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SISTEMATIZAÇÃO CRÍTICA DA PRODUÇÃO ACADÊMICA

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Academic year: 2019

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SISTEMATIZAÇÃO CRÍTICA DA

PRODUÇÃO ACADÊMICA

Volume organizado para concurso de Títulos e Provas

para obtenção do título de Livre-Docente junto ao

Departamento de Projeto

da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. -

Volume 01

.

Área de conhecimento de Planejamento Urbano (GDPL)

Edital ATAAc 067/2012

Janeiro de 2013.

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SISTEMATIZAÇÃO CRÍTICA DA

PRODUÇÃO ACADÊMICA

João Sette Whitaker Ferreira

Volume organizado para Concurso de Títulos e Provas para obtenção do título de Livre-Docente junto ao Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo. - Vol. 01.

Área de Conhecimento de Planejamento Urbano (GDPL)

Edital ATAAc 067/2012

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Agradecimentos.

Todo trabalho acadêmico só se realiza com a colaboração, inestimável, de colegas e amigos que, em algum momento, compartilharam do esforço para sua realização, ou mesmo ajudaram em aspectos imprescindíveis para sua finalização.

Os textos que compõem este volume, por retratarem todo um período da minha vida acadêmica, receberam contribuições ou resultaram do intercâmbio com um número inestimável de pessoas amigas, alunos, professores, que instigam permanentemente nossa produção intelectual. Suas contribuições estão sem dúvida espalhadas em cada pedaço dos textos aqui apresentados. Destaco o papel especial de Ermínia Maricato, pela amizade, o apoio e o constante exemplo que é para mim.

Devo sempre um agradecimento especial aos meus colegas do LabHab, professores e equipe de pesquisadores, dos estagiários aos pós-doutorandos, pela reflexão comum e pelo engajamento acadêmico por uma causa, a de cidades mais democráticas e justas. Agradeço à Maria Lúcia Refinetti, pelo apoio e amizade.

Para a realização desta Livre-Docência, agradeço especialmente à Daniele Queiroz, sem quem o trabalho – e a infindável compilação de documentos – simplesmente não teriam existido, e à Karina Leitão, colega incansável e companheira de todas as horas na condução do LabHab. Também agradeço a todos os funcionários da FAUUSP, ágeis e solidários na busca de documentações faltantes, e em especial ao Tadeu e funcionários do LPG, pelo empenho em imprimir estes volumes em tempo.

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Índice.

1.1.

INTRODUÇÃO: Impasses e desafios do planejamento urbano no contexto

do subdesenvolvimento.

1.2.

A FORMAÇÃO URBANA NO SUBDESENVOLVIMENTO.

1.2.1. A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil

Publicado em Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005.

1.2.2. Desafios para a construção de uma teoria crítica a partir da periferia

Publicado nos Anais do Colóquio Internacional: os desafios urbanos no Brasil e na África do Sul - Sessão Temática 5, IPUUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. Atualizado nesta edição.

1.2.3. São Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo “à brasileira”.

Publicado na Revista do IEA – Estudos Avançados – Dossiê São Paulo - vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011

1.3.

A QUESTÃO DA TERRA.

1.3.1. Onde o arcaico ainda dá as cartas: notas sobre a questão fundiária no Brasil no início do séc.XXI - Com Ermínia Maricato e Karina Oliveira Leitão.

Trecho da introdução do livro “O nó da terra” (título provisório) - MARICATO, LEITÃO E FERREIRA (Orgs.), LabHab-FAUUSP, no prelo.

1.3.2. Notas sobre a visão marxista da produção do espaço urbano e a questão da “renda da terra”.

Texto produzido para a disciplina AUP-5703 – Desenho do Espaço Urbano, do Programa de Pós-Graduação da FAUUSP, 2012.

1.4.

SOBRE OS IMPASSES DO ESTATUTO DA CIDADE E A IMPLEMENTAÇÃO

DE SEUS INSTRUMENTOS: O caso das ZEIS e das Operações Urbanas

Consorciadas.

1.4.1. A efetividade da Implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial. – com Daniela Motisuke.

Capítulo do livro: BUENO, Laura Machado de Mello e CYMBALISTA, Renato (orgs); “Planos diretores municipais: novos conceitos de planejamento”, São Paulo: Annablume, 2007.

1.4.2. OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualde? - Com Erminia Maricato.

Capítulo do livro OSORIO, Letícia Marques. “Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras”. Porto Alegre/São Paulo: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

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1.5.

SOBRE AS ÁREAS CENTRAIS DAS CIDADES BRASILEIRAS.

1.5.1. Prefácio do livro “A batalha pelo centro de São Paulo: Santa Ifigênia, concessão urbanística e projeto nova luz”. - de Felipe Francisco de Souza, São Paulo: Paulo´s Editora, 2011.

1.6.

OS IMPASSES DA POLÍTICA URBANA: GESTÕES “DEMOCRÁTICAS E

PARTICIPATIVAS” NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO.

1.6.1. Gestão democrática e participativa: um caminho para cidades socialmente justas?

Publicado na Revista Democracia Viva 18 – Rio de Janeiro: Ibase, 2003.

1.6.2. Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratização das cidades no Brasil e os riscos de um “urbanismo às avessas”.

Capítulo de livro: Oliveira, Francisco, Braga, Ruy, Rizek, Cibele. Hegemonia as avessas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.

1.7.

SOBRE A PROBLEMÁTICA HABITACIONAL.

1.7.1. Que cidade queremos para as gerações futuras? O trágico quadro urbano no Brasil do século XXI: cidades cindidas, desiguais e insustentáveis.

Capítulo 1 do livro “Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil Urbano”, LabHab/FUPAM, 2012.

1.8.

O PAPEL DO ARQUITETO-URBANISTA NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO.

1.8.1. Perspectivas e desafios para o jovem arquiteto no Brasil: Qual o papel da profissão?

Publicado no Portal Vitruvius - Arquitextos 133.07. Ano 12, julho de 2011.

1.9.

SOBRE A “QUESTÃO AMBIENTAL”.

1.9.1. A Formulação de uma Nova Matriz Urbana no Brasil, Baseada na Justiça Socioambiental. - Com Luciana Ferrara.

Artigo produzido para o Ministério das Cidades, Ministério do Meio Ambiente e Onu- Habitat para Diálogos da Rio+20 e Fórum Urbano Mundial de Nápoles, versão final dez. de 2012.

1.10.

BIBLIOGRAFIA.

*Desenho de capa do autor.

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INTRODUÇÃO.

Impasses e desafios do planejamento urbano no contexto do subdesenvolvimento.

Certa vez, em meados da década de dois mil, uma equipe de estudantes de uma das disciplinas de Planejamento Urbano da FAUUSP apresentou seu trabalho final da seguinte forma: “resolvemos não fazer nada. Apenas propomos uma reflexão, a ser feita agora, nesta apresentação”. Não se tratava de alunos preguiçosos ou desinteressados, pelo contrário, era uma equipe que havia trabalhado bem todo o semestre. Tinha discutido muito, em torno de uma proposta de intervenção urbana em alguma região de São Paulo.

A conclusão a que chegaram foi explicada assim: “de tanto trabalhar, discutir, ler, propor alternativas, chegamos à conclusão que qualquer coisa que propuséssemos não iria adiantar nada. Não alteraria o status quo, não seria capaz de mudar os problemas estruturais da cidade. Seria uma intervenção cosmética. Há questões jurídicas que não teríamos como resolver neste trabalho, impasses políticos, conflitos socioeconômicos, e achamos que o poder de transformação do planejamento urbano e da nossa intervenção seria nulo. Então, melhor não fazer nada, mas discutir essa constatação”.

A equipe tirou ótima nota. Afinal, professores sabem que, em alguns casos, o que mais importa pedagogicamente é o processo, o empenho, a evolução, mais do que o resultado em si. Eles tinham, de fato, trabalhado muito. Embasavam suas afirmações. E, no fundo, não estavam de todo sem razão. Talvez tivessem mesmo chegado a um nível de amadurecimento que me permitiu pensar, com certa ironia: “acho que eles entenderam a verdadeira complexidade do planejamento urbano”.

Ocorre que a profissão do planejamento urbano no Brasil está em crise, e o urbanismo como campo de estudos, cada vez mais complexo. Neste começo de século, não há dúvidas que o Brasil passa por um momento de inflexão. Resta saber para onde. Como já colocou Caio Prado Jr (apud Sampaio Jr., 2001), talvez a maior marca do subdesenvolvimento seja do país viver sempre o dilema de estar “entre a Nação e a Barbárie”. E resta saber, no nosso caso, como se coloca nesse contexto esta disciplina que pretende organizar e direcionar o crescimento das cidades.

