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O soldado português nos cancioneiros lírico e narrativo

Carlos Nogueira

IELT, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal

Resumo

Nos cancioneiros da guerra colonial portuguesa, o soldado e o povo dizem as suas vivências de dor, angústia e perplexidade, matizadas, por vezes, de um patriotismo que é, acima de tudo, abnegação e resignação, mas também, nalguns momentos, contestação irónica e vontade de mudança. Para estes, a poesia era mais do que ideologia. Num mundo em ruínas, era uma das raras liberdades individuais e coletivas, um dos raros lugares de alguma pacificação e salvação. O Estado Novo, pelo contrário, exalta e promove a capacidade de sofrimento físico e espiritual do soldado português e do povo. A cosmovisão oficial tem de contaminar a experiência pessoal. Daí os discursos e as composições que cantam o heroísmo, o sacrifício e a morte em combate.

Palavras-chave

Poesia oral portuguesa; Cancioneiro lírico; Cancioneiro narrativo; Guerra colonial portuguesa.

Abstract

In the songbooks of Portuguese colonial war, the soldier and the people say their experiences of pain, anguish and perplexity, nuanced, sometimes a patriotism which is, above all, self-denial and resignation, but also, in some moments, ironic and contestation willingness to change. For them, poetry was more than ideology. In a world in ruins, was a rare individual and collective freedoms, one of the rare places in some peace and salvation. The New State, by contrast, celebrates and promotes the ability of physical and spiritual suffering of the soldier and the Portuguese people. The official worldview has to contaminate personal experience. Hence the speeches and the singing compositions heroism, sacrifice and death in combat.

Keywords

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28 Em 1943, Fernando de Castro Pires de Lima abria o artigo “Soldado que vais prà guerra” nestes termos:

Tive sempre pelo exército uma grande admiração e respeito. Ele representa a alma duma Pátria. Se o exército está doente, é fatal que a nação se encontra gravemente enferma. E se, pelo contrário, o exército está forte e poderoso, é porque o País vive uma hora alta de grandeza e de fé! (1943, p. 155)

Mas o texto não é um mero elogio dos “Soldados do Império, excelentes rapazes, simples e obedientes, fortes e ingénuos, valentes sem atitudes ridículas ou quixotescas, leais como as armas e sempre dispostos a sacrificar-se pela pátria! Nesse moço alegre e despreocupado, tantas vezes tímido e infantil, está um coração de português de rija têmpera, que, na hora do combate, sabe morrer como ninguém! É o segredo do soldado português!” (p. 156).

Este escrito é, antes de mais, uma exaltação de Portugal como nação imperial que tem uma herança histórica e cristã, nacional e universal, a dignificar e a perpetuar: “Portugal atravessa um momento excepcional da sua história e esse momento foi possível porque, no segundo fundamental, uma espada se ergueu até ao Céu e um toque de clarim abriu os olhos aos portugueses repartidos pelas cinco partes do mundo” (p. 155).

Aquelas passagens poderiam ter sido escritas por Salazar ou por uma qualquer figura da elite política do Estado Novo. Há, evidentemente, uma desproporção entre a realidade portuguesa e o discurso que a representa. Este texto interessa-nos porque esse excesso político e discursivo antecede outro excesso: a mitificação do soldado português através da leitura tendenciosa das quadras tradicionais que o retratam ou em que ele se retrata.

Esta atitude inscreve-se numa estratégia mais vasta de glorificação e nacionalização do povo e das suas formas de expressão literária. Uma estratégia de compensação do lugar periférico que Portugal ocupava no mundo e na Europa, apesar do discurso que enaltecia o seu vasto império: “Alastra pelo mundo uma guerra maldita, ódios cegos que não cansam, e Salazar, Ministro da guerra, ordena e manda soldados portugueses guarnecer as províncias do Império. Vigília militar constante e permanente. Ou tu, militar português, não fosses a encarnação do próprio Império!” (p. 156-157).

