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Vista do O luto compartilhado no infoterritório. Morte e intimidade transformadas no Facebook

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O luto compartilhado no infoterritório: morte e intimidade

transformadas no Facebook

José Antonio Martinuzzo

Graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (1992), tem Mestrado (2003) e Doutorado (2006) em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Pós-doutorado (2014) em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é Professor Associado do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo.

Heryck Luiz Jacob Sangalli

Mestre em Comunicação e Territorialidades pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), sob a linha de pesquisa Comunicação e Poder. Foi aluno especial no Doutorado em Linguística (UFES). Graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo também pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Tem experiência na área de Comunicação, sendo seus principais interesses os seguintes temas: redes sociais, cibercultura, linguagem, subjetividade e filosofia da tecnologia.

Resumo

Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a morte nas redes sociais digitais. Neste estudo, objetivamos investigar o fenômeno da vivência do luto no Facebook. Em nosso arcabouço teórico, articularemos os conceitos que norteiam a investigação: a morte, que encaminhou para um interdito ao longo do tempo, e o luto como algo que deve ser resguardado ao íntimo e à privacidade. Nesse último caso, veremos como a intimidade surge no ambiente privado e se desloca e se atualiza para o ambiente público. Essa atualização do ambiente de vivenciar o que é íntimo, em nossa investigação, ocorre pelo avanço tecnológico a partir do qual florescem o infoterritório das redes sociais digitais. A pesquisa empírica será embasada com narrativas de luto publicadas no Facebook. Coletamos, por meio de captura de tela, oito publicações contendo as dores provocadas pelo fim da vida. Assim, concluímos que o luto e a intimidade estão constantemente em transformação ao encontrarem um novo espaço de sociabilidade composto por incessantes atualizações.

Palavras-chave

Morte, Luto, Infoterritório, Intimidade, Facebook.

Abstract

This article is part of a larger research about death in digital social networks. In this study, we aimed to investigate the phenomenon of mourning on Facebook. In our theoretical background, we will articulate the concepts that guide the investigation: death, which led to an interdict over time, and mourning as something that should be kept in the privacy. In the latter case, we will see how intimacy arises in the private environment and how it moves and it is updated to the public environment. This update of the environment to experience what is intimate, in our investigation, is due to the technological advance from which the infoterritory of digital social networks flourish. Empirical research will be based on grief narratives published on Facebook. We collect, through screenshot, eight publications containing the pains caused by the end of life. Thus, we conclude that mourning and intimacy are constantly in transformation as they find a new space of sociability composed of incessant updates.

Keywords

Death, Mourning, Infoterritory, Digital Social Networks, Intimacy, Facebook.

Introdução

A dor do luto é vivenciada a partir de um espaço – seja físico ou subjetivo – no qual o sentimento é alocado e manifestado. Nesse processo, o espaço físico e o espaço subjetivo há tempos dialogam. As percepções das perdas que causam o luto, na maioria das vezes, provêm do espaço físico, encaminham-se para o subjetivo e podem retornar novamente ao espaço físico por meio de manifestações (choro, tristeza, desespero, ritos, indumentárias etc.). Frente

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a atual etapa tecnológica em que vivemos, podemos incluir nesse processo o espaço que marca a nossa era: o digital – lugar onde agora o luto pode ser compartilhado e vivenciado em níveis tentaculares.

Atualmente, mais de 3,6 bilhões de pessoas utilizam a internet no mundo – quase a metade da população mundial, estimada em 7,6 bilhões1. Somente no Brasil, a estimativa é de que 120 milhões de pessoas estão na rede2, o que configura a quarta colocação mundial – ficando atrás dos Estados Unidos, da Índia e da China. Esses números, mesmo excluindo uma parcela expressiva da população que ainda não está conectada à internet, justificam a marca de nosso tempo: a era digital.

Nesta era em que vivemos, o cotidiano palpável é atualizado para os infoterritórios (MARTINUZZO, 2016) do ciberespaço, e lá temos a oportunidade de (re)criar uma nova morada de sociabilidade. Tal qual a material, a vizinhança digital também é atravessada pela presença dos vizinhos, pela publicidade e pelas vitrines (de produtos e de intimidades) e, sobretudo, pelo barulho de outras vozes – que às vezes não queremos ouvir. A percepção desse emaranhado de narrativas é clara para quem utiliza as redes sociais – essas que também foram atualizadas para os níveis imateriais da internet.

Em meio a essa gama de vozes, estão as narrativas que falam de si, do outro e da dor: o luto. Essa é uma das formas em que a morte é midiatizada em redes sociais (RIBEIRO, 2015). Em específico, entre quem utiliza redes como o Facebook, é relativamente comum já ter visto alguma manifestação de luto – nem que seja a postagem simbólica de flor negra ou de laço negro. A ótica que visamos esmiuçar nesta pesquisa é entender como o âmbito de vivência do luto mudou durante os tempos até os dias marcados pela midiatização sem precedentes. Objetivamos refletir como que a intimidade do luto saiu do espaço privado para aflorar no espaço público das redes sociais. Como lócus de análise, escolhemos o Facebook, a maior rede social do mundo atualmente, com cerca de 2 bilhões de curtidores. Somente no Brasil, mais de 110 milhões3 de usuários constroem a infoterritorialidade dessa rede.

Já de início, nos é válido esclarecer o que é o luto. Para isso, brevemente, vamos às explicações do pai da Psicanálise, Sigmund Freud.

