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Moeda, Estado e poder : limites dos Direitos Especiais de Saque enquanto alternativa ao dólar como moeda-chave

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Academic year: 2021

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ALINE REGINA ALVES MARTINS

MOEDA, ESTADO E PODER: LIMITES DOS DIREITOS ESPECIAIS

DE SAQUE ENQUANTO ALTERNATIVA AO DÓLAR COMO

MOEDA-CHAVE

Campinas 2014

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vii RESUMO

Esta tese tem por objetivo analisar os Direitos Especiais de Saque (DES) enquanto possível alternativa à hegemonia do dólar no sistema monetário-financeiro internacional após a crise de 2008. Este ativo foi criado no final de 1969 pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e, por ser emitido por uma instituição multilateral, não está vinculado aos interesses nacionais de nenhum país emissor. Logo, seria uma moeda mais estável e capaz de atender aos problemas e necessidades da comunidade internacional. Nesse sentido, embora os DES tenham tido insucesso no passado, seus entusiastas garantem que são a solução mais efetiva às inconstâncias da ordem monetária e financeira ressaltadas pela recessão, já que trariam mais estabilidade, confiança e previsibilidade à emissão de liquidez internacional. No entanto, embora sua importância e funcionalidade sejam enfatizadas, os DES continuarão ocupando um patamar secundário na ordem monetária internacional. Sua posição inferior se deve por desconsiderar a natureza social e estatal da moeda.

Palavras-chave: Direitos Especiais de Saque; moeda – aspectos políticos; reforma monetária.

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ix ABSTRACT

This thesis aims to analyze the Special Drawing Rights (SDRs) as a possible alternative to the dollar hegemony in the international monetary and financial system after the crisis of 2008. This asset was created in 1969 by the International Monetary Fund (IMF). Being issued by a multilateral institution, it is not linked to any national interests. Therefore, it would be a more stable currency, capable of meeting the needs and problems of the international community. In this sense, although it has had failures in the past, SDRs enthusiasts guarantee it is the most effective solution to the inconsistencies of the monetary and financial order, as it would bring more stability, reliability and predictability to the emission of international liquidity. However, although having its importance and functionality emphasized, the SDRs will continue occupying a secondary level in the international monetary order because of its disregard for the social and state related nature of the currency.

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xi SUMÁRIO

Introdução geral ... 1

Capítulo I. Contribuições teóricas para compreender a relação entre moeda, Estado e poder ... 7

I.1 Teoria cartalista: moeda como uma “criatura” do Estado ... 9

I.1.1 Alguns aspectos da teoria metalista: uma breve explicação ... 10

I.1.2 Caráter político e social da moeda ... 12

I.1.3 Moeda como dívida: centralidade da função unidade de conta ... 14

I.1.4 Moedas privadas e a hierarquia monetária... 24

I.2 Teorias da moeda como convenção e o conceito de poder simbólico: outras contribuições à compreensão da moeda e sua aceitabilidade ... 31

I.3 Pensar a moeda no plano internacional ... 40

I.3.1 Moeda internacional: a história de uma ideia ... 45

Considerações finais ... 52

Capítulo II. A história dos Direitos Especiais de Saque (DES)... 55

II. 1 Problema de liquidez no sistema de Bretton Woods ... 55

II.2 O que são os DES? ... 58

II.3 Debates que antecederam a criação dos DES... 59

II.3.1 Debates e propostas iniciais ... 60

II.3.2 O debate sobre reforma do sistema monetário na França ... 64

II.3.3 Superando as divergências entre os países da CEE ... 68

II.4 Surgem os DES ... 69

II.5 Formação da Conta de Substituição: transformar os DES em um verdadeiro substituto ao dólar no sistema monetário internacional ... 78

II.5.1 Impasses e críticas à Conta de Substituição ... 83

II.6 Aceitabilidade dos DES nos anos 1980 ... 87

Considerações finais ... 90

Capítulo III. A crise de 2008 e o retorno das propostas de reforma do sistema monetário internacional: retorno dos DES? ... 93

III.1 A crise de 2008 e o papel do dólar no sistema monetário internacional... 94

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III.1.2 Causas principais da crise ... 99

III. 2 E como a crise poderia ter afetado o status do dólar? ... 105

III.2.1 Hegemonia do dólar: o que significa ser a moeda mais importante do SMI? .. 106

III. 3 A busca por alternativas ... 112

III.3.1 As políticas chinesas de internacionalização do iuane ... 117

III.3.2 Limites do euro... 121

Considerações finais ... 126

Capítulo IV. Os DES: uma moeda incompleta ... 129

IV. 1 Possibilidades dos DES na ordem monetária financeira vigente ... 131

IV.1.1Problema das reservas internacionais e o papel dos DES ... 132

IV. 2 As dificuldades dos DES e de sua instituição emissora ... 137

IV. 2.1 Reforma do FMI... 140

IV. 3 Limites dos DES: a desconsideração da natureza social e política da moeda ... 148

IV. 3.1 Relação entre moeda e poder na ordem internacional contemporânea: os Estados Unidos e seus privilégios ... 151

Considerações finais ... 163

Referências bibliográficas ... 171

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes, que me acompanhou nessa longa trajetória acadêmica, desde a graduação até a conclusão desta tese de doutorado. Sempre me apoiou em todas as minhas decisões, inclusive na mudança brusca de tema de pesquisa do doutorado.

Também sou imensamente grata ao meu coorientador, o professor Carlos Eduardo Ferreira de Carvalho. Suas contribuições e dedicação foram fundamentais para a consolidação desta pesquisa. Ao Marcos Antonio Macedo Cintra também agradeço pela oportunidade de trabalharmos juntos no Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). Ele foi uma inspiração essencial para a escolha do tema deste estudo e sempre pude contar com seus ensinamentos. Aos demais colegas do Ipea, sou grata por todo aprendizado e pela convivência tão proveitosa.

Também agradeço ao Sebastião Velasco e Cruz, que esteve presente não somente em minha banca de doutorado, mas também na do mestrado e da monografia, acompanhando toda minha trajetória profissional. Igualmente, agradeço à Patrícia Fernandes Cunha pelas fundamentais contribuições a este estudo. Ao Jaime César Coelho, agradeço não somente pelas ótimas considerações a esta tese, mas também pelo suporte para a realização do doutorado-sanduíche. Não poderia deixar de agradecer também aos professores que gentilmente aceitaram ser suplentes de minha banca: Alexandre César Cunha Leite, Giuliano Contento de Oliveira e Andrei Koerner.

Agradeço imensamente ao Eric Helleiner, meu supervisor durante o doutorado sanduíche no Balsillie School of Internacional Affairs (BSIA). Nossas proveitosas conversas foram enriquecedoras e basilares para a esta pesquisa. Ademais, sou imensamente grata aos demais professores, colegas e amigos da BSIA, que me receberam tão bem, e à própria instituição, que me proporcionou uma infraestrutura de estudo e pesquisa impecável.

Também agradeço à secretaria do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e à coordenação de pós-graduação de Ciência Política pelo suporte ao longo do doutorado, inclusive para a realização da defesa em um momento tão delicado da instituição.

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Com muito carinho, lembro dos meus amigos que me acompanharam ao longo desses anos e dos novos que fiz durante essa intensa trajetória. Obrigada a todos pelo carinho e apoio!

À minha família, não existem palavras que deem conta de traduzir meus sentimentos. Obrigada pelo apoio imprescindível em todas as decisões tomadas por mim para a realização deste trabalho, muitas das quais culminaram na minha ausência em momentos importantes para nós.

Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo suporte financeiro para a realização desta pesquisa.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1- Quotas dos membros representados na Conferência Monetária e Financeira das

Nações Unidas que aceitaram a adesão antes de 31 de dezembro de 1945 ... 73

Tabela 2 - Peso das moedas que compõem a cesta dos DES ... 78

Tabela 3- Alocações e Posse de DES. ... 88

Tabela 4- Composição da dívida externa (2008). Países selecionados ... 112

Tabela 5- Distribuição de quotas e poder de voto no FMI ... 139

Tabela 6 - Distribuição de quotas após a 14ª Revisão Geral de Quotas ... 144

Tabela 7 - Países selecionados que aceitaram o aumento de quota, nos termos da 14ª Revisão Geral de Quotas ... 145

Tabela 8 - Composição das reservas internacionais, por moeda. ... 156

Tabela 9 - Principais mantenedores de títulos de dívida americanos ... 158

Tabela 10 - Maiores detentores de títulos do Tesouro americano ... 159

Tabela 11- Giro médio diário no mercado global de moedas; abril/2010 ... 161

Tabela 12 -Países que aceitaram o aumento de quota, nos termos da 14ª Revisão Geral de Quotas (total). ... 181

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INTRODUÇÃO GERAL

Os fenômenos monetários não deixam ninguém indiferente. Eles intrigam e inquietam todo mundo. Por um lado, a moeda é cercada de tal aura de mistério que sua manipulação e seu estudo parecem, para o leigo, atividades esotéricas, domínios fora do alcance de sua compreensão. Por outro lado, a moeda é a realidade social que penetra mais intimamente na vida privada de cada um, que dilacera as amizades mais sólidas, que desintegra as resoluções morais mais aguerridas. Diante da face enigmática da moeda, os economistas e os políticos não estão em posição mais vantajosa do que o homem comum (AGGLIETA, ORLÉAN,

1990:25).

A ascensão dos Direitos Especiais de Saque (DES) – muitas vezes denominados de “moeda do FMI” – ao patamar de principal moeda internacional se tornou um debate recorrente após as instabilidades advindas com a crise de 2008. No entanto, eles não têm condições de assumir papel proeminente no sistema monetário global. Menos ainda podem substituir o dólar como moeda central, caso a moeda norte-americana se enfraqueça a ponto de perder a capacidade de exercer esse papel.

Os debates sobre as reformas do sistema monetário internacional ganharam novo fôlego com a crise econômica e financeira deflagrada em 2008. Instituições multilaterais e diversos fóruns de discussão públicos e privados voltaram a tratar intensamente sobre a necessidade e as possibilidades de se estabelecer um regime monetário e financeiro global dotado de maior estabilidade. Como em outros momentos nas últimas décadas, colocou-se outra vez em debate a alternativa de uma moeda supranacional supostamente livre das restrições de uma moeda nacional que desempenhe papel global.

Os DES voltaram a ser apontados como o candidato natural à função de principal moeda internacional. Apesar das expectativas de que possam desempenhar esse papel, contudo, desde sua criação, nos anos 1960, os DES mantêm participação inexpressiva na ordem monetária global. Nas propostas de reforma pós-crise 2008, frequentemente são abordados seus entraves técnicos para que possam exercer papel central no campo monetário. Para além dessas limitações recorrentemente citadas, a tese aqui defendida baseia-se na

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afirmação de que os DES não sairão de sua condição secundária por não considerarem a natureza social e política da moeda.

O Estado é central no desenvolvimento de um sistema monetário, nacional ou internacional, já que tem o poder de determinar o que será moeda, embora o setor privado também possa criar dinheiro (uma evidência de dívida) – mas com menor grau de aceitabilidade no campo monetário. De acordo com Fiori (2001), a moeda tem papel decisivo na competição intercapitalista e na luta por poder e hegemonias internacionais. A ampliação da esfera de influência das finanças e moedas dos Estados sempre esteve associada à expansão de seus territórios econômicos. Uma moeda estatal forte integra-se a um sistema financeiro nacional também robusto, aliança esta que tende a se ampliar:

(...) nos ciclos de expansão financeira de que nos falam Arrighi e Braudel, o estado se alia às finanças sustentando a multiplicação do capital fictício ‘pelo toque da vara de condão’ das dívidas públicas. Com a diferença de que hoje, avançado o processo de internacionalização e desregulação das finanças, surgiu uma espécie de ‘dívida pública mundial’ que é administrada como um sistema de crédito internacional (...). Além do que, desfeitas as fronteiras entre moeda, finanças e capital, as políticas monetárias se transformaram em alavancas simultâneas da competição entre os estados e do jogo especulativo e de acumulação da ‘riqueza abstrata’” (FIORI, 1997:143).

Os DES surgiram em 28 de julho de 1969. Emitidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), eles foram concebidos inicialmente para suplementar as reservas em dólar durante o sistema de Bretton Woods. O objetivo era que os países conseguissem aumentar suas reservas sem depender dos déficits dos fornecedores de reservas internacionais, os Estados Unidos. Pensava-se que dessa forma se poderia manter a estabilidade do sistema monetário internacional, a confiança na ordem monetária e a capacidade de expansão das reservas internacionais sem a criação de desequilíbrios crescentes.

Durante os anos 1970, com as propostas de criação de uma Conta de Substituição, houve a possibilidade de os DES se tornarem não somente um suplemento mas um substituto do dólar nas reservas internacionais. A Conta tinha dois objetivos principais. Primeiro, fortalecer a estabilidade no mercado de câmbio ao fornecer aos bancos centrais estrangeiros meios para diminuir suas reservas de dólares que não envolvesse a venda da moeda

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americana nos mercados privados. Segundo, ajudar a transformar os DES no principal ativo de reserva do sistema monetário internacional (GOWA, 1984). A esperança, de acordo com Moffitt (1984), era que esses ativos se tornassem a principal unidade de moeda corrente internacional em substituição ao dólar aliviando, assim, a fonte básica de pressão sobre o sistema monetário. Por ser uma moeda sem qualquer vínculo estatal, esse ativo teria um caráter mais estável. Dessa forma, os DES eram vistos como a alternativa mais eficaz face às desordens engendradas pelo dólar no sistema monetário e financeiro internacional.

O FMI estabeleceria e administraria uma Conta na qual os bancos centrais voluntariamente poderiam depositar dólares e em troca receberiam créditos denominados em DES. Estes poderiam ser utilizados de modo limitado, de acordo com as regras prescritas.

No final dos anos 1970, havia uma necessidade mais imediata de se combater a desvalorização do dólar no mercado de câmbio. As pressões sobre o dólar tornaram-se intensas em 1977 e ele se encontrava em uma queda prolongada que duraria até o final da década. Ganha força neste período o desejo de transformar os DES no principal ativo de reserva no sistema monetário internacional. Os Estados Unidos pareciam ter interesse em estabilizar a demanda por sua moeda e também acabar com o excesso de participações em dólar nas reservas sem depreciar o valor de sua moeda.

A queda no valor o dólar despertou o interesse pela Conta dado o fato de se possibilitar diversificar as reservas para além do dólar (já que estava em abrupta desvalorização) sem criar desordem no mercado de câmbio. Houve, portanto, uma relação direta entre as oscilações do dólar com o aumento e queda no interesse sobre a implementação da Conta de Substituição.

No entanto, a Conta não vingou em função de impasses sobre quem arcaria com os custos de sua implementação. O FMI foi ineficaz em persuadir os países-membros a concordarem com qualquer tipo de distribuição de custos inserida na proposta de reforma do sistema monetário internacional. Dessa forma, os DES tornaram-se uma mera adição ao estoque de moeda internacional, aquém de sua pretensão inicial de substituir o dólar na economia internacional. Além desses impasses políticos, a recuperação da moeda americana a partir do final de 1979 e o aumento da demanda por dólares em função do incremento do

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preço do petróleo em 1979 (segundo choque do petróleo), tiveram igualmente participação decisiva para o colapso das negociais a respeito da implementação da Conta de Substituição.

Os esforços para se criar os DES, embora tenham sido vitoriosos por um lado, por outro foram derrotados em um sentido mais amplo, já que foram pensados para determinadas condições econômicas que nunca emergiram (GOWA, 1984). Os DES foram uma resposta direta ao receio da possível insuficiência de dólares na economia global por conta dos desequilíbrios no balanço de pagamentos. Contudo, os anos 1970 foram marcados pelo excesso de liquidez de dólar, não pela escassez. Nesse sentido que Helleiner (2010) aponta como a história de criação dos DES foi altamente irônica.

Mas apesar do fracasso na implementação da Conta de Substituição, tentou-se aumentar o grau de aceitabilidade dos DES nos anos 1980. Como exemplo, o FMI passou a tomar algumas medidas no sentido de permitir que os países-membros e outros usassem DES em swaps, transações a prazo, empréstimos, doações. Essa tentativa de liberalização dos DES, porém, teve uma efetividade limitada já que essa política foi orientada mais pelo desejo do FMI de promovê-los do que por uma demanda latente de usá-los.

