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O homem do subsolo de Dostoiévski submetido às injunções superegóicas

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O HOMEM DO SUBSOLO DE DOSTOIÉVSKI SUBMETIDO ÀS INJUNÇÕES SUPEREGÓICAS

Palhoça 2019

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O HOMEM DO SUBSOLO DE DOSTOIÉVSKI SUBMETIDO ÀS INJUNÇÕES SUPEREGÓICAS

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina como requisito à obtenção do título de Mestre em Ciências da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Maurício Eugênio Maliska

Palhoça 2019

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O estudo foi construído com vistas a servir de suporte e, ao mesmo tempo, nortear o exame discursivo em razão do homem do subsolo, personagem do livro Memórias do subsolo, de Dostoiévski. São postos em evidência recortes de análise, assim qualificadas pela psicanálise, também é revisada a categoria supereu relacionada ao sujeito personagem do livro referido, de modo a realçar os efeitos e injunções do supereu sobre tal sujeito, correlacionando tais efeitos ao discurso constitutivo do personagem em comento. O objetivo geral determinado para dar ação à investigação é analisar os efeitos discursivos do supereu no personagem principal do livro de Dostoiévski. Do plano metodológico traçado para conduzir o processo investigativo consta o modelo bibliográfico de pesquisa, que articula essa compreensão a passagens do romance citado, a fim de examinar se o discurso desse personagem pode estar sendo afetado por um discurso que o precede – o discurso do supereu. Os resultados apontam no sentido de que há forte relação entre o discurso superegóico e o discurso apresentado pelo personagem, no sentido de que o primeiro se estabelece fortemente afetando o segundo. Esta relação é observada pelo modo como discorre acerca de suas experiências cotidianas e o afastamento que se impõe da sociedade por lhe ser insuportável a convivência com os demais.

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This research was made aiming to guide and understand the discursive exam of the underground man, character of the novel Notes from the underground by Dostoyévsky. It highlights parts of his speech, also is reviewed the superego category connecting to the subject character of the referred book, on a way to show the effects and injunctions of the supereu above the subject, connecting this effects with the constitutive speech of this character. The general objective is to analyze the discursive effects of the superego on the main character of Dostoyévsky´s book. The metodological plan designed to conduct the investigative process is the bibliographic model of research, wich articulates this understanding to some selected parts of the novel, examining if the character speech is beeing afected by another speech that precedes it – the superego´s speech. The results indicates that there are strong relation betewen the superego´s speech and the speech showed by the character, on the way that the first one lays down strongly affecting the second one. This relation is observed by the way the character reffers about his daily experiences and the social self-imposed removal, once its unbearable for him to stay with his equals.

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1 INTRODUÇÃO...7

2 OBJETIVOS...11

2.1 OBJETIVO GERAL...11

2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS...11

3 METODOLOGIA...12

4 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E ANALÍTICAS...14

4.1 PSICANÁLISE E LITERATURA...14

4.2 DOSTOIÉVSKI E SUA OBRA...22

4.3 DOSTOIÉVSKI SE OCUPA DA SUBJETIVIDADE...33

4.4 O SUJEITO DA PSICANÁLISE VISLUMBRADO POR DOSTOIÉVSKI...37

4.5 O SUPEREU...42

4.6 DE UM AO OUTRO...61

4.7 DO OUTRO, A VOZ...73

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...81

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1 INTRODUÇÃO

O que se nomeia como humano se expressa, absolutamente, pela capacidade uma vez adquirida e, desde então, sempre repetida na perpetuação da espécie, de entrada, no campo do simbólico – ou mesmo instauração dessa possibilidade de campo até então inexistente enquanto tal. O animal sem a dimensão do simbólico e sem linguagem vive, por conseguinte, em um eterno presente, sem elaborações que lhe permita se situar e olhar a si mesmo reflexivamente. Certamente por isso, uma sociedade sem significantes se organiza melhor que uma sociedade humana permeada, irredutivelmente, por esses. Melhor, neste sentido, quer dizer, de uma forma mais prática, apenas que se organiza a margem dos equívocos todos que vêm no bojo da linguagem. O que, por um lado, é dado como o grande salto qualitativo no que tange à possibilidade de interferir na natureza, arquitetando ferramentas e formas de dispô-las que venha melhor satisfazer a obtenção das iniciais necessidades culminando nos prazeres cotidianos, por outro, introduz um mal-estar estrutural, na própria base do que se entende como humano, indicado por Freud (1930) em O mal-estar na civilização, que é a contrapartida do processo de humanização. Freud (1923) indica que a renúncia pulsional – conceito tributário da possibilidade de linguagem – à qual se submete inexoravelmente o humano, que busca o convívio com seus pares, lhe é experimentado como grande fonte de desprazer e Quinet (2006, p. 17) constata: “todo laço social é, portanto, um enquadramento da pulsão, resultando em uma perda real de gozo”. Algo como a impossibilidade de se fazer o que se quer na hora mesma em que se experimenta tal vontade e mesmo a impossibilidade permanente de exercê-la, uma vez que a sociedade é regida por leis – ponto alto do processo simbólico – de que algumas dessas vontades sejam satisfeitas, introduz, por si só, um processo de renúncia, o qual não é tão fácil ou ao menos não sem consequências para esse ser falante e desejante.

Retrocedendo uns passos, pode-se ver que mais fundamentalmente o próprio estabelecimento da pulsão, por oposição ao instinto característico do animal não inscrito na linguagem, já introduz essa dimensão de divisão e como toda divisão de algo até então sólido – uma perda. A solidez da orientação animal, calcada na dimensão imaginária que o circunscreve, dá lugar ao

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insabido, ao arriscado do emaranhado de possibilidades instaurado pela pulsão no homem. A perda é experimentada diuturnamente, certamente, muito mais que o ganho da dimensão simbólica. O que resta então para tentar aplacar essa percepção não muito agradável senão utilizar o próprio causador da divisão como débil escudo contra seus efeitos. Quinet (2006, p. 17) lembra:

O discurso como laço social é um modo de aparelhar o gozo com a linguagem, na medida em que o processo civilizatório, para permitir o estabelecimento das relações entre as pessoas, implica a renúncia da tendência pulsional em tratar o outro como um objeto a ser consumido: sexual e fatalmente

De que trata e para que serve ou a quem, o discurso em psicanálise? Instância fundamental e constitutiva da experiência analítica, a palavra, ordenada em termos de discurso com o aporte não diretivo da livre associação de ideias, não se restringe ao setting analítico, muito pelo contrário. Se é caro à psicanálise o discurso, sem o qual não há análise, é porque algo um tanto maior, como a constituição do sujeito e de suas relações se fundamenta sobre essa prática – a discursiva. Fala-se para se tentar organizar frente a um real, do qual nada se pode apreender, ou melhor, talvez se fale a despeito de um real que insiste em não se deixar apreender. Assim, o discurso não exaure a possibilidade de significação, ainda que recubra o que existe de forma um tanto mais palatável ao sedento por significação que é o humano. “Nós, seres de fragilidade, que como tais voltaremos a nos encontrar em cada curva no decorrer deste ano, nós temos necessidade de sentido”. (LACAN, 1992, p. 14).

O discurso, salienta Lacan, é o que faz laço social. É o que permite que estes seres faltantes por excelência, que são os humanos, suportem a convivência até com relativo bom humor. Se não houvesse falta que pudesse mal ou bem ser encoberta pela cadeia de significantes que forma o discurso, certamente estariam os humanos cada qual para seu lado, felizes, alegres e satisfeitos, evitando isso que tem um peso desagradável e pode ser descrito como convívio social. Tem um tal peso que já foi assinalado por Freud (1930) como uma das razões do mal-estar no qual estão todos inscritos. Daí a possibilidade de fazer algo com o que é dado de antemão, converter a linguagem em função para mitigar o que ela se faz causadora. Neste sentido, o discurso interessa para ajudar a identificar em que consiste o afastamento social autoimposto pelo personagem de Memórias do subsolo, o qual se priva da convivência com seus pares por ser-lhe insuportável. Resta-lhe o exílio social e

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encerrado sob as paredes de sua casa e de sua consciência (hipertrofiada, como salienta), passa a colocar em narrativa o que lhe aflige.