Na obra Luto e Melancolia, publicada em 1915, Freud conceitua o luto como uma “reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc.” (FREUD, 2011, p. 47). Com base nas observações feitas no cotidiano de seu consultório clínico, o psicanalista aponta que as reverberações do processo de luto profundo podem fazer com que a pessoa perca o interesse pelo mundo externo e se fixe na lembrança do morto, bem como pode haver “a perda da capacidade de escolher um novo objeto de amor – em substituição ao pranteado – e o afastamento de toda e qualquer atividade que não tiver relação com a memória do morto” (ibid.). Entendida essa parte central de nossa investigação, vamos às delimitações contidas nas próximas seções.

Nossa teia argumentativa será com vistas a discutirmos as mudanças em relação à morte e à intimidade, sobretudo, entre os séculos XVIII e XX, bem como a reconfiguração desses fenômenos a partir dos infoterritórios das redes sociais. O desenvolvimento do arcabouço teórico será articulado à pesquisa empírica. Para isso, ao longo do texto teórico traremos os casos analisados de relatos de luto no Facebook.

As páginas que se seguem estarão agrupadas em três seções. Na primeira, faremos

1 Cf. The Statistics Portal. Number of internet users worldwide from 2005 to 2017 (in millions). Disponível

em:<https://goo.gl/Fj79GX>. Acesso em 10 de fev. de 2018.

2 Cf. Agência Brasil. Relatório aponta Brasil com quarto país em número de usuários de internet. 2017.

Disponível em:<https://goo.gl/Vj2iv1>. Acesso em 10 de fev. de 2018.

3 Cf. Techtudo. Facebook chega a 2 bilhões de usuários. 2017. Disponível em:<https://goo.gl/GVK7Pg>.

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uma digressão histórica acerca da morte e do luto. Em seguida, na segunda seção, articularemos o conceito de intimidade e a mudança do espaço público. Por fim, comentaremos o surgimento de um novo espaço para vivenciar a intimidade do luto, agora de forma pública: o infoterritório midiatizado das redes sociais digitais. Ao longo do texto, o arcabouço teórico será intercalado com a pesquisa empírica, ao trazermos exemplos de oito narrativas de luto. A coleta de dados foi realizada por meio de captura de tela. Essa pesquisa faz parte de um estudo mais amplo sobre a morte nas redes sociais.

De gritos à dor velada: a morte e o luto ao longo dos tempos

A ciência da morte e a percepção de um ambiente igualmente finito é uma das características que diferenciam e compõem a nossa subjetividade humana. Ao direcionarmos a nossa perspectiva para o largo da História, podemos notar que a relação humana frente à morte deixou marcas visíveis. Mas também há marcas invisíveis fincadas pelo fim da vida de outrem, sentidas apenas na subjetividade recém-ferreteada por uma perda, como é o caso do luto.

O espaço das representações da morte e de se vivenciar a perda mudam ao longo dos tempos e das sociedades. Durante parte do período da Roma Antiga, por exemplo, o local destinado ao corpo morto era fora dos limites das cidades – o Pomerium, fronteira simbólica – para que os espíritos não vagassem e perturbassem os romanos daquela época. Apesar desse distanciamento, quando alguém queria ler, bastava cruzar as fronteiras das cidades, como nos conta o arqueólogo e historiador Paul Veyne (2009, p. 156): “Testemunhos comprovam que quando um antigo queria ler um pouco, bastava-lhe caminhar até uma das saídas da cidade; era menos difícil ler um epitáfio que a escrita cursiva de um livro”.

Os mortos só começaram a ser enterrados dentro dos limites das cidades com o enterro dos mártires e dos heróis, nas cidades romanas na África. Nessa leitura, podemos ter a errônea impressão de que a mudança dos costumes associados ao fim da vida ocorre bruscamente. O historiador francês Philippe Ariès, entretanto, argumenta que “as transformações do homem diante da morte são extremamente lentas por sua própria natureza ou se situam entre longos períodos de imobilidade” (ARIÈS, 2012, p. 24).

Essas transformações sociais também implicaram diretamente na forma de vivenciar o luto, conforme a época e a cultura. Se direcionarmos nossa ótica aos dias hodiernos, podemos associar pessoas enlutadas com vestes de cor negra. Essa característica do Ocidente é vivenciada de formas diferentes em outros lugares e culturas, como na China, em que o branco prevalece em cerimônias fúnebres, a indicar prosperidade e felicidade para o falecido; já o povo cigano, por sua vez, veste-se de vermelho para exaltar a vida e a energia física (JACOB; D’AMBROSIO, 1992, p. 23).

Além das cores, há culturas em que a perda de uma pessoa é vivenciada em comunidade, por meio de festividades. O geógrafo chinês Yi-Fu Tuan relata que para a cultura dos pigmeus mbuti, das regiões centrais da África, a morte não é atribuída a um infortúnio, mas a uma deficiência da bondade natural. Não há luto formal, mesmo que haja dor pessoal. “No caso de doença, morte ou fracasso na caçada, os pigmeus organizam um festival, com o propósito de acordar os espíritos da floresta, para chamar a atenção sobre a situação das pessoas”, explica Tuan (2005, p. 61).

Em nossa sociedade, associar o fim da vida a um festival pode parecer um tanto estranho ao tradicional processo de luto quieto hodierno. No entanto, nem sempre a dor causada pela morte foi experimentada com murmúrios sufocantes. Por volta do século X, no Ocidente, o fim da vida era percebido de uma forma mais familiar; a morte era domada

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(ARIÈS, 2012). Nesse caso, morria-se em casa com visita ao quarto dos moribundos, pois era comum a presença de familiares, figuras religiosas e crianças próximas ao leito. Outra característica era de que havia advertências e avisos premonitórios quando o próprio falecimento estivesse próximo – mesmo assim, compreendido com naturalidade e familiaridade.