Pois o caminho trilhado desde a redemocratização apresenta-se, visto com algum recuo, bastante antagônico. Por um lado, é certo que alcançamos avanços consideráveis, tanto na luta pela democratização das cidades quanto na consolidação de instrumentos que permitam ao poder público exercer o papel central desse processo. A escola humanista lebretiana – cuja influência na FAUUSP é inegável – já havia dado as bases para uma compreensão das cidades pela ótica da justiça social e da democratização do espaço urbanizado, e mesmo durante o regime militar, não obstante o autoritarismo, a tecnocracia e a burocratização, houve avanços no uso de técnicas e instrumentos de planejamento que hoje são aproveitados. A mobilização da sociedade civil – na qual se incluíam os urbanistas, com destaque – levou à aprovação da emenda popular pela Reforma Urbana na Constituinte de 88, e dos artigos referentes aos instrumentos urbanísticos. Conceitos como a função social da propriedade foram garantidos na lei maior, assim como a descentralização, com a municipalização da prerrogativa da gestão do território, e as aparências indicavam uma retomada dos rumos para o planejamento urbano e a arquitetura que haviam sido apontados, mais de vinte anos antes, no Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, no Hotel Quitandinha.

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Ainda mais porque, nesse mesmo período, a partir dos anos 90, consolidou-se o processo democrático e a ascensão ao Poder Municipal de partidos de esquerda que – capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores –, de repente, colocavam novamente em pauta o sonho de se fazer política urbana democrática e socialmente transformadora no Brasil. De Norte a Sul, em Fortaleza, Recife, em muitas cidades da Região Metropolitana de São Paulo, assim como na própria capital, em Curitiba, Porto Alegre e tantas outras cidades, prefeitos e suas equipes formadas por muitos arquitetos-urbanistas tentavam por em prática os novos instrumentos de que dispunham para promover o que se convencionou chamar, desde então, a Reforma Urbana: zoneamentos especiais para urbanização de favelas, para a regularização fundiária das áreas informais ocupadas, obrigatoriedade de implementação de mecanismos de participação, etc. Ao mesmo tempo, no âmbito do controle do uso e ocupação do solo de toda a cidade, novas tentativas de planejamento eram feitas, dentre as quais destacou-se o Plano Diretor de São Paulo, de 1991. Instrumentos de zoneamento inspirados na escola francesa, como o Direito de Preempção, o IPTU Progressivo, a limitação de coeficientes construtivos e a Outorga Onerosa, foram aplicados, numa perspectiva de regulação pública da produção do espaço urbano. Mas, também nesse ponto, apesar do otimismo que envolvia tais experiências, a aplicação de ferramentas de regulação pública diretamente inspirados de uma realidade completamente diferente – a dos Estados de Bem-Estar Social europeus –, se fosse passar pelo crivo de uma análise mais detalhada, indicaria uma série de entraves previsíveis. Resumidamente, trata-se do fato de que, no Brasil, nunca tivemos essa forma de Estado, submetidos que fomos aos padrões do patrimonialismo e de um Estado de elites, como mostrou Florestan Fernandes (e no âmbito urbano e da FAU, Csaba Déak). Na Europa do Pós-Guerra ou nos EUA do New Deal, a regulação estatal, em todos os campos, inclusive no da ocupação do território, era parte da solução keynesiana em voga para garantir a sobrevivência do sistema capitalista de produção após a crise de subconsumo dos anos 1930. Tratava-se de implantar uma economia de consumo de massa, para a qual era imprescindível a regulação pública para garantir a produtividade, mas sobretudo os padrões de consumo necessários. O “bem-estar social” passava também pela garantia da casa, e os esforços dos arquitetos e urbanistas do movimento moderno se encaixavam nessa lógica. Em suma, as economias do bem-estar social eram sistemas includentes, embora estruturados em torno da desigualdade e da luta de classes, nos quais a incorporação da maior parte da sociedade no mercado de consumo, em diferentes níveis de riqueza, era parte da receita (mantidas as taxas de desemprego e de pobreza admitidas pela teoria econômica). A forte regulação estatal incidia sobre os termos das relações de trabalho, sobre a oferta de educação e saúde, mas também para garantir uma mínima homogeneidade na estrutura urbana, para a boa fluidez de todo o sistema econômico e social.

Não é que não tenhamos, aqui, sentido a pressão do keynesianismo, que no pós-guerra era, inclusive, a ideologia aceita e difundida pelos organismos multilaterais. Porém, o que tivemos aqui foi um keynesianismo peculiar, como mostraram muitos autores, dentre eles Oliveira (2003) ou Mantega (1997)1, capaz de utilizar o intervencionismo estatal – em geral de forma autoritária – não para o estímulo à formação de uma sociedade de consumo de massa, mas para fortalecer um modelo econômico de concentração da renda baseado na desigualdade, em que se buscava o baixo custo de reprodução da força de trabalho, que não precisava constituir-se em mercado de consumo, por meio da chamada “industrialização com baixos salários” (Schwarz e, no âmbito do urbano e da FAU, Maricato).

É esta forma peculiar de desenvolvimento, em que se combinam os fatores do moderno e do atraso, o primeiro alimentando-se do segundo, e caracterizando o chamado subdesenvolvimentismo2, aliás, que explica grande parte da situação antagônica em que se encontram as cidades brasileiras hoje, vivendo importante salto de modernização, por sobre uma espantosa miséria social. Esta lógica sustentou o que

1 Oliveira, F. (2003) sobre o keynesianismo avant la lettre e a queima do Café, entre outros casos, e MANTEGA, G. (1997), sobre o modelo econômico do “desenvolvimentismo autoritário” do regime militar.

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chamo de “urbanização desigual”, pela qual, invariavelmente, os recursos públicos para a estruturação das cidades foram sistematicamente canalizados para os setores privilegiados ocupados pelas elites dominantes, como mostrou Flávio Villaça em seu já clássico trabalho (2000). Mais adiante, comentarei como a compreensão do subdesenvolvimento fez e faz parte da minha interpretação conceitual do urbano, e é apresentada neste trabalho, nos artigos iniciais desta compilação3.

Voltando à história recente do planejamento urbano e à implementação, pelas prefeituras, dos instrumentos urbanísticos, a questão era: seria possível esperar efeitos de muita eficácia na regulação da produção do espaço urbano, de instrumentos pensados em um contexto econômico da socialdemocracia europeia, com um Estado forte e plenamente portador do sentido do “público” como o “bem de todos”, em uma realidade de um Estado e uma sociedade patrimonialistas, que historicamente imiscuem o “público” com o privado e transformam o Estado em instrumento de proteção dos privilégios dos setores dominantes? Esta discussão foi colocada em um dois artigos apresentados nesta sistematização crítica da minha produção4.

Talvez esteja ai uma das explicações para a grande dificuldade que as mesmas prefeituras acima citadas passaram a ter, com o passar do tempo, para promover de fato transformações estruturais nos processo de urbanização desigual nessas cidades. Os avanços existiram, mas foram até certo ponto frustrantes, embora tenham permitido a consolidação de processos de gestão mais democráticos, e a paulatina incorporação da temática da exclusão socioespacial e da precariedade habitacional na agenda política brasileira. Tal desafio tornava-se ainda mais difícil porque, a partir dos anos 90, o país foi tomado pela onda de expansão neoliberal da chamada globalização, a partir do receituário do Consenso de Washington, cujos efeitos desastrosos na economia são hoje bastante conhecidos: forte desregulação e enfraquecimento do papel do Estado, privatizações e abertura do mercado interno para o capital internacional, desnacionalização da indústria, abandono das políticas públicas estruturais em favor de políticas assistencialistas e de remediação, entre outros.

No campo do urbanismo, receitas prontas de “grandes projetos de mercado” apresentavam-se aos prefeitos como uma tábua de salvação frente às dificuldades acima citadas. Sustentadas pelo grande capital, tinham roupagem de modernidade e efeito visual inestimável para fins eleitorais, mas continuavam ainda mais concentradoras dos investimentos públicos nos setores já privilegiados das cidades, exacerbando a exclusão socioespacial. Ironicamente, em mais uma faceta das contradições típicas da modernização em uma sociedade que ainda se alimenta do atraso, é um dos instrumentos do Estatuto da Cidade, o das Operações Urbanas Consorciadas – capciosamente inserido no Estatuto justamente pelos setores conservadores do mercado imobiliário – que permitiu alavancar boa parte desses grandes projetos urbanísticos. Sobre esse processo, escrevi capítulo de livro organizado por Francisco de Oliveira, Cibele Risek e Ruy Braga, que apresento mais adiante neste trabalho5.