É através da falta constituinte manejada pelos significantes advindos do Outro que impelirá o sujeito ao desejo, como forma de reparar isso que a sua constituição mostra faltar e que é experimentado com profundo desprazer. Pelo deslizamento da cadeia significante, na busca por objetos que o “completem”, entrevê-se algo desse domínio quase mítico que impele o sujeito no sentido de vir-a-ser – que é o domínio do desejo. Quase mítico, pois não é algo localizável, que possa ser apreendido de forma estanque. Muito pelo contrário, deixa-se vislumbrar somente quando em movimento, no movimento de busca, de mobilização por meio do qual se lança o sujeito sem garantias de obtenção, mas com a certeza de insatisfação que suscita a imobilidade.

Então, é a partir do impossível que se articulam os laços sociais, que é um dos nomes do real em Lacan. (QUINET, 2006, p. 29). O impossível de completude, impossível de correspondência exata na medida em que se fantasia. E com que fantasias têm de se haver o homem do subsolo; uma perene necessidade de autoafirmação, na qual o menor contratempo, inflado pelas exigências impossíveis do supereu, já lhe apontam que o mais prático caminho é esquivar-se ao perigo de se haver com a castração. Em psicanálise, bem como fora do consultório, onde ela eminentemente opera, há constantemente narrativas e a forma como elas se enunciam – o discurso. Dunker (2016, p. 212) mostra que “se tomarmos narrativa no sentido mais genérico e ampliado, toda a obra de Freud se dedicou a análise de narrativas: do Édipo aos sonhos, dos casos clínicos ao exame de manifestações literárias, da análise de sintomas à psicopatologia da vida cotidiana e até mesmo a chamada análise da cultura refere-se sempre a narrativas”.

Para além de Freud, o que é referido como experiências, vivências e afins transmite-se a partir desse mesmo recurso à narrativa. Pode-se narrar ocorrências, manifestações culturais, histórias que permeiam e sustentam modos de fazer de determinadas civilizações, uma enormidade de coisas que se queira veicular aos demais. Quando essa narrativa adquire um caráter de implicação do sujeito que a sustenta, pode-se referir ao termo discurso, o qual deixa de ser apenas um relato e passa a figurar como constituinte do sujeito em alguma medida. É com referência ao discurso que se orienta a clínica

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psicanalítica, vez que se considera tudo o que é falado em análise implica o sujeito de alguma forma, ainda que ele queira, por vezes, desimplicar-se do que diz, tem um motivo para aparecer.

Algo curioso se manifesta diante da eleição de um objeto de estudo cuja produção remete a um dos mais aclamados e debatidos escritores do mundo. Como imortal, é visto e lido atualmente Dostoiévski. Imortalidade, ao menos da alma, para um cristão ortodoxo da Rússia czarista do século XIX, não é uma ideia que soe assim tão distante. Contudo, certamente, o que o autor russo não poderia ter em mente, na época em que dedicava muitas horas de uma vida conturbada à transposição de seus geniais exercícios de raciocínio acerca das possibilidades de significar a própria existência para as suas muito bem elaboradas personagens – e, por consequência, espelhar o tropismo à identificação – é que obteria o status de imortal não através da graça e do reconhecimento divinos. Tal condição não adviria senão de seus pares mortais, os quais alçaram seus personagens à categoria de seres, de entidades quase materiais, quase vivos, com os quais se pode, em larga medida, dialogar. Dessa fértil interlocução é possível extrair, a cada detenção e reflexão, novas possibilidades de significação.

Que Dostoiévski tem seu absoluto lugar de destaque no rol literário é inquestionável, que merece uma apreciação calma e detida fica subentendido e que este será o objetivo do trabalho que se pretende desenvolver se faz aclarar por ora, ainda que ciente do seu recorte específico e apreciação particular do viés psicanalítico articulado ao supereu. Assim, o que interessa é analisar o discurso oriundo do supereu e os efeitos disso no personagem principal do romance tomado como objeto de investigação.

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2 OBJETIVOS

2.1 OBJETIVO GERAL

Analisar os efeitos discursivos do supereu no personagem principal do livro Memórias do subsolo, de Dostoiévski.

2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

 Identificar recortes que apontem para os traços da categoria de sujeito tal qual proposta pela psicanálise que já aparecem no personagem do livro Memórias do subsolo;

 Descrever a categoria supereu em psicanálise, relacionando-a a categoria de sujeito identificada no personagem do livro Memórias do subsolo;

 Salientar os efeitos e injunções do supereu sobre o sujeito;

 Correlacionar os efeitos da categoria de supereu com o discurso constitutivo do personagem do livro de Dostoiévski.

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3 METODOLOGIA

Trata-se de pesquisa bibliográfica que buscará articular o conceito de supereu e o modo como essa instância psíquica se manifesta, com suas injunções, críticas e recriminações que recaem sobre o eu de modo a causar desconforto no sujeito. Para melhor compreender como isso se dá, foi articulada essa compreensão a passagens do romance Memórias do subsolo, de Fíodor Dostoiévski, em que será investigado se o discurso do personagem ou o que ele permite acessar por intermédio, inicialmente, do seu monólogo e, em seguida, por meio do relato dos seus encontros e desencontros com seus pares, pode estar sendo afetado por um discurso que o precede, que é o discurso do supereu.

É claro que o discurso do supereu não está disponível da mesma forma como estão os devaneios e elucubrações do personagem, grafados em linhas. Em verdade, o discurso do supereu não se deixa perceber senão por alusões, aproximações e inferências observáveis tão somente em suas manifestações. Assim, o que se tem como objeto é algo que aponta para além, sendo o intangível do além, rematado pela impossibilidade de questionar-se o objeto de modo a fazê-lo reformular o que se encontra escrito de outras maneiras, como geralmente acontece em uma sessão psicanalítica ou mesmo numa entrevista analítica. Portanto, fica claro que não se trata aqui de uma análise do personagem, de uma “dissecção” da sua personalidade, buscando as raízes de sua experiência pessoal que corroboram para que o seu supereu se manifeste dessa ou daquela forma. Nem mesmo uma análise do autor e do seu supereu, numa espécie de psicobiografia

Rechaça-se a ideia de uma psicanálise aplicada a literatura, almeja-se antes saber a contribuição da literatura para a psicanálialmeja-se. O que almeja-se busca com a pesquisa é melhor entender as manifestações do supereu a partir do discurso que, por estar alçado ao estatuto conceitual, compreende-se, comporta-se de modo relativamente estável, com algumas características que, em maior ou menor grau, afetam a todos os que o possuem ou se constituem com seu aporte – humanos.

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É tomando as categorias de sujeito e supereu enquanto narrativa, enquanto conjunto dissonante de “máximas” que se produzem ao serem articuladas com a linguagem, mas que também afetam a forma como a linguagem será posta em uso por meio de seus significantes que se pretende elaborar tal pesquisa.

Foi passado em revista os conceitos pertinentes a tal empreendimento, como o de supereu, fantasia, narcisismo, ideal do eu e eu ideal, sujeito, entre outros. O principal autor seguido no que diz respeito ao que de psicanálise cabe neste estudo – e que lhe ocupa a maior parte do espaço – é Freud, cuja contribuição foi mais explorada na elaboração deste marco teórico, utilizando-se também de Lacan. Para além desses dois ícones da psicanálise, busca-se sustentação em outros autores da área que se interessam pela investigação do supereu, como Campos, Gerez-Ambertín, Garcia-Roza, Quinet e mais outros pares. Para a articulação com a psicanálise, foi convocado, como já mencionado, o romance dostoievskiano Memórias do subsolo, que foi minuciosamente contemplado a fim de extrair segmentos de narrativa, fragmentos de discurso que contribuam com o objetivo do que se propõe.

