o
LEÃo
E
o
DRAcÃo
No
IMAGINARIo
DA
REsrAUnaçÃo
André Simões
CEC
-
FLUL, Univ. LisboaÉ o ano de 1639. A Catalunha ainda não se revoltou, ainda não se tomou a Da-lila que, nas palavras do Pe. António Vieira, no seu Sermão dos Bons Anos, prenderá e atarâ as mãos do Sansão castelhano, no Verão do ano seguinter. Castela ainda só
se acha aperlada por gueffas de fora. Concretamente, apertadapela Guerra dos 30 Anos, com inimigo temível às portas, a França, e pela Guerra dos 80 Anos, com as
Províncias Unidas2. Em Portugal
já
rebentaram, em 1637, as Alterações de Évora, também conhecidas como a Revolta do Manuelinho, que incendiarão todo o sul do reino, e mesmo partes do interior centro e norte. O motivo são as alterações à políticafiscal, mas não deixam de se fazer ouvir também vozes de oposição à Monarquia
Dua13.
O ano de 1639 marcou, também, a extinção, em Madrid, do Conselho de Por-tugal, e a sua substituição por duas juntas, uma em Madrid, presidida por Diogo Soares, e outra em Lisboa, à frente da qual estava Miguel de Vasconcelos, a vítima simbólica e ritual do 1.o de Dezembro de 1640. Muitos viram nesta medida mais uma tentativa de reduzir o reino a uma mera província, o que ia contra o juramento feito
por Filipe
II
nas Cortes de Tomar, onde garantira a autonomia e integridade do reino de Portugal.| "Quando os Filisteus se quiseram levantar contra Sansão, aguardaram a que Dalila lhe tivesse presas e atadas as mãos, e então deram sobre ele. Assim o fizeram os Portugueses bem advertidos. Aguardaram
a que Catalunha atasse as mãos ao Sansão que os oprimia, e como o tiveram assim embaraçado e preso, então se levantaram contra ele tão oportuna como venturosamente." Pe. AlróNto VIrtR.rr, "Sermão dos Bons Anos", in J. F. M,,rnqurs (ed.),
I
utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração,Yila Nova de Famalicão, 2007,p.289.2 N. G. MoNrsrno, "Portugal na Monarquia dos Habsburgo (1580-1640)", in R. R,rvos (coord.),
I1isld-ria de Portugal, Lisboa, 2009, pp. 286-294.
Queloo Ponrucal ERÀ REINo DE LEÃo Estudos sobre culrura e identidade antes de D. ÁJonso Henrìques
Em 1639 tinham
já
começado as diligências conspiratórias que redundariam na Restaura ção.EmNovembro do ano anterior, teria sido sondado D' Duarte, irmão do futuro D. JoãoIV
então em passagem por Portugal, no sentido de assumir a co-foa de Portugal em lugar do duque de Bragança' caso este não a quisesse aceitaÍ' D' Duarte não se terá moitrado demasiado receptivo à ideia, tendo prometido vagamen-te o seu amparo.Distó não sabia o cisterciense espanhol Juan Caramuel Lobkowitz, quando nesse ano de 1639 publica, emAntuérpia, o seu Philippus Prudens
caroli
vlmpe-ratoris Filius, Lusitaniae Algarbiae, Indiae, Brasiliae legitìmus rex demonstratus' mas era evidente que não tinha por improvável o levantamento de Portugal, depois das Alterações de Évora, mas também porque ninguém duvidava de que a França não desdenharia patrocinar e apoiar revoltas dentro da própria casa do seu poderosoinimigo.
