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A escrita de si e sua contribuição para a historiografia: o trabalho com o acervo epistolar do pintor Candido Portinari

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Academic year: 2021

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A “escrita de si” e sua contribuição para a historiografia: o trabalho com o acervo epistolar do pintor Candido Portinari

Ana Carolina Machado Arêdes Doutoranda em História – PPGHIS/UFES Bolsista CAPES

Resumo: Este trabalho trata das correspondências do acervo pessoal do pintor Candido

Portinari tanto como fontes historiográficas, quanto como objeto de estudo metodológico. Portinari foi um importante artista brasileiro que atuou principalmente no período do primeiro governo de Getúlio Vargas, época marcada pelo intenso mecenato estatal. Vargas ficou conhecido como um presidente conciliador e hábil, capaz de reunir em torno do seu governo políticos, artistas e intelectuais das mais variadas correntes de pensamento. Portinari participou ativamente desta gestão, realizando inúmeros trabalhos para o Estado. Suas obras, de acentuado teor social e nacionalista, apareciam como as mais apropriadas para endossar o caráter patriótico que era almejado pelo governo autoritário naquele momento. Cabe ressaltar, que Portinari nutria uma simpatia pela esquerda comunista, tanto que se filiou ao PCB após o Estado Novo, em 1945. No entanto, seu posicionamento político não impediu que o artista participasse de um Estado de exceção. Assim como Portinari, outros artistas e intelectuais contrários às ideologias do regime se relacionaram com o governo naquele momento, confeccionando trabalhos ou diretamente empregados nas fileiras burocráticas. O Estado, por sua vez, entendia o incentivo à arte e à cultura como necessário para fortalecer o Brasil como nação. As correspondências trocadas entre Portinari e seu importante círculo de amizades epistolares são, dessa forma, capazes de revelar muitos aspectos sobre os bastidores desse importante momento da política cultural brasileira. As cartas compõem o que foi denominado de “escrita de si” pelo filósofo Michel Foucault. A “escrita de si” engloba aquilo que concerne à produção de si, tal como autobiografias, diários íntimos, memórias, anotações, correspondências, entre outros. As cartas do acervo pessoal de Portinari proporcionam ao pesquisador uma boa noção do que estava em voga no círculo artístico e intelectual da época, assim como são capazes de demonstrar os modos de produção de si do seu autor. Portanto, esta pesquisa busca contribuir tanto para o estudo da produção de si e do uso metodológico das cartas como fontes históricas, assim como almeja o entendimento da participação do pintor Portinari no Estado Varguista.

Palavras-Chave: Arte, Estado, Correspondências.

Este trabalho pretende entender as correspondências pessoais do pintor Candido Portinari enquanto espaços de sociabilidade artística e intelectual, utilizando a definição de “sociabilité intellectuelle” proposta pelo filósofo francês Michel Trebitsch1. No início do século XX, período em que viveu Portinari, as cartas trocadas por artistas e intelectuais eram importantes meios de comunicação, de troca de ideias e favores, além de se constituírem como instrumentos de manutenção e construção de laços sociais significativos, sendo utilizadas,

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portanto, pelos interlocutores como uma estratégia para alçar posições relevantes e se inserir no concorrido ambiente cultural.

Candido Portinari foi um artista de origem humilde, filho de imigrantes italianos que trabalhavam como lavradores no interior de São Paulo, que despontou como pintor no cenário artístico nacional na década de 1930 e teve que buscar estratégias de inserção para atuar no agitado meio social da época. Dessa maneira, Portinari procurava se relacionar e estabelecer vínculos com importantes nomes da arte, da intelectualidade e da política daquele período. Sendo assim, a troca epistolar foi utilizada pelo pintor como uma forma de sociabilidade.

Vale ressaltar que Portinari foi um artista que atuou intensamente sob o mecenato do primeiro governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-1945), principalmente no território comandado pelo Ministro da Educação e Saúde, o intelectual mineiro Gustavo Capanema. Em 1945, Portinari decidiu expressar sua adesão ao Partido Comunista Brasileiro, chegando a se filiar e a disputar eleições pleiteando o cargo de deputado federal e de senador, contudo, sem conseguir se eleger. Sendo assim, o artista resolveu se assumir como comunista após ter participado de um governo ditatorial.

