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ENTRE O CORPO DA CONSCIÊNCIA E A CONSCIÊNCIA DO CORPO: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTO ENTRE HEGEL E MARX*

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Resumo: trabalho é uma categoria ontológica responsável pela formação da consciência

e um dos objetos para a consciência é o próprio corpo. Assim, este artigo discute a concepção de corpo na perspectiva marxista, dialogando com a Fenomenologia do Espírito de Hegel. Este ensaio teórico traz como conclusão aspectos que demonstram que as concepções de corpo em Hegel e Marx apresentam algumas aproximações como a relação do corpo orgânico e inorgânico, apesar das diferenciações decorrentes do eixo idealista ou materialista de cada autor. Desse modo, é possível verticalizar para o debate de uma consciência do corpo, simultânea ao corpo da consciência.

Palavras-chave: Corpo. Consciência. Hegel. Marx.

Tadeu João Ribeiro Baptista** ENTRE O CORPO DA CONSCIÊNCIA

E A CONSCIÊNCIA DO CORPO: APROXIMAÇÕES

E DISTANCIAMENTO ENTRE HEGEL E MARX*

A

filosofia alemã é reconhecida por sua contribuição, sobretudo, na modernidade, a qual poderia ser compreendida a partir do desenvolvimento posterior ao iluminismo no século XVII. São vários os autores que poderiam ser mencionados como referência na filosofia germânica entre os quais podem ser citados Kant, Nietzsche, Adorno, Arendt e Heidegger. Além desses eminentes pensadores, dois outros se destacam no desenvolvimento do pensamento alemão: Hegel e Marx.

Estes autores apresentam algumas temáticas, reflexões e, sobre-tudo, um método convergente, apesar de um ser diametralmente oposto ao outro do ponto de vista das análises. Hegel compreende a relação do ser humano com a natureza mediada pelo trabalho, sendo este o proces-so de exteriorização do espírito abproces-soluto. Por isproces-so, Hegel é compreendi-do como um dialético idealista, pois, tucompreendi-do parte das ideias.

Por outro lado, Marx também compreende o trabalho como ele-mento mediador do ser humano com a natureza e, assim, forma-se a própria consciência do homem. Entretanto, a elaboração do trabalho,

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bem como, a formação da consciência se dão em relação dialética ho-mem/natureza, mas com uma discussão invertida em relação a Hegel, pois, Marx compreende a origem nas condições objetivas, ou seja, nas condições materiais de existência.

Para estes dois autores, o trabalho é responsável não apenas pela elaboração da consciência como defende Hegel (2003), mas pela cons-trução ontológica do ser humano, contribuindo em última análise para a constituição do corpo.

Não é possível se pensar a existência humana se não for pelo e no corpo. O corpo é a própria materialidade/espiritualidade da vida humana, sendo o responsável por todas as transformações da natureza. Não se interfere na natureza se não for pelo corpo. Ao colocar em ação a corporalidade humana por meio dos ossos, músculos e nervos que o ser humano se constitui como diz Marx (1996). Em outras palavras é através do trabalho que o homem se defronta com a natureza por meio de sua corporalidade, põe em movimento todos os seus órgãos, sentidos e capacidades como forma de se apropriar das matérias naturais capazes de sustentar a sua vida (MARX, 1996, p. 297).

Tanto Hegel como Marx apresentam debates sobre o corpo. A re-lação com a consciência e com o trabalho é um componente chave para se compreender a dimensão do corpo na atualidade, bem como, todos os discursos e práticas voltadas para o corpo. Todavia, o objetivo do presente texto é fazer uma discussão a respeito do corpo na perspectiva marxiana nos Manuscritos Econômicos Filosóficos e A Ideologia Alemã, escrito junto com Engels, dialogando A Fenomenologia do Espírito de Hegel, embora, seja difícil, decorrente da influência deste sobre aquele, sobre-modo, em seus anos de juventude, de se separar tais concepções.

Para tanto foi feita uma pesquisa de caráter bibliográfico nas obras citadas e este texto se divide em dois grandes momentos. No pri-meiro, pretende-se discutir a concepção de corpo em Hegel como corpo da consciência, apresentando algumas aproximações desse debate com as reflexões marxistas.

No segundo momento, será feita a discussão do corpo nos estudos marxistas, demonstrando a aproximação de corpo de Marx com Hegel. REFLETINDO SOBRE A CONCEPÇÃO DE CORPO EM HEGEL

O corpo é uma condição sine qua non para a existência do ser humano, porquanto para Hegel (2003), este elemento biológico do ser

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humano constitui a sua natureza orgânica, os quais estabelecem relação com a natureza, entendida inicialmente como a condição inorgânica, ou seja, o elemento exterior ao corpo.

Hegel (2003) define coisa ou natureza orgânica e inorgânica, contribuindo com a compreensão da vinculação entre homem e nature-za em Marx. Para esse filósofo:

Um objeto tal, que tem em si o processo na simplicidade do con-ceito, é o orgânico. É ele essa absoluta fluidez que se dissolve a determinidade através da qual seria somente para outro. A coisa inorgânica tem a determinidade como sua essência, e por esse mo-tivo só junto com outra coisa constitui a plenitude dos momentos do conceito; e portanto se perde ao entrar em movimento. Ao con-trário, na essência orgânica todas as determinidades, mediante as quais está aberta para o outro, estão reunidas sob a unidade or-gânica simples. Nenhuma delas, que se relacione livremente com outro, emerge como essencial; e por isso em sua relação mesma, o orgânico se conserva (HEGEL, 2003, p 188-9).

De acordo com o exposto acima, a coisa orgânica está em continui-dade com a inorgânica, sendo o inverso vercontinui-dadeiro, ou seja, a dimensão orgânica e a inorgânica, estão em relação dialética. Deve-se considerar nesta relação que cabe ao orgânico: o agir. Afinal “[...] a coisa orgânica é fim para si mesma, de tal modo que se apresenta como escondida no seu agir – enquanto o agente no agir se comporta como um essente-para--si-diferente – incide fora do próprio orgânico” (HEGEL, 2003, p. 192).