Mas vejamos quem era este religioso cisterciense' Juan Caramuel Lobkowitz' a quem alguns chamaram o Leibniz espaúol, nasceu em Madrid, em 1606, filho de
um luxemburgUês e de uma boémia, e notúilizou-se como matemático, teólogo, frlósofo e linguista. Aos 17 anos entrou no mosteiro cisterciense de Santa Espina, na região ae
únaaot
d.Fezos seus estudos em Espanha e nos Países Baixos, tendo concluído o doutoramento em Lovaina, em 1638. Morreu em 1682, como bispo de vigevano, na Lombardia, depois de uma vida de intensa produção intelectual, como tesiemunham quase oitenta impressos e trinta manuscritos.Em
1639, dizíamos, publicou em Antuérpiao
seu Philippus prudens, obra monumental em que procura demonstrar a legitimidade, a vários títulos, de FilipeII
como rei de Portugal e dos Algarves' em 1580. A vários títulos, porque não serestringe à argumentação referente ao melhor direito e à melhor linha sucessória em relaçal a D. úanuel. Ela é, até, considerada secundária. Com efeito, Caramuel
pro-cuÍ4 ao longo das mais de 400 páginas do Philippus, demonstrar, em última análise,
que Filipe
ti
é o legítimo detentor de Portugal enquanto herdeiro dos reis de Leão,.
qrr" uiua
intervenção em 1580 se justificou a título recuperação de um reino que lhe era devido e aos seus antepassados. O argumento consiste em que a aclamação de D. Afonso Henriques não passou de um acto de rebelião contra o seu soberano legítimo, o rei de Leão. Assim, ainda que FilipeII
não tivesse, em 1580, direito ao reino enquanto sucessor legítimo de D. Henrique, teria sempre direito à posse do reino, enquanto herdeiro dos reìs de Leão, legítimos detentores do reino de Portugal, que deles tinha sido ilegitimamente subtraído'A partir deste argumento principal, Caramuel demonstra, através de uma série de concessões, que
*.r*o
no .ãro de que Afonso Henriques tivesse sido rei legíti-mo, aindaurri*
filip.II
e seus sucessoÍes seriam sempre os legítimos possuidores do reino de portugal. O, pr.supostos são claros, através da leitura do título de cada uma das partes em que se divide a obra:CuaNoo PonruceI- ER^ RErNo DE LEóN Estudìos sobre cultura e identidad antes de Alfonso Enríquez
Livro I.
Percorrem-se, com base em documentos autênticos, a origem, osfei-tos e a sucessão dos reis de Portugal (pp. l1-94a).
Livro
II.
Demonstra-se que AfonsovI,
pai de D. Teresa, mulher do conde D.Henrique, e os reis de Leão seus sucessores, até Filipe IV, rei de Espanha, foram os legítimos reis de Portugal (pp. 95-l3a).
Livro
III.
Põe-se por hipótese que D. Afonso Henriques e os seus sucessores,até D. Fernando, foram verdadeiros reis de Porfugal, e que D. Inês de Castro teria casado com D. Pedro I, e daí se demonstra que a coroa de Portugal pertenceria aos
descendentes de Inês, reis de Castela, pois faz descender Femando o Católico de D. Beatnz, filha de Pedro e Inês (pp. 135-15a).
Livro
IV. No caso de que D. Inês fosse barregã de D. pedro, nem assim o Mestre de Avis teria direito ao reino, e assim Portugal pertence, por direito de recu-peração, aos reis de Castela (pp. 155-160).Livro
v.
Supõe-se que todos os reis de Portugal, desde D. Afonso Henriquesao cardeal D. Henrìque, tivessem sido legítimos, e demonstru-se que ainda assim o reìno pertence aos Reis Católicos, por direito hereditário (pp. 161-a30).
Para nos cingirmos ao tema deste colóquio, concentremo-nos no argumento
do livro
II,
segundo o qual FilipeII
podia, enquanto sucessor de AfonsovI
de Leãoe Castela, ocupar o reino a título de recuperação
-
é este o título da disputatio que abreo
liwo II.
o
livro
está, com efeito, dividido em duas questões, dependentesdesta disputatio.
A primeira questão (p. 98) pretende saber se D. Afonso Henriques
foi
legíti-mo rei de Portugal. O debate derrama-se em sete artigos, que passamos a descrever sumariamente.o
artigo primeiro (pp. 98-100) descreve em que condições foi dado o conda-do a D. Henrique, progenitor dos reis de Portugal. caramuel recorda que é incon-testável que a "prouincia Lusitanica"foi
dada a D. Henrique na condição de que reconhecesse os reis de Leão como seus legítimos soberanos, e com obrigação deir
às cortes de Leão, mesmo sem convocatória formal. AfonsoVI
detinha, assìm, a autoridade suprema no condado. Prova-o Caramuel com a alegação de autoridades e de uma carta de AfonsovI
de Leão e Castela dirigida a D. Henrique, que traduz de latim medieval para a "latina puritas", com corïespondências rigorosamente assina-ladas sintagma por sintagma5, opção que justifica assim:a A paginação refere-se
à edição de Antuérpia, 1 639. 5 Anexo II.