A poderosa rede de interlocutores do artista era composta por personalidades como o literato modernista Mário de Andrade, o arquiteto Oscar Niemeyer, o Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema e seu secretário de gabinete, o poeta Carlos Drummond de Andrade, e, até mesmo pelo Presidente da República, Getúlio Vargas. Suas missivas são, portanto, capazes de nos revelar muitos aspectos dos bastidores culturais e políticos daquele momento da história brasileira.

As cartas trocadas entre os intelectuais e artistas contribuiriam para somar esforços, tornando seus promotores, autoridades em suas áreas de atuação. Segundo Mônica Pimenta Velloso, as missivas mobilizavam os seus interlocutores em torno de um projeto estético comum, assegurando as mediações necessárias à execução deste projeto2.

Nas cartas trocadas entre Portinari e outros nomes da elite letrada do período podemos perceber este intercâmbio de ideias, informações e opiniões sobre obras já realizadas ou em processo de criação. Por meio das correspondências, artistas e intelectuais debatiam sobre acontecimentos políticos e culturais, acerca de trabalhos que estavam sendo amadurecidos ou desenvolvidos, faziam encomendas, combinavam preços, discutiam a respeito de exposições e viagens, falavam sobre artigos publicados em revistas, dentre muitos outros temas. Sendo

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assim, a leitura destas missivas possibilita ao pesquisador a formação de uma visão bastante rica do que estava em voga neste ambiente, assim como a possibilidade de acompanhar o desenrolar dos acontecimentos que marcaram aquela época.

O filósofo francês Michel Foucault denominou de “escrita de si”3 a documentação que trata da produção do sujeito – cartas, diários íntimos, anotações, autobiografias, entre outras. E esta “escrita de si” avultou em importância na modernidade, quando a noção do individualismo do sujeito foi amadurecida.

Segundo Ângela de Castro Gomes, a modernidade ocidental está intimamente ligada à valorização da produção de si, em virtude de um novo tipo de relação que se estabeleceu entre o indivíduo moderno e seus documentos. Isso porque o indivíduo moderno construiu uma identidade de si através dos seus documentos. A “escrita de si” remonta à antiguidade, mas foi na modernidade, com a constituição de uma forma particular de individualismo, que este tipo de prática ganhou contornos bem específicos. O indivíduo tornou-se moderno justamente quando postulou uma identidade para si no interior do todo social, afirmando-se enquanto valor distinto e constitutivo deste mesmo todo. Ou seja, as sociedades modernas reconheceram os indivíduos como livres e iguais, conferindo-lhes autonomia4.

É interessante observar que a documentação que trata da produção do sujeito sobre si, que geralmente está armazenada em arquivos privados, ganhou importância na historiografia em um período relativamente recente, visto que antes, consideravam-se fidedignas somente as fontes documentais sob a salvaguarda dos arquivos públicos. Contudo, as fontes que dizem respeito aos arquivos pessoais, tais como as correspondências, são capazes de revelar aspectos riquíssimos para a pesquisa histórica se analisadas de acordo com o rigor metodológico.

O uso destes documentos implicou o desenvolvimento de teorias e metodologias capazes de torná-lo viável à pesquisa científica. Como a “escrita de si” guarda muito da subjetividade do sujeito que a realizou, foi justamente este caráter subjetivo que passou a importar ao olhar atento do pesquisador. Como salientou Ângela Gomes, neste contexto, a verdade passou a incorporar um vínculo direto com a subjetividade, exprimindo-se na categoria de sinceridade e, desse modo, adquirindo uma dimensão fragmentada e impossível de sofrer controles absolutos. A verdade deixou de ser unitária, passou a ser pensada em um sentido plural, assim como são plurais as vidas individuais5.

Sendo assim, pode-se afirmar que a “escrita de si” assume a subjetividade de seu autor, construindo sobre ela a sua “verdade”. A subjetividade constitui a autoridade desta

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documentação. Nesse caso, não interessa ao pesquisador que lida com este tipo de fonte a busca pela verdade factual, mas sim entender como o sujeito que realizou a “escrita de si” vivenciou, experimentou e interpretou uma determinada situação. O trabalho de crítica exigido por estes documentos é necessário na mesma medida em que é para os outros, todavia, é importante levar em conta as peculiaridades da “escrita de si” para que a pesquisa seja produtiva.