Neste caso, quando Hegel se refere à coisa orgânica, ele está de-batendo a própria dimensão física do ser humano, ou seja, o corpo em sua materialidade. De outro modo, deve-se entender que a intervenção do orgânico é uma interferência sobre o inorgânico. Porquanto, o or-gânico tem como uma de suas características o desdobramento de sua perpetuação, constituída a partir do agir sobre o inorgânico (a natureza). Isso aponta para a necessidade da relação entre ambos, a fim de garantir a vivência da condição física (HEGEL, 2003).

A coisa orgânica tem, três características: a sensibilidade, a irri-tabilidade e a reprodução.

Com efeito, a sensibilidade exprime, em geral, o conceito sim-ples da reflexão orgânica em si, ou a fluidez universal do

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con-ceito; mas a irritabilidade exprime a elasticidade orgânica, a capacidade de se comportar como reagente, ao mesmo tempo, na reflexão; e exprime a efetivação, oposta ao primeiro ser-dentro--de-si inerte. Nessa efetivação, aquele ser-para-si abstrato é um ser para outro. Por sua vez, a reprodução é a ação desse orga-nismo total refletindo sobre si mesmo; é a sua atividade com fim em si ou como gênero; atividade, pois, em que o indivíduo de si mesmo se expulsa, e engendrando repete suas partes orgânicas, ou o indivíduo completo (HEGEL, 2003, p. 196).

Devem-se destacar na citação acima dois pontos centrais: 1) a irritabilidade e; 2) o processo de reprodução, haja vista ser a sensibi-lidade a capacidade de reflexão humana sobre si. A irritabisensibi-lidade se destaca por apresentar como a característica que possui a ideia da elasti-cidade do corpo. Infere-se que esta é uma capaelasti-cidade dos organismos se manterem vivos. Esta capacidade de reagir ao seu meio o reflete como algo positivo e negativo na sua relação de identificação do ser-em-si e para-si. Finalmente, apresenta a sua capacidade de interação, ou seja, a efetividade da resposta do ser ao lócus de existência. Embora essas condições não sejam exclusivas da espécie humana, estando presente em organismos vivos distintos, esta capacidade deve ser consideradas, pois, sem a irritabilidade não seria possível preservar a vida.

A reprodução é simplesmente como a repetição de partes ou do organismo todo, ou seja, esta é uma função orgânica (biológica) de ge-rar outros seres idênticos. Contudo, reproduzir o ser humano como um todo, inclusive, sua consciência, só se torna possível devido às relações sociais e materiais de existência ampliada e não apenas do ser consigo mesmo. Explicando melhor, o próprio trabalho contribui para a repro-dução da espécie, tendo-se como referência o fato de as condições ma-teriais determinarem as condições sociais adequadas à vida para citar um único exemplo (HEGEL, 2003).

A condição orgânica, para além da sensibilidade, da irritabilida-de e da reprodução possui também outro aspecto a ser consiirritabilida-derado: a liberdade. Para Hegel (2003, p. 206): “[...] a natureza inorgânica, não pode constituir um lado da lei frente à essência orgânica, uma vez que essa última é pura e simplesmente para si, e se refere à natureza inorgâ-nica de um modo livre e universal”. Essa compreensão do lado livre e universal da natureza orgânica frente à inorgânica pode-se ser mais bem entendida nessa passagem:

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A essência orgânica efetiva é o meio-termo que conclui o ser-pa-ra-si da vida junto com o exterior em geral, ou o ser-em-si. Mas o extremo do ser-para-si é o interior como Uno infinito que recupera em si os momentos da figura mesma, retirando-os de sua subsis-tência e vinculação com o exterior. [Esse extremo] é o carente--de-conteúdo, que se outorga seu conteúdo na figura e que nela aparece com o seu processo. Nesse extremo, como negatividade simples ou como singularidade pura, o orgânico tem sua liber-dade absoluta, graças à qual é indiferente e garantido ante o ser para outro, e ante a determinidade dos momentos da figura (HEGEL, 2003, p. 206).

Deve-se destacar nas palavras de Hegel que; a) a essência orgâni-ca é não apenas um ser-para-si, mas acima de tudo constitui o ser-em-si, estabelecendo relação com o exterior como um ser Uno (como figura que não se divide), dependendo, dessa vinculação para garantir a sub-sistência e; b) essa figura como singularidade simples, adquire por um lado, a condição da negatividade, a qual do ponto de vista da consciên-cia é totalmente distinta, adquirindo-se a liberdade absoluta de um ante o outro. Por isso, considerar o corpo enquanto figura orgânica possui a sua negatividade e a sua liberdade face à consciência. De outro modo, o corpo é distinto e portador da consciência.

Dialeticamente, ambos são distintos e livres, porém, interdepen-dentes, porquanto, a existência e ação de cada um deles não podem acontecer sem o outro. Enfim, “[...] a simplicidade dessa liberdade é o ser ou sua substância simples. Esse conceito, ou essa liberdade pura, é uma só e a mesma vida, embora a figura – ou o ser para outro – possa ainda armar muitos jogos variados” (HEGEL, 2003, p. 206-7). Corro-borando com o autor, a simplicidade da existência da vida e da liber-dade, ou seja, a consciência é um ser-outro para o corpo, e vice-versa.

Esta condição faz o ser humano ser o que ele realmente é, rela-cionando-se na intercessão entre o interno e o externo enquanto uma figura constituída por essa conexão. O objeto da própria consciência adquire um caráter específico a ser analisado – o corpo. Inicia-se uma análise mais específica sobre o indivíduo.

O indivíduo é em si e para si: é para si, ou é um agir livre, mas também é em si ou tem ele mesmo um determinado ser originá-rio. Uma determinidade que é segundo o conceito; [mas] que a

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psicologia queria encontrar fora do indivíduo. Portanto surge, no indivíduo mesmo, a oposição que consiste em ser, de dupla maneira, tanto o movimento da consciência, quanto o ser fixo da efetividade fenomenal – efetividade essa que no indivíduo é, imediatamente, a sua (HEGEL, 2003, p. 222).