Fernando de Castro Pires de Lima anuncia assim o seu programa: “Vamos ouvir o bom povo, ingénuo e puro, vamos auscultar a sua opinião sobre a vida militar e o que ele pensa do exército” (p. 157). Contudo, os poemas não vão ser interpretados à luz do seu significado intrínseco e subjetivo. O que prevalece é a visão do autor, que é também a visão do regime. Poemas que dizem tragédias individuais, e contrariam a tese da entrega incondicional do soldado português à sua missão, transformam-se em poemas nacionalistas, em epopéias. É o caso desta quadra, a que Pires de Lima se refere dizendo apenas que “a noiva” “um dia lá o viu partir na expedição porque ele anunciou-lhe a hora de embarcar: Acorda, meu bem, acorda,/ Digo-te adeus, minha amada,/ Obrigam-me a ir prà guerra/ Amanhã de madrugada…” (p. 157).

A reação daquela cujo namorado partirá para a guerra, segundo o autor, não pode ser senão esta: “Ó triste segunda-feira/ Da semana que há-de vir!/ Vai o meu amor prà guerra,/ Não o posso ver partir…” (p. 167). Nenhum fervor patriótico neste texto, nenhum zelo nacionalista, apenas drama individual, angústia fora de qualquer ideia de grandeza da pátria. Mas Pires de Lima interpreta este triste fado de uma maneira muito distinta; e tão seguro está da sua visão que nos dá o pensamento e as emoções da pobre moça em primeira pessoa:

Que saudades vou ter do meu namorado! Quando o tinha na Pátria, ao menos sabia que estava relativamente perto de mim. Vai partir e sei lá se voltará mais! Que saudades vou

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29 ter do meu amor… Mas eu tenho fé, eu tenho esperança que Nossa Senhora velará por ele e, no fim da guerra, há-de voltar e casará comigo. (p. 167)

Esta sacralização do Império, em que nação, regime, abnegação, obediência e fé constituem um todo, tem naturalmente efeitos profundos na mundividência das camadas da população menos favorecidas económica e culturalmente. Por isso é que esta quadra é conhecida em todo o país: “Meu pai chora que se mata/ Por eu chegar ao ‘stalão!/ Não chore, meu Pai, não chore:/ Os homens para que são?” Pires de Lima comenta fervorosamente este texto e destaca o último verso; para ele, o filho, “cheio de orgulho, vaidade legítima de homem, grita (…) “os homens para que são?” (p. 159).

Fernando Pessoa, no poema “O Infante”, incluído na Mensagem (1934), diz “Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez./ Senhor, falta cumprir-se Portugal!” Para Pires de Lima e para o regime, Portugal cumpre-se através da sua ideologia de Estado colonizador e do seu povo; a missão dos seus homens e das suas mulheres é a mais alta: “casar e formar um lar bem português”; para isso, é preciso que ela todos os dias reze à “Virgem Santa para que lho mande coberto de glória: O meu amor é soldado,/ Do segundo batalhão;/ São os mais bonitos olhos/ Que leva a expedição” (p. 168).

Há, como dizíamos, uma desproporção evidente entre o discurso de produção ideológica de identidade nacional e as quadras tradicionais sobre a guerra ou o serviço militar em geral. O cancioneiro da Guerra Colonial, de que falaremos a seguir, não teria ficado imune a uma leitura deste tipo; ele colocaria desafios mais complexos, como veremos, mas nada que uma visão parcial e omissa como a de Fernando de Castro Pires de Lima não pudesse resolver sem grandes problemas textuais e éticos.

As quadras que Pires de Lima comenta no seu artigo revestiram-se de um significado especial durante os anos em que partiam de Portugal contingentes armados para o império africano. Todas elas fazem assim potencialmente parte do cancioneiro lírico ligado à guerra ultramarina. Já vimos como esses textos oscilam entre a angústia dos que ficam e dos que partem e a aceitação ou exaltação do serviço militar ou da guerra como missão.