Cabe destacar que a escolha da obra está amparada em uma significativa transferência com o trabalho de Dostoiévski, uma vez que muitos dos romances por ele escritos suscitaram no autor curiosidade, questionamentos e fundamentalmente a certeza de que as linhas que lia lhe diziam algo de significativo e o remetiam a outros ramos do saber que ali se poderiam ancorar. A leitura da obra em questão remeteu, por certo, a questões relativas à psicanálise, sem que se mostrasse de pronto o que seria abordado na pesquisa. Após algumas leituras, em especial utilizando a leitura flutuante, a fim de melhor entrar em contato com o que poderia surgir de interesse com relação a interlocução literatura-psicanálise optou-se por explorar a temática superegóica.

Memórias do subsolo foi o romance elencado para a pesquisa, não porque diga algo da psicanálise, ou porque tenha prévia conexão evidente com a temática, senão por opção do autor que vislumbrou nesta interconexão específica, dentre infinitas outras, uma possibilidade.

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4 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E ANALÍTICAS

4.1 PSICANÁLISE E LITERATURA

A psicanálise parece nascer quase que indissociavelmente ligada à literatura, se não como fonte direta de criação, ao menos enquanto influência de inúmeras obras que lhe possibilitaram uma visão mais abrangente tanto do ser humano em sua singularidade, quanto do processo de inserção deste conflituoso ser em um plano mais amplo, cultural. Como afirma Gay (2008, p. 58) em sua biografia de Freud, “este era o jovem médico pobre que comprava mais livros do que podia e lia obras clássicas noite adentro, profundamente comovido e não menos profundamente divertido”. E, no que tange às preferências de suas incursões literárias, os clássicos sempre foram os prediletos. “Freud procurava mestres em vários séculos: os gregos, Rabelais, Shakespeare, Cervantes, Molière, Lessing, Goethe, Schiller...” (GAY, 2008, p. 58).

Ademais, não apenas inferências sobre as leituras de Freud podem ser feitas, mesmo porque ele as citava e utilizava fontes constantemente para embasar, corroborar ou apenas ilustrar seus escritos, teorias e conferências. Que falar, por exemplo, do Complexo de Édipo, o qual vivia exclusivamente relegado à literatura, à tragédia grega de anos idos, sendo utilizada por Freud para postular e formular um dos mais caros e fundamentais conceitos psicanalíticos.

Um olhar mais atento a esse campo aberto para o entendimento e mais, para o conhecimento, que se revela em qualquer produção literária, especialmente nas que são submetidas ao diálogo, à perscrutação, profunda e atenta dissecação dos termos, do estilo e do sentido empregado. Num primeiro momento, talvez o que se tenha de resultado não seja nada além da perda da beleza dessa obra de arte submetida a tal exposição, com seus nervos, carnes e até “pensamentos” expostos a todos os que quiserem tentar compreendê-la em um sentido mais amplo. No entanto, sabe-se que num segundo momento, na reunião do todo, antes tomado parte a parte, o que era belo tornar-se-á ainda mais profundo.

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Villari (2002, p. 21) cita duas formas de interconexão estabelecidas por Freud na relação entre Psicanálise e Literatura, denominando-as por aditiva e extrativa. Pode-se entender a aditiva como a que separadas a priori em duas instâncias completamente diferentes, psicanálise e literatura, passa-se a se utilizar da primeira para inferir, deduzir, interpretar, desconstruir e reconstruir a segunda, primando pelo mais amplo entendimento do que foi proposto na trama urdida pelo autor. Ou até mesmo em meditações mais profundas as quais busquem desvelar os mais sombrios rincões da alma do autor tomando por base apenas seus textos, redundando não raramente em especulações despropositadas ou afirmações descabidas. Sobre isso, Gay (2008, p. 297) afirma que “deduzir de uma obra fáceis inferências sobre seu criador era uma tentação permanente para os críticos psicanalíticos. Suas análises dos criadores e dos públicos da arte e da literatura ameaçavam se tornar, mesmo em mãos habilidosas e delicadas, exercícios de reducionismo”.

Por outro lado, Freud também entendia a relação psicanálise-literatura do ponto de vista extrativo, não com a psicanálise extraindo, ou apropriando-se de trechos específicos de obras literárias que pudessem ser úteis aos interesses de confirmação, ilustração ou confrontação de conceitos e teorias dos quais se servem a psicanálise. Mas utilizando a literatura a fim de interrogar os conceitos demarcados pela psicanálise em uma via de mão dupla que permita extrair melhor entendimento acerca da teoria. É esta faceta que faz aclarar a proposta deste estudo, pois como já demarcado, não trata-se de ilustrar a teoria psicanalítica com elementos literários que reforcem as descobertas de Freud, senão dialogar com o romance perscrutando formas humanas de ser, e sofrer, que levem a indagar a teoria, identificando que mesmo antes da elaboração teoria da psicanálise muitos poetas e romancistas, artistas por excelência, já haviam delineado formas de proceder, comportar-se e, especialmente, de entender-se o humano afins às demarcadas por Freud.

Henri-Marie Beyle, também conhecido por Stendhal (1971, p. 345-346), em sua obra “O Vermelho e o Negro”, sugere uma analogia extremamente interessante para o que seria um romance e a relação da sociedade para com o autor de obras tidas como desestruturantes para o moralismo conservador da sociedade fechada sobre si. Começa ele,

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Senhores, um romance é um espelho que é levado por uma grande estrada. Umas vezes ele reflete aos vossos olhos o azul dos céus, e outras a lama da estrada. E ao homem que carrega o espelho nas costas vós acusareis de imoral! O espelho reflete a lama e vós acusais o espelho! Acusai antes a estrada em que está o lodaçal, e mais ainda o inspetor das estradas que deixa a água estagnar-se e formar-se o charco.

Entre os aspectos que poderiam ser levados em consideração, ao menos nesse capítulo, está o claro paralelo que se estabelece entre a Psicanálise e a Literatura nessas breves palavras do romancista Stendhal. Se trocar o termo “romance” que remete de imediato à literatura por “psicanálise” ter-se-ia em um sentido histórico o mesmo ocorrido com Freud ao postular sua teoria perante a sociedade. Se há romances que mostram o funcionamento da sociedade, com sua hipocrisia, sua difícil aceitação e reconhecimento do que fazem os humanos de errado, também com a psicanálise deu-se e dá-se o mesmo.

Antes da lei, só há de natural a força do leão, ou a necessidade da criatura que tem fome, que tem frio, a necessidade, numa palavra... Não, as pessoas que reverenciadas não passam de velhacos que tiveram a felicidade de não serem apanhados em flagrante delito [...] Eu amei a verdade... Onde está ela?... Por toda parte hipocrisia, ou pelo menos charlatanismo, mesmo entre os mais virtuosos, mesmo entre os maiores. (STENDHAL, 1971, p. 484).

Imediatamente sobrevém a cortante asserção de Oscar Wilde (2001, p. 13) “Não existe livro moral nem imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo.”

Uma teoria revolucionária que tem como proposta mostrar o que esforça-se por ocultar-se, que faz-se latente, sob de um manto pesado de não aceitação, de negação do que se é e do que está posto, que, por conseguinte, não poderia passar impune, gerando sintomas, tanto individuais quanto coletivos. Em ambos os casos pode-se perceber a necessidade do “outro” – seja ele o romance ou a psicanálise – para mostrar a realidade de uma forma figurada ou simbólica, mas que produz seus efeitos.

Por certo período de tempo as relações entre psicanálise e literatura advinham quase que exclusivamente em mão única, ou seja, em tomando-se um texto que possuísse alguns meandros “ocultos” sobre os quais se pudesse aplicar a teoria freudiana, lançava-se mão dessa a fim de revelar, no mais das vezes, dois aspectos diferentes e sob certa ótica complementares entre si – ainda que de difícil comprovação, ou de difícil certeza, tendo em vista o distanciamento do autor que conferiria, sob a possibilidade de refutar, corroborar

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ou ao menos dialogar com o proponente das interpretações mais e maiores detalhes sobre os sentidos e implicações pessoais desse no texto de sua autoria.

