• Nenhum resultado encontrado

UM OLHAR DE GÊNERO SOBRE A EPIDEMIA DE AIDS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "UM OLHAR DE GÊNERO SOBRE A EPIDEMIA DE AIDS"

Copied!
46
0
0

Texto

(1)

UM

OLHAR

DE

GÊNERO

SOBRE

A

EPIDEMIA

DE

AIDS

Regina Maria Barbosa* A epidemia de aids acaba de completar 20 anos. Em 1981, quando foi diagnosticado o primeiro caso de aids, ninguém poderia imaginar que estaríamos no século 21 diante de uma epidemia que, a despeito de todas as tentativas de controle e mobilização social, atinge proporções globais e se apresenta cada vez mais complexa e multifacetada, sem mostrar sinais evidentes ou inequívocos de redução.

É igualmente verdade que nos 15 anos que separam, de um lado, a criação em 1986 do Programa Especial em Aids da Organização Mundial de Saúde (OMS), e, de outro, a realização, em junho de 2001, da Assembléia Geral das Nações Unidas para tratar da epidemia de aids, é possível identificar uma gama enorme de iniciativas governamentais e não-governamentais, como também o surgimento de distintos atores sociais comprometidos com a mobilização global contra o HIV/aids sem precedentes na história mundial da saúde pública. Igualmente sem precedentes foi a expansão dessa mobilização para o campo acadêmico, onde um efervescente debate impulsionado pelo movimento social resultou em avanços consideráveis na produção de conhecimento tanto em termos técnicos, como teóricos e políticos, entre os quais se destacam o deslocamento da idéia de risco para a de vulnerabilidade, como também da dicotomia das ações de natureza curativa e preventiva para um cenário que necessariamente enfatiza sua integração e convívio.

No entanto, apesar dos 20 anos de epidemia e de produção de conhecimento sobre ela, foi apenas na última década, e de forma mais intensa nos últimos 5 anos, que um olhar sobre as questões específicas da mulher se tornou mais evidente. Sem pretender dar conta de rever a intensa produção sobre o tema – tarefa impossível, ainda que se considere o recorte mulher e aids aqui proposto – este trabalho foi construído de forma a enfatizar determinados ângulos e questões que

* Médica sanitarista, doutora em saúde coletiva, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (NEPO) da Universidade de Campinas e do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo; vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e a Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher, órgão assessor do Conselho Nacional de Saúde.

(2)

têm sido menos abordados ou o foram apenas mais recentemente. Assim, este trabalho está dividido em quatro partes. A primeira fornece um perfil sintético da epidemia do HIV/aids no Brasil, com o olhar reajustado para focalizar as diferenças de gênero, cujas origens serão discutidas na segunda parte do texto, “Vulnerabilidade, gênero e aids: alguns determinantes”. Na terceira parte o olhar se desvia para a discussão das questões complexas e polêmicas situadas na interface entre saúde reprodutiva e aids. Finalmente, a quarta parte, “Transmissão sexual do HIV e possibilidades de prevenção”, publicada anteriormente em Barbosa (2001), vai se deter na discussão das estratégias de prevenção atualmente implementadas, como também dos limites e desafios colocados pela racionalidade que baliza tais estratégias. Levando em consideração o recorte mulher e aids norteador deste texto e, também, que as dificuldades associadas ao uso do condom masculino têm sido exaustivamente abordadas em diferentes trabalhosi, maior ênfase será conferida às tecnologias de prevenção para uso da mulher já disponíveis e em estudo, a saber: o preservativo feminino e os microbicidas.

Mulheres e a epidemia do HIV/aids: um olhar sobre os números

Estimativas divulgadas pelo UNAIDS (programa conjunto de agências das Nações Unidas de combate à aids) apontam para aproximadamente 35 milhões de pessoas vivendo com HIV/aids no mundo inteiro, estando mais de 90% da epidemia concentrada em países em desenvolvimento

(UNAIDS, 2000), lugares onde seu impacto econômico e social cresce de

forma mais acelerada. Desse total, 15 milhões são mulheres e estima-se que, em 1999, dos 5 milhões de pessoas que se infectavam a cada ano, a metade correspondia a população feminina.