Não obstante certa tortuosidade na aplicação de políticas urbanas democráticas nas cidades, os avanços em relação ao período do autoritarismo não cessaram. A criação do Ministério das Cidades, em 2002, e as ações decorrentes, como a implantação do Conselho das Cidades (com participação dos movimentos populares), a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e a estruturação de uma política de financiamento envolvendo municípios e estados, significaram saltos importantes na luta pela reforma urbana.

Além disso, um dos resultados mais importantes desse processo, e que se relaciona diretamente aos cursos de Arquitetura e Urbanismo e ao ensino do planejamento urbano, é o de que pouco a 3 “A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil” e “Desafios para a construção de uma teoria crítica a partir da

perif-eria”, neste volume.

4 Ver “A efetividade da Implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial”, neste volume.

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pouco, em decorrência destas transformações, foi-se desfazendo a cisão extremamente perniciosa que havia ocorrido entre o planejamento urbano e a chamada “questão habitacional”. De fato, talvez como decorrência dos anos de autoritarismo, tornara-se mais interessante politicamente se, de forma tecnocrática, se associasse o planejamento urbano mais a regras de uso e ocupação do solo do que ao conjunto das dinâmicas sociais e econômicas que compõem a produção do espaço urbano. Tratar do déficit habitacional havia se tornado uma espécie de disciplina à parte, geralmente abarcada por setores “de esquerda” na academia, afastados da disciplina do planejamento, subliminarmente alimentando a noção de que este problema pudesse ser independente da questão urbana mais ampla. Um fenômeno curioso no âmbito da arquitetura e do urbanismo, cujas disciplinas curiosamente nunca deixaram de ser mantidas unidas no currículo universitário, e que ia de encontro à própria tradição da tão influente escola modernista europeia, que em sua origem teve, como sabemos, a questão da moradia popular no cerne de suas discussões.

De certa forma, manter o planejamento como a ação de regulação da cidade – e a arquitetura como a arte de projetar edificações para os mais ricos – permitia que se tratasse apenas da cidade “que funcionava” e que todos viam, e não da “não-cidade” de milhares de excluídos que o modelo econômico fazia crescer a cada ano. As periferias, não planejadas e sem arquitetura, tornavam-se a regra, embora compusessem uma espécie de “cidade invisível”, um termo frequentemente usado por Ermínia Maricato.

Um dos exemplos mais cristalinos desse processo de separação entre planejamento urbano e a problemática habitacional talvez esteja no plano de zoneamento do município de São Paulo, de 1972. Neste, ficou clara a enorme diferença entre uma hipertrofiada regulamentação para a cidade “formal”, que cabia aproximadamente no chamado “centro expandido”, aquela em que estavam os investimentos em infraestrutura e equipamentos, e que foi dividida em um sem-número de zonas precisamente detalhadas, e o “abandono regulatório” do restante. Em linhas gerais, para o “resto” da cidade, adotou-se uma única categoria de zoneamento (as Z2), imprecisas e pouco restringentes, que permitiram o crescimento “sem controle” das periferias. Flávio Villaça, em vários de seus textos, trabalha a maneira como o termo “a cidade” se aplica, no senso comum alimentado pelo aparato ideológico da grande mídia, apenas à cidade formal, em uma generalização do particular que permite “esquecer-se” da cidade que não interessa aos setores dominantes.

Pois bem, o avanço das discussões em torno da Reforma Urbana e da democratização das cidades, permitiu que essa ruptura fosse pouco a pouco desfeita. É claro que ajudou para isso o fato de que, em certo momento, não se pôde mais “tapar o sol com a peneira”. A desigualdade urbana gerada pelo modelo de urbanização desigual tornou-se grande demais para ser invisível. Cerca de 40% da população das grandes cidades vive hoje na informalidade, em algumas das modalidades resultantes da urbanização com baixos salários (Maricato, 1997), em favelas, loteamentos irregulares ou clandestinos, cortiços, ou mesmo nas ruas. Isso sem falar da parcela importante que vive dentro da legalidade, mas ainda assim em bairros e casas bastante precários. Entender a “cidade” sem enxergar tal contingente populacional, enquanto os noticiários são regularmente invadidos pelas tragédias – enchentes, deslizamentos, incêndios – que se abatem invariavelmente sobre ele tornou-se um exercício de cinismo por demais inaceitável. Politicamente, a questão habitacional se reinseria na agenda eleitoral, e com isso tornava-se evidente, inclusive para as novas gerações de estudantes, que a “questão urbana” se referia a um todo, no qual o planejamento da cidade deveria incorporar, talvez até como seu problema central, a problemática da moradia. De certa forma, a obrigatoriedade de realização de Planos Diretores, e sua vinculação à aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade – aspectos centrais dos avanços de que falamos – foram elementos importantes nesse processo transformador. Mais do que isso, hoje trabalha-se com a obrigatoriedade, para a obtenção de recursos federais, da realização de Planos Locais de Habitação de Interesse Social, especificamente voltados, dentro da política de planejamento dos municípios, para a questão do déficit habitacional.

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cidade, processo para o qual o conhecido plano “Favela Bairro”, realizado no Rio de Janeiro a partir de 1994, teve papel importante. Esforços para uma regularização fundiária mais ampla passaram a fazer parte da agenda política dos municípios, equipamentos de educação e saúde chegaram a ser implantados em número mais significativo, por exemplo em São Paulo, em áreas pobres de periferia. Assim, o Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, cujos instrumentos deveriam dar aos municípios condições de adquirir terras urbanizadas subutilizadas para destiná-las a fins sociais, poderia ser visto como desencadeador de um processo efetivamente em curso para a reversão da injustiça urbana no Brasil.

Porém, ao mesmo tempo, e reforçando o antagonismo de que falamos aqui, hoje há de se constatar que o mesmo Estatuto da Cidade foi, até agora, de quase nenhuma efetividade. O desequilíbrio urbano brasileiro continua inalterado, o déficit habitacional indecentemente alto, a precariedade urbana continua matando muitos a cada chuva. As cidades médias e grandes vivem verdadeiro colapso estrutural, não suportando mais a opção reiterada por políticas elitizantes, e o caso da mobilidade urbana e da opção sistemática pelo incentivo ao automóvel em detrimento do transporte público de massa, que as jogas em um total imobilismo, é o exemplo mais gritante. Embora o Estatuto da Cidade tenha dez anos, um instrumento como o IPTU Progressivo, que permitiria combater os lotes vazios nas áreas centrais, sequer foi regulamentado na maior cidade do país. Não há no Brasil, pode-se dizer, nenhum município que tenha de fato aplicado a totalidade dos instrumentos do Estatuto da Cidade, de forma sistêmica, e assim adotado uma postura política de enfrentamento real da desigualdade socioespacial.

A questão é, de fato, política: adotar tal postura significaria encarar de frente os poderosos interesses que norteiam a organização social e territorial no Brasil, a saber, a defesa da propriedade e a busca do lucro. Significaria enfrentar efetivamente aquilo que Ermínia Maricato denominou o “nó” da produção do espaço: a disputa pela propriedade da terra, que nos acompanha desde a colônia, tratada também em um capítulo deste trabalho6.

Embora a aplicação dispersa de alguns instrumentos do Estatuto em algumas cidades possa ter servido como elemento remediador da tragédia urbana, não temos, ainda, motivos para comemorações. Em que pese a luta dos movimentos populares e demais grupos organizados da sociedade civil, os avanços alcançados parecem não ser suficientes para gerar as profundas transformações necessárias para mudar a ordem estamental que gera a desigualdade urbana e a cidade da intolerância.