Entretanto, a maior parte das propostas de reforma pós-crise reacendeu o interesse em torno dos DES. Como um dos instrumentos para combater os efeitos da recessão, houve a emissão de mais de 160 bilhões de DES – a primeira desde 1982 e a maior até então. Ganharam destaque na agenda internacional as reformas do sistema monetário e financeiro internacional que ressaltavam a necessidade de substituição do dólar pelos DES como moeda-chave. Dado seu caráter supranacional, eles dariam mais estabilidade, confiança e previsibilidade à emissão de liquidez global e, por conseguinte, ao sistema monetário-financeiro como um todo.

As propostas de reforma destacam os problemas decorrentes da posição ocupada pelo dólar no sistema internacional e como esta moeda contribuiu para o estouro da crise. São enfatizadas as instabilidades geradas por conta de uma moeda nacional investir das funções de moeda internacional; a prevalência dos interesses nacionais na condução da política monetária pelos Estados Unidos, em detrimento de suas “responsabilidades” como emissor da moeda internacional; e os privilégios que essa condição oferece aos americanos e que cooperam para realimentar os déficits crônicos em suas contas. Ademais, enfatiza

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preocupações concernentes à regulação inadequada do sistema financeiro – abrindo espaço para práticas financeiras arriscadas – e aos desequilíbrios nos balanços de pagamento dos países (um país com grande acúmulo de reservas internacional em contrapartida a países com déficits crônicos).

Além da ampliação do desconforto face a estes problemas, com a crise passa-se a questionar cada vez mais a sustentabilidade da dívida do Tesouro americano, o que poderia representar uma rejeição não somente a esses títulos mas, em última instância, ao próprio dólar. A estabilidade é uma condição inerente a uma moeda. Contudo, a crise evidenciou a instabilidade que os títulos e o dólar americano podem causar à economia global.

Os entusiastas dos DES debatem sobre os limites que esse ativo precisa superar para mudar seu passado de fracasso e galgar o posto de principal moeda internacional em substituição ao dólar. Dentre os problemas a serem combatidos estão o fato de não serem usados nos mercados privados, estando restritos às transações entre os bancos centrais e entre estes e o FMI, ao lado da lentidão do Fundo em emiti-los em tempos de crise – que exigem ações rápidas.

No entanto, os DES mais uma vez não concretizam seus objetivos. Embora diversos atores internacionais de relevância, como instituições multilaterais, blocos econômicos e acadêmicos (a exemplo de Joseph Stiglitz) enfatizem a importância e a funcionalidade deste ativo, os DES continuam no mesmo patamar secundário na ordem monetária internacional.

Para embasar a hipótese deste estudo, o primeiro capítulo apresenta as abordagens teóricas que destacam a ligação intrínseca entre moeda, Estado e poder. Discute-se também o conceito de poder simbólico, de Bourdieu (1989), com o objetivo de expandir a compreensão sobre a conformação e a aceitação de uma moeda no plano nacional e internacional e sua relação com o poder político.

O segundo capítulo analisa a história dos DES, a partir dos debates que antecedem e pautam sua formulação. É apresentada sua composição, suas regras de emissão e alocação e seu surgimento para combater os problemas de liquidez ainda no sistema de Bretton Woods. Também é apontada a discussão sobre a possibilidade de criação de uma Conta de Substituição, que tinha por intuito tornar possível a transformação dos DES na

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principal moeda-reserva internacional, no lugar do dólar. Ademais, discutem-se os impasses, críticas e o malogro em sua concretização. Frente ao insucesso dos DES, por último analisa-se analisa-seu papel limitado no sistema monetário nas décadas posteriores.

No capítulo 3, debate-se sobre a crise de 2008 e o ressurgimento das propostas de reforma do sistema monetário internacional que visam o fortalecimento dos DES no campo monetário. São ressaltadas as causas principais da crise, como a regulação inadequada das práticas financeiras e os desequilíbrios globais, bem como em que medida esta recessão afeta o status do dólar enquanto moeda-chave. Também discorre-se rapidamente sobre a conformação da hegemonia monetária e financeira do dólar no século XX a fim de se entender a natureza da sua predominância. Em seguida, são enfatizados os entraves recorrentemente citados das possíveis moedas rivais do dólar ao posto de moeda-chave (euro e iuane), o que amplia ainda mais o leque de oportunidades aos DES na ordem monetária.

Por fim, no capítulo 4, discute-se inicialmente a respeito das promessas dos DES em combater eficazmente a instabilidade e a imprevisibilidade da ordem monetária e financeira vigente. Analisando os relatórios de importantes instituições multilaterais e outros agentes que encabeçam essa discussão, destacam-se também os problemas comumente apresentados desse instrumento monetário em se tornar uma moeda internacional de relevância. Logo após, são debatidos os limites dos DES do ponto de vista defendido neste estudo. Pretende-se demonstrar como esse ativo, por ignorar a relação intrínseca entre moeda e poder, da mesma forma que no passado, repetirá mais uma vez seu histórico de insucesso em suas pretensões de atingir o status de moeda-chave internacional.

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CAPÍTULO I. CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS PARA COMPREENDER

A RELAÇÃO ENTRE MOEDA, ESTADO E PODER.

Nos recorrentes manuais de Economia, são apresentadas as três funções básicas que a moeda desempenha no mundo econômico: unidade de conta (ou unidade de valor), meio de pagamento e reserva de valor. A diferenciação entre a moeda em suas três funções baseia o entendimento de uma “hierarquia entre todos os instrumentos financeiros que funcionam como moeda” (CRESPO, CARDOSO, 2010:12). Enquanto unidade de conta, a moeda exerce o papel de medir o valor das coisas. Por meio dessa função, conseguimos comparar o valor de diferentes bens. Como meio de pagamento, a moeda funciona como uma intermediária das trocas. Assim, podemos adquirir um produto ou serviço sem necessidade de possuir outros bens para dar em troca. Por vez, na função reserva de valor, a moeda aparece na forma de poupança, a fim de se preservá-la e gastá-la futuramente.

Não somente o Estado é capaz de criar moeda, mas é também um papel desempenhado pelo setor privado (bancos, por exemplo). Contudo, não são todas as moedas que exercem integralmente essas três funções, o que se reflete no grau de aceitação de cada uma delas.

A moeda também cumpre essas três funções no plano internacional1. A moeda

mais importante da hierarquia monetária é aquela que consegue exercer integralmente todas as funções clássicas. Destarte, ela é utilizada em grande medida “nas transações monetárias (meio de troca) e financeiras (unidade de denominação dos contratos), bem como é o ativo mais líquido e seguro e, assim, mais desejado pelos agentes como ativo de reserva” (PRATES, 2005:274).

1Todavia, especialistas estabelecem diferenças entre essas funções da moeda nos âmbitos privado (mercados internacionais) e público (relação entre governos, bancos centrais). Assim, a moeda no plano internacional exerce seis papéis. De acordo com Cohen (2009), com essa separação nestes dois âmbitos, é possível compreender mais eficazmente a relação da moeda com o poder estatal, pois será possível compreender, por exemplo, quais funções são mais determinantes que outras para o estabelecimento da hegemonia de uma moeda internacionalmente. Dessa maneira, as funções da moeda no cenário internacional são: meio de pagamento/moeda veicular (meio de pagamento); moeda de denominação (unidade de conta); moeda de investimento e financiamento (reserva de valor) – âmbito privado; moeda de intervenção (meio de pagamento); moeda de referência/âncora (unidade de conta); moeda-reserva (reserva de valor) – âmbito público (DE CONTI, 2011).

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Não obstante, nesta pesquisa buscamos ir além das definições e funções da moeda propostas pelos manuais. Objetivamos buscar elementos teóricos que auxiliem no entendimento das correlações existentes entre Estado, poder e moeda. Dessa forma, planejamos contribuir para a compreensão de uma possível ascensão de uma moeda supranacional pós-crise 2008, contexto no qual a principal moeda internacional (dólar) está intrinsecamente ligada ao poderio de seu Estado emissor (Estados Unidos).