O primeiro desses dois aspectos poderia ser entendido como o sentido do texto, ou o texto em si, excluído, portanto, a pessoa do criador da obra, ou ao menos o colocando entre parênteses, a fim de tomar a obra como algo dado a priori e então sim, com esta, dialogar com a teoria, perscrutando o que há naquelas linhas e mais, o que poderia haver por detrás daquelas linhas, de modo a buscar o “inconsciente do texto”.

Conforme traz Villari (2002, p. 22):

A psicanálise apresentava-se como um amplo instrumento interpretativo, servindo como chave crítica do texto literário, pretendendo desvendar o sentido oculto. Sobre um objeto – o texto literário – debruçava-se uma teoria que poderia desvelar aspectos de seu enigma, ou seja, o enigma do texto era desvendado por uma leitura orientada.

Tomando-se apenas o primeiro aspecto, ou o da análise do texto em si, criou-se um paradoxo, como bem lembra Villari (2002, p. 23): “Mas, excluído o autor, como saber sobre a diferença entre o reprimido e o manifesto no texto? Em outros termos, pretendia-se um sujeito da enunciação sem sujeito do enunciado”. Contudo, também esse aspecto muito deixaria a desejar, tendo em vista a impossibilidade de proceder, na análise de uma obra, por óbvias e evidentes dificuldades, um trabalho paralelo de análise com o próprio escritor. No fim das contas, continua-se com um paradoxo de difícil resolução semântica, pois em ambos os casos chega-se a uma encruzilhada impeditiva do proceder ideal, ou aquele mais abrangente possível. Desse modo, o que cabe ao pesquisador no viés proposto é observar o discurso advindo do personagem, pois esse, para aquém ou para além do que se possa supor, está posto, sedimentado palavra por palavra no romance em questão.

Tem-se, ainda, um terceiro aspecto e que também não poderia ser desconsiderado de todo. Nessa outra forma de entender o texto literário e a busca por sua significação, entra em pauta a forma como esse chega até o leitor, cliente último nessa cadeia que nasce no desejo do autor. O leitor é que dará a significação, única e subjetiva, do que está internalizando. Isso a partir do seu ponto de vista inconsciente, com seus conteúdos reprimidos, os quais lhe permitirão alguns entendimentos e outros não, conduzindo-lhe por vias únicas, embasadas não em outros aspectos que sua própria vivência – ou até mesmo a

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fixação de partes do que foi lido em detrimento de alguns lapsos de memória que se estabelecerão no decorrer da leitura. Villari (2002, p. 23) refere, acerca desse tópico, que “nesse sentido, poderíamos dizer que o texto não diz nada, quem diz é o leitor, o que leva a deslocar a ideia de trabalho inconsciente da escrita para propormos a de trabalho inconsciente de leitura”. Ao que se pode perceber, parece ter caído em uma ciranda sem saída em se tratando do tentar compreender o texto, o escrito, como um todo, em todos os seus aspectos – como texto advindo do esforço e produto de fatores outros associados ao trabalho inconsciente do escritor, como produto em si e por si – dotado de um significado próprio que transcende aquele dado pelo autor e também enquanto produto a ser internalizado de uma maneira ímpar pelo leitor, o qual, por sua vez, terá seu entendimento balizado por seus aspectos inconscientes. Vale ressaltar que a própria escolha dos recortes analisados passa necessariamente por uma escolha arbitrária, do ponto de vista operacional, mas que remete a singularidade do pesquisador para optar por determinados trechos e não outros.

É do ser humano essa busca pelo faltante, gerador de incomensurável angústia se não apreendido em sua mais completa acepção. E sendo a completude da ordem do impossível, a angústia vem a ser da ordem do inevitável. Contudo, tem-se que contentar sempre com uma parte, não necessariamente uma parte que nada explica, muito pelo contrário, é apenas ao focar-se em uma parte que se poderá ampliá-la até que se esgote (as forças do pesquisador) e transpasse seus próprios limites, demandando pela compreensão do que a cerca. Não que isso traga qualquer alívio ou solucione a encruzilhada a qual se chega, mas tal forma de pensamento não permite outro final realizável senão esse.

A psicanálise não se limita ao seu viés estritamente clínico, tanto que foi e ainda é utilizada para a compreensão de complexidades outras que não apenas a neurose transferencial instalada no tratamento amparado pelo divã. Esse amplo arcabouço teórico desenvolvido por Freud e ampliado significativamente por inúmeros outros teóricos contemporâneos e posteriores ao grande mestre fundador, permite que dele se utilize para buscar compreender as relações humanas, muitos porquês cotidianos, as artes de maneira geral, grupos, enfim, o homem em suas mais variadas manifestações, tanto as

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consideradas “normais” aos olhos da sociedade, quando as denominadas “desviantes”. A corroborar com tal ideia, Leite (1987, p. 24-25) ressalta:

Uma vez de posse do esquema fundamental e do método (associação livre) capaz de atingir o conteúdo inconsciente, Freud utiliza a teoria não só à explicação e tratamento das neuroses, mas também à explicação do indivíduo normal, da vida social e das criações artísticas. Nesse sentido, a psicanálise é, não apenas uma teoria psicológica, mas uma interpretação do homem.

Freud (2006, p. 99) ressalta que “de imediato, constata-se que essa coisa não lucrativa que se espera que a civilização valorize, é a beleza. Exige-se que o homem civilizado reverencie a beleza, sempre que a perceba na natureza ou sempre que a crie nos objetos de seu trabalho manual, na medida em que é capaz disso”. Ou então, como bem lembra Oscar Wilde (2001, p. 516): “A beleza é a única coisa contra a qual a força do tempo nada pode. As filosofias se desfazem como areia, as crenças sucedem-se umas após as outras, mas o que é belo é uma alegria a qualquer tempo, algo que pertence a toda a humanidade para sempre”.

No que tange aos rudimentos da curiosidade intelectual, experimentada pela criança por volta de seus três anos de idade, época em que inicia por questionar e buscar explicações para tudo que a cerca, entende-se que todos esses rodeios investigativos servem apenas para maquiar o que, de fato, é a curiosidade real do infante. Essa questão “verdadeira” estaria voltada para a vida sexual. Diante da repressão desse impulso, o que sucede, segundo Leite (1987) são três diferentes formas de lidar com tal questão. Na primeira ocorreria uma total repressão dessa curiosidade, a qual juntamente com a sexualidade seria relegada ao inconsciente.

Na segunda forma, há uma deformação dessa curiosidade sexual, de modo que, mesmo resistindo à repressão, apenas apareceria como um raciocínio compulsivo. Já na terceira forma de desenlace dessa situação, a qual seria considerada por Freud a mais rara, porém mais perfeita, o pensamento compulsivo e a inibição não entrariam em cena, ocorrendo sim a sublimação dessa curiosidade, juntamente ao impulso sexual.

Desse modo, torna-se compreensível o remate de Leite (1987, p. 82) que conclui: “portanto, a fonte do impulso criador resulta do conflito entre desejar conhecer e a repressão externa a esse conhecimento: o trabalho criador resulta de pressão emocional e constitui uma forma de exprimi-la”.

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A capacidade de criar algo que venha a ser reconhecido socialmente e seja valorizado, ou seja a arte, é diretamente proporcional ao poder de sublimação do ser humano. Poder de sublimação esse que tem de ser desenvolvido em função da necessidade de negar alguns impulsos ou pulsões, que não são aceitos pela sociedade. Afinal, estar vivendo e convivendo num ambiente com outras pessoas pressupõe a existência de regras, a fim de que todos possam sentir segurança e desenvolver suas vidas dentro das possibilidades comuns aos que se submetem a essa negação.