Também podemos notar essa naturalidade de convivência com o fim da vida no local destinado aos mortos: o cemitério. Esse espaço era destinado não só à morte, mas também à sociabilidade dos vivos. Lá ocorriam vendas, jogos, danças etc., práticas que, juntamente com o local da igreja, configuravam o centro da vida social: “Na Idade Média, o cemitério era um lugar público, um lugar de encontro e de jogo, apesar dos ossos expostos nos ossários e do afloramento de pedaços de cadáveres malencobertos” (ARIÈS, 2012, p. 171). Ainda se referindo ao cemitério, Ariès (2014, p. 84) comenta: “Na Idade Média e até durante o século XVII, [o cemitério] correspondia tanto à ideia de praça pública, como à ideia, que hoje é exclusiva, de espaço reservado aos mortos”. E conclui: “A palavra tinha então dois sentidos, dos quais apenas um sobreviveu desde o século XVII até os nossos dias” (Ibid.).

O historiador ainda argumenta que a partir do começo do século XX a morte não foi mais domada; ela foi cofigurada como selvagem. A morte começou a ser tratada como um interdito, algo que não deve ser falado e nem pensado, muito menos ter manifestada a dor do ocorrido em público – diferentemente do que era na Idade Média. Se o moribundo recebia com certa familiaridade e calma a morte iminente no Medievo; o luto dos sobreviventes era vivenciado de forma selvagem. Eram comuns cenas de pessoas gesticulando em prantos e desmaiando em cima do defunto; até mesmo pessoas que seguravam fortemente ao peito o cadáver. “A lamentação perto do corpo e uma gesticulação que nos parece hoje histérica, mórbida, bastavam em geral para desafogar a dor, e tornar suportável o fato da separação”, esclarece Ariès (2014, p. 190). Esse sofrimento dilacerante, no entanto, durava algumas horas; no máximo um mês, nos grandes casos.

Hoje em dia, com o advento tecnológico que nos conecta e nos leva a outros espaços, o luto pode ser manifestado por meio de uma palavra, como vemos na Figura 1 abaixo, “Luto” – seguido de um emoticon que representa o choro4. No entanto, a manifestação da dor pode ser perpetuada ao longo da permanência imaterial do espaço, visível a quem tiver contato com a postagem e conter a datação da manifestação da dor e o local de onde alguém está sentindo a perda. Com comentários e curtidas, outros perfis se conectam diretamente ao luto manifestado e podem dar apoio a quem está sofrendo.

Figura 1.

Fonte: Print dos autores, 2018.

4 Com vistas a preservarmos as identidades dos perfis, todas as informações pessoais contidas nas publicações

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Diferente de nossa era em que o enlutado pode manifestar suas dores em grandes escalas de audiência, nos séculos XVI e XVII a passagem pelo período de luto não tolerava manifestações pessoais, sendo que a impessoalidade e o ritualismo eram característicos. Na prática, as pessoas que continuavam aflitas após o breve prazo concedido para “uso do luto”, se ainda estivessem aflitas para voltar à vida normal, deveriam se retirar da convivência pública, indo para o convento, campo ou qualquer outro lugar onde não era reconhecida. O luto passou a ser “impessoal e frio, em vez de permitir ao homem expressar o que sente diante da morte, ele o impede e o paralisa. O luto representa o papel de uma tela entre o homem e a morte” (ARIÈS, 2014, p. 433). Essa ritualização, bem como a necessidade de simplificação dos ritos da morte, decorre da cultura cristã, em que se pregava o exercício da humildade.

Já no começo do século XIX, Ariès (2012) comenta que as manifestações de luto voltaram a ser exageradas. Mas diferente entre tais performances e o exagero quase cênico das épocas precedentes era que, no período oitocentista, os sobreviventes aceitavam a morte do outro com mais dificuldade: “A morte temida não é mais a própria morte, mas a morte do outro” (ARIÈS, 2012, p. 73-74). Algumas décadas depois, perceberíamos a morte tomar o lugar que o sexo obtinha na era vitoriana: o de maior tabu. E isso fez com que o fim da vida fosse resguardado aos recantos da sociedade, a morte se tornaria selvagem.

A partir de então, no decorrer do início do século XX, a dor causada pela ausência do outro foi se direcionando ao resguardo no íntimo sentimental, pois a regra adotada no Ocidente impunha que o sentimento não deveria ser manifestado em público – ao contrário do que era exigido em épocas anteriores. À luz dos escritos do antropólogo inglês Geoffrey Gorer, Ariès (2014) destaca três categorias de luto que o autor elencou na primeira metade do século passado: na primeira, a dor é escondida por completo e a pessoa continua seu cotidiano como se nada tivesse ocorrido; na segunda, a mais aceita, a pessoa não deixa transparecer quase nada e a dor do luto subsiste em particular, sendo que, se necessário, admite-se “tolerar algum desabafo, contanto que permaneça secreta” (p. 780); já na terceira categoria de luto, a dor é exposta livremente e o enlutado fica impiedosamente excluído como um louco.

A morte, então, foi empurrada para fora do ambiente público de vivência como consequência do desaparecimento dos códigos que direcionavam os comportamentos das pessoas nas diferentes ocasiões – do nascer ao morrer. Os sentimentos fora da normalidade do cotidiano deveriam ser reprimidos; caso contrário, podiam desferir o incômodo de momentos, imagens e sons constrangedores aos que estão ao redor. Sobre a manifestação pública e exagerada da dor, Ariès (2014, 782) explica que “comprometem a ordem e a segurança necessárias à vida cotidiana, convindo, pois, reprimi-los. É aí então que as coisas do amor, de início, e da morte, em seguida, foram interditadas”.

