunda consequência parece ser mais notável, passemos a ela.

A segunda consequência: tratar-se-ia, ao mesmo tempo, no que tange à política manuelina, de aconselhamento para o devir e, ao mesmo tempo, elogio do presente e do passado. Levando em conta, mais uma vez, a audiência do Auto da Barca do Inferno de 1517, sobretudo o seu expectador primordial, o rei D. Manuel, encena-se doutrina e política ao monarca que, segundo lemos no Cap. II do livro VIII da primeira Década de Ásia de João de Barros, é figurado como Rei zeloso da fé, e religioso na observação dela 9. Mais: o rei D. Manuel, nesse mesmo cap. II do

livro VIII, demonstra a força de seu braço contra o Sultão do Cairo, alegrando-se do incômodo que lhe causa e instigando armadas contra a ousadia do infiel. Sendo aconselhado pelo papa que cedesse às ameaças do Sultão do Cairo, D. Manuel, segundo nos pinta João de Barros, não apenas cede às ameaças do Sultão, mas também requer do papa incentivos para a luta contra o inimigo comum da cristandade. Segundo a narrativa de João de Barros, o rei português envia ao papa Júlio II uma carta, transcrita nas Décadas, reivindicando à sua Santidade que instigasse aos reis cristãos a unidade contra os infiéis e, além disso, lembra ao destinatário os merecimentos do trono português nos feitos em favor da cristandade:

E se isto (haver nos seus portos armas de príncipe cristão) ele (o sultão do Cairo) já temia, que se podia esperar delle quando visse desembarcar em seus portos, os exércitos da potencia de tantos

9 BARROS, João de. Ásia de João de Barros. Primeira Década. Dos feitos que os portugueses fizeram no

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príncipes como avia na Europa, e a ge[n]te Portugues muy costumada a guerra destes infiéis, poer as escadas nos muros de Juddá: Porta per onde elle esperava e[m] deos que estes seus vassalos entrassem na casa da abominaçam, e nelle levantassem altar pera oferecer oblação accepta a deos. Na execuçam da qual obra, elle como obediente filho da igreja, e zelador de sua glória: prometia a sua sanctidade trabalhar quanto nelle fosse, pera que com mais justa causa este infiel se pudesse queixar de suas armadas10.

Nas Décadas, a passagem é eloquente na medida em que propõe, com tintas fortes, o caráter do monarca lusitano como rei cruzado, convicto de suas prerrogativas de fé e de sua salvação incontestável pelo serviço prestado. É deste mesmo ano de 1505 a composição da investida de Francisco de Almeida, nomeado Vice-rei da Índia, com suas poderosas armadas11. Também deste ano, mais

precisamente a 4 de julho de 1505, a publicação da bula papal intitulada Sedes Apostolica, de Júlio II, na qual se autoriza o livre comércio com os infiéis.

Para tanto, não será necessário remeter à representação do reino de Portugal como vigari Christi, eleito desde as fundações no Milagre de Ourique. Detenhamo-nos nos momentos mais próximos de nosso ano de 1517, acompanhando aspectos da política teológica e da propaganda cruzada preconizada na Corte de D. Manuel. O ano de 1505, o episódio do embate entre D. Manuel e D. Fernando de Castela e o Sultão do Cairo; a fundação do Vice-reinado da Índia; as conquistas dos primeiros vice-reis: D. Francisco de Almeida e D. Afonso de Albuquerque; a política portuguesa junto dos papas Júlio II e Leão X; destes, as bulas e benefícios concedidos na legitimação e reconhecimento das conquistas, todos esses aspectos são relevantes para compreender o ambiente de expansão portuguesa legitimada política e teologicamente nas suas marcadas ações cruzadas.

É célebre o evento de 1513, por ocasião do entronamento do papa Leão X e das ambições políticas portuguesas junto da Santa Sé: sendo D. Afonso de

10 BARROS, João de. Ásia de João de Barros. Primeira Década. Dos feitos que os portugueses fieram

no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente, op. cit., p. 294.

11 Para Giuseppe Marcocci, em A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII), a

nomeação de Francisco de Almeida como vice-rei, na Índia, dá-se a fundação do Império Português , levado a cabo por D. Manuel.

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Albuquerque vice-rei das terras de Índia, dada o sucesso nas conquistas e fundação do vice-reinado, D. Manuel, em março de 1514, na Embaixada de obediência ao papa, oferece imenso cortejo composto de mimos provenientes das terras conquistadas, entre eles, o famoso elefante indiano12. Nessa ocasião soleníssima e

absolutamente simbólica, dentre os vários expedientes diplomáticos, destaque-se a missiva do monarca português à sua Santidade, na qual alude-se aos sucessos lusitanos na Índia: a qual juntaram à nossa jurisdição e império 13. Referia-se,

além das possessões, às conversões em toda a Índia. Essa carta, segundo Giuseppe Marcocci, não só foi muito bem recebida pelo pontífice, como foi lida publicamente no Consistório Papal14.