Freud (1996, p. 101) comenta que “a substituição do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições”. Além de, no que tange a sublimação, lembrar que “a sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela, a sublimação, que torna possíveis as atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada”. (FREUD, 1996, p. 103).

A literatura, no mais das vezes, é feita para o outro, para os outros. São os outros que lerão; são os outros que valorizarão as ideias contidas nessas folhas; são os outros que farão a interpretação e darão significado ao esforço de transmissão empreendido pelo autor. Nesse aspecto e em todos os demais, a literatura é essencialmente produto da civilização, surge como uma forma de compensar essa renúncia aos instintos primitivos que não encontram vazão dentro da vida em sociedade ou, como salienta Leite (1987, p. 26), “a teoria de Freud supõe que em todas as culturas encontra-se os mesmo conflitos emocionais e afetivos [...permitindo] explicar de que forma pode-se compreender manifestações culturais muito diversas, pois estas são apenas formas diferentes de conflitos iguais”. E talvez por isso seja tão bela, por advir de uma manifestação tão forte quanto uma pulsão, sendo reinvestida em um lugar outro (literatura) que não o originalmente endereçado e mais, por ter de dar conta de satisfazer ou de ao menos mitigar de uma forma suficientemente convincente essa demanda por satisfação oriunda dessas pulsões que não podem encontrar correspondência. Afinal, “não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto [pulsão]. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for

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economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.” (FREUD, 1996, p. 104). Já que “Freud supõe uma relação direta entre civilização e repressão, assim como entre repressão e neurose, não é errado dizer que, para ele, o preço da civilização é a neurose.” (LEITE, 1987, p. 27).

A base da criação literária, segundo Freud, é a fantasia. Somente a partir dessa capacidade de se deixar levar pelas fantasias inconscientes é que o escritor consegue imaginar, desconectando-se momentaneamente do rigor e da inflexibilidade da realidade, sem desconhecê-la, e tramar o emaranhado de suposições que desaguarão no enredo sustentador da trama. Como pensar alguns livros de Kafka, por exemplo, se não com essa perspectiva. Como explicar a transmutação de um homem que acorda um grande inseto, como em A Metamorfose, senão através de uma ampla e irrestrita capacidade de simbolização.

Como muito bem pontua Jorge (1968, p. 129) “Quando, em Kafka, as impressões esvaziadas das formas se misturam umas às outras, a intromissão indevida de uma impressão mais forte, faz ressaltar essa atmosfera de sonho e de inquietação que tanto marca sua obra”. O sonho, esse processo inconsciente tão estudado por Freud, retorna em inúmeros outros escritores, seja pela via direta da descrição factual, seja pela vaga impressão que certas obras dão de todo o tido como real, não passar de fantasia, ou um grande sonho, como fica extremamente claro em outra grande obra de Franz Kafka, O Processo.

Freud, num ensaio de 1908, Escritores Criativos e Devaneios, tratou das dimensões inconscientes na elaboração da literatura e os aspectos ainda inconscientes que aproximam o escritor com seus leitores. Se o sujeito que devaneia se envergonha de suas fantasias, uma vez que essas apontam para a realização de desejos os quais não são suportados pelo ego como agradáveis, é nas páginas de um romance que o sujeito pode realizar de certo modo catártico, a partir da fantasia de outrem, algo não permitido à priori. “O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces (...) que nos oferece na apresentação de suas fantasias”. De tal modo que “a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes”. (2006, p. 142).

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Os mitos, por exemplo, como bem lembra Villari (2002, p. 21) muito utilizados pelas mais diversas civilizações que já habitaram a Terra, não sendo nem de longe uma ferramenta da qual já se conseguiu abrir mão, é um exemplo interessantíssimo. Os mitos habitam o campo do simbólico e também do imaginário, contudo são tomados sob seu aspecto real uma vez presentificado na cultura, sendo tratados até como uma instância superior à ciência por muitas pessoas em diversas interpretações das causas do Real. Quando falta uma relação de causa e efeito linear, facilmente compreensível, é no mito que o humano se embasa para tentar explicar o que sempre permanecerá como insabido.

Os mitos dão um contorno mais palatável ao Real do qual nada se pode saber, uma vez que apenas é, para além de qualquer interpretação. Contorno da castração, enquanto não sujeição à impossibilidade de saber; e o saber se inventa. Freud (2006, p. 142) sinaliza que “é muito provável que os mitos, por exemplo, sejam vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem.” Assim, tem-se as fantasias que possibilitam o recobrimento da castração.

A criança, ainda em tenra idade já lança as bases desse fazer criativo retomado por todos os grandes escritores, ao que Freud (1996, p. 135) subscreve “acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?”, e amplia nas linhas subsequentes, “o escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade”. (FREUD, 1996, p. 135-136). Ou seja, a fantasia e a imaginação são características fundamentais da criação artística, de modo que tanto a brincadeira infantil, desvinculada de propósito social, quanto à árdua elaboração de uma obra literária possuem, no que tange a sua gênese, forte correlação.

Assim sendo, o escritor se assemelha a uma criança, não apenas no processo de criação supracitado, como em sua desinibição em revelar tais fantasias à avaliação e repressão social de forma ampla. A criança não tem medo ou vergonha de expressar suas fantasias, o mesmo não acontece no

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adulto, que mede, pensa, repensa e, muitas vezes, cala. Ousadia é uma das características mais marcantes dos grandes. Ousadia justamente por falar (ou expressar, das mais variadas formas), por deixar sair o que vem do âmago. E não à toa dentre os que mais se destacaram na arte de simbolizar através das palavras conta-se muitos aparentemente “desajustados” do ponto de vista social.

4.2 DOSTOIÉVSKI E SUA OBRA

Antes de iniciar este capítulo, vale a observação acerca das inúmeras traduções disponíveis para as obras de Dostoiévski. Na infeliz impossibilidade de ler a obra no original, foi necessário optar por uma, nesse caso a de Boris Schneiderman, eminente tradutor do russo, com o qual espera-se captar não o todo da obra, mas ao menos o que de fundamental ela expressa. A não utilização de uma obra em seu idioma original causa uma série de impasses, como a opção arbitrária do tradutor na substituição de expressões que não encontram paralelo entre os dois idiomas ou a mudança estilística que pode vir a acontecer. Sem escolha por não estar versado na língua russa e ciente dos percalços que tal empreitada exige é que se expõe esta dificuldade para que o leitor também esteja advertido destas nuances. Cabe ressaltar também que as obras de Freud e Lacan foram consultadas em suas traduções para o português, com a diferença de que por se tratarem de obras de bastante destaque e ampla discussão no meio psicanalítico alguns entendimentos estão convencionados para além da letra impressa. Ressalvas feitas, segue-se adiante, dentro do possível.

Em de 30 de outubro de 1821, sob o nome de Fíodor e com o sobrenome do avô materno, nasceu o segundo de sete filhos do casal Mikhail Andreivitch e Maria Fedorovna Netchaiev. O primeiro, Mikhail, viera ao mundo 1 ano antes e a proximidade etária entre os irmãos se transformaria em grande afinidade e mesmo em parceria para alguns empreendimentos. O sobrenome Dostoiévski tem origem no século XVII, quando o Príncipe Pinsk, dignitário de muitas terras na região de Minsk, atual Bielorússia, agraciou um de seus

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antepassados com algumas propriedades rurais, dentre as quais Dostoievo. A metonímia dá conta do resto.

O nascimento de Fíodor deu-se no hospital Mariinski, instituição onde o pai exercia a profissão de major-médico, em função da qual possuía uma exígua dependência contígua ao hospital, onde vivia a família. Após o nascimento do segundo filho, o pai obteve um apartamento um tanto mais espaçoso, ainda na mesma instituição.