A interdição de outrora dos sentimentos provocados pela morte do outro, ao encontrarem um novo ambiente em que o código de etiqueta ainda não está totalmente definido (e, provavelmente, nunca estará – pelo processo recursivo e dialógico em grande escala), são manifestados livremente no campo social público do infoterritório. No Facebook, os sentimentos (de alegria e de dor) podem ser exibidos ao público por uma marcação, além das narrativas pessoais. No caso abaixo (Figura 2), podemos notar a facilidade de manifestar o sentimento, sendo que, na publicação, o nome do usuário é seguido de “está se sentindo despedaçada”. O caso destacado nos mostra a narrativa de luto, proveniente da morte de um tio do usuário. Ao mesmo tempo, o relato converge entre o sentimento de dor e a exposição da intimidade, por se tratar de um familiar e por trazer contextos de conversas com o ente querido.

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Figura 2.

Fonte: Print dos autores, 2018.

Na raiz da configuração social em que luto foi reprimido ao campo subjetivo da intimidade, também podemos acrescentar ao processo uma cultura marcada pela felicidade pontilhista do consumo – onde tempo é dinheiro e sonho é mercadoria. Estar fora desse jogo ou atrapalhá-lo é ser visto como inválido ou louco. Assim sendo, nada deve ferir a vista de quem vive o crochê de microfelicidades feitas a pontos cada vez mais fugazes em linhas de mercancia. Essa mudança também está atrelada a uma nova configuração do espaço destinado à intimidade e à transformação do espaço público, como veremos na seção seguinte.

Ainda se tratando da manifestação aparente do luto, Ariès (2014) dispara: “estamos convencidos de que a manifestação pública do luto, e também sua expressão privada muito insistente e longa, é de natureza mórbida. A crise de lágrimas transforma-se em crise de nervos. O luto é uma doença” (p. 782). O historiador francês aponta ainda que: “O período de luto já não é o do silêncio do enlutado no meio de um ambiente solícito e indiscreto, mas do silêncio do próprio ambiente: o telefone deixa de tocar, as pessoas o evitam. O enlutado fica isolado por quarentena” (Ibid.). Já com advento das redes sociais, notamos que a vivência do luto é reconfigurada através dos mecanismos de comunicação das plataformas. A intimidade da dor do enlutado, além de compartilhada, pode ser acalentada pelas palavras de outros, com os comentários (Figura 3).

Figura 3.

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Se retrocedermos nossa ótica às transformações da manifestação do sentimento de luto dos últimos séculos, também notaremos a mudança no espaço público da vivência da intimidade. A seguir, esmiuçaremos esses dois conceitos.

A mudança do espaço público e da intimidade: uma questão de

recursividade

Em nossa pesquisa, buscamos associar a transformação do lugar de vivência do luto com a mudança do conceito de intimidade e de espaço público. O próprio espaço da morte esteve ora mais localizado no espaço público (com as cerimônias e os ritos), ora mais no espaço privado (com o interdito da morte e a restrição do expor os sentimentos de luto). Já o conceito de intimidade surge também atrelado à distinção entre o que é do ambiente público e o que é do ambiente privado, marcadamente ao longo do tempo, sobretudo, notadamente nos séculos XVIII e XIX.

Entendemos que a argumentação aqui trazida sobre a mudança no espaço público é concomitantemente ligada à transformação do conceito de intimidade. Pensamos essas mudanças com vistas ao processo de recursividade (MORIN, 2015) que, em suma, é a interseção da ação de causa e efeito, sendo que um age e modifica o outro. Morin (2015, p. 74) explica: “Um processo recursivo é um processo em que os produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores do que os produz”. Frente a isso, tanto a percepção do espaço público quanto a da intimidade, ligada ao espaço privado, se modificam em conjunto.

O sociólogo americano Richard Sennett, em O declínio do homem público, nos conta que o emprego das palavras “público” e “privado” tem distintas atribuições conforme a época. Em inglês, as primeiras ocorrências de “público” eram correlatas a um bem comum na sociedade. Somente a partir dos séculos XVI e XVII o sentido de “público” se aproximou do que é empregado hoje em dia: “[...] havia-se acrescentado ao sentido de público aquilo que é manifesto e está aberto à observação geral” (SENNETT, 2014, p. 33).

Já quanto ao “privado”, que nos é comum no âmbito restrito – um território de vivência familiar e exclusivo a olhares limitados –, Sennett (2014) inclui outro elemento que compõe esse conceito: a subjetividade. No contexto moderno, o privado “é um florescimento da vida psíquica diante do isolamento” (Ibid., p. 16). Esse conceito nem sempre foi empregado da mesma forma e derivou o que hoje chamamos de privacidade.

O que hoje tratamos como “privacidade”, à época da Roma Antiga era ocupado por um termo a fim de contrapor o de público, não como derivante de um local restrito, mas sob a concepção subjetiva, tendo em vista que o romano buscava privadamente um princípio para a transcendência religiosa do mundo. Nos tempos hodiernos, argumenta Sennett (2014), esse espaço é destinado às nossas psiques ou ao que é autêntico em nossos sentimentos. Dentro da psique, tratada como se tivesse uma vida interior própria, “considera-se essa vida psíquica tão preciosa e tão delicada que fenecerá se for exposta às duras realidades do mundo social e que só poderá florescer na medida em que for protegida e privilegiada. O eu de cada pessoa tornou-se o seu próprio fardo” (Ibid., p. 16).