No Brasil, 210.452 casos de aids foram notificados até 31 de março de 2001, sendo 54.660 mulheres (Brasil, 2001). Estima-se que, em média, 218 mil mulheres com mais de 13 anos de idade estejam infectadas pelo HIV atualmente, de um total de quase 600 mil pessoas (Szwarcwald e Carvalho, 2001). A epidemia brasileira tem-se caracterizado por um rápido processo de mudança de seu perfil, combinando diferentes padrões de transmissão do vírus: transmissão sangüínea, pelo compartilhamento de seringas e agulhas contaminadas; transmissão

(3)

homo e bissexual – formas que, ao lado da transmissão pela transfusão de sangue (atualmente controlada), marcaram o início da epidemia – mesclam-se a uma acelerada expansão da transmissão heterossexual. Segundo vários autores, seria mais correto falar na existência de distintas epidemias superpostas de HIV, com diferentes taxas de crescimento segundo as categorias de exposição e as regiões do país (Szwarcwald et al., 1997; Parker, 2000; Santos, 1996 ), que vão ainda adquirir contornos específicos em função do gênero e da classe social (Barbosa e Villela, 1996).

Na última década, um rápido processo de pauperização, feminização e interiorização tem marcado o perfil da epidemia, sendo possível identificar um processo de sua disseminação para cidades de médio e pequeno porte, havendo atualmente casos notificados em todos os estados brasileiros. Alguns autores têm ressaltado também a existência de um processo de juvenilização, que corresponderia ao acometimento de pessoas cada vez mais jovens. No entanto, não existe um consenso a esse respeito: a hipótese de juvenilização da epidemia não pôde ser confirmada, por exemplo, para os casos notificados no Estado de São Paulo, segundo análise recente (Santos, 2002).

Diferentemente do comportamento da epidemia de aids em outras regiões, como a África subsahariana – que atingiu desde seu início igualmente a população feminina e masculina – os primeiros anos da epidemia no Brasil afetaram de maneira mais importante os homens, fazendo crer que seguiria um modelo mais restrito aos homossexuais masculinos, aos usuários de drogas injetáveis (majoritariamente homens) e às pessoas que recebiam sangue e hemoderivados, como os hemofílicos (exclusivamente homens) (Bastos, 2000). Antes de completar uma década, no entanto, ficou evidente uma tendência crescente de aumento da infecção pelo HIV entre as mulheres, fenômeno que passou a ser denominado de feminização. Para o Brasil como um todo, a razão homem/mulher caiu de 28/1 em 1985, para 2/1 em 1997, sendo que no grupo etário de 15 a 19 anos, a partir de 1994, a razão já é de 1/1 (Vermelho, Silva e Costa, 1999). Nesse sentido, é fundamental ressaltar que, apesar de esse aumento estar em pequena parte conectado diretamente à transmissão do vírus pelo compartilhamento de seringas contaminadas, a disseminação da infecção entre as mulheres acontece basicamente pela via sexual, por meio

(4)

de seus parceiros, usuários ou não de drogas injetáveis, sendo possível afirmar que a transmissão heterossexual é hoje o principal motor da epidemia no seu conjunto e, em particular, na população feminina (Szwarcwald e Bastos, 1998)ii. Em 1991, a transmissão sexual era responsável por 40,2% dos casos femininos notificados e em 1999, aumentou para 67,1%. Já a transmissão do vírus por meio do compartilhamento de agulhas e seringas era responsável por 29,1% e, em 1999, diminuiu para 8,2% (ver Tabela 1).