Contando apenas sete anos de idade, em 1828, teve lugar a primeira crise de epilepsia, condição com a qual teve de se haver ao longo de toda a vida e que marcas significativas emprestou a sua existência. Tendo a veia militar dilatada já dentro de casa, em uma época na qual a estabilidade se alcançava de maneira muito mais cômoda nesse meio, no ano de 1837, Dostoiévski foi enviado, junto ao irmão, para a Escola Militar de Engenharia em São Petersburgo.

Alguns anos antes, em 1834, ambos os irmãos já haviam ingressado no internato particular de Leónti Ivánovitch Tchermák, ainda em Moscou que, segundo V. M. Ivanova, irmã de Fíodor e citada por Leonid Grosmann (1967, p. 173), “era notável pelo fato de que os alunos adquiriam nele grandes conhecimentos literários”. Ainda, de acordo com Grossman (1967, p. 175), “homens russos da década de 1840 costumavam assistir, quando moços, a cursos especiais de estética, estudando ao mesmo tempo a história da pintura e da escultura”. Sendo esse caminho, de modo até surpreendente, em grande parte, alheio ao traçado por Dostoiévski.

Uma vez interno da Escola Militar de Engenharia, que preconizava na grade curricular classes de geometria, física, fortificações e artilharia, a sua formação em artes está diretamente ligada a um impulso pessoal que fazia com que o estudante, nos intervalos, orientasse suas leituras e interesse para as grandes escrituras da literatura mundial e para a jovem crítica literária russa, a qual lhe fazia vezes da teoria em poesia.

Em sua correspondência com o irmão fica claro que a crença na própria habilidade da escrita já não lhe é novidade. Remeteu ao irmão uma carta acerca de uma discussão sobre Shakespeare com um tutor: “Ele disse que Shakespeare é apenas uma bolha de sabão (...) Você devia ter visto a resposta que eu enviei a ele! Era um modelo de polêmica. Deu a ele uma esnobada de

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primeira classe. Minhas cartas são obras-primas da ‘arte literária’”. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 25).

Foi ainda em 1837 que o pai Mikhail, reformado do serviço militar, mudou-se para o interior, tendo, em 1831, adquirido duas aldeias, Darovoe e Tchermachnía. Maria Fedorovna já havia lá se instalado logo após a aquisição, então enferma de tuberculose, no que seria a sua última residência, veio a falecer justamente pouco antes de o marido lá se estabelecer definitivamente. (GROSSMAN, 1967).

Na aldeia, o pai dado à vodca e discussões com os camponeses, acabou assassinado apenas dois anos após a mudança, até com certos requintes de crueldade por parte dos servos aos quais possuía. Com os negócios indo mal em virtude de fracas colheitas, certa feita Mikhail, um tanto irritado por alguma falha operacional daqueles que lhe pertenciam, iniciou uma forte agressão verbal a eles dirigida, sendo que um servo mais atrevido lhe respondeu em tom igualmente grosseiro e, temendo a reprimenda, instou aos demais – cerca de quinze – a acabarem com o mestre. E assim, naturalmente o fizeram, liquidando-o no mesmo instante, conforme relatou A. M. Dostoiévski, compilado por Grossman (1967, p. 176).

Com a patente de subtenente, Dostoiévski se graduou, finalizou os estudos e chegou a integrar a Seção de Desenho do Departamento de Engenharia de São Petersburgo, o que durou menos de um ano e culminou no seu pedido de reforma junto ao Exército. A baixa, ainda que de forma decidida, não ocorreu sem grande revolvimento em angústia: “Quanto ao meu futuro, você não precisa ficar preocupado. Eu vou encontrar uma maneira de me sustentar (...) estou livre agora. A única dúvida é o que vou fazer logo depois da minha baixa. (...) Eu não tenho dinheiro nem para comprar roupas civis”. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 24).

Nessa mesma época, por volta 1844, já dedicava boa parte de seu tempo a traduções, cujas primeiras centram-se em Balzac. Tanto que quando da escritura de seu primeiro livro Gente Pobre, em carta ao irmão, fez referência a Eugénie Grandet, livro que já havia traduzido, ao comparar o tamanho desse manuscrito ao seu, que acabara de ficar pronto. Assim, Dostoiévski cedeu ao desejo. Da farda imposta pela tradição patriarcal, às letras, eleitas como destino e forma de traduzir as angústias comuns ao que se denomina humano. Stefan

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Zweig (apud GROSSMAN, 1967, p. 72) salienta que “Dostoiévski mesmo, não faz o menor esforço para nos facilitar o acesso à sua alma (...) Dostoiévski só revela a sua intenção na obra já acabada”. Donde se vislumbra a densidade característica de suas personagens, sujeitos imersos na realidade de sua época, lutando como podem – e se debatendo como conseguem – para inscrever algo de próprio, de singular, no turbilhão de usos e costumes que dão o tom em uma sociedade demarcada por padrões de difícil transposição, como a russa do século XIX e todas as demais que se tem notícia.

O romance inaugural de Dostoiévski, “Gente Pobre” foi escrito e reescrito algumas vezes, mas quando de sua redação final para publicação – que à época se dava, no mais das vezes, em revistas ou periódicos para posterior compilação e edição em volume único – foi levado a Vissarion Bielínski, eminente crítico russo, que se maravilhou com a sua forma de escrever. Em Diário de um escritor, citado por Grossman (1967, p. 180) o próprio Dostoiévski recorda a ocasião em que

Falou-me com ardor, os olhos incendiados (...) ‘o que foi que escreveu? O senhor só pode ter escrito isto com intenção direta, como artista, mas será que penetrou com a compreensão toda essa terrível verdade que nos apontou? É impossível que já compreenda isso, com seus vinte anos. (...) O senhor atingiu a própria essência da questão e indicou num relance o que havia de mais importante. Nós outros, críticos e jornalistas, ficamos apenas argumentando, procuramos explicar isso por meio de palavras, mas o senhor, que é um artista, com um único traço aponta num tipo a própria essência, para que se possa apalpá-la com a mão, para que o leitor menos dado a pensar, de repente compreenda tudo!

Tais palavras ecoaram forte no íntimo de Dostoiévski, como alento ao menos, quando da época de sua condução aos campos de trabalhos forçados na Sibéria. “Foi o momento mais maravilhoso de toda a minha vida. Lembrando-a nos trLembrando-abLembrando-alhos forçLembrando-ados, eu me fortLembrando-aleciLembrando-a de espírito”, (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 181). Ao que já se divisava a habilidade ímpar em captar e traduzir a subjetividade do seu tempo. O exílio involuntário na Sibéria foi um período de enorme dificuldade e incerteza. Tal experiência lhe motivou a redação do belo livro Recordações da casa dos mortos, no qual, à força da vivência, algumas reflexões se impuseram em sua escrita, como a mortificação do sujeito ao ser submetido a castigos sem nexo e trabalhos absurdos e inúteis ou o sofrimento frente à impossibilidade de estar a sós, consigo mesmo.

Por volta de 1847, começou a circular entre alguns revolucionários que viam no czarismo um sistema atrasado e demasiado rígido. Habitualmente,

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reunia-se na casa de Pietrachévski um pequeno grupo de jovens para debater questões relativas ao encaminhamento de alternativas ao modo de governo em questão. “Uma vez por semana, havia reuniões em casa de Pietrachévski, das quais não participavam sempre as mesmas pessoas... Era um interessante caleidoscópio das mais diversas opiniões sobre os acontecimentos da época, as ordens do governo, as obras mais recentes nos diferentes ramos do conhecimento”. (GROSSMAN, 1967, p. 191). O czarismo representava, inevitavelmente, burocracia, privilégios explícitos de camadas nobres e desembocava em censura e controle desmedidos.