Alocados aos espaços de vivência e de sociabilidade, foi a partir do século XVII que “a oposição entre ‘público’ e ‘privado’ era matizada de modo mais semelhante ao atual” (SENNETT, 2014, p. 33). “Público” significava aberto à observação de qualquer pessoa, enquanto “privado”, por sua vez, significava uma região protegida da vida, definida pela família e pelos amigos.

Sennett (2014) defende que por volta do século XVIII, com o surgimento da vida cosmopolita, “público” veio a significar uma instância em que a pessoa passa fora da

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convivência familiar, em que grupos sociais diferentes e desconhecidos entre si teriam que entrar em contato. Para o autor, nesse século, “a divisão entre a vida pública e a vida privada era constituída por um local em que havia exigências de civilidade, no caso do comportamento público cosmopolita, e eram confrontadas pelas exigências da natureza, representadas pelo âmbito familiar” (SENNETT, 2014, p. 36).

Entretanto, a vida em público, que gerou o universo das relações sociais amplificadas, só podia ser experimentada em silêncio, na qual a pessoa possuía um escudo invisível, um direito de ser deixada em paz. Nessas ocasiões, em que o indivíduo estava em público, o comportamento principal era de observação e de participação passiva. Sennett (2014, p. 49) resgata a cunhagem dada pelo escritor francês Honoré de Balzac, a definir essa prática de certo voyeurismo como “gastronomia dos olhos”. A retração dos sentimentos se fazia essencial para a constituição da vida pública. Nesse sentido, não foi diferente com a morte e suas repercussões na esfera social, pois logo a imagem do enlutado foi se tornando desconfortável ao olhar alheio.

Voltando à percepção do enquadramento sócio-histórico dos termos público e privado, Sibilia (2008) diz que a separação entre o público e o privado é uma invenção datada, que pode não existir ou se configurar de outras maneiras. A autora explica que a distinção que nos é perceptível hoje em dia só ganhou consistência na Europa dos séculos XVIII e XIX – reflexo do desenvolvimento industrial, em que o indivíduo buscava um território salvo das exigências e dos perigos do meio público.

Saldanha (2005) também relaciona o “privado” à convivência íntima e familiar. O autor pontua que “a família sempre se entendeu como concentração do existir privado, diretamente ligado aos afetos mais pessoais e aos componentes domésticos” (p. 21). É nesse ambiente privado, ou seja, restrito ao olhar de todos, juntamente abarcando a noção psíquica, que a intimidade se atualiza e ganha protagonismo em nosso tempo.

Por falar em intimidade, Sasaki (2013) define o termo com raízes no “superlativo latino intimus, isto é, ‘o mais afastado, o mais recôndito; o âmago, o mais secreto’” (p. 152). Podemos ainda incluir à definição outros aspectos que exemplificam a intimidade, a abarcar a relação com o corpo e a subjetividade, tais como: excreções fisiológicas, nudez, sexualidade, afetos, sentimentos etc. – aspectos esses que podem variar a partir de uma perspectiva pessoal ou social, sendo mais restrita ou não ao olhar do outro. A se tratar do campo dos sentimentos, notamos a relação entre o luto e a intimidade.

Em nosso tempo, marcadamente pelos avanços tecnológicos que conectam pessoas e máquinas a fluxos sem precedentes, a intimidade passou a ser ressignificada em meio a essa nova configuração. Nesse sentido, por volta do final do século XX, com o florescer das tecnologias digitais, os limites entre o público e o privado vêm se liquefazendo, e modificando o conceito de intimidade, por consequência. É nesse ambiente que, segundo Sibilia (2008), a intimidade toma novas proporções, deixando de ser algo do interior do indivíduo para o seu exterior, o que ela denomina ser extimidade.

Hoje em dia, com o advento tecnológico que nos permite olhar e sermos olhados sem a presença física do outro, a “gastronomia dos olhos” notada por Balzac ainda é uma prática vigente – mesmo em época onde as portas para o diálogo parecem estar abertas. Nas redes sociais digitais, em alguns casos podemos ter a impressão de um solilóquio compartilhado. As narrativas de luto são um exemplo, quando há o direcionamento da fala à pessoa falecida ou a si mesmo, como um desabafo.

No exemplo abaixo (Figura 4), notamos o desabafo do usuário, numa postagem em que há uma fotografia com o ente querido recém-falecido. O conteúdo da narrativa ora é falando da própria dor, ora como um solilóquio direcionado ao falecido pranteado. Fragmentos frasais como “A gente nunca tá preparado para a dor da morte (...)”, “(...) é de

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destruir o coração.”, “Não quero acreditar que tô vivendo essa dor de novo”, expõe em público a constituição íntima da dor do luto. Já “Não sei onde tirar forças para consolar minha mãe e meus tios” e “A senhora devia ter se cuidado mais vó, tão nova nos deixou”, mostram a experiência de intimidade construída ao lado de outras pessoas (familiares), bem como conselhos do usuário direcionados ao falecido.

Figura 4.

Fonte: Print dos autores, 2018.

A sensação de liberdade que sentimos ao encontrarmos um novo território a ser construído, como as redes sociais digitais, contrapõe a falta de segurança presente nos espaços públicos físicos. Assim, a falta de segurança é um dos fatores que influenciam diretamente no isolamento das pessoas no espaço físico, protegidas pelos muros de suas residências e que buscam refúgios e companhias no infoterritório da internet.