Antes de abordarmos o cancioneiro da Guerra Colonial produzido ou interpretado pelos próprios soldados e por aqueles e sobretudo aquelas que lhes eram próximos (namoradas, noivas, esposas, mães), há que comentar brevemente o cancioneiro oficial suscitado por esta mesma situação histórica e política: aquele que é produzido e interpretado por vozes sintonizadas com o regime, voluntária ou involuntariamente (não esqueçamos a indicação que acompanhava estas folhas: “Letras visadas pela Delegação Geral dos Espetáculos”).

O tema Cruz de Guerra, de Manuel Neves e Mário Ferreira, cantado pelo Conjunto Típico Armindo Campos, é paradigmático dessa tendência; a sua divulgação fez-se também através de uma folha volante de miscelâneas com 55,5 x 43,5 cm. O texto, mitificando a Mãe-Pátria e o exército, é uma das expressões do discurso místico e nacionalista oficial: “Numa aldeia de Portugal/ Certo jovem foi chamado/ Para defender ser leal/ o seu país tão amado.” Exaltando a ação das Forças armadas, heroicizando o soldado, todo o poema, literariamente muito pobre, educa para o medo, a submissão e o conformismo; o filho sossega a mãe dizendo “Tu sabes bem/ Que há outra Mãe/ Mais portuguesa” e ela, perante a morte dele, canta: “É tão grande a minha mágoa/ Tenho vivido com os olhos rasos de lágrimas/ Meu filho querido/ Mas estou contente afinal/ Por teres nascido/ E morrido por Portugal/ Meu querido filho/ Mas estou contente afinal/ Por teres nascido/ E morrido por Portugal.”

Não conhecemos qualquer versão oral deste texto. Pelo tema e pelos motivos, ele poderia ter entrado facilmente em processo de tradicionalização, mas a arte poética não é, em toda a extensão do poema, a da tradição oral. Estamos perante uma canção que tem tudo para

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30 impressionar a sensibilidade coletiva pelo menos durante algum tempo mas não para fazer parte do cancioneiro narrativo tradicional. Faltam-lhe a forma e o mecanismo prosódico e estilístico que, protegendo a mensagem da diluição, facilitam a sua memorização e transmissão: a quadra heptassilábica.

No cancioneiro narrativo da Guerra Colonial enunciado e interpretado pelos seus protagonistas mais diretos, os textos que circularam com mais intensidade já se integram no espírito da escola poética tradicional. Os seus níveis de circulação e perduração temporal e espacial estão atestados pela relativa frequência com que nos têm aparecido durante as nossas recolhas de campo, realizadas intermitentemente em vários concelhos do distrito do Porto desde 1994.

Algumas dessas cantigas provêm inequivocamente de folhas volantes. É o caso de A Vida do Recruta: Lindas Quadras Dedicadas ao Soldado Português (Visado pela Censura) e de A Vida do Soldado Português. Noutras, escritas em cadernos, participaram vários autores. A sua difusão foi menor do que as de cordel mas nem por isso as devemos menosprezar. Em todas se verifica a relação entre literatura e testemunho, em todas um eu testemunhal diz o que viu e viveu na realidade.

Há, como é sabido, poemas narrativos sobre a vida do soldado que circularam muito antes da Guerra Colonial. A produção de A Vida do Recruta: Lindas Quadras Dedicadas ao Soldado Português, por exemplo, remonta a uma data anterior a 1937. Recolhemos uma versão oral em Quintela, Baião, distrito do Porto, em 14 de Maio de 1996, cantada por um ex-soldado, que a aprendeu em 1937, em Lisboa, onde cumpriu o serviço militar. Tal como sucedeu em relação a muitas quadras tradicionais sobre o soldado e a guerra, treze anos de intenso conflito armado (1961-1974) renovaram a funcionalidade de textos como este e promoveram a venda de muitas folhas volantes e folhetos. Também o folheto A Triste Vida de um Pobre Soldado Narrada por Ele Próprio (16 páginas, 16,5 x 12 cm) é anterior à Guerra Colonial, como se percebe pela ilustração da capa, que inclui vários soldados com fardas do início do século XX, e pela inexistência de qualquer alusão a este momento da história de Portugal. O folheto O Que Se Passa na Vida Militar, que narra o percurso de um soldado desde a inspecção até à conclusão do serviço militar, também ilustra este fenómeno de adaptação.