Pior do que isso, o abandono a que foram deixadas as regiões mais pobres de nossa cidade não significa que, do outro lado da balança, as áreas mais privilegiadas se beneficiem, quanto a elas, de uma planejamento urbano de melhor qualidade. Em outras palavras, e como é comentado em alguns dos textos apresentados neste trabalho7, a uma “má” urbanização dos assentamentos precários, não se contrapõe uma “boa” urbanização nos bairros mais ricos. O modelo urbano brasileiro da cidade “que funciona” se baseia em práticas ambientalmente destrutivas, e por isso não pode servir de modelo. Em todas as grandes metrópoles brasileiras, impera uma liberalidade impressionante para com o mercado imobiliário, que funciona sem regulação efetiva. A verticalização desordenada, a produção intensiva de shopping centers e outros centros de negócios, de empreendimentos habitacionais fortificados que renegam a rua e a cidade, tudo sob o único critério da lucratividade, são a marca das nossas cidades. Impermeabiliza-se o solo, destroem-se os córregos, engolem-se os bairros assobradados, configurando um modelo de urbanização nas grandes cidades que, para aumentar a escala do desastre, é seguido cegamente em cidades médias e pequenas, que ainda teriam todas as condições para promover uma urbanização sob novos paradigmas. Neste cenário de absoluta hegemonia da iniciativa privada, “grandes eventos” tornaram-se justificativa inquestionável de “revitalização urbana”, e hoje muitas das nossas cidades não são mais planejadas pelos seus governantes, mas pelos altos mandatários de

6 Ver “Onde o arcaico ainda dá as cartas: notas sobre a questão fundiária no Brasil no início do séc. XXI” e “Notas sobre a visão marxista da produção do espaço urbano e a questão da ‘renda da terra’”, neste volume.

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entidades esportivas internacionais, que aliás ninguém no Brasil elegeu. Por essa razão, o planejamento urbano brasileiro hoje deve justificar-se por permitir que cidades médias gastem bilhões de Reais para a construção de estádios para a Copa do Mundo de 2016 (e, é claro, junto a eles, vistosos bairros de negócios) sem que tenham sequer time jogando na primeira divisão do esporte nacional.

A política urbana hoje parece ser resultado da soma de obras descomprometidas com o processo de planejamento. Como já mostrou Flavio Villaça, os planos cumprem o papel do discurso mas não orientam nem regulam os investimentos. Os fatores que os regulam são os interesses do mercado imobiliário, de empreiteiras, a prioridade às obras viárias ou de grande visibilidade eleitoral. A prioridade a políticas públicas arcaicas e concentradoras da renda, as grandes obras pouco urgentes, o descaso com questões básicas como o saneamento e a informalidade habitacional, ainda são a marca da grande maioria das políticas municipais. Sintomaticamente, dentro da lógica da “modernização conservadora”, a capital brasileira que mais vê aumentar seus “problemas” urbanos, como a insegurança, a informalidade e a segregação espacial, é Vitória – ES, justamente aquela que mais se “beneficia” da globalização econômica, sendo a principal de saída da produção do agrobusiness e da mineração brasileiros.

Por outro lado, no que diz respeito ao enfrentamento do déficit habitacional, o momento também é de antagonismos. O crescimento econômico interno associado a uma maior preocupação política com a questão da moradia para os mais pobres levaram a uma solução ambígua: uma política de produção em massa de moradias, apoiada no mercado da construção civil, como forma, também, de promover uma ação anticíclica, em relação à crise econômica externa. Dessa opção decorreu um aquecimento sem precedentes do setor da construção para uma faixa de renda média e média baixa, que não era até então objeto de interesse do mercado. Também permitiu estabelecer uma política de subsídios inédita para financiar a moradia para as faixas de renda muito baixas. Porém, ao mesmo tempo, características do patrimonialismo, como a permissividade para uma ação demasiadamente livre e desregulada do mercado da construção, ou como a falta de controle sobre o fundiário, (que gerou um processo especulativo e uma alta de preços consequente), associados a uma autonomia as vezes talvez ampla demais dos municípios na gestão do território, produziram resultados ambíguos: ao mesmo tempo que se produziram mais de um milhão de unidades em poucos anos, em um ritmo mais compatível com o déficit a suprir, surgiram conjuntos distantes da cidade, com infraestrutura e equipamentos insuficientes, com qualidade urbanística e arquitetônica geralmente sofríveis, constituindo um passivo ambiental e urbano que poderá cobrar seu preço em algumas décadas. No Chile e, sobretudo, no México, políticas de produção em massa baseadas em absoluta liberalidade do mercado da construção levaram a problemas pelos mesmos motivos, hoje conhecidos como a problemática dos “con techo” no Chile, e vista em empreendimentos que chegam a 165 mil unidades habitacionais (gerando cidades de 400 mil habitantes!), distantes de mais de 70 km do centro, como em Zumpango, no México.

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Isto significa, do ponto de vista político, um confronto entre uma tendência desenvolvimentista em nova roupagem – que de certa forma o “Lulismo” e agora a gestão Dilma Roussef, tentam vestir – e os traços mais tradicionais e arcaicos de uma sociedade que não tolera a pobreza (ou melhor, alimenta-se dela), e menos ainda os ventos eventuais de uma real democratização econômica (e social). O debate está colocado: não são raras as divergências entre importantes escolas econômicas nacionais sobre as bases do processo de crescimento econômico vivido no Brasil na última década. A polêmica gira em torno do questionamento sobre a real dimensão desse crescimento, e sobre se seus impactos são de fato sustentadores de mudanças de nossas estruturas sociais ou apenas reforçam a dinâmica predatória com ares de modernização.

Diante de tal cenário, as indagações dos meus estudantes, que comentei ao iniciar este texto, não soam mais tão fantasiosas. Como um estudante de urbanismo que se forma hoje no Brasil deve e pode encarar o papel da sua profissão, frente a antagonismos tão complexos como os analisados neste texto? Para piorar, deve-se observar que a força do mercado e o fetichismo dos valores da realização capitalista levam os arquitetos recém-formados a querer trilhar, com mais facilidade, os sedutores caminhos da “arquitetura de mercado”, mais do que o assustador – mas tão instigante – enfrentamento da questão da exclusão urbana. Porém, a verdade é que a profissão de urbanista não tem mais como se furtar ao desafio de tentar resolver nossa indecente desigualdade urbana. É por isso que escrevi, em 2010, artigo destinado aos jovens arquitetos e urbanistas, em que justamente apontava para os desafios que a eles se apresentavam face à realidade urbana brasileira atual, para além do festejado mundo daqueles escritórios de arquitetura que atuam no – restrito – mercado formal da construção civil. Esse artigo também é parte deste trabalho8.

* * *

O presente trabalho, dentro das exigências para a obtenção do título de Livre Docente da Universidade de São Paulo, apresenta uma sistematização da minha reflexão acadêmica recente, cujo fio condutor apresentei, de forma resumida, na introdução acima.

É importante destacar que se trata da produção posterior à minha Tese de Doutorado, que foi publicada em 2007 sob o título “O mito da Cidade-Global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano” (Vozes, 2007). Com uma desconstrução da teoria das cidades-globais, em especial aquela difundida por autores como Borja, Castells e Sassen, a partir do festejado modelo urbano de Barcelona 92, mostrei como o conceito não se aplicava, se tomados com rigor os parâmetros característicos da “cidade-global” apresentados por esses autores, à cidade de São Paulo. Mostrei como, em compensação, montava-se um discurso ideológico que defendia a “necessidade” de adoção de certas políticas públicas urbanas – e sobretudo a destinação de recursos públicos importantes – para garantir o status de cidade global à capital paulista. Um rótulo que, na verdade, de nada alterava as condições de subdesenvolvimento da cidade, a forte desigualdade social e a intensa segregação econômica-espacial, mas propiciava vantagens e lucros fabulosos, à custa de investimentos públicos, aos setores econômicos dominantes na produção do espaço, tradicionais e bastante arcaicos, capitaneados pelo chamado mercado imobiliário. As reflexões aqui sistematizadas partem, portanto, desse ponto, e já consideram consolidada a crítica à importação – alavancada por forte processo ideológico – do modelo do planejamento estratégico, com todas suas consequências. A maioria dos textos apresentados é recente, e fazem parte de artigos ou capítulos de livros, alguns publicados, outros ainda inéditos. Em alguns casos, contei com a colaboração de orientandos ou pesquisadores do LabHab, na compilação de dados, na redação de assuntos mais específicos dos textos, e nesses casos eles aparecem como co-autores. No caso dos textos escritos com Ermínia Maricato e Karina Leitão, trata-se de uma redação compartilhada.

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Um dos aspectos interessantes, ao se observar essa produção com algum distanciamento, é o fato de que nós, urbanistas, somos levados a refletir uma gama bastante variada de assuntos, todos eles, evidentemente, inerentes ao processo de produção do espaço. Por isso, uma das intenções desta sistematização foi a de mostrar tal abrangência, organizando os textos não por ordem cronológica, mas por assuntos.