Enquanto ser em si e para si, o indivíduo é um ser originá-rio pela ligação de sua experiência em si e, ao mesmo tempo, uma existência para si, como a condição da percepção da consciência em relação ao exterior, a qual só se faz possível por sua efetividade material.

A condição que o indivíduo consegue encontrar pelo movimento da consciência é algo que é externo à própria consciência: esse fenômeno material que é o corpo. Ele se converte de certa forma na efetividade do ser-para-si e do ser-em-si. Um ser-para-si enquanto uma agir livre, a sua mudança, a sua condição de relação com o mundo, porque não dizer, condição desenvolvida pelo próprio trabalho. Por outro aspecto, enquanto ser-em-si, ele é originário e ao mesmo tempo, faz parte da negatividade que o constitui.

O corpo é também um objeto para a consciência, visto que, o ser tem um objeto diversificado para a consciência, sendo ao mesmo tempo o seu lócus de existência, uma materialidade e, ao mesmo tempo, o ponto de movimento da própria consciência.

Esse ser – o corpo da individualidade determinada – é sua ori-ginariedade, o seu “não ter feito”. Mas porque o indivíduo, ao mesmo tempo, é somente “o que tem feito”, ‘então o seu corpo é também a expressão de si mesmo, por ele produzida’: é ao

mesmo tempo um signo que não permaneceu uma Coisa imedia-ta, mas ‘no qual o indivíduo somente dá a conhecer o que é quando põe em obra sua natureza originária’ (HEGEL, 2003,

p. 222, grifo nosso).

Analisando os dois pontos grifados, infere-se:

a) por um lado, o corpo é a própria expressão do ser, ou usando as pa-lavras de Hegel, o ser-em-si e;

b) o corpo enquanto a expressão do ser é também o indivíduo que se dá a conhecer tendo-se como referência a sua natureza originária, tornando-se o seu corpo congênito.

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A isso, acrescenta-se:

Mas a efetividade, tanto universal quanto particular, que a obser-vação anteriormente encontrava fora do indivíduo, é aqui a sua efetividade, seu corpo congênito. É justamente nesse corpo

que incide a expressão pertencente ao seu agir. Na consideração psicológica deveriam estar relacionadas entre si a efetividade em si e para si essente, e a individualidade determinada. Mas aqui a individualidade determinada total e objeto da observação, e cada lado de sua oposição é, por sua vez, esse todo. Ao todo exterior pertence, pois, não apenas o ser originário, o corpo congênito, mas igualmente sua formação; e essa pertence à atividade do interior. O corpo é a unidade do ser não-formado e do ser for-mado, e é a efetividade do indivíduo penetrada pelo ser-para-si

(HEGEL, 2003, p. 223, grifo nosso).

O “corpo congênito”, ou seja, com o qual se nasce, é a forma-ção pertencente à atividade do interior, uma efetividade, adentrada pelo ser-para-si, sem o qual é mais difícil a realização do próprio ser. Para Hegel (2003), este ser-para-si, se concretiza na sua exteriorização, manifesta pelo trabalho desenvolvido a partir da consciência. Afinal, a consciência-de-si, em-si e para-si, constituem-se para Hegel (2003) no fruto de seu trabalho e na condição do reconhecimento do ser no produto gerado.

Para Hegel (2003), o corpo é elo entre a consciência (eterna a ela como outros objetos) e a natureza sobre a qual trabalha. Logo, o trabalho é responsável pela construção do corpo, pois, para Hegel (2003), o trabalho que determina o corpo é alcançado pela objetivação da consciência.

Este fato pode ser mais bem compreendido quando olhamos para a maneira como o trabalho forma a consciência. De acordo com Hegel (2003), o trabalho produz os seus frutos, os quais são compreendidos pela consciência como elementos de reflexão, aparentemente, em dois sentidos: 1) a reflexão no sentido d o objeto produzido ser um espelho, porquanto, o produto do trabalho é objeto de subjetivação humana, haja vista, na realidade, enxerga-se a si mesmo no artefato; 2) o objeto é re-flexão porque ao fazer a dimensão orgânica e congênita (o corpo) atuar sobre a dimensão inorgânica (a natureza), o homem se transforma, pois, o homem pensa sobre o processo de produção e como transformá-lo.

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A partir desses elementos apresentados a partir de Hegel na “Fe-nomenologia do Espírito”, pretende-se então apresentar a discussão so-bre a concepção de corpo em Marx para se demonstrar a aproximação e os distanciamentos das concepções de corpo nestes autores.

REVENDO A CONCEPÇÃO DE CORPO EM MARX E A SUA APROXIMAÇÃO DE HEGEL

Quando se debruça sobre os estudos de Marx, seja de maneira isolada (MARX, 2002), seja em parceria com Engels (MARX; EN-GELS, 1998), é possível identificar nesses autores uma premissa básica presente em Hegel: a de que o trabalho é fundamental para a constitui-ção do ser humano no geral e do corpo como a sua manifestaconstitui-ção mate-rial direta. Porém, devido a divergência entre o idealismo de Hegel e o materialismo de Marx, este autor inverte esta relação. A lógica dialética apresentada por Hegel é essencial para se perceber o movimento da realidade, todavia, ele o faz misticamente, haja vista, que para Hegel o trabalho é a objetivação do espírito absoluto. Por isso, dirá Marx:

A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impe-de, de modo algum, que ele tenha sido o primeiro a expor as suas formas mais gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. É necessário invertê-la, para descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico (MARX, 1996, p. 140, grifo nosso).

Um primeiro fato desta inversão de Hegel é justamente não en-tender que o trabalho, conforme foi expresso por Marx; Engels (1998) é determinado pelas condições materiais da existência humana, o que sig-nifica que o trabalho não é obra apenas da consciência que se constitui internamente e depois adquire a capacidade de se externar pelo traba-lho. Ao contrário, existem condições prévias, colocadas objetivamente que fazem com que o homem, devido às suas necessidades aja sobre a natureza, a fim de manter o seu metabolismo com ela.