Qu,rloo PonruceI- ER^ REINo DE LEÃo Estudos sobre atltura e identidade anÍes de D. Afonso Henriques
[...] malui eam a dialecto bellice-barbara ad Latinam puritatem reducere, vt intelli-gatur etiam ab illis, qui linguam Lusitanicam non callent.6
O artigo segundo (pp. 100-102) demonstra que D. Afonso Henriques, suces-sor de D. Henrique no condado, foi rebelde ao seu legítimo soberano, o rei de Leão. Recorda as circunstâncias da sua coroação, a solicitação de reconhecimento papal, e a confirÍnação nas cortes de Lamego. Sublinha que o rei de Leão sempre se opôs à secessão portuguesa: "sempeÍ Romae,
&
ubique contradicente Legionis Rege". Caramuel sustenta a ilegalidade da aclamação em dois pontos:7.
a aclamação pelo povo revoltado foi injusta, e teve carácter mais de defecçãoe de rebelião do que de eleição;
2.
o povo não tem autoridade para negar obediência ao seu soberano, nem de conferir o poder a um subordinado, sobretudo em Portugal, onde não era o povo quem mandava, mas pelo contrário estava subordinado ao rei de Leão, enquanto soberano, e aAfonso Henriques, que lhe estava subordinado. O artigo terceiro (pp. 102-104) declara que D. Afonso Henriques foì coroado pelo papa, e discorre sobre os efeitos deste acto.Caramuel recorda que tanto o rei de Leão como o rei de Portugal enviaram embaixadores ao papa, mas que este, por influência de Bernardo de Claraval, decidiu em favor de D. Afonso Henriques.
Debate, neste ponto, sobre a nattxeza dos reinos. O reino, diz, pode ser tempo-ral e eclesiástico. Este último divide-se em reino pontificio e reino monástico.
O rei secular é aquele que tem jurisdição total sobre os negócios políticos e
civis.
O rei pontifïcio é aquele que tem jurisdição apenas sobre os negócios ecle-siásticos,
Os títulos secular e eclesiástico podem estar unìdos, mas podem também estar separados. Assim, um rei secular pode ser excomungado, e pode um homem pobre ser elevado à categoria de rei eclesiástico.
Conclui, assim, que o reconhecimento pontificio em nada retirava autoridade ao rei de Leão, e que D. Afonso Henriques, consequentemente, continuava a estar sujeito aAfonso VII, pois era um rei pontificio, mas um vassalo secular. Assim, a sua
aclamação foi um acto de rebeldia, e podia e devia ser expulso do reino pelas armas. O artigo quarto (104-110) transcreve as actas publicadas por Fr. António Bran-dão, na Terceira Parte da Monarquia Lusitana, insinuando o seu carácter apócrifo (como se sabe, Carmauel estava coberto de razão). Incapaz de resistir à sua veia filológica, Caramuel ajunta nada menos do que 41 glosas ao texto, destinadas, nas
suas palavras aos que não dominam a língua portuguesa. As actas, recordamos, estão escritas no que se pode designar genericamente de latim medieval.
ó J. Cnnauuer Lonrowrrz, Philìppus Prudens Caroli V Imperatoris Filius, Lusitaniae Algarbiae, In-diae, Brasiliae legitimus rex demonstralr.rs..., Antuérpia, 1639 ( http://purl.ptl14358 ), p. 99.