Este trabalho entende as cartas trocadas entre Portinari e seu círculo de amizades epistolares como um espaço fundamental para a construção de uma poderosa rede de sociabilidade artística e intelectual. Era através das correspondências que estes personagens tratavam de assuntos profissionais e estabeleciam uma relação íntima e profícua de troca de ideias e favores. Nesse contexto, a amizade epistolar, nutrida com importantes interlocutores, era fundamental para aquele que quisesse conviver e participar daquele ambiente cultural.

Esta troca de favores ficou expressa em uma missiva enviada por Portinari ao Ministro Capanema. Portinari escreveu pleiteando a criação de um cargo, a ser ocupado por ele próprio, na Escola Nacional de Belas-Artes:

Por tudo isso – e também pela convicção em que estou de estar realizando obra patriótica – é que tomei a iniciativa de propor, à sua inteligência, a criação, na Escola Nacional de Belas-Artes, de um atelier onde sejam ministrados conhecimentos de pintura mural. Esse gênero de pintura – pela possibilidade que oferece de irradiação, de influência coletiva, - tem sido utilizado, desde os tempos mais remotos, pelos governos de quase todos os países, como elemento precioso de educação e propaganda. Em todas as escolas de arte, ocupa essa cadeira lugar da maior importância, - a sua utilidade resultando, inclusive, da necessidade que têm os governos de decorar os seus melhores palácios. Desta forma, não há razões para que o Brasil – que vem acompanhando os progressos dos países civilizados nos demais setores de sua atividade, quer administrativa, quer literária, quer cientifica, - deixe de ter o seu curso de pintura mural, inexistente até hoje na Escola Nacional de Belas-Artes. Daí a proposta – que tomo a liberdade de reiterar ao ilustre Ministro – para o aproveitamento, naquela instituição, do meu curso de pintura mural6.

Nesta carta, apesar da intimidade que o pintor teve para pedir a criação do cargo para Capanema, percebe-se o tom respeitoso e formal com que ele se dirige ao ministro. Portinari articulou o projeto cultural promovido pelo Estado ao seu desejo. O artista afirmou que a criação da cadeira de Pintura Mural na Escola Nacional de Belas-Artes seria de fundamental importância para a educação e para a propaganda do governo, servindo também para decorar os palácios estatais. O argumento utilizado por Portinari foi o de que países civilizados já

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promoviam a pintura mural, e, como o Brasil buscava acompanhar o desenvolvimento destes países no campo literário, científico e administrativo, era necessário que o fizesse também no artístico. Além disso, o pintor afirmou que estava a realizar “obra patriótica” com a empreitada dos murais do Ministério da Educação e Saúde, o que tornava seu nome o mais indicado para ocupação do cargo.

Gustavo Capanema prontamente respondeu a carta de Portinari, dizendo que havia levado o decreto-lei de criação da cadeira de Pintura Mural ao Presidente Getúlio Vargas e que faltava somente esperar pela aprovação, que, no entanto, não se concretizou. O ministro, nesta mesma carta, faz uma série de pedidos para o pintor:

Meu caro Portinari,

Levei ontem à noite ao Presidente o decreto-lei de criação da cadeira de pintura mural e a proposta de sua nomeação para este lugar. Esperamos um pouco mais, e este caso estará resolvido. Peço-lhe que faça o estudo do painel da família para a sala de espera. Encarreguei o Sousa Aguiar de ver por que preço poderemos fazer os azulejos aqui no Rio, mas não tive ainda resposta. Verifiquei que o quadro do salão de audiências, que ainda falta, deve ser o da carnaúba. Comum que você o estude. Pessoalmente, conversaremos mais detidamente sobre cada um destes assuntos. Cordialmente, Capanema7.

Capanema elencou uma série de trabalhos que Portinari estava confeccionando para a sede do ministério. Citou o painel da família, o painel da carnaúba e os azulejos da portada. Como foi anteriormente explicitado, é possível perceber estas obras sendo pensadas e tomando forma através das correspondências. O que ficou claro nesta missiva é que após sinalizar atender ao pedido de Portinari, Capanema não hesitou em palpitar acerca dos trabalhos que o pintor estava realizando.