Para tal, intentamos nesta etapa inicial do estudo apresentar a perspectiva da moeda2 enquanto uma “criatura do Estado”, abordagem desenvolvida pela teoria cartalista

da moeda. Nesse sentido, a moeda está ligada de modo intrínseco ao poder político e, dessa forma, torna-se um elemento importante de estudo para a Ciência Política. Igualmente, o entendimento das funções monetárias é de fundamental importância para a compreensão das Relações Internacionais, já que a hierarquia entre as moedas reflete, no plano internacional, a assimetria de poder existente nas relações interestatais.

A teoria cartalista da moeda foi desenvolvida com Georg Friedrich Knapp em 1905 e retomada contemporaneamente (revisada e com novas proposições) por autores pós-keynesianos. É importante enfatizar que desde Knapp, autores como Max Weber, John Maynard Keynes e Abba Lerner absorveram em maior ou menor medida a perspectiva cartalista, inclusive desenvolvendo críticas diretas à Knapp, como Weber, por exemplo, considerando questões inflacionárias as quais o primeiro não teria se preocupado em suas análises. Por sua vez, Keynes, apesar de influenciado pelo cartalismo, conferiu mais importância ao sistema bancário do que Knapp em sua teoria monetária. Já na retomada contemporânea da abordagem cartalista, esta ganha novos elementos para a compreensão de uma nova ordem monetária pautada em uma moeda totalmente fiduciária.

Não pretendemos expor a contribuição de cada autor à teoria cartalista, mas sim apresentar de modo geral sua essência, abordando de modo singelo as divergências entre os considerados cartalistas ou influenciados por esta abordagem.

2 Nesta pesquisa se usará moeda e dinheiro como sinônimos, apesar de haver discussões concernentes à diferenciação entre esses dois termos, como se observa nos escritos de Karl Marx. Dado o escopo desta pesquisa, não se atentará a esse debate.

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Igualmente, buscamos discorrer sobre outras abordagens sobre a moeda que somam à compreensão de sua relação com o Estado e sua aceitabilidade na economia. Dessa forma, apresentamos as possíveis convergências entre a teoria convencionalista da moeda, de Michel de Aglietta e André Orléan (1990;2002), com a teoria cartalista da moeda. Além disso, procuramos expandir o entendimento sobre a conformação e a aceitação de uma moeda na economia nacional e internacional por meio da utilização do conceito de poder simbólico de Pierre Bourdieu (1989).

I.1 Teoria cartalista: moeda como uma “criatura” do Estado

Para a teoria cartalista, a moeda está ligada, inerentemente, a questões políticas. Para esta abordagem teórica, a moeda é uma “criatura” do Estado. Cabe ao poder político a denominação da unidade de conta e do meio de pagamento que será usado na economia.

É o Estado que determina o dinheiro da economia ao declarar qual moeda aceitará para pagamento de tributos. O importante, destarte, para uma moeda é a sua aceitação ou não pela autoridade soberana. Esta é a força central no desenvolvimento de um sistema monetário já que tem o poder de escolher qualquer coisa, seja moeda metálica, papel-moeda, e torná-la aceitável de modo geral ao proclamar que a aceitará como pagamento de impostos e taxas. A origem da moeda não está no âmbito privado, usada inicialmente como um instrumento facilitador de trocas (como aponta a teoria metalista da moeda), mas sim no setor público, ligada à denominação e pagamento de dívidas para instituições públicas (METRI, 2007). Knapp (2003) não desconsidera que a moeda esteja também relacionada à busca da diminuição dos custos de transação no processo das trocas, mas, “a moeda não pode ser definida apenas ou principalmente pela sua função de facilitadora de trocas, muito menos uma mercadoria eleita entre todas as outras para cumprir este papel” (AGGIO, ROCHA, 2009:156).

Constata-se que Knapp (2003) parte, efetivamente, de uma crítica aos princípios teóricos da tradição metalista com a finalidade de analisar o que pensou ser o equívoco basilar desta (e da literatura econômica de um modo geral): “a exclusão do poder soberano das questões monetárias, desde o conceito mais elementar de moeda” (METRI, 2007:26). Para Knapp (2003), não é possível separar a teoria monetária da teoria do Estado.

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Com efeito, é importante que se exponha sucintamente a visão da teoria metalista da moeda com o intuito de se traçar claramente à qual visão a perspectiva cartalista se contrapõe e compreender mais eficazmente a própria abordagem da “moeda cartal”.

I.1.1 Alguns aspectos da teoria metalista: uma breve explicação

Existem muitas controvérsias a respeito da natureza e do papel do dinheiro. A divergência entre metalistas e cartalistas consolida as visões antagônicas que se tem sobre a origem e a utilidade da moeda na sociedade (BELL, 2001).

A abordagem metalista corresponde em tratar a moeda como um elemento subordinado à lógica do mercado. A moeda teria surgido espontaneamente na sociedade a fim de facilitar as trocas em uma economia de escambo. O poder soberano não participaria desse processo. Muitas ineficiências das trocas seriam superadas, como os custos de transação. O mercado teria surgido antes que a própria moeda, devido a uma pré-disposição humana para a troca, defende essa visão. Aristóteles (1999;158/162) afirma que a moeda foi inventada para as necessidades de comércio: “Uma vez que a moeda foi providenciada, o desenvolvimento foi rápido; e aquilo que começou como uma troca necessária de bens tornou-se comércio...”[...]“O dinheiro, pretendia-se, seria um meio de troca”. Além disso, as outras funções da moeda, unidade de conta e reserva de valor, teriam papel secundário. Bell (2001) afirma que a metodologia dos metalistas é a-histórica e sua abordagem, asocial, tentando “deduzir” o sistema monetário sem a ideia de um Estado ou reduzir o papel deste a segundo plano.

O valor do dinheiro, nesta análise convencional, foi determinado em algum momento pelo valor do metal precioso o qual representava. Os metalistas deram destaque aos metais na função de meio de pagamento em decorrência da sua durabilidade e divisibilidade. Deste ponto de vista, a moeda não é relevante para o desenvolvimento de um país, no sentido de só ter valor na medida em que seria conversível em uma mercadoria real. A demanda por moeda é vista para atender a motivos transacionais, sendo assim, estável ou previsível (VAL, LINHARES, 2008: 3). A moeda seria um elemento neutro na economia, não afetando comportamentos ou decisões dos agentes econômicos, já que, de acordo com a

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Lei de Say (aceita pelos metalistas), toda oferta (produção) de um setor já corresponde em si mesma a uma demanda de outro setor.

Outro ponto importante defendido por esta abordagem é que para amplamente exercer a função de meio de troca, o objeto escolhido para ser dinheiro deve ser “[uma] coisa que é útil e tem valor de troca independentemente de sua função monetária” (SCHUMPETER, 1994: 63, apud BELL, 2001). Em outras palavras, o dinheiro deve ter um valor intrínseco. Para os metalistas, os indivíduos coletivamente decidem usar metais preciosos a fim de facilitar o processo de troca.

Com o intuito de resolver o problema de identificar a quantidade e a qualidade de um metal que funciona como meio de troca, este começou a requerer uma estampa (garantia) antes de poder circular amplamente. Dessa forma, caberia ao Estado a cunhagem da moeda, mas ele somente sancionaria uma moeda que já teria sido elegida pela sociedade. O poder soberano se limitaria a atestar a integridade do metal precioso, o que leva a concluir que as moedas metálicas seriam aceitas porque teriam valor por si mesmas, o que faria delas meios de troca convenientes. Não haveria nenhuma influência ou incentivo por parte do Estado nesta escolha. O “selo” da moeda não seria a origem do valor da moeda para a teoria metalista: “‘a mercadoria-dinheiro tem peso e qualidade assim como outras commodities’ e seu selo é colocado por conveniência ‘para não se ter o problema de ter de pesá-la toda vez, mas... este selo não origina seu valor”(SCHUMPETER, 1994: 63, apud BELL, 2001:153).