As composições do cancioneiro da Guerra Colonial que nasceram diretamente de experiências de soldados destacados para o Ultramar ou de um narrador testemunhal de terceira pessoa incluem por vezes logo no incipit atestações de veracidade: “Era há dois anos casado/ Quando foi mobilizado/ Pra o Ultramar embarcou” (Uma Falsa Notícia) ou “No ano de 69/ Foi quando assentei praça/ O meu coração adivinhou/ O ano da minha desgraça” (O Que Se Passa na Vida Militar). O discurso testemunhal liga-se ao discurso das emoções.

Vejamos, em primeiro lugar, neste cancioneiro esquecido e marginalizado, os textos em que são mais ou menos visíveis as leis da tradicionalidade (a anonímia, a antiguidade, a variação). A propriedade comunal e anónima do poema oral vem já, aliás, da versão escrita. Estas folhas volantes e estes folhetos são quase sempre anónimos. A Vida de um Soldado é um dos poucos que indicam o nome do autor: Manuel das Neves, soldado n.º 178, em Abrantes.

Entre os textos das folhas volantes e dos folhetos e as versões orais que pudemos recolher verificam-se diversos fenómenos intertextuais: substituição de palavras, expressões, versos ou estrofes, supressão e fragmentação-contaminação. Ressalve-se: assumimos, por se tratar da hipótese mais plausível, que a cantiga narrativa tem a sua origem num texto escrito, mas nada nos diz que, pelo menos nalguns casos, o modelo integral ou parcial da composição de cordel não tenha sido um texto oral (ou vários).

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31 Um texto fragmentado pode fecundar um novo poema. Recolhemos, por exemplo, um texto que inclui duas estrofes de A Vida do Recruta. As quadras 4 e 5 a seguir transcritas são iguais às quadras 7 e 8 desse folheto:

Em versos vou escrever Esta minha tradição; É tudo quanto eu sinto Dentro do meu coração.

Pois um amor do coração Que tudo por ti eu darei; Foi uma jura que eu fiz Desde o dia em que te amei.

Pois esta vida para mim É de amargura e dor, Somente por me lembrar Desses teus carinhos de amor.

Adeus, querida amada, Não fiques desanimada; Tão depressa que regresse, Cumprirei a minha palavra.

A viagem no comboio Foi sempre muito animada, Mas com o coração triste Dos segredos da namorada.

Uma destas cantigas narrativas tem como ponto de partida uma variante da primeira quadra do célebre poema de resistência ao fascismo Menina dos Olhos Tristes (1959), de Reinaldo Ferreira, musicado por José Afonso e cantado por Adriano Correia de Oliveira (e, mais recentemente, por João Afonso: “Menina dos olhos tristes,/ O que tanto a faz chorar?/ – O soldadinho não volta/ Do outro lado do mar”). A composição que recolhemos, constituída por 9 quadras, figura, no caderno de onde a transcrevemos, como O Soldadinho Português.

Tal como no poema popularizante de Reinaldo Ferreira, que dialoga subversivamente com as cantigas de amigo galaico-portuguesas, também na cantiga narrativa popular se afirma que “O soldadinho não volta/ Do outro lado do mar”. Mas o desenvolvimento é diferente: em

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32 Reinaldo Ferreira, o soldadinho acaba por regressar “numa caixa de pinho” (“O soldadinho já volta,/ Está quase mesmo a chegar./ Vem numa caixa de pinho./ Desta vez o soldadinho/ Nunca mais se faz ao mar”); na cantiga narrativa, de final aberto, relata-se, em terceira pessoa, a chegada do soldado e a sua adaptação ao novo ambiente. Obviamente: não sabemos se a quadra inicial desencadeou a cantiga ou se foi uma incrustação, se foi o mote de uma amplificação textual ou uma citação.