O primeiro deles diz respeito ao embasamento conceitual que, de certa forma, será retomado em todos os demais. Trata-se da relação entre o urbano e a formação da sociedade e do Estado brasileiros, a partir da transposição para a dimensão espacial e urbana da escola sociológica que cunhou modelos interpretativos como do subdesenvolvimento e da modernização conservadora. Na minha formação, fui bastante influenciado por professores que, na FAUUSP, faziam tal aproximação: com a economia, o professor Csaba Deák, que redigia seu texto “Acumulação entrava da no Brasil e a crise dos anos 80” (1991) justamente quando estava no quarto ano da graduação e, com a sociologia econômica e os grandes intérpretes da formação nacional, a Profa. Ermínia Maricato, que também escreveu “Metrópole na periferia do capitalismo”, justamente parafraseando Roberto Shwarz9, no momento em que fazia minha pós-graduação.

Assim, a primeira parte deste volume, “A formação urbana no subdesenvolvimento”, traz três textos um pouco mais antigos, que serviram para sistematizar as bases dessa reflexão: “A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil”, escrito em 2005, e “Desafios para a construção de uma teoria crítica a partir da periferia”, de 2007.

O terceiro texto, intitulado “São Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo ‘à brasileira’”, produzido para a Revista Estudos Avançados do IEA-USP em 2011, apresenta a discussão mais atualizada sobre o tema, e lança elementos da pesquisa que pretendo desenvolver a partir de agora, após a livre-docência. A discussão que nele apresento, sempre baseada nos mesmos elementos de compreensão do que chamo de um urbanismo do subdesenvolvimento, tenta entretanto ir além dessa interpretação. Nele, como se verá, busco entender como as dinâmicas de produção do espaço urbano no Brasil, que ditam a ocupação do território, se alimentam também - e talvez de forma intransponível - em uma cultura sócio urbana que anda carrega heranças do passado colonial, como o racismo, a intolerância à pobreza e a intransigente recusa da cidade democrática como modelo urbano.

O segundo tema abordado é aquele que, como comentei anteriormente, é o gargalo mais complexo de resolver no âmbito do urbanismo no Brasil: a questão da terra. Os dois textos apresentados são, neste caso, muito recentes, um deles inédito. Há bastante tempo que acalentamos, no LabHab, a ideia de juntar e sistematizar a produção, bastante densa mas um pouco dispersa, sobre a temática fundiária, feita ou no laboratório, ou por pesquisadores associados a ele. Este ano, consegui, junto com Ermínia Maricato e Karina Leitão, fazer esse trabalho, e redigir um texto introdutório que pudesse fazer um balanço da questão da terra nos dias de hoje. É esta introdução, intitulada (provisoriamente) “Onde o arcaico ainda dá as cartas: notas sobre a questão fundiária no Brasil no início do séc.XXI”, ainda não publicada, que apresento aqui. O segundo texto também é recente, mas por outra razão: desde que iniciei minha carreira acadêmica, me deparo com uma polêmica que instiga urbanistas, geógrafos e pensadores marxistas de todas as áreas. A questão da “renda da terra” em Marx e de como ela pode ser, ou não, uma matriz explicativa aplicável à realidade fundiária atual, e à brasileira em especial. Nunca havia escrito nada a respeito pois, confesso, era uma discussão para mim bastante árdua, e de certa forma pouco frutífera. Porém, ao oferecer a disciplina de Pós-Graduação “Desenho do ambiente urbano”, neste ano de 2012, percebi que a confusão não era só minha, e que os estudantes veriam com bons olhos uma sistematização de tal polêmica, pelo olhar dos urbanistas, que no meu entender, nunca havia sido feita. Disso resultou o texto didático “Notas sobre a visão marxista da produção do espaço urbano e a questão da ‘renda da terra’”.

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A partir dessas duas discussões, o trabalho começa a abordar alguns dos diversos temas de discussão a que sou confrontado, nas atividades docentes ou de pesquisa e extensão, no LabHab. O terceiro tema, “Sobre os impasses do estatuto da cidade e a implementação de seus instrumentos: O caso das ZEIS e das Operações Urbanas Consorciadas”, é o do já comentado antagonismo entre a aprovação do Estatuto da Cidade e de instrumentos “progressistas” de planejamento e o impasse na sua aplicação efetiva. Apresento primeiramente um capítulo de livro, “A efetividade da Implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial”, de 2001, que estuda, seis anos após a aprovação do estatuto, o caso específico das ZEIS, provavelmente o instrumento mais “radical” de promoção da reforma urbana que os municípios brasileiros hoje dispõem, mas que concretamente tem uma aplicação pouco efetiva (ainda?). O segundo texto, o mais antigo desta sistematização, escrito em 2002 com Ermínia Maricato, aborda o polêmico instrumento das Operações Urbanas Consorciadas, em um momento em que talvez ainda houvessem esperanças de que ele pudesse ser utilizado efetivamente para a Reforma Urbana, fato que não se verificou posteriormente.

O quarto tema abordado está muito em voga, é o da questão habitacional e urbanística nas áreas centrais das cidades brasileiras. Está em voga por, provavelmente entre outras, duas razões: a primeira, porque com a falta de terras disponíveis, as áreas centrais, esquecidas durante anos e deixadas à sua vocação popular, vêm se tornando um novo espaço de forte interesse do mercado imobiliário. Disso, e do conflito gerado por esse avanço por sobre regiões que consolidaram nesse período de abandono seu perfil de uso popular, decorre uma intensa dinâmica urbana, em muito marcada pela ação – do meu ponto de vista bastante adequada – dos movimentos de moradia, que ocupam edifícios abandonados que não cumprem sua função social. As reintegrações de posse marcadas pela violência, ou ainda planos de intervenção urbanística claramente marcados pelo elitismo e o favorecimento dos interesses privados aparecem frequentemente no noticiário e dão à questão toda sua atualidade. A segunda razão é justamente porque hoje no Brasil há um número de unidades vazias em áreas centrais, cerca de cinco milhões, quase o equivalente ao déficit habitacional total, que gira em torno de seis milhões de unidades. Escrevi vários textos a respeito, inclusive em função de pesquisas específicas sobre o assunto. Porém, em 2011, a publicação, por Felipe Francisco de Souza, de seu livro “A batalha pelo centro de São Paulo” (Paulo´s Editora, 2011), que denunciava os lastimáveis mecanismos do projeto urbanístico “Nova Luz”, me deu a oportunidade de escrever, para o prefácio que ele me convidou a fazer, uma reflexão mais sistematizada da questão. É o texto que apresento neste trabalho.

Na parte seguinte, a quinta, apresento uma discussão sobre “Os impasses da política urbana: gestões ‘democráticas e participativas’ no contexto da globalização”. Trata-se novamente da discussão sobre os entraves a se fazer planejamento urbano no contexto do subdesenvolvimento e da modernização conservadora. Desta vez, apresento dois textos que têm uma sequencia cronológica interessante: o primeiro deles, “Gestão democrática e participativa: um caminho para cidades socialmente justas?”, de 2003, foi escrito no início da chamada “Era Lula”, quando as experiências de gestões de esquerda nos municípios já apontavam para alguns problemas, mas as esperanças de mudanças ainda eram fortes. Utilizei a experiência de uma pesquisa do LabHab para dar ao texto um caráter propositivo, em torno de preceitos de planejamento, como a proximidade local e a participação, que nos pareciam bastante efetivos. O segundo texto é um capítulo de livro que bastante me honrou, organizado por Francisco de Oliveira, Cibele Rizek e Ruy Braga, “Hegemonia as avessas” (Boitempo, 2010), e que justamente fazia uma análise crítica do governo Lula, quando, na opinião de Oliveira, “não são mais os dominados quem consentem na sua própria exploração. São os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, à condição de que a “direção moral” não questione a forma da exploração capitalista” 10. No texto “Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratização das cidades no Brasil e os riscos de um ‘urbanismo às avessas’”, discuto a dimensão que o impasse entre a reforma urbana e o avanço do “urbanismo de mercado” tomou, e a dificuldade que isso passou a representar para as gestões ditas “democráticas e populares”.

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O sexto tema abordado é o da problemática habitacional e o cenário urbano no Brasil de hoje, sob os impactos do aquecimento do mercado da construção civil e do Programa Minha Casa Minha Vida, comentados acima. O texto, “Que cidade queremos para as gerações futuras? O trágico quadro urbano no Brasil do século XXI: cidades cindidas, desiguais e insustentáveis”, é o primeiro capítulo do livro recém-lançado pelo LabHab, intitulado “Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano”, que se propõe a lançar uma ampla e crítica discussão sobre o cenário urbano atual, e o impacto urbanístico e ambiental dos grandes conjuntos que vêm sendo construídos país afora, para os segmento de renda dito “econômico”.