No que se refere à moeda-papel (ou seja, dinheiro enquanto símbolo e não em sua forma metálica), os metalistas argumentam que neste momento, o signo do dinheiro (usando uma expressão de Marx [1988]), poderia ser substituído pela moeda metálica. Porém, a moeda-papel deveria ser conversível em metais preciosos. Contudo, Bell (2001) destaca o dilema que a teoria metalista enfrenta com o surgimento da moeda fiat, ou seja, quando a moeda não precisa mais se tornar conversível em metal3. Da mesma forma, essa visão não

conseguiria explicar a demanda por moeda simplesmente para a compra de outra moeda, ou

3 Walras tentaria solucionar esta questão ao afirmar que a moeda poderia ser reduzida a um número puro (numeraire). Assim, a moeda poderia ser vista como simplesmente a representação de um símbolo de mercadorias “reais” com sua origem sendo considerada irrelevante (BELL,2001).

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seja, compreender a moeda como um ativo. Dada a incompletude da teoria metalista, a abordagem cartalista da moeda busca responder a estas e outras questões.

I.1.2 Caráter político e social da moeda

A teoria cartalista ou teoria estatal da moeda está relacionada diretamente ao livro “The State Theory of Money”, de George F. Knapp, lançado em 1905. Este trabalho influenciou as obras de Keynes (1930), Weber (1921), Abba Lerner (1947) e de autores contemporâneos, como Charles Goodhart, Hyman Minsky, Randall Wray, Stephanie Bell e outros pós-keynesianos, vinculados diretamente ou não à teoria cartalista da moeda.

Contudo, a discussão concernente à moeda ser uma criação do Estado é anterior à obra de Knapp (2003). É possível encontrarmos “vestígios” da abordagem cartalista da moeda em atores como Adam Smith e principalmente na chamada Escola Histórica Alemã no século XIX4. De acordo com Bell (2001), a noção da moeda como uma “criatura” do

Estado tem uma longa história, talvez datando desde Platão, mas claramente reconhecida já em Adam Smith.

Bell (2001) argumenta que Smith teria resolvido um paradoxo que os metalistas teriam sido incapazes de resolver convincentemente por meio desta passagem: “Um Príncipe, que deve decretar que certa proporção de seus impostos deva ser paga em papel-moeda de certo tipo pode, portanto, dar um determinado valor para este papel-moeda” (SMITH, 1937:312, apud BELL [2001]). Apesar de nunca ter se aprofundado nesta questão, Smith teria respondido por meio dessa frase à indagação de o porquê o dinheiro sem valor intrínseco continua a circular. Smith pontuou que qualquer coisa que o Príncipe aceite como meio de pagamento de taxas será imediatamente imbuído de valor, e por isso será demandado como meio para liquidação de imposto. Destarte, o valor desse dinheiro depende da sua função de liquidar impostos ou outras obrigações e não da sua relação com qualquer metal (BELL, 2001)5.

4 Aggio (2008) discorre que o conceito de moeda do Estado já estava presente em Aristóteles, Platão e no jurista romano Paulus.

5 Bell (2001) argumenta que embora a citação de Smith seja consistente com a teoria cartalista da moeda, ele não a desenvolveu em seus escritos. E inclusive não há um consenso no que concerne à relação mais direta de

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A teoria cartalista prega que a fim de qualquer “coisa” funcionar como moeda, ela deve ser reconhecida pelo Estado. Nessa relação fundamental entre poder soberano e sistema monetário, a moeda torna-se essencialmente um instrumento político que visa o fortalecimento do poder estatal e a concentração de poder. Esta abordagem teórica procura desvendar como a origem da moeda está imbricada às lutas de poder político e de dominação, inicialmente por meio da tributação no âmbito nacional. Fiori (2004: 30) afirma como as moedas estatais tornam-se de importância decisiva “para o processo de acumulação de poder (...) ‘a moeda e não mais a terra tornou-se a forma dominante de riqueza. Só então é que os grandes monopólios de poder deixam de se fragmentar e sofrem uma lenta transformação centralizante...’”.

A relação entre o poder e o dinheiro é muito antiga, remontando às cidades do norte da Itália, lugar em que surgiu o sistema bancário moderno, relacionado ao comércio de longa distância. Ainda enfatizando a relação entre moeda e poder político e militar, Fiori (2004:30) destaca:

As conquistas ampliavam os territórios e dificultavam sua administração, problema que foi facilitado com o aparecimento da moeda pública e com a sua universalização e homogeneização, dentro do espaço político do poder emissor. Mas nada disso conseguiu dar conta da necessidade crescente de recursos dos príncipes, até a criação e consolidação das dívidas públicas que se transformaram na principal “arma de guerra” dos grandes ganhadores. Foi quando se deu o primeiro encontro do poder político e militar com o dinheiro e a riqueza dos comerciantes e dos banqueiros.

A princípio se restringindo a economias nacionais, a teoria estatal da moeda, ao relacionar o poderio estatal com o poder monetário, também contribui para a análise da moeda no plano internacional, como será à frente melhor detalhado. A moeda torna-se um dos cenários de disputa nas relações interestatais.

(...) o dinheiro só tem validade e curso normal dentro de cada país porque está assegurado por uma autoridade (...). O mesmo deve ser dito da circulação supraestatal do dinheiro e do primeiro regime monetário internacional (...) a administração da moeda tem papel decisivo, tanto na competição intercapitalista como na luta por poder e hegemonias internacionais. Cada sistema ou regime monetário internacional representa “síntese”’ transitória da correlação de forças

Smith à teoria cartalista. Esta, em sua forma mais geral é melhor descrita na obra de Knapp (2003), como já discorrido acima.

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entre os agentes privados e poderes políticos e é verdadeira radiografia do grau de soberania econômica de cada Estado Nacional (Fiori, 2001: 20-1).

Dessa forma, para a teoria cartalista, “[é] pois impossível separar a teoria monetária da teoria do Estado” (WRAY, 2003:43). Knapp (2003:viii) afirma que “espera pela aprovação e talvez pela ajuda daqueles que tomam o sistema monetário (ou melhor, todo o sistema de pagamentos) como um ramo da Ciência Política”. O Estado, portanto, assume papel central no estabelecimento de um sistema monetário.

Destarte, ao evidenciar o caráter político e social da moeda, a abordagem cartalista se distancia da teoria metalista apresentada na seção acima, na qual na moeda está subordinada à lógica do mercado.

I.1.3 Moeda como dívida: centralidade da função unidade de conta

A teoria cartalista procura desvendar a origem do valor como mais do que a simples representação do dinheiro vinculado a metais preciosos (moeda metálica). A moeda neste caso não é vista como uma commodity com valor de troca, como simplesmente uma mercadoria escolhida dentre outras para exercer o papel de moeda. Assim, os cartalistas não se atêm primordialmente à função meio de troca do dinheiro (BELL, 2001). Essa abordagem procura de fato mostrar as propriedades essenciais do dinheiro enquanto unidade de conta e meio de pagamento. Ao se atentarem à origem social da moeda, os cartalistas elaboram uma teoria do dinheiro desvinculada do mercado.

A moeda é vista pelos cartalistas como um crédito para quem as possui e dívida (obrigação) para quem a emite. A criação de dinheiro envolve a aceitação do débito do outro. Alfred Mitchell Innes é um dos autores que afirma ser a relação entre débito e crédito anterior tanto lógica quanto historicamente ao meio de troca. Nesta perspectiva, Metri (2007:14), se baseando em Innes (2004) afirma: “toda transação econômica não representa a permuta de uma mercadoria (ou serviço) por um meio de troca (uma moeda), mas, sim, a troca de uma mercadoria (ou serviço) por um crédito, isto é, por um direito a receber, por um haver” (METRI, 2007:14). Não há necessidade de uma moeda em espécie (moeda metálica, por

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exemplo) para que as transações se concretizem. A moeda pode funcionar apenas idealmente, em decorrência do reconhecimento comum da relação credor-devedor:

Crédito é o poder de compra tantas vezes mencionado em trabalhos econômicos como sendo um dos principais atributos do dinheiro e, como eu tentarei mostrar, crédito e crédito por si próprio é dinheiro. Crédito e não ouro ou prata é o que todos os homens procuram, a aquisição a qual é a finalidade e o objeto de todo o comércio (INNES, 2004a: 31, apud METRI, 2007: 15).