Gustavo Capanema foi nomeado ministro da pasta da Educação e Saúde Pública por Vargas, em 1934, cargo no qual permaneceu até o fim do Estado Novo, em 1945. Em seu ministério reuniu um grande número de artistas e intelectuais, das mais variadas correntes de pensamento. Portinari foi um dos artistas que realizou inúmeros trabalhos para este ministério, o que contribuiu também para a aproximação do artista com o ministro e com os demais intelectuais que conviviam naquele ambiente, como o poeta Carlos Drummond de Andrade, que era chefe de gabinete de Capanema.

Duas cartas enviadas pelo poeta e funcionário público Carlos Drummond de Andrade para Portinari exemplificam outro importante aspecto a ser destacado em relação às missivas: a existência de um código epistolar. Segundo Araújo e Guimarães, ao escrever uma carta, o

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remetente respeitava um complicado protocolo de reconhecimento das hierarquias, que determinava as formas de abrir e fechar as cartas, assim como o tom, formal ou informal utilizado na escrita8.

Na primeira carta, Drummond escreveu em tom mais formal, pois abordava um assunto profissional. Desse modo, quem escreve não é o poeta e amigo, mas sim o chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema. Mesmo assim, demonstrou muita intimidade no trato:

Meu caro Portinari,

Você como vai? Estou com [?] saudades de você, de sua pintura, de ver a cara acolhedora e tão cheia de estímulos. Do museu me mandaram a relação das exposições marcadas para este ano. Não houve jeito de fazer a sua em maio, dado o compromisso com o Lasar Segall, assumido ainda no ano passado. A sua ficaria, assim, para junho. Espero que isto não atrapalhe seus planos e até me dê mais folga para preparar tudo. [...] Diga-me alguma coisa a respeito e receba o abraço epistolar, que em breve será um abraço de verdade, do seu velho Carlos9.

Em outra missiva, Drummond se mostrou mais informal, pois tratava de assuntos pessoais. Dessa forma, escreveu como o amigo, desejoso por contar as novidades e saber notícias sobre o pintor:

Candinho,

Tive, na semana passada, uma grande alegria: um sujeito da All America Cables telefonou-me perguntando o seu endereço, porque tinha um telegrama de Detroit para você. O homem estava tão contente que violou o sigilo profissional e foi logo contando que o telegrama continha um convite para você expor nos Estados Unidos. Dei-lhe o nome de Brodowski, que ele custou a pegar (B de Beatriz, R de Rosa, O de Oscar...) e fiquei mais satisfeito ainda com a alegria desse brasileiro perdido em um escritório americano, que tinha pressa em transmitir a boa notícia. V. a recebeu? Quais são os seus projetos? Creio que a sua viagem aos Estados Unidos terá que se fazer de qualquer modo, e imagino a importância enorme que ela terá para sua arte. Aqui todos sentimos saudades de V. e da sua pequena e afetuosa tribo. Quando terminam essas férias? A saúde está em forma? Eu continuo afundado no papel e na improdutividade. Capanema, com o trabalho numeroso de sempre. Dolores lembra-se a Maria e Olga. Nosso abraço para Você. Afetuosamente, Carlos10.

Drummond quis dar uma boa notícia ao amigo, que estava de férias. Disse-se com saudades do pintor e de sua prole, também pergunta sobre a saúde de Portinari. O chefe de gabinete abriu a primeira carta citada com mais formalidade para tratar o artista: “Meu caro Portinari”. Já na segunda missiva, Drummond demonstrou mais afetividade e intimidade, tratando Portinari por “Candinho”, como era chamado pelos amigos mais próximos. Sendo

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assim, Carlos Drummond de Andrade escreveu cartas de formas distintas para Portinari, uma enquanto funcionário público, tratando de assuntos profissionais, outra como amigo íntimo, abordando assuntos pessoais.

Para Castillo Gómez, estilos de escrever tratavam de criar um cânone epistolar articulado em torno de três partes: abertura, desenvolvimento e fecho. As cartas deveriam ser mais rígidas quando remetidas aos superiores e mais descontraídas quando tinham por destinatário um familiar, um amigo, ou outra pessoa da mesma posição. Após a saudação, o remetente deveria dedicar-se ao desenvolvimento da carta. Quase sempre se começa por dar conta daquela carta a que se responde ou por manifestar a ânsia de novidades criada pela distância, para logo entrar em cheio nos assuntos referidos. Ao término da carta, no momento da despedida, volta-se ao protocolo e à cortesia, encerrando, desse modo, um artefato cultural cuja linguagem e disposição projetam uma determinada imagem da pessoa que escreveu. Uns e outros aspectos de uma carta podem converter-se em um artefato capaz de representar as regras do pacto social e, em decorrência, projetar a imagem de quem a tinha escrito, assim como sua posição social11.