O sétimo e penúltimo tema “O papel do arquiteto-urbanista no atual contexto brasileiro”, trata da atuação desse profissionais face a tal cenário, já amplamente comentada nesta introdução, e foi escrito para os estudantes da área. Publicado em 2011 pelo Portal Vitruvius, “Perspectivas e desafios para o jovem arquiteto no Brasil: Qual o papel da profissão?” teve o mérito de despertar grande polêmica e um número significativo de leituras e apoio, na era da divulgação de textos pela internet.

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A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana

no Brasil

Publicado em Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005.

As cidades brasileiras são hoje a expressão urbana de uma sociedade que nunca conseguiu superar sua herança colonial para construir uma nação que distribuísse de forma mais equitativa suas riquezas e, mais recentemente, viu sobrepor-se à essa matriz arcaica uma nova roupagem de modernidade “global” que só fez exacerbar suas dramáticas injustiças. Pesquisas de várias instituições indicam que as grandes metrópoles brasileiras têm em média entre 40 e 50% de sua população vivendo na informalidade urbana1, das quais de 15 a 20% em média moram em favelas (chegando a mais de 40% em Recife). E não seria exagero afirmar que a questão do acesso à propriedade da terra está no cerne dessa enorme desigualdade socioespacial.

A Lei das Terras e o surgimento da propriedade fundiária

Até meados do século XIX, a terra no Brasil era concedida pela Coroa – as sesmarias – , ou simplesmente ocupada2. Os municípios tinham o Rossio, terras em que se implantavam as casas e pequenas áreas de produção, sem custo. Assim, a terra ainda não tinha valor comercial, mas essas formas de apropriação já favoreciam a hegemonia de uma classe social privilegiada. A Lei das Terras, de setembro de 1850, transformou-a em mercadoria, nas mãos dos que já detinham “cartas de sesmaria” ou provas de ocupação “pacífica e sem contestação”, e da própria Coroa, oficialmente proprietária de todo o território ainda não ocupado, e que a partir de então passava a realizar leilões para sua venda. Ou seja, pode-se considerar que a Lei de Terras representa a implantação da propriedade privada do solo no Brasil. Para ter terra, a partir de então, era necessário pagar por ela.

Para Maricato (1997), foi entre 1822 e 1850, nas décadas anteriores à aprovação da Lei das Terras, que se consolidou de fato o latifúndio brasileiro, através da ampla e indiscriminada ocupação das terras, e a expulsão dos pequenos posseiros pelos grandes proprietários rurais. Tal processo se deu muito em função da indefinição do Estado em impor regras, decorrente das disputas entre os próprios detentores do poder. Segundo a autora, “a demorada tramitação do projeto de lei que iria definir regras para a comercialização e propriedade da terra se devia ao medo dos latifundiários em não ver ‘suas’ terras confirmadas”. O resultado dessa disputa foi o fim do projeto liberal de financiamento de uma colonização branca de pequenas propriedades, baseada nos colonos europeus, por meio da venda das terras do Estado3. No lugar, promoveu-se uma demarcação da propriedade fundiária nas mão dos grandes

1 No Brasil, entende-se por esse termo habitações de favelas, cortiços e loteamentos clandestinos. A informalidade urbana diz respeito à inadequação físico-construtiva e ambiental da habitação e/ou do entorno – construções precárias, terrenos em áreas de risco ou de preservação ambiental, área útil insuficiente para o número de moradores, etc., à ausência de infraestrutura urbana – saneamento, água tratada, luz, acessibilidade viária, etc., ou ainda à ilegalidade da posse da terra ou do contrato de uso.

2 Sobre a Lei das Terras e as origens da propriedade da terra no Brasil, que desenvolveremos nos parágrafos que seguem, foram usados como referência: MARICATO, Ermínia. “Habitação e Cidade”, São Paulo: Atual Editora, 1997, WHITAKER FERREIRA, Francisco. “L’homme exclu et le droit de proprieté”, paper para a Assembléia Nacional Francesa e a Missão Interministerial para a Celebração do Centenário da Lei 1901, Paris, 25 de junho de 2001, e MARTINS, José de Souza. “O Cativeiro da Terra”, São Paulo:Livraria Editora de Ciências Humanas, 1978.

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latifundiários, que nesse processo conseguiram inclusive apropriar-se de muitas terras do Estado. E os imigrantes, em vez de colonos de pequenas plantações, serviram de fato como mão de obra nos grandes latifúndios, substituindo a mão de obra escrava. Pois o processo político de aprovação da Lei das Terras tem muito a ver com o fim do tráfico de escravos.

Como se sabe, o fim da escravidão no Brasil está mais ligado aos fortes interesses comerciais ingleses, a potência hegemônica da época, do que a ideais abolicionistas. A expansão comercial imposta pela Revolução Industrial fez com que aumentasse o interesse dos ingleses sobre o comércio brasileiro, e as pressões para impedir qualquer restrição a seus produtos e garantir o aumento do mercado, o que incluía também o fim da mão de obra escrava e a implantação do assalariamento. Segundo Boris Fausto (1994), entre 1870 e 1873, os produtos ingleses eram responsáveis por 53,4% do valor total das importações brasileiras.

A proibição do tráfico negreiro, em 1831, não impediu a continuidade do comércio de escravos, que entretanto tornavam-se mais caros para os grandes produtores agrícolas, indicando a solução da mão de obra imigrante. Foi somente em 1850, após a ameaça concreta, feita um ano antes pelos ingleses, de fechamento dos portos brasileiros, que uma lei coibiu definitivamente o tráfico.

Restava então aos grandes produtores cafeeiros recorrer à mão de obra “livre” e assalariada dos imigrantes. Nesse sentido, a Lei das Terras coibiu, como vimos, a pequena produção de subsistência, dificultando o acesso à terra pelos pequenos produtores, inclusive imigrantes, e forçando seu assalariamento nas grandes plantações. Entretanto, também com relação a estes foi estruturado um sistema de endividamento – as “parcerias” – pelo qual os trabalhadores recém-chegados abriam crédito com seus patrões para a compra dos bens que necessitavam, chegando a um ponto em que o pagamento dessas dívidas tornava-se impossível. Na prática, tal dependência instituiu um sistema de pseudo-escravidão para esses trabalhadores (que aliás perdura até hoje em algumas regiões do Brasil), que por muitos anos4, até a abolição, conviveram nas fazendas com a mão de obra escrava.

Outro aspecto decorrente da Lei das Terras, embora menos significativo que sua função de promover a implantação do trabalho assalariado, é que antes da sua aprovação, o “capital” dos grandes latifundiários era medido pelo número de escravos que cada um detinha, fosse no campo ou nas cidades5. A abundância de terras, a dificuldade para ocupá-las e a condição colocada para sua concessão de que elas se tornassem produtivas, tornavam a posse de escravos mais importante do que a da terra em si. Em suma, a riqueza dos poderosos era medida pelos seus escravos, que serviam – o que não era o caso da terra, antes de 1850 – até como objeto de hipoteca para a obtenção de empréstimos. Como lembra Maricato (1997), não foi por acaso que a Lei das Terras foi promulgada no mesmo ano – na verdade, em um intervalo de poucas semanas – do que a proibição definitiva do tráfico. Está claro que, em meio a um processo político-econômico em que se restringia o sistema de escravidão, a Lei das Terras serviu para transferir o indicativo de poder e riqueza das elites de então: sua hegemonia não era mais medida pelo número de escravos, mas pela terra que possuía, agora convertida em mercadoria, e o trabalho assalariado podia então se expandir no Brasil, respondendo às pressões inglesas.

4 É verdade que o sistema de parcerias sucumbiu à pressão dos imigrantes, notadamente após a revolta de Ibicaba, em 1857, quando imi-grantes alemães se levantaram contra o Senador Campos Vergueiro, que havia instituído em suas fazendas pela primeira vez o sistema de parceria. A repercussão internacional foi importante o suficiente para fazer com que o governo alemão proibisse a emigração de alemães para o Brasil. Ainda assim, novas formas de exploração forma estabelecidas, como a das “colônias”, pseudo-independência dada aos trabal-hadores dentro das grandes fazendas.