Dos presentes nas reuniões, 24 foram presos e acusados de conspiração, dentre os quais o Dostoiévski, acusado também de ler, divulgar e não denunciar uma carta de Bielinski à Gógol, eivada de expressões ignominiosas contra a Igreja Ortodoxa e o Império, que circulava clandestinamente de forma manuscrita entre os mais ousados. Foi imediatamente enviado para a fortaleza de São Pedro e São Paulo, onde permaneceu por cerca de dois meses sem qualquer contato com o exterior e sem algo para ler, enquanto vagarosamente o seu processo se arrastava pelas gavetas do funcionalismo. Tendo sido formalmente condenado, teve seus bens confiscados e lhe foi decretada pena de morte, a qual acabou por ser comutada em degredo para a Sibéria, no último instante, quando já o primeiro grupo de três convictos (Dostoiévski estava no segundo) estava atado ao poste para execução da pena capital. Permaneceu por cerca de quatro anos no campo de trabalhos forçados, para depois ser alistado como soldado raso no Sétimo Regimento Siberiano de Infantaria, ainda sem autorização para deixar a região.

Em 1857, casou-se com a viúva Maria Dmitrievna Issaiev e, tendo sua solicitação para viver em Moscou ou Petersburgo negada, passou a viver em Tvier. Passados mais dois anos foi autorizado a fixar residência em Petersburgo, onde um ano depois iniciou junto ao irmão Mikhail, a revista O Tempo que teve a sua primeira edição em 1861. Foi nessa revista que Humilhados e Ofendidos passou a ser publicado. O tempo não teve duração muito longa, teve suas operações forçosamente encerradas cerca de dois anos após a primeira edição, em função de um artigo um tanto liberal sobre a Polônia, então em conflito emancipatório e que não era bem visto pelo centralizador Império. (GROSSMAN, 1967)

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Logo em seguida, fundou outro periódico, A Época, em cujos quatro primeiros volumes foi publicado Memórias do subsolo – texto que adiante será melhor enfocado, em função de ser objeto mais específico da análise em linha – mas de vida igualmente curta devido a problemas financeiros que a inviabilizaram. Foi também nesse período que faleceu a sua primeira esposa e o seu irmão.

Por volta de 1865, iniciou a redação do célebre romance Crime e Castigo. Nesse texto monumental, Raskolnikov, personagem principal, vê-se as voltas com a ideia de que a alguns sujeitos é dado o direito de abdicar da ordem moral conservadora por serem tais destacados da massa homogênea da sociedade, como proeminentes instauradores de uma ordem outra, particular, alinhada a uma ética própria e tendo de responder exclusivamente a si mesmos. Para justificar seus atos invoca a figura e o exemplo de Napoleão Bonaparte. O drama que se abate sobre o personagem situa-se justamente em conseguir manter a hipótese, sobre a qual se edifica o seu arroubo homicida frente à culpa que lhe recai diante do duplo ato por ele perpetrado. “Para Dostoiévski isto é fundamental: reconhecer que se pode matar pelo simples prazer de fazê-lo, ou para se livrar de uma dívida, é melhor do que afirmar que se está matando pela causa da humanidade”. (PONDÉ, 2003, p. 234). A dubiedade inerente ao sujeito se escancara, a máquina dialética põe em marcha o conflito entre terreno e celestial, entre ideal e possível, crença e possibilidade de sustentação da mesma, o sujeito consigo mesmo, se perdendo em seus parâmetros, acabando por recair, talvez, em uma dívida que tinha de ser paga. Mas nem tudo são desilusões e Raskolnikov acabou por encontrar uma mulher na qual depositou a esperança de redimir seus pecados, indo viver, por imposição, tal o autor, na Sibéria. (DOSTOIÉVSKI, 1979).

Naquele mesmo ano conheceu Anna Grigorievna Snitkin e propôs-lhe casamento, aceito de pronto, ela fora por ele contratada como estenógrafa. Viajou à Alemanha, onde permaneceu por mais de quatro anos e por lá iniciou a redação de outra maravilhosa obra O Idiota. Foi também naquele país que O jogador foi escrito. Livro de evidente conteúdo autobiográfico, vez que nas mesas de jogo alemãs uma quantia considerável já havia sido dispendida.

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Em 1868 uma tragédia ímpar abalou significativamente Dostoiévski. Trata-se do falecimento de sua filha Sofia, então com apenas três meses de vida. Anna Grigorievna demarcou o ocorrido claramente

Não tenho forças para descrever o desespero que se apossou de nós, quando vimos morta nossa filha querida (...) eu tinha muito medo também pelo meu pobre marido o desespero dele era tempestuoso, tínhamos ambos a impressão de que não suportaríamos a nossa aflição. (GROSSMAN, 1967, p. 237).

Ele ainda teve mais dois filhos, sendo que um deles, Alexei foi a óbito aos três anos de idade, vítima de um ataque de epilepsia.

Os Demônios foi publicado em 1871, livro em que aborda, entre outras, a questão dos grupos secretos revolucionários que pipocavam à revelia da lei, cada vez com maior audácia. O assassinato de um membro do grupo “vingança popular” pelo líder da organização, próximo a Moscou, deu-lhe ensejo de abordar a temática, tão próxima aos acontecimentos de sua vida anos atrás. Foi nesse mesmo ano que Grossman situou o “último período” dos escritos de Dostoiévski, donde consta, com especial destaque o grande romance Os Irmãos Karamázov, que teve a sua primeira parte publicada em 1879. Autor de inúmeros contos e romances foi essa trama alçada à condição de obra-prima. Uma consistente narrativa acerca das conturbadas relações entre pai e filhos no seio da família Karamázov, que resulta no assassinato daquele por um dos filhos – ilegítimo, pois não reconhecido como tal – e que repercute de maneira totalmente distinta no psiquismo e, até mesmo, na sanidade dos outros filhos envolvidos.

Referido por Freud (2006) como o maior romance de todos os tempos, a trama psicológica envolve o leitor pela profundidade alcançada no delineamento dos traços constitutivos das personagens envolvidas. Dmítri, Ivan e Aliéksiei – os três filhos legítimos – reúnem-se na casa paterna após algum tempo de ausência e de imediato se reencontram com a figura autoritária, pândega e até mesmo histriônica do pai que quer tudo gozar e comandar. Um acordo tácito – inconsciente em certa medida – se instala entre os irmãos, o que culmina na supressão da vida paterna. Ivan têm alucinações, entabula longa conversação com o Diabo, donde advém a célebre constatação de que se Deus não existe então tudo é permitido. Dmítri sente-se extremamente culpado diante do ocorrido e mesmo não tendo sido pelas suas mãos que se tenha desenhado o fatídico destino paterno, o desejo de que isso ocorresse é suficientemente

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forte para que chegue mesmo a exigir uma penalidade que expie a sua falta em pensamento e desejo. “Não derramei o sangue de meu pai! Aceito o castigo, não por tê-lo matado, mas por ter querido matá-lo, e talvez mesmo o tivesse feito”. (DOSTOIÉVSKI, 1995, p. 356).

Tal obra guarda estreitas relações com alguns conceitos psicanalíticos que foram desenvolvidos anos depois por Freud, de modo que essa ficção permite reconhecer e debater analogicamente noções como as apresentadas no texto freudiano Totem e Tabu, acerca da reunião dos filhos para o assassinato do pai – a horda primitiva. Ou mesmo a ideia de que perante o supereu o sujeito se culpa – e se angustia igualmente – por ter posto uma intenção em prática ou por apenas a ter desejado. Trata-se, enfim, de marco da literatura mundial e uma narrativa que fortalece a inscrição da Rússia como berço de alguns dos maiores autores do gênero, dos quais cabe destacar como pares, Púchkin, Tólstoi, Gógol, Tchekov e Turguniév.

Faleceu em 28 de janeiro de 1881, em decorrência de complicações pulmonares, foi enterrado no cemitério do mosteiro Alexander Nevski, em São Petersburgo. Legou uma quantidade considerável de textos, novelas e romances, na maioria das vezes, problematizando o aparecimento da angústia. Essa, posto que constitutiva, não se restringe ou muito se altera nas diferentes épocas ou sociedades, cada cultura elaborando seus pontos de fuga e meios de lidar com isso que mobiliza ou paralisa. Que cada qual se depare com a sua, seja descentrado da sua ingênua ilusão de controle e domínio sobre a sua existência, é uma das grandes contribuições que perpassam a construção dostoievskiana. Noção que vinha sendo explorada na filosofia e que veio a ser apropriada no desenvolvimento da psicanálise encontrou na pena de Dostoiévski uma apaixonante forma de expressão.