Nessa perspectiva, Sibilia (2008) aponta que “por isso não surpreende que se multipliquem os convites para acompanhar em detalhe os aspectos mais íntimos das próprias rotinas domésticas de qualquer um” (p. 262). Além disso, também é possível concluir que o “fascínio suscitado pelo exibicionismo e pelo voyeurismo encontra terreno fértil em uma sociedade atomizada por um individualismo com beiradas narcisistas, que precisa ver sua imagem refletida no olhar alheio para ser” (Ibid., 2008, p. 263).

O narcisismo também é pontuado por Sennett (2014) como algo que permeia a vertigem de interação. O autor diz que:

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56 chamamos de representação da emoção para outrem, ao invés de uma apresentação corporificada de emoção. O narcisismo cria a ilusão de que uma vez que se tenha um sentimento ele precisa ser manifestado – porque, no final das contas, o “interior” é uma realidade absoluta. A forma de sentimento é apenas um derivativo do impulso de sentir (p. 481).

Sennett (2014) ainda pinta nossa atual sociedade fazendo uma relação com o ideal da era clássica de theatrum mundi, em que o mundo era um palco e as pessoas, seus atores. Em nossa época, para o autor, somos atores sem uma arte. O sociólogo comenta que “a representação de estados de sentimentos na sociedade intimista faz com que a substância de uma emoção dependa daquela pessoa que a está projetando” (p. 450). E acrescenta: “ao contar a uma outra pessoa a respeito de uma morte na família, quanto mais o orador vir o que a morte faz seus ouvintes sentirem, mais intenso se tornará para ele o próprio acontecimento” (p. 450).

É nesse conjunto de elementos, a incluir a mudança da intimidade e a criação de novos suportes informacionais, que direcionamos nosso olhar para o Facebook como um infoterritório onde ocorre a manifestação do luto – sentimento que foi resguardado ao âmbito privado e que causava desconforto ao olhar em público. Em pesquisa anterior (MARTINUZZO; SANGALLI, 2015), realizada com mais de 700 participantes usuários Facebook, pudemos concluir que o Facebook é concebido como um local público, em que há grandes fluxos de informações vinculadas à intimidade do outro – dentre os quais estão os sentimentos provocados pela morte, as narrativas de luto.

Assim, é válido entender como surgiram essas ferramentas que atualizam a intimidade da dor para o local público do infoterritórios, como veremos a seguir.

O infoterritório do luto compartilhado: redes sociais digitais

As práticas e os ritos ligados à morte sempre estiveram alocadas em territórios para que pudessem se perpetuar as memórias e as representações do fim da vida. Ao largo da História, o território destinado à morte ocupou tanto o espaço material – como é o caso dos cemitérios, esculturas representativas, livros etc. –, bem como o espaço imaterial da oralidade e do imaginário humano. Nos tempos hodiernos, outro espaço foi territorializado, dando vazão também aos assuntos do fim da vida, por meio da midiatização em rede.

A proliferação midiática ocorrida nas últimas décadas incidiu diretamente na modificação do espaço cotidiano, cada vez mais informatizado e informacional. Sodré (2006) esclarece que a midiatização constitui uma ordem de mediações socialmente realizadas, que implica em interação com a tecnologia vigente. Essa interação com a tecnologia seria denominada como tecnomediações, ocorridas por meio de um “[...] dispositivo cultural emergente no momento em que o processo da comunicação é técnica e mercadologicamente redefinido pela informação, isto é, por um produto a serviço da lei estrutural do valor, também conhecida como capital [...]” (SODRÉ, 2006, p. 21).

É a partir desse processo de midiatização que criamos ligações afetivas unilaterais com pessoas que não conhecemos. As celebridades são um exemplo. A pessoa se conecta com a celebridade pela mídia, se identifica e a contempla em seu palco. Mas é também pela mídia que descobre a perda e, com esse novo espaço de vivência, o sentimento de luto pode ser externado. Como vemos no exemplo abaixo (Figura 5), o sentimento causado com a morte do vocalista da banda Motörhead é compartilhado no infoterritório do Facebook: “Luto define o momento”, está escrito na postagem. Ademais, notamos que na referida publicação também

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há características de intimidade, tendo em vista, além do processo sentimental do luto, a presença dos gostos do usuário – um dos elementos que articula informação, midiatização e intimidade, e que compõe a edificação da habitação customizada de cada território nas redes sociais digitais; processos que são pautados na interação com os fluxos informacionais.

Figura 5.

Fonte: Print dos autores, 2018.

A informação alicerçada na midiatização, agora em fluxos exorbitantes sem precedentes, reconfigura a relação espacial de vivência. Assim, com a interação entre tecnologia e sociedade, novos espaços são ocupados e territorializados. Essa observação é clara para o pesquisador José Antonio Martinuzzo, ao nos trazer o conceito de infoterritórios. Esses infoterritórios são constituintes de uma extensão simbólico-cognitiva construída com base comunicacional, em que há a utilização de interfaces midiatizadas em redes de mídia on e off-line, bem como a presença de fluxo de conteúdos informacionais (MARTINUZZO, 2016).

O uso do território e a experiência que provém desse processo caracteriza a infoterritorialidade, materializada por meio de acessos, da produção e do compartilhamento daquilo que nos afeta simbolicamente no âmbito informacional. Ademais, nessa perspectiva há “uma extensão significante de alianças e pertencimentos socioeconômicos e político-culturais midiatizados” (Ibid., p. 13). Essa conceituação fundamenta nossa pesquisa, tendo em vista que a morte é vivenciada com bases num território, seja ele material ou simbólico.