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Evidentemente, tal situação consolidou a divisão da sociedade em duas categorias bem distintas: os proprietários fundiários de um lado6, e do outro, sem nenhuma possibilidade de comprar terras, os escravos, que seriam juridicamente libertos apenas em 1888, e os imigrantes, presos à dívidas com seus patrões ou simplesmente ignorantes de todos os procedimentos necessários para obter o título de propriedade. A presença de ambos já era na época considerável: se o país tinha, em 1700, cerca de 3 milhões de habitantes, o tráfico negreiro alterou bem a situação, e em 1850 somente os escravos já eram cerca de 4 milhões. Quanto aos imigrantes europeus e japoneses, sua vinda começou efetivamente na década de 1840, intensificando-se após 1850. Entre esse ano e o de 1859, cerca de 110 mil imigrantes chegaram ao país, parte deles concentrando-se, vale dizer, nas cidades. Em São Paulo, por exemplo, dos 130 mil habitantes em 1895, 71 mil eram estrangeiros7. Mas, a terra como “mercadoria” não ficou por causa disso mais disponível para essa massa de população. Como vimos, a distribuição das terras no Brasil se deu, para os senhores de então, em um sistema com muito pouca, ou nenhuma concorrência.

As cidades na economia agroexportadora

Mas se o processo acima descrito ocorre essencialmente no meio rural, é importante frisar que a Lei das Terras teve também forte influência nas dinâmicas de apropriação da terra urbana. Ermínia Maricato lembra que a lei “distingue, pela primeira vez na história do país, o que é solo público e o que é solo privado” (Maricato, 1997:23). Assim, torna-se possível, inclusive, regulamentar o acesso à terra urbana, definindo padrões de uso e ocupação, que como veremos, também iriam servir para garantir, ao longo do tempo, o privilégio das classes dominantes. Ou seja, nas cidades como no campo, a estrutura institucional e política de regulamentação do acesso à terra foi sempre implementada no sentido de não alterar a absoluta hegemonia das elites.

Analisando mais de perto a questão urbana, vale lembrar, em primeiro lugar, o argumento apresentado pelo sociólogo Francisco de Oliveira8, para quem é errada a ideia, bastante comum na historiografia nacional, segundo a qual na economia brasileira agroexportadora da passagem do século XIX para o XX, o meio rural predominava sobre o meio urbano. Como lembra o autor, se a sede da produção agroexportadora era necessariamente o campo, o controle de sua comercialização, entretanto, se dava essencialmente nas cidades. O papel central das cidades não acontecia apenas porque a efetivação das exportações necessitasse de atividades urbanas. Segundo o autor, “porque a produção foi fundada para a exportação, a cidade nasce no Brasil antes mesmo do campo. Daí o caráter político-administrativo das cidades no Brasil desde a Colônia, o que foi confundido...como um predomínio do campo sobre a cidade”. Entretanto, as cidades brasileiras da época cafeeira tinham a característica, que iria mudar após a consolidação da industrialização, de serem um espaço urbano onde não ocorria nem o mercado (já que o mercado real da economia era o da exportação agrícola) nem a própria produção (que se dava no campo).

Assim, antes mesmo do início da industrialização, a cidade do Rio de Janeiro já atingia um tamanho significativo, ainda no século XIX, por sua condição de capital, e São Paulo, como veremos, se consolidava como sede administrativa da produção cafeeira paulista. O fim do tráfico e a libertação de escravos antes mesmo da abolição, geraram um afluxo para a cidade do Rio, que em 1890 tinha cerca de meio milhão de habitantes. Com o advento da república, consolidou-se ainda mais seu crescimento, de tal forma que, na virada do século retrasado, a cidade se mantinha a mais populosa do país, com cerca de 600 mil habitantes, mais do que o dobro de São Paulo ou Salvador.

6 Uma elite que se manteria para sempre no poder, pois estaria na origem da burguesia industrial nacional, que por sua vez consolidaria sua hegemonia a partir da década de 30.

7 Até 1940, o Brasil recebeu cerca de 5 milhões de imigrantes.

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Na cidade de São Paulo, a expansão da produção cafeeira, associada ao surgimento de uma indústria ainda incipiente, iriam ser determinantes para seu crescimento acelerado, que a consolidaria como a maior cidade do país já nas primeiras décadas do século XX, superando, à medida em que a industrialização se consolidava, as limitações de seu papel de sede do controle da exportação agrícola. A diversificação dos investimentos oriundos do “capital cafeeiro”9, intensificou atividades de caráter essencialmente urbano. Muitos fazendeiros começaram a transferir sua residência para mansões nas cidades. As atividades de comércio do café, e a construção da estrada de ferro Santos-Jundiaí, em 1867, já haviam insuflado a economia urbana, com empresas de importação-exportação, bancos, o comércio para atender a uma população urbana crescente, e as atividades da construção civil e dos serviços urbanos, como a implantação de vilas operárias, a construção de reservatórios de água, a instalação de iluminação urbana a gás, de linhas de bonde, etc., sempre com a presença marcante de empresas inglesas.

Nesse período agroexportador e de uma industrialização incipiente imperou, tanto no Rio quanto em São Paulo, uma visão de que as cidades não podiam ser a expressão do atraso nacional frente ao modernismo das grandes cidades europeias, em especial em um momento em que as exportações de café reforçavam a participação do país no comércio internacional. Sendo elas o centro comercial e político do país, interessava que cidades como Rio e São Paulo tivessem uma aparência compatível com a ambição comercial da expansão cafeeira. Segundo Ribeiro e Cardoso (1981:81), por essa razão as primeiras grandes intervenções urbanas “visaram criar uma nova imagem da cidade, em conformidade com os modelos estéticos europeus”. Nesse processo, ainda segundo os mesmos autores, “as elites buscavam afastar de suas vistas – e das vistas do estrangeiro – o populacho inculto, desprovido de maneiras civilizadas, mestiço. As reformas urbanas criaram uma cidade ‘para inglês ver’’.

Explicita-se então o porquê das duas grandes cidades do país nesses primeiros momentos da urbanização brasileira, já promoverem uma sistemática segregação social: simplesmente reproduzia-se na cidade a mesma diferenciação social resultante da hegemonia das elites que reproduzia-se verificava nos latifúndios. É dessa época que datam os primeiros registros de cortiços e até mesmo de ocupação dos morros com moradias populares. Mesmo que não fosse ainda regida pelas dinâmicas do capitalismo industrial, a cidade já tinha por marca a diferenciação socioespacial, pela qual a população mais pobre, via de regra, era excluída para as áreas menos privilegiadas. Segundo Maricato (1997:27), o Rio contava, em 1888, ano da abolição, com mais de 45 mil pessoas vivendo em cortiços, sendo a maioria escravos libertos. A insalubridade, as epidemias, decorrentes da ausência de infraestrutura, como por exemplo o saneamento básico, a violência, a alta densidade urbana, eram marcas de uma parte da cidade, e já mostravam a tônica do que viria a ser a cidade brasileira do século XX.

Mas o que se destaca nesse processo são dois fatores que estão na base do entendimento das dinâmicas de segregação socioespacial urbana: o conceito de localização e a participação do Estado, representando no Brasil os interesses das elites, na formulação e implementação das políticas públicas de urbanização. Esses dois aspectos merecem ser vistos com mais cuidado10.

Diferenciação urbana e produção social do espaço

A cidade se caracteriza por ser um ambiente construído, ou seja, seu espaço é produzido, fruto do trabalho social. Há anos existe um intenso debate acadêmico sobre a conveniência de se transferir ou não para o solo urbano a teoria da renda da terra, que Marx utilizou para o contexto bem específico – e pouco comparável ao solo urbano – da propriedade rural. Sem entrar nessa polêmica, o que se pode dizer é que o solo urbano tem seu valor determinado por sua localização. Esta se caracteriza pelo

9 Ver a respeito, SILVA, Sergio: ”Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil”, São Paulo: Alpha-Ômega, 1981.

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trabalho social necessário para tornar o solo edificável (a infraestrutura urbana), as próprias construções que eventualmente nele existam, a facilidade de acessá-lo (sua “acessibilidade”) e, enfim, a demanda. Esse conjunto de fatores é que distingue qualitativamente uma parcela do solo, dando-lhe certo valor e diferenciando-o em relação à aglomeração na qual se insere.

A localização é um fator de diferenciação espacial por motivos óbvios: terrenos com uma vista privilegiada, ou situados em locais de fácil acesso, ou muito bem protegidos, ou próximos a rodovias ou ferrovias, tornam-se mais valiosos para interesses variados. São mais agradáveis para o uso habitacional, ou melhor situados para escoar a produção de uma fábrica, ou para atrair mais consumidores para uma loja, e assim por diante. Nas cidades brasileiras do início do século passado, que acabamos de descrever, os bairros centrais, que tinham boa infraestrutura, concentravam mais gente, dispunham de linhas de bonde, eram próximos das estações de trem, eram os bairros privilegiados onde acontecia a vida urbana e comercial nascente, e onde se instalavam os palacetes da elite, embora as vezes bairros um pouco mais “distantes”, como a avenida Paulista, em São Paulo, atraiam os poderosos justamente pela sua exclusividade.