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CunNoo PonrucaL sn,a. nsrNo oe Leóll Estudios sobre cuhura e identidad anres de AlJomo Enríquez
o
artigo quinto (pp. 110-r13) tem por título ..comitiorum Lamegensium Le_ges: censor rélego, Iudex relêgo". ou seja, examina-as como crítico, rejeita-as como j]uiz. Faz, de feito, um exame a alguns pontos do texto,
tentando primeiro aclarar o sentido, para depois o rebater.
o
artigo sexto (p. 113) insiste na ideia de que o papa apenas investiu D. Afon_ so Henriques de título espiritual e incorpóreo (traduzo as palavras de Caramuel), pois tal como não pode criar condes ou duques, também nãó pode criar reis. Acres-centa que o papa tem duas qualidades: uma temporal, outra espiritual. A primeira restringe-se, sublinha, aos limites geográficos dos territórios pertencentes à Igreja de Roma, e nos quais tem o direito de criar reis, condes, duqueì ou marqueses. Mas nunca fora deles. Assim, D. Afonso Henriques nunca poderia ter sido criado rei
se-cular pelo papa.
o
artigo sétimo (pp. 11a-117) questiona se D. Afonso Henriquesfoi
criado rei por Deus' que dispensa cortes ou aclamações populares. Caramuel recorda que é voz corrente em Portugal que D. Afonso Henriques foi elevado à dignidade regia eisento da sua obediência ao rei de Leão por mandato divino. Refere-se o Íiade cister-ciense, como é evidente, à visão de ourique, constante do juramento de D. Afonso Henriques, cujo relato transcreve, de novo abundantemente anotado, sob o título "Afonsi, Lusitaniae Regum primi, Sacramentum Regie-Militare,'.
Neste juramento
está a famosa passagem tantas vezes repetida após 1640, e um dos alicerces do
euin-to Império. Leiamo-la, na tradução do pe. António Vieira:
No juramento autêntico de El-Rei D. Afonso Henriques, em que se conta o
mira-culoso aparecimento de Cristo, quando por sua própria p"rrou quiì fundar o Reino de
Portugal, são bem notórias aquelas palavras, mandadai ururr"iu, ao rei pelo mesmo Senhor, com o recado de
9ue lhe queria aparecer: <Domine, bono animo èsto: vinces,
vinces' et non vinceris. Dilectus es Domino, posuit enim super te et super semen tuum post te oculos misericordiae suae usque.in decimam se*iam generátionem, in qua attenuabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet et videbìu: <Senhor, estai de bom ânimo: vencereis, vencereis e não seìeis vencido; sois amado de Deus porqu" pôs sobre vós e sobre vossa descendência os olhos de sua misericórdia
até a àecima
sexta geração, na qual se atenuará a mesma descendência, mas nela atenuada tomará
a pôr seus olhosT.
A autenticidade do juramento é, porém, posta em causa por caramuel. A par-tida, porque diz que o número de selos apostos ao manuscrito varia de acordo com as
fontes. Adianta que o suposto original do documento só foi encontrado em 1596, em Alcobaça, por frei Bemardo de Brito, autor que recorda ser conhecido por ditar origi-nais, de modo a provar as suas opiniões, que de outra forma seriam pouco credíveis:
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Í{t {} Eão,d0
[aln lltur po-E.€:[e-itÚ
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as ão fts 7 A.Qu'r.Noo PonruceI- sn,A nEINo og LrÀo Estudos sobre cuhura e identidade anles de D. Afonso Henriques
Fidem ex eo negandam huic Protocolo dicis, quod is Auctor saepe a corÌÌmuni
deuiet, & videatur dictare saepius Autographa, potius quam antiqua decerpere: & haec
vt sua sensa, alias vix credibilia, euidentiora faciat.s
Além disso, insiste, o relato da visão difere da antiga crónica de D. Afonso
Henriques, que cita em português e traduz para latime.
Mais interessante, do nosso ponto de vista, é o argumento filológico: diz Ca-ramuel que o texto tem uma suspecta latinitas: "Videtur enim stillus floridior illo qui tunc era in usu. Sapit potius Romanae phrasis splendorem, quam militaris idiomatis austeritatem."lo
Mas, não fosse o leitor achar que o latim do documento era impecável, acres-centa que "attamen non est cur stillus laudetur, cum sit saepius aridus, atque minus cohaerens". E, qual professor de latim, passa a corrigir a sintaxe e o estilorr.
Aduz ainda incongruências cronológicas para descredibilizar esta versão do juramento de D. Afonso Henriques. Recorda que a data indicada no documento, a era de 1152, corresponde à era cristã de 1114, quando Ourique ocoÍreu na era de 1777, ou seja, no ano de 1139.