Como os infoterritórios são constituídos pelos atravessamentos e sobreposições de outros infoterritórios, a dividir espaço num mesmo local, é corriqueira a experiência de infoterritorialidades realocadas. Podemos exemplificar esse processo de realocar com o Facebook, onde há a convergência de plataformas de notícia dentro da rede social. Ou seja, um jornal, por exemplo, que tem sua plataforma em outro infoterritório, ao convergir uma reportagem (fragmento do seu infoterritório) para o espaço do Facebook, realoca e sobrepõe infoterritórios.

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percepção. Na malha informacional dos infoterritórios, o processo de luto pode ser manifestado (por meio de postagens), bem como pode surgir a partir de notícias publicadas na rede. No exemplo abaixo (Figura 6), notamos que o usuário manifesta o luto e contextualiza com o compartilhamento de uma notícia de jornal online.

Figura 6.

Fonte: Print dos autores, 2018.

O desenvolvimento tecnológico que compõe uma sociedade midiatizada também reflete diretamente nas formas de interação entre os sujeitos que ocupam os infoterritórios. Thompson (1998), há mais de duas décadas, analisou a mudança da interação das pessoas através das mídias de massa. O autor comenta que “com o desenvolvimento dos meios de comunicação, a interação se dissocia do ambiente físico, de tal maneira que os indivíduos podem interagir uns com os outros ainda que não partilhem do mesmo ambiente espaço-temporal” (p. 78). E completa: “O uso dos meios de comunicação proporciona assim novas formas de interação que se estendem no espaço (e talvez também no tempo), e que oferecem um leque de características que as diferenciam das interações face a face” (Ibid.).

Abarcando essa possibilidade de interação proporcionada pelo desenvolvimento das mídias comunicacionais com quem as utiliza, Thompson (1998) discute que a formação self num ambiente informacional é enriquecida pelo extenso leque de recursos simbólicos. O sujeito constrói ativamente o self partilhando e tecendo a própria autobiografia num campo repleto de outras autobiografias homogêneas. “Somos todos biógrafos não oficiais de nós mesmos, pois é somente construindo uma história, por mais vagamente que a façamos, que seremos capazes de dar sentido ao que somos e ao futuro que queremos”, comenta o autor (Ibid., p. 183-184). Assim, consumir informações, com ler uma narrativa de luto, por exemplo, ajuda na constante remodelagem do self, na medida em que são exploradas novas possibilidades, alternativas, experiências e emoções.

Podemos compreender e enxergar notoriamente no cotidiano as observações feitas por Thompson (1998) duas décadas depois, com o desenvolvimento das redes sociais digitais. Compreendemos uma rede social, com base na definição de Recuero (2009), como um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais). Em outra obra da autora, encontramos a seguinte definição: “as redes sociais são metáforas para os grupos humanos, onde se procura compreender suas inter-relações. Nesse sentido, redes sociais na Internet são metáforas para esses grupos na mediação do computador” (Id., 2014, p.128). A mediação de agora pode

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conectar pessoas e suas narrativas pessoais, como a intimidade do luto, e refletir na concepção de experiência do outro conectado.

Essa possibilidade de escancarar a porta da privacidade para deixar à mostra a intimidade a um grande público foi potencializada nas últimas décadas com o desenvolvimento de uma web, a 2.0, em que a pessoa tem a viabilidade de modificar plataformas. Notadamente com essa modificação no infoterritório do ciberespaço, as redes sociais digitais floresceram. O usuário de redes sociais pode, então, exercer o que Castells (2015) chama de autocomunicação de massa, e passa a ser, além do tradicional “receptor-interactante”, produtor e reprodutor de conteúdos em escala massiva.

Podemos ilustrar essa possibilidade de criação e publicação de conteúdo com o exemplo abaixo. Um usuário do Facebook fez uma postagem contendo 13 fotos e cinco vídeos do velório de seu padrasto. Numa das gravações, filmada em forma de self, é possível ver o cadáver no caixão (Figura 7). O excesso de exposição pessoal do momento que era para ser de luto, logo foi ressiginificado por outros usuários na rede e tornou-se piada. A postagem integral foi compartilhada por mais de nove mil vezes em menos de um dia. Em alguns comentários, lê-se: “No mínimo, foi ela quem matou (sic)” e “Miga... sua cara tá parecendo cara de comemoração... Ou então vc é doida... (sic)”. Assim, estar presente na malha da rede, constituída por imensuráveis nós subjetivados, é também participar de reformulações e ressignificações de questões às vezes engessadas socialmente, como é o caso do luto e da intimidade levados à categoria de piada.

Figura 7.

Fonte: Print dos autores, 2018.

Logo, o processo de autocomunicação de massa está diretamente ligado à lógica de infoterritorialidade (MARTINUZZO, 2016) nas redes sociais, tendo em vista que é por meio (e através) das interações e das modificações informacionais de outros que temos e construímos as experiências. Ademais, recursivamente, o espaço é transformado em infoterritório, ao ser territorializado, bem como é tida a experiência de infoterritorialidade – processo cíclico e subjetivo, se pensarmos que cada perfil é constituído também pela subjetividade de quem o administra.

Na prática, notamos que um perfil (infoterritório-subjetivado) ao afetar outro perfil (infoterritório-subjetivado) também reflete na experiência com a totalidade em que os perfis estão inseridos. No caso do luto, por exemplo, um dado perfil pode afetar outros perfis ao

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compartilhar uma notícia de morte de uma pessoa que é conhecida em comum para a rede. Abaixo (Figura 8), vemos que uma notícia de falecimento publicada por um perfil foi compartilhada por outro usuário, ampliando a possibilidade ser afetado pelo processo de luto. As redes sociais atualizaram a nota de falecimento anunciada em alto-falante a fim de informar a comunidade – prática que ainda persiste em algumas localidades brasileiras, sobretudo, em cidades interioranas.