Trebitsch também acredita no uso de códigos e estratégias no momento de escrever cartas, e, propõe a distinção de interlocutores em duas categorias: a primeira pode ser definida como um “jogo de redes” – formais ou informais, na segunda prevalece a amizade intelectual. No “jogo de redes” os intelectuais ocupam posições sociais distintas e a carta é, muitas vezes, escrita com o intuito de alçar melhores posições ou de se integrar em determinado círculo. Na segunda categoria, os intelectuais ocupam a mesma posição social e são ligados por preocupações estéticas e ideológicas comuns, nutrindo por meio das missivas um relacionamento mais íntimo e duradouro12.

Mudar e transpor o discurso, ou seja, adaptar-se à pessoa do destinatário da carta, eram requisitos de toda missiva que se pretendesse adequada e bem escrita. Portinari, ao escrever cartas, respeitava o protocolo e as hierarquias. Quando escrevia para amigos próximos, utilizava uma linguagem mais casual e informal. Se o destinatário fosse alguém em posição social distinta ou, se fossem assuntos estritamente profissionais, a linguagem adotada na carta era formal e cerimoniosa.

Em carta ao amigo e também pintor, Waldemar da Costa, Portinari usou um tom bem íntimo e informal:

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Ficamos contentes por receber notícias tuas, pois há muito não sabíamos de ti. Agradecemos e retribuímos os votos de feliz 33. Estivemos em Petrópolis já duas vezes e perguntamos por ti sem resultado; não fomos até aí por não termos de avisado. [...] Aqui esteve o Di Cavalcanti para me convidar a fazer parte de uma nova sociedade moderna fundada ultimamente em S. Paulo. Falei em ti e na Sylvia e no grupo do salão, ele porem aceitou poucos nomes entre eles o teu. [...] Ultimamente fiz 36 pequenos retratos alguns dos engenheiros [?] que saíram este ano, foi um trabalho estafante e sem grande resultado monetário, em todo caso a gente vai como tu sabes: - trabalha hoje para pagar o que comeu ontem. Talvez lá para quarta ou quinta-feira iremos novamente em Petrópolis e gostaríamos de encontrar contigo. [...] Lembranças de Maria e Portinari13.

Nesta carta, prevaleceu a “amizade intelectual” que se enquadra na segunda categoria proposta por Trebitsch, na qual, os interlocutores ocupam posições sociais semelhantes ou fazem parte de um mesmo grupo estético. Candido Portinari e Waldemar da Costa foram artistas plásticos, membros da estética modernista. Portinari não fez rodeios para tratar o amigo, utilizou linguagem informal e abordou assuntos pessoais, mas não deixou de falar de trabalho. Contudo, quando se referiu ao trabalho, foi para compartilhar experiências com o amigo pintor, que, ao que parece, poderia entender o reclame do artista, talvez por compartilhar da mesma situação. Portinari começou a carta seguindo o protocolo que foi citado por Gómez: agradece a carta recebida, retribui os votos de feliz ano novo e fala como foi bom receber notícias do amigo, para, finalmente, entrar no assunto. Na despedida, mandou lembranças no nome dele e da esposa, Maria.

Já em carta escrita ao Presidente Getúlio Vargas, o pintor seguiu toda cerimônia e os protocolos exigidos para se referir a um chefe de Estado:

Exmo. Sr. Presidente Dr. Getúlio Vargas,

Tenho a satisfação de comunicar a V. Exa. que os estudos para decoração das duas salas na biblioteca do Congresso, foram aprovados pelo Sr. MacLeish e pelo arquiteto do Capitólio. Ainda este mês começarei a pintar diretamente nos muros. Os motivos escolhidos são comuns a todos os países da América: Descoberta, Pioneiros, Catequese e Ouro. As dimensões da pintura são aproximadamente 1000 pés quadrados. Agradeço a V. Exa. mais uma vez o apoio moral e material que me tem dispensado para realizar meu trabalho de pintor. De V. Exa. patrício e admirador14.