Atendo-se agora um pouco mais ao romance Memórias do subsolo. Redigido em 1863, quando a primeira esposa de Dostoiévski estava no leito de morte, em função da tuberculose, esse escrito, poderosamente provocativo, foi publicado no ano seguinte. (GROSSMAN, 1967).

O personagem principal permanece inominado. Os paradoxos que o atravessam se ligam, particularmente, ao que vinha sendo experimentado na Rússia do século XIX. A servidão como motor da produção agrícola e latifundiária começou a ser posta em questão. A ligação dos camponeses com o

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solo, vista como atraso pelos nobres, que tanta riqueza as suas aldeias subtraíram, mas que orientados ao ocidente se mostraram dispostos a desvalorizar um proeminente fator que os constitui enquanto russos. O patriarcalismo radical que fundou essa sociedade sobre o czarismo centralizador orientado, invariavelmente, para o mesmo patriarcalismo transcendental da Igreja Ortodoxa que lhe servia de suporte. O capitalismo que iniciou a sua incursão por esses rincões, até então muito afastados da Europa. Os pequenos agrupamentos subversivos que questionavam a burocracia, a censura e a imobilidade social que se apresenta em forma de “castas” muito bem instituídas. Até mesmo o turbilhão no qual se viram imersos os habitantes das florescentes grandes cidades, que trouxeram consigo o paradoxo da não adequação às referências estabelecidas, mas que também não possuíam uma alternativa pronta sobre a qual se sustentar – que acabou por introduzir ideias niilistas, que bem poderiam ser entendidas como o mais absoluto grau de contestação da ordem vigente.

Toda essa temática social subjaz a construção desse romance, alçando-se para além da sociologia ao introduzir os paradoxos experimentados pelo “anti-herói”. Lembrando que em sua época, quando da publicação da sua novela, imersa em tensões desenvolvimentistas, grande parte da crítica russa a recebeu com um misto de desdém e enquadramento em panfletagem nacionalista, ao que Schnaiderman (2008, p. 9) salienta: “Tem-se assim um exemplo bem claro de como os contemporâneos muitas vezes são os piores intérpretes de uma obra”.

Do início ao fim em primeira pessoa do singular, transparece um tom algo confessional, com uma associação de ideias ininterruptas que se afirmam como alternativas ao estabelecido ideário racionalista, mecanicista e comportamentalista, amparados pela ciência e a estatística que preconizavam um apagamento do sujeito ante a tabulação de dados que culmina na previsão do que deveria ser desejado – do que seria digno de ser desejado:

Então, dizeis, a própria ciência há de ensinar ao homem (embora isto seja, a meu ver, um luxo) que, na realidade, ele não tem vontade nem caprichos, e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de tecla de piano ou de um pedal de órgão. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 37).

Ao que Bakhtin (2013, p. 74) sustenta “uma de suas ideias básicas (...) é precisamente a ideia segundo a qual o homem não é uma magnitude final

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e definida, que possa servir de base a qualquer cálculo; o homem é livre e por isso pode violar quaisquer leis que lhe são impostas”. Não há garantias para o ser humano, não há o imutável sobre o que se fiar; o questionamento leva, inevitavelmente, a mais questionamentos, não havendo lugar para a certeza.

Dividido em duas partes, a primeira é denominada “O subsolo”, na qual o personagem “faz sua própria apresentação, declara seus pontos de vista e procura explicar os motivos pelos quais ele surgiu e teria de surgir no nosso meio”. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 14). O início já é arrebatador:

Sou um homem doente... sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou). (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 15).

Ousando haver-se com as contradições que se desdobram em seu discurso, o anti-herói chega ao cúmulo do paradoxalismo ao demandar sempre a atenção do outro para a sua obstinada reclusão e afastamento. A própria narrativa poderia bem ter um tom de diário secreto, não fosse desde o início dirigida ao mundo. Evidentemente, não se trata de autoelogio, de loas a sua personalidade, mas basicamente o contrário, uma reprovação incessante, uma constatação da sua inabilidade em lidar com a sociedade e com os outros representantes do ideário da época, de modo que acaba por buscar um lugar de reconhecimento para o seu discurso, proscrito no olhar do outro, sempre o tomando como opositor. Busca sempre esse mesmo outro que o ouça, que lhe permita lugar de fala e lhe dê azo para afirmar independência e idiossincrasia, não apenas como reflexo da sociedade na qual está inscrito, mas como posicionamento.

Bakhtin (2013, p. 68) afirma que “o herói do subsolo dá ouvido a cada palavra dos outros sobre si mesmo, olha-se aparentemente em todo os espelhos das consciências dos outros, conhece todas as possíveis refrações de sua imagem nessas consciências”.A demarcação desse lugar do outro que lhe ouça as confissões – segundo Bakhtin (2013, p. 319) –, a ideia inicial do autor era chamar de “Confissão” esse escrito – vem emoldurada por um perceptível prazer em se mostrar tal como se é, para além das convenções sociais altamente valorizadas nos salões nobres da época. Essa aceitação, não resignada, do “lide com o que és” lhe confere certa altivez ao falar, por encontrar um lugar no

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mundo – ou mesmo longe do mundo – lugar esse que bem poderia ser qualquer um, posto que se constrói par a par com seu discurso e apresenta-se apenas como contestador. Em vez de produzir afirmações “ingênuas” como o fazem os que o rodeiam, em vez de enunciar positivamente suas impressões sobre o mundo, põe seu rolo compressor à marcha, ainda que às custas de viver a nostalgia de não poder fazer diferente, como fica claro quando afirma:

Oh, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria então! Respeitar-me-ia justamente porque teria a capacidade de possuir em mim ao menos a preguiça; haveria, pelo menos, uma propriedade como que positiva, e da qual eu estaria certo. Pergunta: quem é? Resposta: um preguiçoso. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 31).

Contudo, a sua ironia mordaz não se atém, e prossegue:

E eu criaria então um tal barrigão, armaria um tal queixo tríplice, elaboraria um tal nariz de sândalo que todo transeunte diria, olhando para mim: ‘Este é que é um figurão! Isto é que é verdadeiro e positivo!’. Seja o que quiserdes, mas é agradabilíssimo ouvir opiniões assim em nosso século de negação, meus senhores. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 32).

Ou quando sustenta que exista mesmo prazer nos gemidos de uma dor de dentes:

Neste caso, naturalmente, a pessoa não se enfurece em silêncio, mas geme; no entanto, não são gemidos sinceros, são gemidos maldosos, e tudo consiste justamente nessa maldade. Nesses gemidos é que se expressa o prazer do sofredor; se não sentisse neles prazer, não iria sequer soltá-los, (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 26),

parece alegorizar toda a sua situação. O gemido é para ser ouvido, é um sarcasmo endereçado; assim também se fazem ouvir as suas notas, como um amplo sarcasmo oriundo da dor. Com relação a esse autoexílio que, paradoxalmente, não deixa o outro totalmente de fora, Bakhtin (2013, p. 273) argumenta que “a vida do herói do subsolo é desprovida de qualquer espécie de enredo (...) o outro ‘real’ pode entrar no mundo do homem do subsolo apenas como o ‘outro’ com o qual ele já vem travando sua polêmica interior desesperada”.

Frases como: “nunca fui covarde de espírito, embora incessantemente me acovardasse de fato, mas esperem com este riso, há explicação para isto; tenho uma explicação para tudo, eu vos asseguro”. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 63). Ou, ainda, “eu queria apaixonadamente demonstrar a toda aquela ‘cambada’ que não era de modo algum o medroso que eu mesmo imaginava ser”. (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 84). Dão a tônica do tom de reproche ao qual imperiosamente está submetido.

Referências

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