Conclui este artigo sétimo com a admissão de que Deus é, efectivamente, o "dator imperiorum", e que admite que D. Afonso Henrique tenha prestado solene-mente este juramento. Mas acrescenta:
"In
eo Afonsus asserit se recepisse coronamimmediate a Deo: probet hoc, & statim ame, & ab uniuersis Castellanis acclamabitur Rex Portugalliae."r2
De resto, prossegue, tal revelação, a ser autêntica, não era suficiente para que D. Afonso Henriques se rebelasse contra o rei de Leão. O argumento é inabalável: se
Deus tivesse querido que D. Afonso Henriques fosse rei de Portugal, e, portanto, que negasse a obediência ao rei de Leão, porque é que não fez com que Afonso
VII
acei-tasse e ratificasse a elevação ao título régio? E conclui que não têm os portugueses de provar a veracidade do juramento, que ele próprio concede, mas sim provar quea revelação divina nele relatada é verdadeira. Enquanto não o fizerem, não poderão nunca dìzer que os reis de Portugal foram eleitos por Deus, sem mediação:
Lusitanorum non est probare hoc iuramentum fuisse praestitum; hoc enim iam superius admissi: sed conuincere ueram fuisse istam apocalypsin;
&
quousque hocprobent, ne dicant a Deo immediate esse electos Monarchas Lusitaniae.rs
8
CanavuEr-, op. cit., p. 118.
'q Id., ibid, p. I 19. ro Id., ibid., p. 120. 'r Id., ibid., p. 120. D Id., ibid., p. 121. '3 Id., ibid., p. 122. 248 A h
Cu,^Noo PonruceL sRA nerNo os LeóN Esludios sobre cultttra e ìdentidad aníes de Álfonso Enríquez
Assim termina o debate da primeira questão, que consistia em saber se D. Afonso Henriques foi legítimo rei de Portugal. Conclui Caramuel que, em primeiro lugar, as Cortes de Lamego foram ilegais.
Em segundo lugar, D. Afonso Henriques não foi rei secular, mas apenas
ponti-ficio, só com jurisdição no que respeita a graças espirituais e indulgências.
Em terceiro lugar, não foi criado, nem eleito, nem coroado por Deus.
Em quarto lugar, era obrigado a ir às cortes de Leão, obrigação que não cum-priu, logo é cismático e rebeldera.
Após uma segunda questão, que passamos, por se prender com questões de direito demasiado complexas e sobretudo áridas para o tempo desta já longa
comuni-cação15, conclui Caramuel o livro
II
do seu Pft ilippus Prudens , ao dar como demons-trado que os reis de Leão têm direito legítimo e perene a excluir os reis portugueses, mesmo pela força, se necessário, e que, em consequência, qualquer gueïra feita pelos reis de Leão contra Portugal foi uma guerra justa, feita a título de recuperação.Assim, ainda que Filipe II, em 1580, não fosse legítimo herdeiro, por consan-guinidade, do cardeal D. Henrique, poderia justamente invadir, tomar, subjugar e deter Portugal, não só após a morte do cardeal, mas mesmo estando ele vivor6.
Por fim os Reis Católicos têm também o direito ao reino dos Algarves, Brasil e
Índia, como compensação por 436 anos de rebelião aos reis de Leão
e
consequentes guerïas de recuperação:Praeterea debet Lusitania Legionensium Regi vectigalia 436 annorum. Certe bella
sine expensis maximis non sunt: illa & has potuisset Legionensis Rex ex Regno
Al-garbiae ac Indiis sumere. Quantae autem in bellis expensae fuerint factae, nec liquido
constare potest: nec dubitemus licet, Indias & Algarbiam pro pignore sumi debere, quousque
illi
restituerent expensas omnes.Sed haec sufficiant in praesenti; non enim est animus relegere supputatorios co-dices, sed expendere doctrinam generalem. Pro expensarum pignore, Algarbia, India
atque Brasilia sub Legionensi sunt, quousque sumptus militares soluantur: quamdiu sint subfuturae, pertinet ad Arithmeticos, non vero ad Scholasticos. tl
Regressemos à imagem que abriu a nossa intervenção rs,
e que sintetiza o ar-gumento de base da obra, ou seja, que Filipe II foi legítimo rei de Portugal, a título de
recuperação, enquanto sucessor dos reis de Leão. A estampa é dominada pela figura
'4 Id., ibid., pp. 122-123. '5 Id., ibid., pp.124-133.
r6 Id., ibid., pp. 132-133.
r7Id., ibid., pp. 133-134. 18 VerAnexo I.