A presença desta quadra na memória coletiva é fácil de explicar. Estes quatro versos elegíacos dizem a história trágica de um povo que assiste à partida dos seus filhos para uma guerra injusta e assassina. Os símbolos, portugueses e universais, articulam tradição poética portuguesa e história (a expansão territorial dos portugueses): a “menina” e o “soldadinho” equivalem, numa comparação com a cantiga trovadoresca, ao “amigo” que partia para a guerra e à “amiga” que o aguardava na sua terra natal; o barco (subentendido) é a “barca”, o meio que concretiza a separação involuntária, e a água (o mar), arquétipo de liberdade, procura, paixão, significa aqui ruptura, perda e morte:

Menina dos olhos tristes, Por que estás a chorar? – O soldadinho não volta Do outro lado do mar.

Na ausência dele ficou Um rosto belo e honroso; O Vera Cruz partiu, Logo ficou tormentoso.

O soldadinho partiu, Deixando a terra natal, Preparado para a luta, Para defender Portugal.

Passaram dias e dias Em pleno alto mar; O soldadinho na solidão, O que se não pode evitar.

Já se vê a terra ao longe, Já se sente endurecer, O coração do soldado Para lutar e vencer.

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33 Desembarcou em Nacala

E ali se preparou Para a longa caminhada E logo depois arrancou.

Descansou no mato Numa noite lamentável, Esperando novo dia

Que veio com tempo admirável.

Com o corpo dorido Pelas picadas incertas; Assim eles demonstraram Que ainda eram muito checas.

Ao contemplar a paisagem O soldadinho sempre atento Pensou que do cerrado mato Eles podem surgir num momento.1

A forma estrófica das cantigas narrativas que mais perduram na memória coletiva é a quadra. Mas há outras composições, organizadas em dísticos, tercetos, sextilhas ou oitavas, que circularam apenas entre os soldados e, nalguns casos, talvez apenas nalguns batalhões e nalgumas áreas. Temos, neste caso, o Cancioneiro do Niassa, assim chamado por todos aqueles, tanto autores-intérpretes como consumidores, que cantavam, declamavam ou diziam fados e canções que determinados elementos dos diversos ramos das forças armadas haviam adaptado de temas muito em voga. Encontramos, por exemplo, adaptações de letras e melodias de canções ou fados interpretados por Max, Amália Rodrigues ou José Afonso (deste autor e intérprete é conhecida a adaptação de Os Vampiros, sob o título O Hino do Lunho2).

1 Recitado por Norberto Vaz Ribeiro, de 48 anos. Quintela, freguesia de Gestaçô, 27 de Março de 1997. Não sabemos se este texto provém de um folheto.

2 Lunho é uma das localidades do Niassa Ocidental onde os portugueses encontraram mais resistência.

A primeira estrofe do hipertexto reproduz, quase sem alterações, os versos do hipotexto: “No céu cinzento, sob o astro mudo,/ Batendo as asas pela noite calada,/ Vêm em bandos, com pés de veludo,/ Chupar o sangue fresco da manada”. Varia apenas o segundo verso: “Batem as hélices na tarde esquentada”. A seguir, a adaptação torna-se mais intensa; opera tanto na estrutura de superfície, na cadeia sintagmática, através da substituição de palavras e expressões, como na estrutura profunda. A permuta traz sempre uma mudança de significado:

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34 O Cancioneiro do Niassa (Norte de Moçambique) começou por designar o conjunto de canções e fados que retratava o quotidiano dos militares em serviço no Niassa (Norte de

Se alguém se engana com seu ar sisudo E lhes franqueia as portas, à chegada: Eles comem tudo, eles comem tudo, Eles comem tudo e não deixam nada. A toda a parte chegam os vampiros, Poisam nos tectos, poisam nas calçadas. Trazem no ventre despojos antigos E nada os prende às vidas acabadas.