No caso da criação de moeda emitida pelo Estado, indivíduos privados concordam em manter a dívida do Estado, e a moeda corrente do poder soberano torna-se de fato dinheiro ao ser amplamente aceito. Por um lado há o ativo (uma taxa de crédito), por parte do indivíduo; por outro lado, há a dívida que o Estado assume com esse indivíduo (a moeda é uma dívida; o Estado assume a promessa de recebê-la de volta em pagamento de taxas ou outras dívidas). Dessa forma, a criação do dinheiro, envolve sempre dois lados que interagem concomitantemente, como se fossem dois lados de uma balança, na qual uma parte está de acordo em manter a dívida da outra parte.

Segundo Knapp (2003), as dívidas (moedas) são expressas em uma unidade de valor – unidade em que o total do pagamento é expresso. Unidade de conta é um padrão abstrato e arbitrário de medição. No caso da moeda, a unidade de conta serve para mensurar débitos e créditos, bem como o valor de mercadorias e serviços (METRI, 2007). Assim, toda dívida (moeda), por ser expressa em uma unidade de medida monetária que é abstrata e arbitrária, é de fato nominal; não está vinculada a nenhum metal.

Qualquer unidade de conta, monetária ou não, por ser uma abstração, não pode ser algo palpável. Um “metro”, um “quilo”, bem como as unidades monetárias “dólar”, “real”, “iuane” etc, não são concretas, sendo construídas em um dado período da história e reescritas e um outro momento: “[u]ma nota de 01 real [...], nada mais é do que uma evidência de dívida do governo brasileiro no valor de uma unidade monetária de real; ou seja, é uma dívida emitida pelo governo brasileiro de valor unitário, medido com base no padrão monetário deste país, o real” (METRI, 2007:17):

O que é uma unidade monetária? O que é um dólar? Nós não sabemos. [...] tudo, eu digo, que nós sabemos é que o dólar é uma medida de valor de todas as

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mercadorias, mas não é em si mesma uma mercadoria, nem pode ser incorporada em qualquer mercadoria. É intangível, imaterial, abstrato. É uma medida em termos de crédito e débito (INNES, 2004b: 63, apud METRI, 2007:17).

As dívidas, por sua vez, precisam ser saldadas com meios de pagamento, uma “coisa” ou “objeto”, que detém a propriedade legal de ser portador da unidade de valor (de conta) (KNAPP, 2003).

o próprio dinheiro [meio de pagamento], principalmente aquele com o qual são liquidados os contratos de dívida e os contratos de preço, no qual é mantido um estoque de poder de compra geral, deriva sua natureza das suas relações com a moeda de conta [unidade de conta], desde que dívidas e preços tenham sido primeiro expressos em termos desta última (KEYNES, 1930:3, apud WRAY,2003: 49).

Em sua teoria monetária, Keynes (1930) aponta a diferença e relação entre unidade de conta e meio de pagamento, dando destaque à unidade de conta (que ele denomina “moeda de conta”) como o principal conceito de uma teoria monetária. O autor explica como a moeda de conta corresponde “a descrição ou denominação [unidade de conta] e o dinheiro é aquilo que corresponde à descrição [o meio de pagamento]” (KEYNES, 1930:3-4, apud WRAY, 2003: 49).

Os cartalistas reconhecem que a criação e uso da moeda ocorre por meio de um ato de poder do Estado quando este institui a unidade de conta/valor6 (por intermédio da

cobrança de tributos) para a economia e estabelece o meio de pagamento, que está referenciado nesta unidade de conta.

Baseando-se nos escritos de Max Weber, Aggio e Rocha (2009:158) destacam o papel dos tributos para a organização do sistema monetário nacional por parte do Estado:

o monopólio da organização do sistema monetário e da determinação e emissão da moeda pelo Estado moderno, somente foi possível em razão do crescimento da importância dos impostos e do gasto estatal, o Estado moderno torna-se o maior recebedor e realizador de pagamentos na economia nacional e, portanto, pode impor a moeda, na medida em que sempre há demanda pela moeda estatal (AGGIO, ROCHA, 2009: 158).

6 Knapp (2003) utiliza o termo “unidade de valor”. Neste trabalho, privilegia-se o uso do termo “unidade de conta”.

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Weber (2001), discorrendo a respeito da organização do sistema monetário na economia moderna, aponta a centralidade do papel do Estado em sua composição:

1. O Estado moderno mantém

a) sempre o monopólio da organização do sistema monetário, por meio de estatutos;

b) em regra, com poucas exceções, o monopólio da criação (emissão) de dinheiro, pelo menos no que se refere ao dinheiro metálico [...]

Além disso,

c) ele é em virtude da importância crescente de seus impostos e empreendimentos econômicos próprios,

α ) o maior recebedor de pagamentos e

β ) o maior efetuador de pagamentos, ou por meio das caixas próprias ou por meio daquelas que operam por sua conta (chamamos ambas, em conjunto, “caixas regimentais”) (WEBER, 2001:111).

Destarte, em convergência com o cartalismo, Weber7 (2001) ressalta como o

Estado domina formalmente o sistema monetário vigente no território que governa:

Sem dúvida, a ordem jurídica e administração de um Estado, dentro do âmbito de seu poder, podem conseguir a validade formal legal e também a forma regimental de determinada espécie de dinheiro como padrão monetário, desde que o próprio Estado mantenha sua solvência nessa espécie de dinheiro (WEBER, 2001:120).

Hyman Minsky8 (1986, apud WRAY, 2003), influenciado pela abordagem

cartalista, converge com perspectiva de Weber, e afirma que são os tributos que dão valor à moeda emitida pelo Estado:

7 O autor reconhece as contribuições de Knapp para o entendimento do sistema monetário: “[o] livro [de Knapp], tanto pela forma quanto pelo conteúdo, é uma das grandes obras-primas da literatura alemã e um modelo da agudeza do pensamento científico. O olhar dos críticos, no entanto, fixou-se naqueles problemas (relativamente poucos, porém não sem importância) que ele deixou de lado” (WEBER, 2001:121). Cabe ressaltar, contudo, que existem interessantes divergências de Weber em relação à obra de Knapp. Para o primeiro, Knapp não teria dado atenção suficiente à função da moeda como meio de troca e à relação entre expansão monetária e inflação (alteração nos níveis de preços). Por isso, dedica parte da obra Economia e Sociedade (Excurso sobre a Teoria Estatal do Dinheiro) para esclarecer esses pontos não desenvolvidos na obra de Knapp.

8 Considerado um dos maiores especialistas em teoria monetária e financeira da segunda metade do século XX (LOURENÇO, 2006)

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Numa economia onde a dívida do governo é um ativo importante nos registros contábeis dos bancos de depósitos e emissão, o fato de que tributos devem ser pagos dá valor à moeda da economia (...). A necessidade de pagar tributos significa que as pessoas trabalham e produzem para obter aquilo com que podem pagar os tributos” (MINSKY, 1986:231, apud WRAY, 2003: 56).

O meio de pagamento aceito pelo Estado será utilizado para liquidar todos os débitos da economia e “será aceito por todos os agentes da economia em posição de credor” (AGGIO, ROCHA, 2009: 155). Em outras palavras, o Estado, ao determinar a unidade de conta, por meio da cobrança de impostos, acaba por impor o meio de pagamento nacional. Isso porque inevitavelmente os agentes econômicos terão de pagar o poder soberano com a moeda aceita por ele. Dessa maneira, não é o conteúdo intrínseco da moeda que confere valor a ela (isto é, não importa o material de que são feitas, como ouro, prata, papel etc.), mas sim o fato de ela ser universalmente aceita (BELL, 2001). Por isso que a toda dívida é nominal.

É desta forma que Keynes (1930) afirma que a “era da moeda cartalista” ou moeda estatal se iniciou quando o Estado “invocou o direito não apenas de impor o dicionário [o meio de pagamento], mas também de escrever o dicionário [determinar a unidade de conta]” (KEYNES, 1930:5, apud WRAY, 2003: 49-50). Keynes (1930) argumenta que é o Estado que determina tanto o que serve como moeda-de-conta (unidade de conta) quanto estabelece “a coisa” que será aceita como dinheiro (o meio de pagamento). Para Keynes, como para Knapp, o poder soberano, ao determinar o valor nominal da moeda, garante sua validação e aceitação.