Nesta carta, Portinari descreveu os desdobramentos do trabalho que estava realizando na ala da Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso, nos Estados Unidos. Os murais que estavam sendo confeccionados pelo artista no edifício do Ministério da Educação e Saúde

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tiveram grande repercussão, o que ocasionou a oportunidade de trabalho nos Estados Unidos. Para realizar os murais da Biblioteca do Congresso, Portinari precisou interromper temporariamente o trabalho no Ministério da Educação, mas, para tanto, obteve o apoio e a autorização do ministro Capanema e do Presidente Vargas, já que estaria contribuindo para divulgação da arte nacional no exterior.

Para dirigir-se ao Presidente, Portinari utilizou linguagem formal e pronomes de tratamento em sinal de respeito à hierarquia. Na carta, expressou a gratidão pelo apoio moral e material que Vargas lhe dispensava. Na despedida, afirmou-se como um admirador do Presidente. Esta missiva se enquadra na primeira categoria proposta por Trebitsch, a do “jogo de redes”, na qual, intelectuais em posições distintas se correspondem, com o intuito de integrar algum grupo ou alcançar determinada posição social. Portinari já integrava o grupo de artistas que confeccionavam trabalhos para o Estado, dessa forma, a carta pode ter sido escrita somente para agradecer e manter tal posição.

Assim sendo, o escritor de cartas deveria se adequar a diversas situações: quem era o remetente, qual tipo de assunto – pessoal ou profissional, entre outros. Gómez cita as palavras de Torquemada, sobre aqueles que escrevem correspondências: “os que escrevem cartas, hão de saber variá-las e mudar em diversas maneiras, como mudam o polvo e o camaleão15.” Ou seja, há que se adequar às condições da carta: quem a escreve, para quem a escreve, qual o assunto, entre outros.

Em suma, buscou-se demonstrar como Candido Portinari construiu uma poderosa rede de relações epistolares e como isto contribuiu para sua integração e promoção no concorrido ambiente político e intelectual da época. Pode-se afirmar que o pintor utilizou as missivas como um espaço de sociabilidade artística e intelectual, já que tratava dos mais variados assuntos, em especial profissionais, com seus importantes interlocutores. As cartas eram usadas para falar do processo de confecção de suas obras aos amigos, para combinar encomendas e acertos financeiros relativos a trabalhos, assim como para debater acerca de algumas questões que agitavam aquele contexto. Como foi dito, o pintor estava bem integrado nesta conjuntura e, dessa forma, suas missivas revelam muito sobre os bastidores daquele cenário social.

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1 TREBITSCH, Michel. Correspondances d’intellectuels: les cas de letters d’Henri Lefebvre à Norbert Guterman (1935-1947). Les Cahiers de l’IHTP, nº20, mars 1992. s/p.

2 VELLOSO, Mônica Pimenta. Entre o sonho e vigília: o tema da amizade na escrita modernista. Tempo [online]. 2009, vol.13, n.26.

3 FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992. pp. 129-160.

4 GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. pp. 10-12.

5 Idem, pp.13-14.

6 Carta de Candido Portinari a Gustavo Capanema, de 27 de maio de 1939. 7 Carta de Gustavo Capanema a Candido Portinari, de 27 de setembro de 1939.

8 GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; ARAUJO, Valdei Lopes de. O sistema intelectual brasileiro na correspondência passiva de John Casper Branner. In: GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, pp.103-104.

9 Carta de Carlos Drummond de Andrade a Candido Portinari, de 17 de março de 1943. 10 Carta de Carlos Drummond de Andrade a Candido Portinari, de 13 de fevereiro de 1940.

11 GÓMEZ, Antonio Castillo. Como o polvo e o camaleão se transformam. Modelos e práticas epistolares na Espanha Moderna. In: BASTOS, Maria Helena Câmara et al. (Org.). Destinos das letras: história, educação e escrita epistolar. Passo Fundo: UPF, 2002, pp.38-45.

12 TREBITSCH, Michel. Op. Cit.

13 Carta de Candido Portinari a Waldemar da Costa, de 1933.

14 Carta de Candido Portinari a Getúlio Vargas, de 03 de outubro de 1941. 15TORQUEMADA Apud GÓMEZ, Antonio Castillo, p.42.

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