Se alguém se engana com o seu sorrir E lhes franqueia as portas, à chegada: Só mandam vir, só mandam vir, Só mandam vir e não fazem nada. A toda a parte chegam helicópteros, Poisam nos tandos, poisam nas picadas. Trazem no ventre “os cabeças de ouro” Que de guerrilhas não percebem nada.

Na adaptação, bem mais longa do que o original, os acrescentos, em que também se denunciam os abusos cometidos por todos aqueles têm cargos de chefia, acentuam o desejo de ridicularização e vingança. Daí o recurso à nota simultaneamente factual e burlesca:

São os reizinhos do Niassa todo.

Senhores por escolha, mandadores sem punho, Aceitam cunhas e dizem que não,

Passam a ronda sobre os céus do Lunho. (…)

Lendo os papéis, lá na sua ZAC, Gritam pra nós, mui enfurecidos: – Foi de propósito, foi de propósito, Foi de propósito que ela foi estoirada. No chão do medo tombam os vencidos, Ouvem-se os tiros na noite abafada, Jazem nos fossos vítimas dum credo E não se esgota o sangue da manada. Estou farto deles, estou farto deles, Só mandam vir e não fazem nada. Comem cabrito, comem cabrito, Comem cabrito e nós feijoada. (…)

Tremem as paredes de qualquer quartel, Falam militares, anda tudo à bulha. Ri-se o capitão, ri-se o coronel, Com esta merda da mini-patrulha. (…)

Senhor comandante de batalhão, Invente mais uma operação E distribua mais uma ração,

Mais quatro noites a dormir no chão. Estou farto deles, estou farto deles, Só mandam vir e não fazem nada. Por uma ponte sem terminação, O nosso sangue foi sacrificado, Mas, aleluia!, não será lembrada, Pelos cabeças de ar condicionado. Se alguém se engana com o seu sorrir E lhes franqueia as portas, à chegada: Só mandam vir, só mandam vir, Só mandam vir e não fazem nada. Estou farto deles, estou farto deles, Só mandam vir e não fazem nada.

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35 Moçambique), mas essas músicas rapidamente passaram a representar a vida de todos os soldados portugueses destacados para a guerra ultramarina.

Um dos nossos melhores informantes, Norberto Vaz Ribeiro, que cumpriu o serviço militar em Angola (1969-1971), declamou-nos, em 1997, cerca de uma dezena desses textos, cuja linha narrativa por vezes nada tem a ver com a orientação das cantigas narrativas canónicas (partida; dificuldades do recruta; saudades da terra natal, da namorada e da família; despedida da vida militar; entusiasmo perante a proximidade do regresso). Neste cancioneiro registado em cadernos que alguns soldados conservam ainda hoje como relíquias e memoriais, não há heróis, nem se idealiza uma grandeza imperial que a realidade da guerra tornava dia a dia mais improvável. O tom, de denúncia e indignação, é burlesco, irónico e satírico.

Dois dos mais originais dão-nos a perspectiva do Outro. O Fado do Turra exalta as características especiais do soldado nativo (“Sabes bem que eu sou ladino,/ Que tenho o andar muito fino,/ E me escapo como um rato”) e nega a tradicional supremacia do branco: “Lá porque és branco e pedante,/ Pretendes ser arrogante/ Por capricho e altivez./ Eu que tenho sido pobre/ Talvez te lixes de vez.”

O Turra das Minas também tem como tema o soldado africano, perito na colocação de minas, hábil na arte da guerrilha. Enunciado na primeira pessoa do singular (“Eu sou ladino”) e dirigido a um tu bem determinado (“Lá porque és branco e pedante”), pode ter sido produzido por um africano e chegado aos portugueses de uma forma que não poderemos precisar; por um português residente no território ocupado, insatisfeito com a guerra; ou por um militar branco que se opunha a esta guerra ou que, pouco satisfeito com os acontecimentos, a comentava ironicamente:

O turra das minas, Pequeno e traquina Lá vai na picada, E a malta escondida Na mata batida, Monta a emboscada. O turra passou, A malta esperou, Já toda estafada, Não o viu passar, E a berliet

Sempre foi estoirada.