Mas o que fica claro é que a localização será tanto mais interessante quanto houver um significativo trabalho social para produzi-la, ou seja, para torná-la atrativa dentro de uma determinada aglomeração urbana. Assim, fica evidente, que a localização urbana é fruto de um trabalho coletivo, e não pode ser individualizada: ela dependerá sempre da aglomeração em que se situa, ou seja, do entorno urbano na qual está, e da intervenção do Estado para construí-la e equipá-la de tal forma que ela ganhe interesse. Por isso, como aponta Deák (2001), “a intervenção estatal é um complemento necessário, ainda que antagônico, à regulação pelo mercado”11 do acesso ao solo urbano. Tal intervenção pode dar-se por meio de obras urbanizadoras convencionais, mas também ocorre por meio de um conjunto de instrumentos tributários e reguladores do uso e das formas de ocupação do solo urbano. Ou seja, nessa dinâmica é muito fácil entender como a influência sobre a máquina pública pode render benefícios significativos a quem conseguir direcionar os investimentos do Estado segundo seus interesses de valorização, como veremos logo adiante. No Brasil, desde as primeiras ondas de crescimento das nossas cidades, na virada do século XIX para o XX, todas as grandes intervenções urbanas promovidas pelo Poder Público foram, salvo raras exceções, destinadas a produzir melhorias exclusivamente para os bairros das classes dominantes.

Evidentemente, nem todas as correntes teóricas admitem tal interpretação sobre a produção da diferenciação espacial e do valor fundiário urbano. Segundo o pensamento liberal, que no urbanismo se evidenciou na chamada “Escola de Chicago”, ainda nas primeiras décadas do século passado, mas com um poder de influência que perdura até hoje, a cidade apenas refletiria, no âmbito espacial, a lógica da “mão invisível” e da autorregularão, frutos do laissez-faire econômico. Assim como supostamente ocorreria no âmbito econômico da regulação dos preços e do emprego, as cidades teriam a capacidade de crescer espontaneamente, equilibrando-se naturalmente, pela lei da oferta e da demanda, em um sistema no qual os mais privilegiados encontrariam seus espaços, assim como os mais pobres acabariam achando o seu, com as diferenciações “naturais” de qualidade inerentes à própria lógica do capitalismo. Evidentemente, parece-nos que as coisas não ocorreram, e ainda não ocorrem, exatamente assim. E nas nossas cidades, a intervenção estatal foi capaz de produzir recorrentemente a diferenciação espacial desejada pelas elites, e a disputa pela apropriação dos importantes fundos públicos destinados à urbanização caracterizou – e caracteriza até hoje – a atuação das classes dominantes no ramo imobiliário. Assim, a implantação de infraestrutura urbana no Brasil sempre se deu em áreas concentradas das nossas cidades, não por acaso os setores ocupados pelas classes dominantes. Essa prática da desigualdade na implantação de infraestrutura, ou seja, do trabalho social que produz o solo urbano, gerou – e ainda gera – diferenciações claras entre os setores da cidade, produzidas pela ação do Estado (ao contrário do que defendia a Escola de Chicago) e acentuando a valorização daqueles beneficiados pelas obras, em

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relação à escassez do restante da cidade. Assim, a brutal diferença de preços que tal fenômeno produz nunca esteve dissociada, evidentemente, dos interesses do capital especulativo que sempre soube, no Brasil, fundir-se à ação estatal e canalizar os investimentos públicos para locais de seu interesse, gerando altos níveis de lucratividade12.

Os primeiros planos urbanísticos

No início do século passado, as dinâmicas de urbanização da cidade explicitavam, como vimos, processos de valorização fundiária e imobiliária que iriam constituir uma matriz de exclusão que perdura até hoje, sobrevivendo e fortalecendo-se em cada nova fase do nosso desenvolvimento. Na jovem república ou no Brasil industrial, o acesso à cidade urbanizada só foi possível, em suma, para aqueles que pudessem pagar por ela, ou que tivessem um razoável poder de influência dentro da máquina pública. As relações de poder se estabeleciam no âmbito urbano por um lado, em torno do privilégio dado às elites no direcionamento dos recursos públicos e na construção de bairros de elite, e do outro pela exclusão que atingia invariavelmente a população urbana mais pobre, e posteriormente o proletariado urbano. Entre esses dois extremos, uma classe-média encontrava algum lugar, em diferentes momentos históricos, conforme fosse beneficiada por uma ou outra política pública, pelos resquícios de um ou outro ciclo de crescimento econômico. Nesse processo, o Estado cumpriu sistematicamente um papel de controle sobre a produção do espaço urbano. Um “controle às avessas”, pois se na Europa ele visava alguma universalização e democratização no acesso à cidade13, no Brasil ele se deu ou para garantir a onipotência das elites, e manter em níveis aceitáveis os bairros de classe média, deixando aliás o mercado imobiliário bastante livre para atuar, ou para “resolver” as demandas populares quando absolutamente necessário, na base de relações populistas e clientelistas, e no que Schwarz chamou das “relações de favor”14. Como exemplo das reformas urbanas “para inglês ver”, no Rio de Janeiro dos primeiros anos do século passado, o presidente Rodrigues Alves deu ao então prefeito do Distrito Federal, Francisco Pereira Passos, poderes absolutos (e inconstitucionais) para promover uma profunda reforma urbana, destinada a sanar as epidemias crescentes e recuperar a cidade, vista como um órgão doente (Maricato, 1996). Para atrair o capital estrangeiro para o país, era necessário “sanear” a cidade: novas avenidas foram abertas – notadamente a Avenida central, hoje Rio Branco –, o porto foi modernizado, e novos e “modernos” edifícios foram construídos, substituindo casarões e prédios antigos. Nesse processo, e nas demais intervenções de urbanização no Rio do início do século passado, em que morros foram desmontados, aterros criados, e a natureza bastante modificada para a construção da capital, não havia sequer possibilidade de contestação por parte da população atingida, e os propósitos de uma “higienização social” estavam muito pouco escondidos. A população pobre foi sistematicamente expulsa dos cortiços e dos morros centrais, deslocando-se invariavelmente para locais distantes – menos valorizados – ou mesmo para outros morros. Tais planos urbanísticos, que ficaram conhecidos como de Melhoramentos e Embelezamento, repetiram também em São Paulo essa mesma lógica, assim como em muitas outras

12 Vale observar que, nesse sentido, a melhor forma de lutar contra a especulação imobiliária urbana seria simplesmente, se a questão dos recursos não fosse tão complexa, generalizar a oferta de infraestrutura para toda a cidade, “quebrando” dinâmica de diferenciação espacial gerada pela concentração do investimento público em infraestrutura urbana.

13 Os dois momentos mais significativos da produção habitacional de interesse social na Europa, entretanto, não se deram por filantropia, mas para sustentar, respectivamente, o modelo de crescimento do capitalismo industrial e o do Estado do Bem-Estar Social. As reformas higienizadoras do final do século XIX, em que se destaca a ação do Barão de Haussmann em Paris (1850), visavam disciplinar a classe trabalhadora e dar-lhe condições mínimas de subsistência e reprodução em um sistema industrial nascente que havia produzido até então, por causa de seu viés liberal, um caos urbano que acabara por prejudicar a própria produção. No pós-guerra, as maciças políticas habitacionais, amparadas pela ideologia urbanista modernista, visavam contribuir com os esforços de criar, na Europa que se reconstruía, um mercado consumidor à altura da expansão do fordismo-taylorismo, capitaneada pelos EUA. Assim, a necessária melhoria do poder de consumo da classe trabalhadora exigia que se incluísse, no cálculo do custo de sua reprodução, a moradia. É importante observar que em cada um desses momentos, esses padrões urbanísticos foram “importados” em um contexto nacional absolutamente diverso, no que Schwarz chamou de “idéias fora do lugar” (referindo-se ao primeiro momento). Na virada do século XIX, as reformas higienizadoras usadas para disciplinar uma classe operária nascente na Europa, foram implementadas aqui, como se verá no próximo parágrafo, em uma sociedade que sequer era industrial. No pós-guerra, o urbanista modernista aqui no Brasil não podia ser base para um aumento do poder de consumo da classe trabalhadora, como ocorrera na Europa, pois os baixos salários, como veremos logo adiante no texto, eram condição para nossa industrialização.

Referências

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