A era cartalista ou dinheiro do Estado se iniciou quando o Estado alegou o direito de declarar qual a “coisa” que deveria responder como dinheiro à unidade de conta vigente – quando ele reivindicou o direito não só de fazer cumprir o dicionário, mas também de escrever o dicionário. Hoje, todo dinheiro civilizado é, para além da possibilidade de discussão, cartalista (KEYNES, 1930: 4 apud BELL, 2001:156).

Segundo Knapp (2003), em um processo de transação, a garantia da troca (o encerramento do débito) fica condicionada à existência de alguma unidade de conta invariável e contínua no tempo. Caso a unidade de conta seja substituída por outra, é preciso que haja uma regra de conversão para a nova unidade, pois é necessário que a relação de valor se mantenha inalterável. “É a relação de estabilidade temporal entre a unidade de conta

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e meio de pagamento que determinará qual dentre vários possíveis será ou não moeda” (AGGIO, ROCHA, 2009:157). A moeda deve ser um meio de pagamento “que preserva a condição de valor observada no momento da troca” (Idem). Porém, nenhuma moeda em si mesma representa uma unidade fixa de valor, já que os preços podem variar, na unidade de conta estabelecida, modificando as condições de pagamento. Assim, a moeda corresponde a uma criatura do Estado porque somente ele é capaz de manter esta relação estável e contínua entre unidade de conta e meio de pagamento ao justamente estabelecer a unidade de conta. Mesmo uma moeda de ouro, por exemplo, não tem necessariamente o valor igual ao preço de mercado da quantidade de ouro que a compõe. Cabe ao Estado estabelecer uma condição de conversibilidade caso exista modificação dos meios de pagamento.

A atuação do Estado permite a composição de um sistema de pagamentos confiável e durável. Keynes (1930) se atenta a esse caráter regulador do Estado ao observar a existência de um sistema bancário já desenvolvido e regulado por um banco central. Destarte, por meio de seu poder jurídico e legislativo, o Estado gerido e supervisiona o estabelecimento de contratos constituídos em termos nominais (AGGIO, 2008).

O Estado, portanto, atua, em primeiro lugar, como a autoridade legal que obriga ao pagamento da coisa que corresponde ao nome ou descrição nos contratos. Mas atua uma segunda vez quando, além disso, invoca o direito de determinar e declarar que coisa corresponde ao nome, e mudar sua declaração de tempos em tempos – quando, por assim dizer, ele invoca o direito de reeditar o dicionário. Este direito é invocado por todos os Estados modernos e vem sendo invocado há quatro mil anos pelo menos (KEYNES, 1930:4, apud WRAY, 2003: 49).

Dessa forma, podemos perceber a relação fundamental que existe entre moeda como unidade de conta e a necessidade da regulação estatal. Isto é, havendo sempre posições futuras (contratos) estabelecidas na economia na unidade de conta representada pela moeda, faz-se necessária alguma percepção de garantia sobre a manutenção, contínua no tempo, desta unidade, mesmo no caso em que a forma da moeda que representa tal unidade de conta seja alterada (AGGIO, ROCHA, 2009). Keynes (1930) demonstra o papel do Estado nesse processo ao ser responsável pela manutenção da unidade de conta e da sua relação com o meio de pagamento:

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O Estado, portanto, vem em primeiro lugar enquanto autoridade da lei que impõe o pagamento da coisa que corresponde ao nome ou descrição no contrato. Mas ele aparece mais uma vez, quando, além disso, ele clama o direito de determinar e declarar que coisa corresponde ao nome e modificar a sua declaração de tempos em tempos (KEYNES, 1930: 4, apud AGGIO, ROCHA, 2009: 158-9).

Assim, o Estado determina tanto a unidade de conta quanto os meios de pagamento, ou a “coisa” que deve “responder” às dívidas denominadas na unidade de conta (KEYNES, 1930: 4-5 apud BELL, 2001:156).

A “alma da moeda”, afirma Knapp (2003:2), não está no material de que são feitas, mas sim “nas ordenações legais que regulam seu uso”. Dessa maneira, a unidade de conta não precisa ter nenhuma relação com algum metal pois, “dado que a moeda é uma relação social que depende das relações de poder, não existe nenhuma característica natural que converta qualquer objeto particular em moeda” (CRESPO, CARDOSO, 2010: 4). Dessa maneira, pelo fato de o Estado instituir a unidade de conta, faz desta uma legítima criatura do Estado (LERNER, 1947). O conteúdo da moeda não é determinante para sua ampla aceitação.

Logo, ela sempre significa um meio de pagamento cartal. A palavra Cartal advém do latim “Charta”, e detém o sentido de símbolo ou bilhete. Knapp (2003) define dinheiro como um meio de pagamento cartal.

Anteriormente à obra de Knapp, introduzindo a teoria cartalista, outros autores já haviam observado a dissociação da moeda a qualquer metal. J.S. Mill é um desses autores. Em “Princípios de Economia Política”, afirma que o valor da moeda é fixado arbitrariamente pelo Estado e não está vinculado ao seu custo de produção:

(...) as funções do dinheiro são cumpridas por uma coisa que deriva seu poder de cumpri-las exclusivamente da convenção; ora, a convenção é plenamente suficiente para conferir esse poder, já que nada mais se requer, para fazer uma pessoa aceitar qualquer coisa como dinheiro, e até mesmo a qualquer valor arbitrário, senão a persuasão de que essa coisa será aceita por outros, nas mesmas condições, quando ela a oferecer. O único problema é saber o que determina o valor de tal moeda, pois esse valor não pode ser, como no caso de ouro e prata (ou no de papéis trocáveis por ouro e prata à vontade), o custo de produção.

Ora, vimos que, mesmo no caso de uma moeda metálica, o fator imediato que determina o valor é sua quantidade. Se a quantidade, em vez de depender dos motivos comerciais normais de lucro e perda, pudesse ser fixada arbitrariamente pela autoridade, o valor dependeria diretamente dessa autoridade, e não do custo

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de produção. A quantidade de um papel-moeda não conversível em metais à opção do portador pode ser fixada arbitrariamente, sobretudo se o emitente for o poder supremo do Estado. Portanto, o valor de tal tipo de moeda é totalmente arbitrário (MILL, 1996, 119-120).

Mesmo Marx (1988), um autor também não vinculado à abordagem cartalista, destacou a desvinculação entre o conteúdo real (existência metálica) do conteúdo nominal (existência funcional) da moeda:

a possibilidade de substituir o dinheiro metálico em sua função de moeda por senhas de outro material ou por símbolos. As dificuldades técnicas para cunhar frações pequeníssimas de peso de ouro ou de prata e o fato de que originalmente se empregassem, como medidas de valores, e circulassem, como dinheiro, outros metais de categoria inferior à dos metais preciosos, prata em vez de ouro e cobre vez em de prata, até o instante em que o metal precioso os destrona, explicam historicamente o papel das senhas de prata e cobre como substitutos da moeda de ouro.

O conteúdo metálico das moedas de papel “é determinado de forma arbitrária pela lei [...]. E, portanto, sua função monetária torna-se, de fato, totalmente independente de seu peso, isto é, de todo o valor. A existência do ouro como moeda dissocia-se radicalmente de sua substância de valor. Coisas relativamente sem valor, bilhetes de papel, podem portanto funcionar, em seu lugar, como moeda. Nas senhas metálicas de dinheiro, o caráter puramente simbólico ainda está em certa medida oculto. Na moeda papel revela-se plenamente.

Trata-se aqui apenas de moeda papel do Estado com curso forçado [...].

A moeda papel é o signo de ouro ou signo de dinheiro. Sua relação com os valores mercantis consiste apenas em que estes estão expressos idealmente nas mesmas quantidades de ouro que são representadas simbólica e sensivelmente pelo papel. Somente na medida em que representa quantidades de ouro, que são também, como todas as quantidades de mercadorias, quantidades de valor, a moeda papel é signo de valor (MARX, 1988:107-108).