O soldado recém-chegado, o caloiro ingénuo e inexperiente, é o destinatário de um poema ironicamente amargo: “Bem-vindo, checa,/ Para esta guerra/ Que cá te espera./ Não estejas triste/ Que a guerra é linda,/ Só fazes cena.” Apesar das afirmações cruas e desencantadas sobre o quotidiano que espera o novo soldado (“Vais ter saudades/ De mulheres brancas./ […]// Não chores, ó desgraçado,/ Não vale a pena chorar”), este Fado do Checa tem como objetivo principal dar-lhe um conselho subversivo e potencialmente

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36 salvador: “Mas tem cuidado,/ Checa danado,/ Sê pouco anjinho,/ Manda-os lixar/ E faz a tua guerra sozinho”.

No Fado das Comparações, uma voz coletiva descreve criticamente a vida em Lourenço Marques (Maputo, após a época colonial) e a vida nas frentes de combate (“Estranha forma de vida,/ Que estranha comparação,/ Vive-se em Lourenço Marques,/ Cá arrisca-se o coirão”):

Vida boa, vida airada, Boates e só festança, Lá não se fala em matança, Nem turras, é só borgada.

Niassa, pura olvidança, Guerra como és ignorada, Conversa que é evitada Pelos que vivem na abastança.

Este poema é particularmente valioso pela forma direta como formula a acusação contra aqueles que ocultavam os fatos de guerra menos louváveis e menos favoráveis para a causa nacional:

Falar na nossa desdita Fica mal e aborrece, E como lembrar irrita, Toda a gente a desconhece.

Os desaires militares, ocultados muitas vezes ou reduzidos na sua gravidade para não interferirem numa opinião pública habilmente manipulada durante muito tempo, eram representados em poemas como este:

Por léguas e léguas, Aqui no Niassa, Onde a guerra entoa. Ó mortos e feridos, E os mais comidos, Somos sempre nós. Vamos pelos ares, Gritando por todos, Até pelos avós.

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37 No Fado do Desertor, o eu-soldado é um anti-herói que refere ironicamente o modo como o convocaram para o serviço militar (“Estava eu na minha terra/ Disseram-me vais prà guerra”), como deserta e se une a uma africana, com quem vem a ter um filho mulato:

Estava já farto da guerra E a lembrar-me da minha terra, Fui um dia passear.

Numa palhota, sozinha, Estava uma preta girinha Que, ao ver-me, fez-me chorar.

E fiquei com tanta pena Dessa mocinha morena Que fugimos para o Mato. Somos um casal feliz E já temos um petiz Que por sinal é mulato.

Paralelamente a estas duas modalidades, circulavam inúmeras quadras soltas sobre o serviço militar e sobre a guerra colonial. Umas viriam de folhas volantes e folhetos, outras dos cadernos em que alguns soldados guardavam os textos que produziam ou ouviam, liam e cantavam, outras pura e simplesmente da memória dos seus utilizadores. São fragmentos autobiográficos que evocam a despedida da família, o embarque, as impressões provocadas pelas terras africanas, a esperança, o desalento e a saudade. Muitas dessas quadras, como estas, técnica e expressivamente muito pobres, não terão sequer circulado oralmente:

Disse adeus à minha família, Digo adeus a quem lá fica, Que vou para o Ultramar Conhecer terra mais rica.

No dia 25 de Abril

Foi quando eu fui embarcar; No ano de 1970

Fui para o Ultramar.

Vida pobre mas é dura, São sentimentos de valor;

É triste andar em terra mal-sigura, Onde anda o pior terror.

Em Candulo é a minha triste vida, Desempenhando minha missão; Deixei a minha querida terra, Mas não me sai do coração.