Figura 8.

Fonte: Print dos autores, 2018.

A pesquisadora Renata de Rezende Ribeiro, em A morte midiatizada, nos proporciona a reflexão de pensar a morte com o advento das redes sociais digitais. Alicerçada em seu estudo para entender a construção das narrativas de memórias em comunidades na extinta rede social Orkut, bem como no Facebook, a autora observa que

A comunidade virtual estabelece, desta forma, por mais paradoxal que possa parecer, um projeto de permanência para os mortos digitais que abriga, com objetivo de atualizar o “discurso comunitário” sobre morte na contemporaneidade midiática. [...] A digitalização do ‘corpo morto’ é mais do que a simples manutenção de laço de interatividade, presença e lembrança de um sujeito então ausente: é a tentativa, sempre reafirmada ao longo da história, de constituir a imortalidade (RIBEIRO, 2015, p. 46).

Referindo-se aos cemitérios digitais que são construídos nos infoterritórios das redes sociais na atualidade, a autora acrescenta à nossa observação que os meios de comunicação são uma expressiva via de contato com a morte do outro: “A morte, que é sempre a do outro, é algo que, agora, se encontra mais próxima, no ‘click do teclado’” (RIBEIRO, 2015, p. 48).

Notadamente, a transformação da morte e da intimidade tem base na experiência física do real. Porém, em nossa pesquisa, destacamos a relevância do surgimento de um novo espaço de vivência. Esse espaço é o grande infoterritório que aloca as redes sociais, em que as narrativas e as sociabilidades se atualizam e se modificam. Na convergência com o cotidiano palpável, questões como o luto e a intimidade, que há algumas décadas estavam fora do espaço público, são publicadas e ressignificadas na rede.

Sendo assim, cada vez mais vislumbramos a simbiose entre infoterritórios e fisio-territórios (os fisio-territórios naturais de sempre). Portanto, se as práticas de exposição da intimidade do luto representaram um descompasso e deslocamento na materialidade do cotidiano diário, ao se atualizarem e se modificarem nos infoterritórios, progressivamente, em alguma instância, também alteram as representações do fim da vida no cotidiano palpável (e

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assim cíclica e recursivamente).

Considerações finais

Ao olharmos o nosso estudo em sua totalidade, entendemos como foi que a morte passou das fronteiras simbólicas na Antiguidade à distância dos poucos clicks nos tempos hodiernos. A vivência do fim da vida do outro esteve sempre inserida no cotidiano dos acontecimentos e, a partir disso, com suas representações, convergiram para as tecnologias de cada tempo e promoveram reconfigurações. Portanto, com vistas ao atravessamento tecnológico das últimas décadas, o fim da vida foi midiatizado (RIBEIRO, 2015). Em nosso tempo, é dessa forma que, majoritariamente, vivenciamos a morte – sempre a do outro –, por mais paradoxal que pareça.

Sendo assim, a experiência de encarar a morte do outro é percebida nos fluxos vertiginosos das redes. Não que anteriormente não houvesse isso – a TV já repercutia a morte a uma escala de massa. O que mudou foi a possibilidade do repector-interactante de outrora também ser produtor e reprodutor de conteúdos. Dessa forma – sob a articulação recursiva entre espaço, pessoas e informações – que o infoterritório (MARTINUZZO, 2016) é constituído e ressignificado, juntamente com as narrativas que o compõe.

No meio dessa ressignificação possibilitada pelos novos espaços, como as redes sociais, a morte irrompe do que foi atribuída como selvagem (ARIÈS, 2012; 2014) e volta a ser um pouco mais socializada – mesmo que, por muitas vezes, a contragosto do olhar alheio. Olhar esse que também foi modificado ao largo dos últimos séculos, notadamente nas eras oitocentistas e novecentistas, a trazer as contradições entre o deleite do voyeurismo alheio à sua condenação instantânea, sob as vistas de desaprovação da intimidade.

Afluindo nessa estrutura social, pudemos entender como o luto foi vivenciado ao longo dos tempos até ser direcionado a um espaço de exclusão, por ser da natureza íntima dos sentimentos alheios – aspecto que passou a não ser mais aceito na vivência do espaço público. Contudo, a partir do advento dos infoterritórios – em que é possibilitado infoterritorializar e subjetivar novos espaços públicos de sociabilidade em constante (re)construção –, a utilização das redes sociais proporcionaram reconfigurações de questões sociais como a intimidade e o luto, ao trazer às vistas do outro, por meio do compartilhamento, o que antes era empurrado ao espaço privado e tido como interditado.

Referências

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MARTINUZZO, José Antonio. Prólogo - Territorialidade: o que é isso?. In: MARTINUZZO, José Antonio; TESSAROLO, Marcela (orgs.). Comunicação e territorialidades: as pesquisas inaugurais do primeiro Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Espírito Santo. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Departamento de Comunicação Social, 2016.

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MARTINUZZO, José Antonio; SANGALLI, Heryck. A intimidade em tempos de rede

social digital - o Facebook e a midiatização do íntimo. 2015. Revista de Educação, Cultura e

Comunicação do Curso de Comunicação Social das Faculdades Integradas Teresa D'Ávila.

Vol. 6, N 12, 2015. Disponível em:

<http://publicacoes.fatea.br/index.php/eccom/article/viewFile/1316/1003>. Acesso em: 10 de fev. de 2018.

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Referências

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