Mesmo em se tratando da moeda mercadoria, ela tem seu valor diretamente relacionado ao material de que é constituído, é cogente que uma autoridade central valide seu valor. Ela é, destarte, sempre nominal, estabelecida pelo Estado, mesmo no padrão-ouro.

Dessa forma que Wray (2003) afirma que a teoria cartalista da moeda pode ser aplicada a todas as economias “modernas”, mesmo aquelas existentes no padrão-ouro. “[M]esmo uma moeda-mercadoria baseada no ouro é uma moeda estatal (WRAY, 2003:50)”. Seja na moeda-mercadoria, seja na moeda fiduciária, é o Estado que determina o valor nominal da moeda. Toda dívida é nominal e nunca está efetivamente ligada a qualquer metal. Todas as dívidas podem ser convertidas ao metal (que pode ser a prata ou o ouro), mas é o Estado que anuncia a taxa de conversão, o que prova que todas as unidades de conta devem

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ser nominais. Nas palavras de Keynes (1983: 402, apud WRAY, 2003:52): “Moeda é medida de valor, mas considerá-la como tendo valor em si é uma relíquia da visão de que o valor da moeda é regulado pelo valor da substância de que é feita...”. Destarte, a unidade de conta é a função da moeda que se destaca em relação às demais, asseveram os cartalistas.

Em resumo, a moeda, portanto, somente necessita de sua validação social. Para isso, é imprescindível a participação do Estado. O poder soberano escolhe o dinheiro de conta (a “descrição”), assim como nomeia o que qualificará como moeda (“a coisa” que corresponde à descrição) (WRAY, 2003). Logo, o poder político exerce um papel central no desenvolvimento e estabelecimento do dinheiro, legitimando-o enquanto símbolo, um meio de pagamento cartal, sem necessidade de vinculá-lo com alguma substância metálica.

O conceito de moeda estatal não está relacionado somente à moeda emitida pelo Estado. Não são as leis de curso forçado determinam o que deve ser aceito como meio de pagamento. O cartalismo vai além disso:

O que faz parte do sistema monetário do Estado e o que não faz? Não devemos tornar nossa definição muito estreita. O critério não pode ser que a moeda é emitida pelo Estado, porque isso excluiria modalidades de moeda que são da mais alta importância; eu me refiro às notas bancárias: elas não são emitidas pelo Estado,

mas fazem parte do seu sistema monetário. Nem pode a moeda de curso legal

ser tomada como critério, porque em sistemas monetários há frequentes modalidades de dinheiro que não são de curso legal (...). Ficamos mais perto dos

fatos se tomamos como nosso critério que o dinheiro seja aceito nos pagamentos feitos aos guichês do Estado. Então todos os meios pelos quais um

pagamento pode ser feito ao Estado fazem parte do sistema monetário. Nessa base

não é a emissão, mas a aceitação, como a chamamos, que é decisiva. A aceitação estatal delimita o sistema monetário. Pela expressão “aceitação

estatal” entenda-se somente a aceitação nos guichês de pagamento do Estado onde o Estado é o recebedor (KNAPP, 2003: 95, apud WRAY, 2003:45, grifo nosso).

Assim, a teoria cartalista prega que para “algo” se transformar em moeda, deve ser aceito pelo Estado. Knapp (2003), como constatamos na citação acima, define dinheiro estatal como aquele que é aceito nos guichês de pagamento do Estado. Logo, a autoridade soberana pode reconhecer como moeda estatal não somente a moeda emitida por ela como também moeda privada, ou seja, moeda emitida por agentes privados. O poder da autoridade

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soberana para cobrar tributos corresponde ao principal fundamento da moeda enquanto criatura do Estado9 (CRESPO, CARDOSO, 2010:2).

Moeda estatal é a moeda aceita pelo Estado para pagamento de obrigações para o próprio Estado (principalmente tributos). (...) A moeda estatal consiste hoje de obrigações do Estado e de algumas obrigações privadas, embora a moeda ‘plena’ (moeda mercadoria) possa ter sido usada no passado como moeda estatal (WRAY, 2003: 31).

Desse modo, como Knapp (2003), Keynes (1930) afirma que moeda corresponde a qualquer coisa que o Estado se compromete a aceitar em seus guichês de pagamento. A aceitação pela autoridade soberana é a chave para determinar o que será aceito como moeda. Abba Lerner, influenciado pela obra Knapp (2003), também discorre a respeito:

O Estado moderno pode, em geral, tornar qualquer coisa que escolha aceitável como moeda (...). É verdade que uma simples declaração de que isto ou aquilo é moeda não funcionará, mesmo se apoiada pela evidência constitucional mais convincente da soberania absoluta do Estado. Mas, se o Estado está pretendendo aceitar a moeda proposta em pagamento de tributos ou de outras obrigações para consigo, a mágica está feita. Qualquer um que tenha obrigações para com o Estado desejará aceitar os pedaços de papel com que pode pagar obrigações, e todas as outras pessoas desejarão aceitar estes pedaços de papel porque sabem que os contribuintes, etc., por sua vez, os aceitarão (LERNER, 1947:313, apud WRAY, 2003: 57).

Destarte, “no tempo atual, em uma economia que funciona normalmente, dinheiro é uma criatura do Estado. Sua aceitabilidade geral, que é o seu principal atributo, mantém-se ou se reduz segundo sua aceitabilidade pelo Estado” (Idem, p.56). Pelo fato de a moeda do Estado ser o único meio de liquidação de obrigações fiscais e porque essas taxas se repetem período a período, o setor privado continuamente precisará de moeda estatal (BELL, 2001). Mas como observamos, não somente a moeda emitida pelo Estado, mas

9 É importante ressaltar, como bem colocou Aggio (2008), que autores que aceitam a ideia de que o Estado, ao cobrar tributos que devem ser liquidados somente na moeda pelo governo imposta – criando, consequentemente, uma demanda privada por esta moeda – não necessariamente são adeptos da teoria cartalista da moeda.

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diferentes moedas privadas também podem ser moedas estatais, desde que sejam aceitas pela autoridade soberana, contribuindo para a composição de um dado sistema monetário.

I.1.4 Moedas privadas e a hierarquia monetária

Como toda moeda é uma evidência de dívida, o Estado não é o único capaz de emitir moeda. Dinheiro representa uma promessa de pagamento futuro e esta promessa pode ser criada por qualquer um. O “segredo” para tornar essa promessa em dinheiro é fazer com que outros indivíduos ou instituições aceitem essa promessa. Portanto, não há monopólio de emissão de dinheiro: “a emissão de moeda não é um privilégio do poder soberano, mas uma prática comum aos mercadores, banqueiros e agentes econômicos de um modo geral que conseguem emitir dívidas com base na unidade de conta estabelecida” (METRI, 2007:17).

Assim sendo, embora o Estado seja o emissor da unidade de conta, isso não impede que outros agentes da economia (bancos, por exemplo) criem moeda enquanto meio de pagamento e reserva de valor – sempre pautada na unidade de conta estabelecida pelo Estado.

Como discorremos, a aceitação de uma “dívida” é um elemento-chave para sua transformação em moeda. Contudo, existem diversos graus de aceitação de uma moeda na economia. Dessa forma, uma hierarquia entre as diversas moedas se consolida.

A hierarquia monetária pode ser pensada como uma pirâmide multicamadas onde cada nível representa promessas com diferentes graus de aceitação (FOLEY, 1987, apud BELL, 2001: 158). Mas, se todas as dívidas são denominadas na mesma unidade de conta, por que algumas são consideradas mais aceitáveis socialmente que outras? A resposta encontra-se na “qualidade” do emissor da moeda.

Innes sublinhou a “qualidade” do emissor do crédito como critério central para a determinação de seu valor. Como todas as moedas são, em última instância, direitos capazes de compensar deveres, os valores dos créditos vão depender do alcance de sua circulação e da confiança de que tais créditos poderão liquidar dívidas, ou seja, de que serão aceitos pela comunidade de negócios e do tamanho dessa comunidade em que circula. Não é difícil perceber, a partir de então, a relação que existe entre o valor de um crédito e a hierarquia monetária, uma vez que seu valor pode se alterar conforme seu emissor (METRI, 2008:18).

Referências

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