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38 Algumas dessas quadras transportam informações que acusam o seu registo escrito, em carta versificada, anterior à circulação oral; carta, por vezes, composta em grupo, tal era a partilha de vivências, receios e esperanças entre os soldados3:

3 Eis uma dessas cartas, que transcrevemos de um caderno de um dos nossos informantes, Noberto Vaz Ribeiro, referido atrás:

Carta de um soldado Ó minha querida mãe Para saber que estou bem Vou-lhe esta carta escrever Responda-me já em seguida Minha mãezinha querida Quero notícias saber Está o dia a chegar Para a poder abraçar E também o meu irmão É para mim grande alegria Entrar na nossa freguesia Na mais breve ocasião Fique sabendo estou bem Por isso não chore mãe Eu não estou a enganar Todos sabem afinal Que a Guiné é Portugal Portanto temos que lutar Quantos rapazes daí Já vieram para aqui Este povo nos consola E que bem gravado fique O nome de Moçambique Nunca esquecendo Angola Senhora da Conceição Padroeira desta Nação Nossa Pátria há-de salvar E os que lutam pelo bem Graças dela também têm E o milagre está-se a dar Diga à minha namorada Que aguarde minha chegada Nunca dela me esqueci Estou pronto a casar Se ela me souber respeitar Foi o que eu lhe prometi O tempo passa depressa Portanto minha promessa Hei-de cumprir a rigor Daqui só vai nesta carta Saudades para que reparta Por todos com muito amor Ser Soldado Português É lutar com altivez

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39 Esta vida é de enganos

Como tu deves saber; Ainda faltam dois anos, Para te tornar a ver.

Os versos que aqui vão Não me podem esquecer; É a vida de um soldado Que por aqui anda a sofrer.

Nacionalismo e imperialismo não são, portanto, conceitos ausentes deste cancioneiro da Guerra Colonial (nem o racismo: “Vi lá gente de cor preta,/ Com palavras diferentes;/ Pareciam-me de carvão/ E só lhes reluziam os dentes”). Mas há por vezes sinais claros de descontentamento e subversão que nos mostram como, afinal, a decadência portuguesa era bem percebida por aqueles que a viviam como uma catástrofe individual, mental e física: os soldados e as suas famílias.

O mar do regime e o mar do soldado não são os “Mares de Pessoa” (Eduardo Lourenço): o Mar de Fernando Pessoa, alegórico e mítico, conduziria a um universo humanista espiritualmente renovado, de que Portugal seria o centro; o mar de Salazar conduziria a um mundo de que Portugal, sempre alimentado pelo sacrifício dos seus homens e das suas mulheres, seria o fundador e a matriz; o mar do soldado português era um mundo de fantasmas, medos e alguma crença num Império em que ele participaria ativamente4.

Referências

Lima, Fernando de Castro Pires de. Ensaios. Porto: Portucalense Editora, 1943.

Rodrigues, Maria da Ascensão Gonçalves Carvalho. Cancioneiro da Cova da Beira. Vol. III:

Canções Narrativas, Outros Géneros Poéticos e Adenda ao Romanceiro. Prefácio de Pere

Ferré. Notação musical de Manuel F. Domingos. Covilhã: Edição da Autora, 1999.

Contra inimigos da Nação Só peço a Deus que me ajude E à Senhora da Saúde Por todos quantos cá estão

4 No cancioneiro do nosso informante Norberto Vaz Ribeiro, há apenas um poema em que o eu-soldado se apresenta como um herói:

Quando chegar a Portugal, Hei-de mostrar minhas grandezas, Qu’ hão-de ser cobertas com flores Pelas meninas portuguesas. Oh! que grande prazer Haverá nesse dia; Tantos beijos e abraços, É uma santa alegria.

No Cancioneiro da Cova da Beira, de Maria da Ascensão Gonçalves Carvalho Rodrigues, temos uma cantiga em que um soldado, que “Da Índia escreveu à mãe”, afirma: “Mãezinha, não estejas triste,/ Que a guerra aqui não existe./ Estou guardando o que é nosso” (1999, p. 143).

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Referências

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