Partindo-se da referência de que não há possibilidade de existência do homem fora da sua vinculação com a natureza, procurando elementos para refletir sobre os aspectos relacionados ao corpo do indivíduo, bus-car-se-á um ponto de aproximação de Hegel (2003) com a obra de Marx (2002), onde este trata também de certa relação entre o corpo orgânico e inorgânico1. Sobre este assunto, comenta Marx (2002, p. 115):

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Assim como para o homem como para o animal, a vida genérica possui sua base física no fato de que o homem (como animal) vive da natureza inorgânica, e uma vez que o homem é mais

universal que o animal, também mais universal é a esfera da natureza inorgânica de que ele vive (Grifo nosso).

Deve-se destacar nesta passagem o fato de que a base física (o corpo orgânico) do homem vive da natureza inorgânica. Assim sendo, a própria existência física só se mantém na relação de metabolismo que o homem desenvolve em relação aos elementos que lhe são externos. Não há vida física, sem a extração por parte do homem dos nutrientes fun-damentais para a sua existência. A natureza inorgânica não “alimenta” apenas o corpo físico do homem, mas também a sua consciência.

Como as plantas, os animais, os minerais, o ar, a luz, etc., cons-tituem, do ponto de vista da teoria, uma parte da consciência humana, na condição de objetos da ciência natural e da arte – são a natureza inorgânica espiritual do homem, os seus meios de vida intelectuais, que ele deve primeiro preocupar-se para a posse e efemeridade –, da mesma forma, do ponto de vista práti-co, formam uma parte da vida e da atividade humanas (MARX, 2002, p. 115-6).

Considerar todos os elementos apresentados acima como consti-tuintes da consciência humana é a condição de relacionar-se com a na-tureza inorgânica e com isso, desenvolver a sua consciência através do contato com os seres animados e inanimados, pois, assim, o ser humano se percebe em metabolismo com a natureza. Todavia, pode-se conside-rar que esta relação é ainda mais ampla, porquanto, relacionar-se com a natureza, significa dizer que o homem relaciona-se consigo, e também é dizer que a natureza está se relacionando com ela própria. Sobre isso comenta Marx (2002, p. 116):

No plano físico, o homem vive apenas dos produtos naturais, na forma de alimento, calor, vestuário ou habitação, etc. A univer-salidade do homem aparece praticamente na univeruniver-salidade que faz de toda a natureza o seu corpo inorgânico: 1) como imediato meio de vida; e igualmente 2) como objeto material e instru-mento da sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico

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do homem, ou seja, a natureza na medida em que não é o próprio corpo humano. O homem vive da natureza, ou também, a natureza é o seu corpo, com o qual tem de manter-se em

per-manente intercâmbio para não morrer. Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes sig-nifica apenas que a natureza inter-relaciona consigo mesma, já que o homem é uma parte da natureza (Grifo nosso).

Pretende-se iniciar a análise da citação de Marx (2002) de um de seus pontos finais: “[...] a vida física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes [...] (Ibid.)”. Esta passagem demonstra que não é possível desconsiderar a dimensão física e espiritual (a consciência), as quais são face à natureza, subordinadas entre si. Confirma-se a relação de metabolismo existente entre o homem e a natureza, mantidos em constante relação. Assim, sem a natureza não é possível à permanência da vida humana – física e espiritual – sobre a terra, mas, de outro lado, a natureza não faz nenhum sentido sem ser compreendida e assimilada pela consciência do homem, sem a qual não existiria por si só. Cada objeto em volta do indivíduo, só existe, por fazer sentido para a sua consciência.

A natureza constitui o próprio corpo do homem, sem a qual o próprio corpo corre risco direto de morte, visto que é a natureza que lhe sustenta do ponto de vista do fornecimento do alimento e do calor. Por último, deve-se destacar que homem e natureza são partes um do outro, já que, o homem é parte da natureza, ou seja, a natureza, como diz Marx (2002) está se relacionando com ela mesma e é, acima de tudo, humana.

A relação entre o homem e a natureza é uma relação metabólica que contribui para a transformação de ambos, visto que, se o homem, pelas condições postas pela natureza e pelo desenvolvimento de sua consciência tem a condição de modifica-la para atender as suas neces-sidades mediatas e imediatas, por outro aspecto, a transformação da natureza imprime no indivíduo, novas necessidades, novas formas de pensar e de se relacionar com ela mudando a própria essência humana. Estas alterações são sempre mediadas pelo trabalho, já que, é este o elemento transformador da natureza.

Por isso, deve-se observar que a transformação realizada pelo in-divíduo sobre a natureza atinge o corpo, pois, cada tipo de trabalho, de cultura, de tecnologia demanda outros tipos de capacidades físicas e

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habilidades mentais, as quais, por sua vez, irão gerar novas formas de ação e também novas necessidades humanas.

Mas, toda a análise que foi feita até aqui em relação ao corpo da consciência aponta para um aspecto que pode ser considerado uma redução no trato com o corpo. Considerar a vida genérica do homem tendo como referência a natureza orgânica e inorgânica do corpo do indivíduo pode contribuir para uma possível análise de que o corpo se insere apenas na sua condição biológica, porquanto, discute-se a sua vida e morte através do contato com a natureza. Há de se considerar, entretanto, que não é possível compreender o corpo que não seja um corpo que se configura no limite, como um ser histórico, o que significa que, ao fim e ao cabo, o corpo é a manifestação material/espiritual da vida humana, uma vez que, o corpo é o corpo da consciência, da qual ele é portador.

O corpo é uma construção concreta manifesta na existência hu-mana, ou seja, admite-se desta forma, ao menos aparentemente o corpo como sendo natural apenas por estar vivo, depende de suas condições bioquímicas ou mesmo biomecânicas. Dizer através da análise marxista que o corpo é natural, é também, necessariamente, dizer que o corpo é histórico.