Paralelamente, o tempo se encarregou também de evidenciar o papel das desigualdades sociais e econômicas na contínua transformação da epidemia. Se tomarmos a escolaridade como um indicador da situação socioeconômica, é possível observar, concomitante ao perfil acima referido, um quadro crescente de empobrecimento que guarda igualmente contornos particulares de acordo com o gênero. Assim, embora a epidemia venha aumentando progressivamente em ambos os sexos entre os grupos populacionais com menor escolaridade, as mulheres atingidas pela epidemia já apresentavam um menor nível de escolaridade desde seu início. Em 1991, 50,5% dos casos femininos tinham até 1o Grau completo, contra 39,2% dos casos masculinos com esse mesmo nível de escolaridade. Em 1999, essa proporção aumentou, respectivamente, para 66,1% e 59,2% (Brasil, 2001).

Gráfico 1 Distribuição dos casos de aids em indivíduos do sexo feminino com 19 anos de idade ou mais, segundo escolaridade, Brasil

Fonte de dados: Boletim Epidemiológico Aids (Brasil, 2001)

1991 50,5% 9,7% 5,2% 34,7% Ate 1 Grau 2º Grau Superior Ignorada 1999 66,1% 13,6% 3,5% 16,8% Ate 1 Grau 2º Grau Superior Ignorada

(5)

Gráfico 2 Distribuição dos casos de aids em indivíduos do sexo masculino com 19 anos de idade ou mais, segundo

escolaridade, Brasil.

Fonte de dados: Boletim Epidemiológico Aids (Brasil, 2001)

Transcorridos 20 anos, é possível apontar alguns erros básicos na avaliação inicial feita em relação aos rumos da epidemia, que retardaram o delineamento de estratégias específicas de enfrentamento. Na verdade, os indícios de um processo de interação sinérgica entre desigualdade social e gênero, cujos efeitos se traduzem hoje no fenômeno da pauperização e feminização, já eram evidentes há pelo menos uma década, conforme ressaltado por vários autores no começo dos anos 90 (ver respectivamente Parker, 2000, e Barbosa e Villela, 1996). A idéia de grupos de risco, hegemônica naquele momento, aliada a um profundo preconceito homofóbico, impediu por um lado leituras alternativas da realidade e por outro a marcou profundamente. Suas marcas atualizadas podem ser percebidas por exemplo no impacto diferencial da terapia anti-retroviral na mortalidade por aids em homens e mulheres, cuja redução, após o início da política de acesso gratuito e universal à terapia, adotada pelo governo brasileiro a partir de 1996, constitui sem dúvida uma das grandes vitórias obtidas na luta contra a aids.

Análise recente da evolução da mortalidade por aids, realizada por Fonseca e Barreira (2000), mostra coeficientes de mortalidade ascendentes até 1995/6 para homens e mulheres, quando então começaram a diminuir ano a ano, com uma tendência de queda que se diferencia segundo o gênero: redução de 23% entre os homens e de 16% entre as mulheres. A menor redução das taxas de mortalidade entre as mulheres, quando comparada à dos homens, segundo os mesmos autores, reflete o

1999 59,2% 15,8% 7,0% 17,9% Ate 1Grau 2º Grau Superior Ignorada 1991 39,1% 15,6% 13,3% 32,0% Ate 1Grau 2º Grau Superior Ignorada

(6)

crescimento maior da epidemia nesse segmento da população. Entre os aspectos relevantes para explicar essa diferença incluem-se diferenças no acesso à informação, aos meios de prevenção, à qualidade da assistência prestada, que se reflete numa menor adesão ao tratamento e na baixa valorização dos sinais e sintomas na mulher, dificultando e retardando o diagnóstico e o tratamento (Paiva et al., 2002; Anderson e Mitchell, 2000; Barbosa, 1997).

Vulnerabilidade, gênero e aids: alguns determinantes

Embora a idéia de grupos e comportamentos de risco ainda mantenha relevância na discussão sobre a difusão do HIV, na última década novas perspectivas teóricas possibilitaram o rompimento do reducionismo que enfatizava basicamente as dimensões biológica e individual, e permitiram leituras alternativas mais ricas e abrangentes sobre os determinantes da epidemia.