As homenagens e tratativas com a Cúria Romana, sob o pontificado de Leão X, rendeu a D. Manuel muito benefícios nos interesses do reino sobre a expansão e a conquista das terras encontradas, inclusive a ampliação e confirmações de autorizações antigas que regulavam as conquistas, desde o século XV. Do ponto de vista da encenação do beneficio, destaca-se a consagração de D. Manuel, no Natal de 1514, conferindo ao monarca português Gladius e Pileus, a espada e o pileu, símbolos do poder temporal e espiritual. A essa consagração seguiu a exortação papal a que D. Manuel prosseguisse nos seus esforços militares para ampliar os

12 LOPES, Paulo Catarino. Entre o céu e o inferno: um olhar inédito sobre as embaixadas de obediência

enviadas por D. Manuel ao papa no início de Quinhentos. Disponível em:

<https://research.unl.pt/files/2486939/Entre_o_c_u_e_o_inferno._Um_olhar_in_dito_sobre_as_emb aixadas_de_obedi_ncia..._Viseu_.pdf> Acesso em Setembro de 2017. Nesse estudo, Lopes analisa o relato de um nobre português que esteve em Roma por sete anos e deixou escritas suas memórias, hoje reunidas numa compilação de manuscritos quinhentistas da Biblioteca Nacional de Madrid. Dessas memórias, o trecho a seguir referente à embaixada de D. Manuel na cerimônia de Obediência, em marco de 1514: E nos dias que se deteueram sem fazer mostra da embaixada, as Jrmãas do papa E muitos grandes senhores e senhoras foram ver o ponti cal que el Rei mandaua A see apostolica, ho qual guarçia de Resende secretario da embaixada que ho tinha em poder amostraua a todos. E elles cauam maravilhados da grande Riqueza das peças polla multidão do alJofre de que erão cubertas, E de muitos Robis e pedras preçiosas que nelle hião. E pollo conseguinte foram ver o alifante que cara fora da çidade, por ser cousa nam vista em Roma segundo se dizia do tempo de Jullio çesar, nem em toda Jtalia, senam hum que avia poucos anos que viera a lombardia .

13 MARCOCCI, Giuseppe. A consciência de um Império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII).

Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012, p. 102.

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confins e o império da república cristã 15.

Com isso, na encenação do Auto da Barca do Inferno, mais especificamente, na cena da beatitude dos cavaleiros cruzados, a brevidade do quadro e sua conclusão imperativa podem ter, pelo menos, esses dois efeitos referidos na recepção régia: a corroboração de uma doutrina sabida e compartilhada, qual seja, a salvação indubitável dos guerreiros da fé; e a propaganda da figura de D. Manuel, célebre inimigo de infiéis segundo o caráter que lhe conferem tanto a narrativa da história de João de Barros, quanto versos do Cancioneiro, como aqueles atribuídos a Diogo Velho da Chancelaria; as trovas de Resende e tantos outros discursos nos quais a matéria se repete. O pragmatismo das artes do tempo corrobora-se na representação, diante da recepção do paço e, sobretudo, do rei e de seus íntimos, daquilo que figura nas conversações do embaixadores de reis e prelados, nos textos de historiadores milenaristas como Duarte Galvão, nos tratados de educação de rei e príncipes que prescrevem a chamada guerra justa e as virtudes dos reis e príncipes que as conduzem.

Artigo recebido em: 15.04.2018 Artigo aceito em: 24.07.2018

15 A exaltação das vitórias do rei D. Manuel contra os infiéis corrobora-se em documentos oficiais de

cúria romana, documentos esses que pretendem informar e enaltecer os feitos do rei lusitano em favor da Fé: destaque-se documentos presentes na Torre do Tombo, tais como:

1. Bula do Papa Leão X concedida ao rei D. Manuel I para poder desanexar dos mosteiros das ordens de S. Bento, Santa Cruz e de Cister bens que chegassem até à quantia de 20 mil cruzados para erigir novas comendas na Ordem de Cristo para se darem aos cavaleiros que servissem nos lugares nas conquistas de África e da Ásia.1514-04-29. Portugal, Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte II, mç. 82, n.º 163.

2. Carta do doutor João de Faria para o rei em que lhe dá conta como o papa mandara chamar todos os embaixadores para se consultar sobre a notícia que teve da grande vitória que teve o turco. 1514-11-05 / 1514-11-05. Portugal, Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 16, n.º 102. 3. Carta de notificação da graça concedida pelo Santo Padre, Leão X, como por seus embaixadores fora requerido, havendo respeito ao muito serviço que na guerra dos mouros faziam, com muito trabalho, fadiga, despesa, perigos e mortes, pudesse el-rei haver pelos mosteiros e igrejas, das colações dos prelados, 20. 1514-10-24. Portugal, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel I, liv. 15, f. 150v.

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