Fazer esta afirmativa é identificar na construção do corpo os ele-mentos determinantes de sua constituição, elaborados e desenvolvidos por suas relações de trabalho. Para Marx, a história é a ciência humana por excelência, entendendo-a, acima de tudo pela forma como a vida é produzida e reproduzida. Para desenvolver esta ideia deve-se recorrer ao próprio autor quando ele vai discorrer sobre a história:

[...] somos obrigados a começar pela constatação de um primei-ro pressuposto de toda a existência humana, e portanto de toda a história, ou seja, o de que todos os homens devem ter condi-ções de viver para poder fazer história. Mas para viver, é preciso antes de tudo beber, comer, morar, vestir-se e algumas outras coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produ-ção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; e isso mesmo constitui um

fato histórico, uma condição fundamental de toda a história que se deve, ainda hoje como há milhares de anos, preencher dia a dia, hora a hora, simplesmente para manter os homens com vida (MARX; ENGELS, 1998, p. 21, grifo nosso).

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Corroborando com as palavras de Marx e Engels (1998) a histó-ria inicia-se no momento que o ser humano procura se manter vivo, reti-rando da natureza, os alimentos, o calor e o abrigo necessário. Existem, todavia, dois outros fatores que apontam para a construção da história: a) a satisfação das primeiras necessidades e a geração de novas neces-sidades e; b) a relação e a criação de outros homens, ou seja, a própria reprodução da espécie. Para Marx e Engels (1998, p. 23):

Produzir a vida, tanto a sua própria vida pelo trabalho, quanto a dos outros pela procriação, nos parece, portanto, a partir de agora, como uma dupla relação: por um lado uma relação na-tural, por outro como uma relação social – social no sentido em que se estende com isso a ação conjugada de vários indivíduos, sejam quais forem suas condições, forma e objetivos.

Destacar que o corpo é natural e, portanto, histórico, significa que ele é construído por distintas relações sociais. De um lado, as relações biológicas, como a procriação, são constituídas a partir da relação mí-nima entre dois seres, os quais estabelecem os seus vínculos de forma a garantir a sua existência, bem como a vivência de sua prole. Esta união dada pela biologia aparece entre os seres humanos de forma mais ela-borada, pois, as condições de produção da vida, determinam como estes seres, ou mesmo grupos, se organizam entre eles. De outro lado, o corpo é constituído e deve atender as exigências presentes no seu período históri-co, visto que, em cada momento, as relações de produção e de associação grupal exigem a construção de novos modelos que são relações sociais determinadas entre os seres, estabelecendo os critérios de construção da vida humana. Por isso, criar o homem do ponto de vista natural e social significa, acima de tudo, criá-lo nas relações de produção. Assim:

Esta concepção de história, portanto, tem por base o desenvolvi-mento do processo real da produção, e isso partindo da produção material da vida imediata; ela concebe a forma dos intercâmbios humanos ligada a esse modo de produção e por ele engendrada, isto é, a sociedade civil em seus diferentes estágios como sendo o fundamento de toda a história, o que significa representá-la em sua ação enquanto Estado, bem como explicar por ela o conjunto de diversas produções teóricas e das formas de consciência, reli-gião, filosofia, moral, etc. [...] (MARX; ENGELS, 1998, p. 35).

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Este processo real de produção apresenta desdobramentos im-portantes na determinação da vida imediata, dependente dos aspectos materiais da existência e as consequentes redes que se constroem nos intercâmbios entre os seres humanos. Estas relações determinam con-cepções culturais imateriais, como a noção e o papel do Estado que regulam a vida das nações, as suas produções teóricas, bem como, as formas de moral, de valores, as noções de religiosidade e consciência individual e coletiva.

Se esta análise da história aponta para a construção do homem e de forma específica de seu corpo sob diferentes modos de produção, pelo desenvolvimento do homem em sua condição integral, humanizan-do-o, dentro dos aspectos inerentes à universalidade do trabalho, por outro aspecto, a história terá uma particularidade na construção humana própria desse modo de produção.

Ao falar sobre “esse modo de produção”, Marx e Engels (1998) se refere ao capitalismo, sem desconsiderar que a produção da vida acontece em qualquer período histórico. Partindo-se então desta referência, o corpo é um importante fruto desse processo, pois, é através dele que a produção é realizada. Por isso, retomaremos os processos de produção, sobretudo no período das formações econô-micas pré-capitalistas, para demonstrar que a construção corporal é histórica.

Assim volta-se a Marx (1996, p. 172) para afirmar que o trabalho é “[...] uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do me-tabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana”. Isso traz à baila a concepção de homem apresentada por Marx, pois, como diz Mészáros (1981, p. 15):

[...] em contraposição a tantas concepções filosóficas, a visão que Marx tem do homem não é “humana”, nem “natural” ape-nas, mas ambas, isto é, “humanamente natural” e “natural-mente humana”, ao mesmo tempo. Ou, ainda uma vez, num

ní-vel de abstração mais elevado, “específico” e “universal” não são opostos entre si, mas constituem uma unidade dialética, isto é, o homem é o “ser universal da natureza”, cuja especificidade

singular consiste precisamente em sua universalidade singular, em oposição à parcialidade limitada de todos os outros seres da natureza (Grifo nosso).

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Reforçar a ideia de que o homem é “humanamente natural” ou “naturalmente humano”, é recusar sob quaisquer pretextos, que o ho-mem possa ser considerado um ser dual, com corpo e alma, ou que ele seja separado em sua condição biológica, portanto, natural, e ou-tra cultural, portanto, histórica. Esta afirmação de Mészáros reafirma mais uma vez o metabolismo entre homem e natureza em sua plenitude, devendo-se considerar ainda a condição do corpo se desenvolver como um meio de trabalho. Por isso,

O objeto do qual o trabalhador se apodera diretamente – abs-traindo a coleta dos meios prontos de subsistência, frutas, por exemplo, em que somente seus próprios órgãos corporais ser-vem de meios de trabalho – não é objeto de trabalho, mas meio

de trabalho. Assim, mesmo o natural torna-se órgão de sua atividade, um órgão que ele acrescenta a seus próprios ór-gãos corporais, prolongando a sua figura natural, apesar da

Bíblia (MARX, 1996, p. 299, grifo nosso).