Queroo Ponrucel sne nrtlo ne LeÃo Esludos sobre cultura e identidade aníes de D- AJbnso Henriques
de um leão coroado, a mão direita a seguÍar Ìrma espada ameaçadora, enquanto esquerda subjuga um dragão de ar assustado. Sobre a imagem, um epigrama:
Saepe reuersurus fugit (a) Draco signa Leonis,
Saepeque restituit colla superba pedi:
Nec fugiet. Capitur iuste; defendere (b) PRVDENS Armatis (c) manibus scit sua iura LEO.
(a) Lusitania.
(b) Philippus Prudens qua Leonis Rex.
(c) Manibus id est exercitibus. Ou seja, em linguagem:
Tantas vezes fugiu (a) ao signo de Leão o Dragão, que há-de voltar,
e tantas vezes o pescoço soberbo restituiu ao pé:
Não fugirá, é justamente capturado; defender sabe, PRUDENTE (b),
com mão (c) armada defender os seus direitos o LEÃO.
(a) Portugal.
(b) Filipe o Prudente, como Rei de Leão.
(c) Mào. isto e: exércitos.
A explicação desta imagem é dadana introdução à obra. Diz Caramuel: A cabeça do Dragão é uma secção da órbita da Lua e doZodíaco. Tem movimento retrógrado, de acordo com a definição de Copémico: cada dia três minutos, e
conse-queniemente cada ano 19 graus e 20 escrópulos. É por isto que a cabeça do Dragão
muitíssimas vezes fica sob o signo de Leão, e, sacudindo o jugo, muitas vezes regres-sa. O Dragão celeste foge do Leão, mas para voltar.
O Leão coroado significa o rei de Leão
-
ou seja, o seu reino, que outrora se cha-mava "Leo", mas hoje se chama "Legio". O Dragão, posto sobre o escudo de Portugal,é símbolo da Lusitânia. Esta outrora esteve sob o domínio do rei de Leão: com efeito, reinava em Leão e Portugal Afonso o Grande, o qual deu Portugal a seu filho Ordo-nho. Foi a Lusitânia separada de Leão, mas haveria de regressar, pois no início do ano
de 1064 vejo Femando o Grande ser rei de Castela, Leão e da Lusitânia. Após a sua
morte, de novo se separou a Lusitânia de Leão, com Garcia por rei próprio. De novo Afonso Vl de Castela separa a Lusitânia, <então> unida a Leão, no que respeita ao
do-mínio de propriedade, no ano de 1094, ao dar a sua filha Teresa ao Conde Henrique, e,
em dote, o invicto Condado de Portugal. Até que Afonso, fi1ho de Henrique e Teresa, arrebata este reino a Leão, no que respeita àjurisdição suprema, ao ser coroado contra
a vontade do rei de Leão. Eis que a Lusitânia tantas vezes se despediu do poderoso
Rei de Leão
-
mas para regressar. Finalmente, sob oS-auspícios de Filipe o Prudente,Cuarqoo Pontucel ERA REINo DE LEóN Estudìos sobre cultura e identidad antes
de AlJttnso Enríquez
Eis uma curiosa analogia, se te agrada a contemplação dos astros: compara o
Dra-gão da Lua com o Leão, tal como ao rei de Leão o Dragão Lusitano. A um e outro se
aplica este epigrama, sobreposto ao desenho, e que explica o conceito
misterioso.re
A associação do dragão a portugal vem desde os tempos de D. João
I,
que o usou no seu tìmbre, tendo passado, com os seus sucessores, a figurar também nas annas reais de Portugal. Só para citar alguns exemplos, o dragão aparece a encimaras arÍnas portuguesas no frontispício de várias obras do século
XVI,
como:.
a edição de 1615 das Ordenações Manuelinas.
a edição de 1516 do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende.
a edição de 1554 do Livro das Obras de Garciade Resende2o
E também visível em obras do período da Restauração, a começar pelo próprio Philippus Prudens, que inclui uma imagem das armas de Porlugal ainda antes da
es-tampa que deu o título a esta comunicação, mas também obras portuguesas, como o Discurso gratulatorio sobre o dia dafelice resíituiçaõ, & acclamaçaõ da Magestade del Rey D. Joam IV, de frei Francisco Brandão, publicado em 164221.