Corroborando com Marx (1996), devem-se analisar dois aspec-tos em sua análise. O primeiro é que o próprio corpo é um importante meio de trabalho, sem o qual nenhum outro trabalho poderia ser realiza-do. O segundo aspecto importante é a utilização de objetos de trabalho que ao serem usados modificam a própria anatomia humana. Alguém com um pedaço de madeira na mão torna-se mais forte, sobretudo, por-que se abre a possibilidade de aplicar este instrumento em condições diferenciadas, inclusive, contra outro ser humano. Assim, esta condição histórica do uso de objetos e meios de trabalho dá ao corpo uma nova identidade e uma nova possibilidade.

Por isso, pensar o corpo como meio de trabalho, é refletir so-bre ele como uma condição de realização de trabalho que transforma à natureza e a si próprio. Outro ponto a ser analisado é o fato de o corpo (físico), a partir das suas condições naturais de existência, e ao transformar a natureza (inorgânica) adquire novas capacidades e ha-bilidades que o conduzem a certo nível de desenvolvimento, inclusive de seus sentidos. “Portanto, a objetivação da essência humana, tanto do ponto de vista teórico como prático, é necessária para humanizar os sentidos do homem e criar a sensibilidade humana correspondente a toda a riqueza do ser humano e natural” (MARX, 2002, p. 144, grifo nosso).

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Ainda, para consolidar a reflexão sobre os sentidos humanos, deve-se considerar que,

[...] o “indivíduo que trabalha”, tendo como modo objetivo de existência a propriedade de terra, que antecede sua atividade e não surge como simples consequência dela, sendo tanto uma pré-condição de sua atividade, como é sua própria pele, como são os seus órgãos sensoriais, pois toda a pele, e todos os órgãos dos sentidos são, também, desenvolvidos, reproduzidos, etc., no processo de vida, quanto pressupostos deste processo de repro-dução. A mediação imediata desta atitude é a existência do in-divíduo – mais ou menos naturalmente evoluída, mais ou menos historicamente desenvolvida e modificada – como membro de uma comunidade; isto é, sua existência natural como parte de uma tribo (MARX, 1986, p. 77-8).

Dentro dos aspectos apresentados, podem-se analisar alguns pontos centrais. O ponto inicial que se apresenta é o fato de que, sob determinadas condições, a propriedade de terra e a tribo se tornam os elementos determinantes do trabalho, afinal, trabalhar a terra exige ha-bilidades mentais e capacidades corporais distintas do trabalho na in-dústria, como também, os períodos históricos onde estas características de produção eram mais frequentes, demandavam um nível de esforço físico diferenciado do trabalho desenvolvido com máquinas a vapor, ou mesmo com os computadores da atualidade.

Outro dado a ser destacado neste processo é que ocorre certa reprodução da condição individual a qual é transformada pelas exigên-cias de cada período, o que é percebido com a modificação da pele, dos órgãos sensoriais e dos sentidos, assim como, poder-se-ia remeter também às condições cerebrais e musculares, afinal, as condições de funcionamento de cada órgão, pois, as suas relações com o meio se tornam determinadas pelo tipo de trabalho executado contribuem para o desenvolvimento de um corpo com características e capacidades pró-prias e que atendam as condições históricas específicas de cada modo de produção. A reprodução do corpo assim é definida, não apenas pelas relações interpessoais, mas, acima de tudo pelas condições estabeleci-das pela produção da vida.

O terceiro ponto a ser destacado é a participação de cada ser hu-mano em um grupo específico em condições históricas determinadas,

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o que garante o desenvolvimento da identidade do indivíduo dentro do seu grupo de referência, porquanto,

O indivíduo, aqui, nunca pode aparecer no completo isolamento do simples trabalhador livre. Tomando como pressuposto que lhe pertencem as condições objetivas do seu trabalho, deve-se tam-bém pressupor que o indivíduo pertença subjetivamente a uma comunidade que serve de mediação de sua relação objetiva com o seu trabalho (MARX, 1986, p. 78).

As condições de livre trabalho e a impossibilidade do indivíduo aparecer como alguém isolado também se estabelece em um proces-so de que as condições objetivas para a formação da sua subjetividade enquanto um membro dentro do grupo com condições específicas de transformação da natureza. Marx (1986) também apresenta condições de análise, relacionando a própria produção com as necessidades, capa-cidades, prazeres, potencialidades produtoras, bem como, os limites do indivíduo. São as capacidades criadoras vinculadas com a evolução his-tórica anterior possibilitam na totalidade desse desenvolvimento, isto é, “[...] a evolução de todos os poderes humanos em si, não medidos por qualquer padrão previamente estabelecido” (MARX, 1986, p. 81). Ainda assim, Marx (1986), retoma o debate sobre a relação do homem com o seu corpo inorgânico. Diz ele:

Pois, assim como o sujeito trabalhador é um indivíduo natural, um ser natural, da mesma forma a primeira condição objetiva de seu trabalho aparece com a natureza, a terra, como um corpo inorgânico. O próprio indivíduo não é apenas o corpo orgânico mas, ainda, esta natureza inorgânica como sujeito. Esta condi-ção não é algo que ele tenha produzido, mas algo que encontrou a seu alcance, algo existente na natureza e que ele pressupõe (MARX, 1986, p. 81).