Pouco dado a conceitos misteriosos, António de Sousa de Macedo, embaixa-dor de D. João
IV
em Inglaterra, publica em Londresa
sua Lusitania Liberaía, no ano de 1645, obra destinada a provar a legitimidade de D. João IV e a usurpação dos Reis Católicos22. IJma das magníficas estampas que a ornamentam é uma evidente resposta à imagem que Caramuel colocou como frontispício da sua obra23. Agora éum dragão coroado, impante e ameaçador, que com a mão subjuga um animal de ar aflito, cabeça de leão, corpo de overha.
A
legenda explica sem ambiguidadesa simbologia:
Vngue leo fisus credit tenuisse Draconem,
sed quia iustus, eum iam Draco fecit ouem.
re Tradução nossa do
original latino (Anexo III). 20 Anexos IV,
V e VI.
2rAnexos VII e VIII.
22 A.
Sous.r or M,tcEoo, Lusitania LiberaÍa ab iniusto dominio Castellanorum,Londres, 1645. 23
Quenoo Ponrucel snn nrrt'to oe LEÃo Estudos sobre cuhura e ìdentidade antes de D. AJbnso Henriques
Hoc docet exemplum, breuiter uiolenta perire,
solaque in aeternum uiuere iusta solent.
Ou seja, em linguagem:
Pela unha achou o Leão ter agarrado o Dragão, mas porque é justo, já o Dragão o fez ovelha.
lsto ensina o exemplo: que rapidamente costumam morrer os violentos,
e apenas os justos costumam viver para etemidade.
Não será certamente alheio ao triunfalismo desta estampa a importante
vi-tória portuguesa na batalha de Montijo (Badajoz), em Maio 1644.
Esta obra não é, contudo, uma feacção directa ao Philippu.t, mas antes des-tinada a justificar na corte de Inglaterra a legitimidade política e jurídica da Res-tauração. Sousa de Macedo, no entanto, tinha já publicado
Im
Caramuel Conven-cido, em 164224, que respondia quer ao Philippus quer à Respuesta al Manffiestodel Reyno de Portugal, publicado também
em
16422s. Este "manifiesto" a que Caramuel se apressa a responder fora publicado em 164I, e é uma das obras fun-dadoras e fundamentais da literatura política da Restauração. Trata-se doMani-festo do Reyno de Portugal, publicado em 1641, da autoria de Pais Viegas26, e que era ele mesmo uma resposta ao Philippu,s, que procura rebater nos seus pontos essenciais.
O Philippus de Caramuel é uma obra de importância incontornável para
o entendimento deste período fundamental da nossa História que foram os anos de guerra
militar
e política, entreo
1.o de Dezembro de 1640 eapaz
de 1668. Incontornável não só pelo seu valor intrínseco, mas também pelas reacções que provocou e que levaram a composição de textos fundamentais, como o Manifesto de Pais Viegas ou as referidas obras de Sousa de Macedo. Permanece, contudo, uma obra inédita modernamente, votada a um esquecimento que com ele arrasta eimpede o cabal entendimento de uma parte muito significativa da literatura
justi-2aA. Sous.r ne Macloo, Juan Caramuel Lobkowitz... convencido en su libro intitulado, Philippus pru'
dens Caroli V imper. flius, Lusitaniae, &c. legitimus rex demonstratus. Impresso en el anõ de l6 j9 y en su respuesta al manifiesto del reyno de Portugal, Londres, 1642.
2s J. CenevusL Lonrowtrz, Respuesta al manifiesto del Reyno de Portugal..., Antuérpia, 1642
(http : //purl.p t/ I 447 6).
2ó A. P. Vreces, Manifesto do Reyno de Portugal. No qual se declara o direyío, as causas, &
o modo, que teve para exemirse da obediencia del Rey de Castella, & tomar a voz do Sere-nissimo Dom Joam I. do nome, & XVIII entre os reys verdà.deyros deste Reyno, Lisboa, 1641
(http ://purl.ptl 12104 I 1 I ).
Cualroo Ponrucer. ene nrnro oe LeóN Estudios sobre culnra e üentidad antes de Alfunso Enríquez
ficativa da Restauração.
o
mèsffro esquecimento, afinal, que impende sobre azu-sitania Liberata de Sousa de Macedo e sobre a generalidade da literatura escrita em latim, desta e de outras épocas da nossa História.
Qualloo Porrucll ERA RrrNo DE LEÃo
ANEXO
I
Estudos sobre cultura e identidade antes de D. Afonso Henriques
ANEXOS
nres de D. Afonso Henriques Cueruoo Portucat
Enr RÈno DE kó\
ANEXO
II
Estudios sobrc cultura e identìdad antes de Afonso Enríquez
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ANEXO
III
Estudos sobre cultura e identidade antes de D. AÍonso Henriques
"Caput Draconis sectio est Lunae Orbitae Zodiacique: retrocurrit, iuxta Copernici
de-finitionem, singulis diebus, tribus minutis, ac propterea singulis annis grad. 19 & 20 scrup.
Hinc est quod Draconis caput saepissime subfuerit Leonis signo, & saepe iugum excutiens
fuerit regressum. Caelestis Draco, sed reuersurus, Leonem effugit.
Leo coronatus, Regem Leonis indigitat; illius, inquam, Regni, quod Leo olim, sed
Legio inpraesentiarum nominatur. Draco Portugallensi scuto impositus, index est Lusitaniae. Haec olim Leonis Regi suberat: Leoni enim & Porhrgalliae praerat Alfonsus Magnus, qui dedit Ordonio filio suo Portugalliam. Separata fuit a Leone Lusitania, sed reuersura; quia
sub principium anni 1064 reperio Fernandum Magnum Castellae, Leonis, & Lusitaniae Re-gem: post cuius obitum iterum a Leone discessit Lusitania sub Garcia proprio Rege. Iterum vnitam Leoni Lusitaniam separat, quoad proprietatis dominium Alfonsus VI Castellae Rex anno 1094 dans Tarejam filiam suam Comiti Henrico, & in dotem Comitatum inüctae
Por-tugalliae: quoad supremam iurisdictionem, a Leone hoc Regnum abstrahit Alfonsus Henrici
atque Tarejae filius, cum inuito Leonis Rege coronatur. Ecce Lusitania saepe, reuersura
ta-men, inuicto Leoni valedixit; tandem auspiciis Philippi Prudentis, Leonis Regis, numquam
discessura, subigitur.
Ecce curiosam proportionalitatem, si caelestium contemplatione delecteris: ita
Luna-rem Draconem Leoni compara,
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Regi Leonis Lusitanicum. Vtrumque respicit hocEpigram-ma delineationi superpositum, & explicans conceptum mysteriosum.
Saepe reuersurus fugit (a) Draco signa Leonis,
Saepeque restituit colla superba pedi:
Nec tugiet. Capitur iuste; defendere (b) PRVDENS Armatis (c) manibus scit sua iura LEO.
(a) Lusitania.
(b) Philippus Prudens qua Leonis Rex.
(c) Manibus id est exercitibus."2T
27 J. Cenarnruru Loarownz, Philippus Prudens Caroli V ImperaÍoris Filius, Lusitaniae Algarbiae,
In-diae, Brasiliae legitimus rex demonstralars..., Antuérpia, 1639 (http://purl.pV14358), pp. XV-XVI
(se-guimos a numeração da Biblioteca Nacional Digital, para estas páginas não numeradas no original).
Estudios sobre cttlturcr e iclentìclod antes de Alfonso Enríatrez :l lr iïr'" t". I il" llillL $líkrtn ,rii l]m$ïl nrilrÍlÌ
ANEXO
Wil
ANEXOIX
ANEXO