A relação deste sujeito com a natureza, seu corpo inorgânico, convertido em um sujeito, se faz pela condição de ter produzido algo que estava a alcance de acordo com as condições naturais de trabalho, ou seja, as condições que foram por ele encontradas e, sobre as quais foi possível a transformação do seu corpo inorgânico que garantam os meios para a sua existência. É a objetivação das condições

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determina-das por aspectos subjetivos, os quais podem ser entendidos em seu du-plo aspecto – subjetivo como uma forma própria, individual de trabalho e, também, subjetiva, por gerar a reflexão do sujeito no objeto produzi-do –analisadas nas formações econômicas antecedentes ao capitalismo. Entretanto, observando o trabalho do servo, Marx (1986) tende a dizer que esse é visto apenas como condição inorgânica da produção e de sua reprodução, enquanto um indivíduo, como corpo entendido como con-dição natural. O indivíduo só pode ser compreendido enquanto um ser orgânico se for um “membro natural da comunidade”, a qual, por sua vez, constitui a sua identidade. Pode-se dizer que em outras palavras:

[...] as condições originais de produção surgem como pré-requisi-tos naturais, como condições naturais de existência do produtor, do mesmo modo que seu corpo vivo, embora reproduzido e desenvol-vido por ele, não é, originalmente, estabelecido por ele, surgindo, antes, como seu pré-requisito; seu próprio ser (físico) é um pres-suposto natural não estabelecido por ele mesmo. Essas condições naturais de existência, com as quais ele se relaciona como com um corpo inorgânico, têm caráter duplo: elas são (I) subjetivas e (II) objetivas. O produtor existe como membro de uma família, de uma tribo, um agrupamento de sua gente, etc. – o que adquire, histori-camente, formas diversas resultantes da mistura e conflito com os outros. É como membro comunal, assim, que ele estabelece relações com determinada (parte da) natureza (chamêmo-la de terra, solo), como seu próprio ser inorgânico, condição de sua produção e re-produção (MARX, 1986, p. 83, grifo do autor).

O fato de o próprio ser físico pode ser compreendido dentro da natureza orgânica ou inorgânica de acordo com as relações sociais es-tabelecidas dentro do grupo. Se o produtor for um membro efetivo da comunidade ou tribo ele é entendido como orgânico, contudo, se for considerado um servo ou escravo, um corpo inorgânico. De qualquer forma atendidas as condições de existência em sua relação com a natu-reza, ou seja, com o corpo inorgânico apresentam relações que preci-sam ser compreendidas duplamente por condições objetivas dentro das quais, o trabalho se efetiva, dando ao produtor a condição de realizar a sua subjetivação, que já foi abordada duplamente em parágrafo anterior.

Assim, pode-se identificar que toda a corporalidade humana se manifesta nas relações sociais, dos homens com a natureza, com os

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outros homens e com eles próprios. Não há como consolidar o próprio corpo fora das relações de trabalho e da identificação entre os seres humanos.

Pois, ele não vem ao mundo nem com um espelho, nem como um filósofo fichtiano: eu sou eu, o homem se espelha primeiro em outro homem. Só por meio da relação com o homem Paulo, como seu semelhante, reconhece-se o homem Pedro a si mesmo como homem. Com isso vale para ele também o Paulo, com pele e cabelos, em sua corporalidade paulínica, como forma de mani-festação do gênero humano (MARX, 1996, p. 181).

Nesta passagem de “O Capital”, Marx aponta para pelo menos dois pontos a serem analisados. Primeiro, não há possibilidade de re-conhecimento de um ser humano sem o outro – Paulo só se reconhece pelo contato com Pedro – denotando que o homem só percebe a si pró-prio pelas relações sociais. Em segundo, a corporalidade de ambos, ma-nifesta por seus cabelos, pele e gestualidade os relacionam como seres humanos, sobretudo quando inseridos em dado contexto.

Todavia, a identificação entre os seres humanos só se torna efe-tiva através do processo de produção, ou seja, o trabalho é realizado de acordo com as possibilidades próprias de cada modo de produção, os quais por sua vez definem os principais marcos históricos, só possíveis pelas relações entre os seres. Pois,

[...] a atitude do homem ao encarar suas condições naturais de produção como lhe pertencendo, como pré-requisito de sua pró-pria existência; sua atitude em relação a elas assim, prolonga-mentos de seu próprio corpo. De fato, ele não se mantém em qualquer relação de produção, mas tem uma dupla existência, subjetivamente como ele próprio e, objetivamente, nestas condi-ções inorgânicas naturais de seu ser (MARX, 1986, p. 85). A tensão sempre desenvolvida entre homem/natureza e corpo físico/inorgânico permite a compreensão da historicidade do corpo. Afinal, a história como é compreendida por Marx e Engels (1998) é es-tabelecida pelas relações sociais de produção, logo, pela materialidade da vida. Destarte, pretende-se dizer em outras palavras que a dimensão histórica da natureza, assim como do próprio homem são as bases

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fun-dantes sobre as quais esse relacionamento metabólico acontece. Um trabalhador,

[...] não apenas efetua uma transformação da forma material natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objeti-vo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado (MARX, 1996, p. 298). Levando-se em consideração que esta produção e a transforma-ção da natureza são dados fundamentais para a transformatransforma-ção do pró-prio homem. E, como não poderia deixar de ser, este indivíduo pos-sui um corpo que lhe é próprio, mas que tem algumas características fundamentais que são: 1) um corpo que é único porque é individual, possuindo as marcas e as necessidades de seu tempo, ou seja, de sua história; 2) o corpo é histórico porque traz em si as marcas de seus an-tepassados, do seu grupo social e das condições de existência desenvol-vidas pelas relações sociais, fato este demonstrado por Medina (2009); 3) um corpo que é individual e reconhecido pelo seu trabalho, sendo este reconhecimento sendo feito por ele mesmo e pelos outros, tendo-se como referência aquilo que produz. Dito de outra forma, um corpo que é reconhecido pela própria consciência, como um objeto para ela, e; 4) este corpo individual também é coletivo, pois, é parte de um grupo que lhe dá identidade pelo trabalho e pela cultura daí advinda, bem como outros fatores que participam desta construção.

Enfim, entendendo-se que o trabalho é ontológico, ou seja, res-ponsável pela construção do homem em todas as suas condições e ma-nifestações da vida, sejam elas, o seu contexto mais espiritual, ligada à sua consciência, bem como a própria vida corporal e mesmo biológica, tendo-se em vista, o fato de o trabalho ser a relação metabólica entre o homem e a natureza, responsável por todo o processo de produção e re-produção da vida humana. Nesse contexto, o corpo é determinado pelo trabalho em todos os seus aspectos materiais de existência, passando desde o desenvolvimento de sua relação com a consciência do qual não se separa, pois, o que existe é o corpo da consciência e, ao mesmo tem-po, a consciência do cortem-po, como, também, pelo desenvolvimento de seus sentidos, habilidades mentais e capacidades corporais necessárias ao trabalho. Este movimento ocorre em praticamente todas as condi-ções históricas, tanto do ponto de vista do corpo, como vem sendo

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apre-sentado, como determinante da consciência. Assim, o corpo construído pelo trabalho, por um lado, é elaborado por ele, ou seja, é um fruto da produção, assim como é o seu construtor. O corpo está inserido assim, dialeticamente, no processo produtivo por ser ao mesmo tempo, o seu idealizador, o seu criador, assim como a sua criatura principal. Destarte, este corpo e a forma que ele possui, atende as necessidades do seu tem-po histórico e da forma como se fabrica a vida em seu contexto geral.

Todavia, sob a particularidade histórica do capitalismo, submeti-da à égide do modo de produção capitalista, tanto a consciência, como o corpo do indivíduo, apresentam outras transformações, visto que, neste modo de produção específico o desenvolvimento do sujeito se dá de maneira parcial, fragmentada. Nestas condições, deve-se compreender que ao invés do constituir o ser humano em um sentido mais amplo, o trabalho desenvolvido no capitalismo busca alienar, reificar e fetichizar a vida como um todo e o corpo de maneira particular. Isto implica em um determinado tipo de atuação que pode ser entendido pela conso-lidação do modelo de corpo necessário em cada período histórico e, ao mesmo tempo, ao processo produtivo, o que é disseminado por um processo educativo em sua acepção mais ampla.

Considerações finais

Ao final, é preciso levantar alguns pontos a respeito do debate, sobre a relação de corpo em Hegel e Marx. Em primeiro lugar, a pers-pectiva de conceber o corpo em duas dimensões é fundamental, tendo em vista o fato de, tanto Hegel como Marx, considerarem o corpo no seu aspecto orgânico e inorgânico. A dimensão física e a dimensão na-tural fazem do corpo um objeto nana-turalmente humano e humanamente natural, pois, o corpo é histórico. Ao ser considerado na sua constitui-ção o corpo impede a separaconstitui-ção entre o orgânico/inorgânico, o biológi-co/social, o natural/cultural.

Outro ponto de aproximação é a mediação pelo trabalho. Apesar de esta não ter sido uma discussão central neste texto, essa temática tan-gencia todo o contexto, pois, o trabalho como componente ontológico por excelência, é responsável pela formação do corpo e da consciência, ou melhor, dizendo, pelo corpo da consciência e pela consciência do corpo. Não há como pensar outro lugar de existência da consciência que não seja o corpo. Por outro lado, um corpo humano pressupõe a consci-ência, a qual é sempre a consciência de algo, presente em algum lugar.

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Entretanto, o principal distanciamento se faz pela concepção de um trabalho com bases ideais ou materiais mais consistentes. Se em Hegel o trabalho é a objetivação das ideias, em Marx, o trabalho é fruto da subjetivação das condições materiais.

Entretanto, identifica-se em Hegel uma discussão mais elaborada sobre o que seja o corpo, mas a maneira como ele trata, seja por estar em certo sentido da sua temática, seja por se debruçar de maneira mais enfática. A maneira como Hegel demonstra o contato do corpo com a natureza, a partir da sensibilidade, da irritabilidade e a reprodução pare-cem dar mais sustentação à temática.

Para Marx, se não há essa discussão de forma aprofundada sobre a interação do corpo com a natureza em dado sentido, por outro, ele aponta para a materialidade do corpo nas suas condições de produção, reprodução e consumo. Ele consegue identificar algo que não foi possí-vel a Hegel, como as demandas postas pela sociedade capitalista.

Enfim, não é possível afirmar a preponderância de um ou outro autor, contudo, é fundamental analisar estas concepções para se ter mais clareza a respeito das condições postas para o corpo neste momento da história.

Nota

1 A ideia expressa na relação entre o corpo orgânico e inorgânico é desenvolvida em algumas passagens dos Manuscritos Econômicos Filosóficos de Marx. Entretanto, o uso do termo orgânico varia de acordo com a tradução. Em algumas traduções o termo utilizado para a relação entre o homem e a natureza é de corpo orgânico e inorgânico, como se apresenta em uma tradução realizada em 1967. Contudo, a tradução utilizada para a elaboração deste texto, Marx (2002), adota o termo corpo físico ao invés de orgânico. Assim sendo, os termos corpo físico e corpo orgânico serão tratados como sinônimos.

Referências

HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espírito. 2. ed. rev. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/USF, 2003, v. Único.

MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1986.

______. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2002. ______. Manuscritos econômicos filosóficos. In: FROMM, Erich. Conceito marxista de homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.

MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996, v. 1. (Coleção Os Economistas).

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MEDINA, João Paulo S. O brasileiro e seu corpo: educação e política do corpo. 13. ed. Campinas: Papirus, 2009.

MÉSZÁROS, István. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. Abstract: work is an ontological category responsible for the human conscience formation and one of the objects to the consciousness is the body itself. So, this text discusses the body conception in Marxist perspective dialoguing with Hegel’s Phenomenology of the Spirit. This theoretical work brings to completion the aspects that show conceptions of the body in Hegel and Marx have some similarities as the ratio of organic and inorganic body, despite the differences arising from the idealist or materialist axis of each author. Thus, it is possible to debate upright a consciousness of body, simultaneous to the body of consciousness.

Keywords: Body. Consciousness. Hegel. Marx.

* Texto recebido em 21/08/2012 e aprovado em 02/12/2012.

** Mestre e Doutor em Educação pela UFG; Professor da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás. E-mail: tadeujrbaptista@yahoo.com.br.

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