Destaca-se aqui o conceito de vulnerabilidade, primeiramente formulado por Mann; Tarantola e Netter (1992), e mais tarde revisitado por Ayres et al. (1999), ao introduzir as dimensões culturais, sociais e políticas nas categorias clássicas usadas na epidemiologia. Para Ayres, vulnerabilidade surge como resposta à tradicional abordagem comportamentalista das estratégias individuais de redução de risco e traduz o reconhecimento da necessidade de fortalecer estratégias de alcance social e estrutural, por meio da ação comunitária dos movimentos sociais organizados.

Além disso, acrescentam os autores, esse conceito funciona como um operador de leitura capaz de fornecer formas alternativas de avaliar objetiva, política e eticamente as condições e circunstâncias de vida que tornam cada pessoa exposta ao problema (no caso o HIV/aids), bem como os elementos que favorecem a construção de alternativas reais de proteção. Assim, ao contrário da centralidade no biológico e individual, constituinte da idéia de grupo de risco, a de vulnerabilidade reconhece a existência de graus e naturezas diversas de suscetibilidade de indivíduos e coletividades à infecção, adoecimento ou morte pelo HIV, segundo a especificidade de sua situação, ao mesmo tempo que os coloca em relação com o problema e com os recursos para seu enfrentamento (Ayres et al.,

(7)

1999). De acordo com essa proposta, a vulnerabilidade poderia ser organizada em três planos de determinação: os sociais (ou contextuais), programáticos (ou institucionais) e individuais (ou comportamentais).

Essa perspectiva abrangente sem dúvida fornece muito mais recursos inclusive para pensar o momento atual da epidemia, se concordarmos com a análise de Anderson, citado por Bastos (2000), de que a epidemia teria um padrão bifásico, que afetaria num primeiro momento coletividades mais circunscritas em função de determinados riscos ou comportamentos específicos, como a prática do sexo anal, os usuários de drogas ou os portadores de hemofilia, para numa segunda fase, de surgimento mais tardio e longa duração, atingir populações com riscos individuais relativamente baixos, mas de grande magnitude em termos do número de pessoas potencialmente sob risco, ou seja, vivendo em situações de maior vulnerabilidade – momento que estaríamos vivendo na atualidade. A observação dos dados epidemiológicos e de estudos qualitativos mostra exatamente isso: a maioria das mulheres que estão sendo atingidas pela epidemia não apresentam qualquer comportamento sexual particular mas, ao contrário, agem segundo o que se espera que façam: são casadas, conheceram (sexualmente) poucos homens na vida, não costumam exigir nem fazer muitas perguntas a seus parceiros e portanto não usam camisinha (Santos, 1996; Guimarães, 1996; Barbosa, 1999; Knauth, 1999; Carvalho, 2000).

O que faz então com que um contingente tão grande de mulheres seja vulnerável? A resposta poderia ser resumida da seguinte maneira: existe uma relação sinérgica entre fatores individuais – biológicos e comportamentais –, socioculturais e programáticos, organizada segundo diferentes lógicas, como por exemplo a de gênero, raça e classe social, que torna a população feminina especialmente vulnerável à infecção pelo HIV. Tal divisão, no entanto, deve ser entendida como uma tentativa exclusivamente analítica, pois na prática todos os níveis encontram-se extremamente interligados, determinando uns aos outros, conforme será possível verificar. Vejamos então alguns fatos.

Do ponto de vista biológico, as mulheres são mais vulneráveis à infecção pelo HIV do que os homens. Numa relação sexual, a mucosa vaginal fica exposta a um volume maior de sêmen que, em geral, tem

(8)

uma concentração mais elevada de vírus, a partir de uma superfície mucosa igualmente mais extensa e por um tempo razoavelmente grande após a ejaculação. Segundo Levine (1999), estimativas feitas com base em modelagem matemática mostram que a probabilidade de transmissão do HIV do homem para a mulher por episódio de sexo vaginal é aproximadamente 0,05% a 0,15% maior do que da mulher para o homem – de aproximadamente 0,03% a 0,09% –, enquanto a chance de transmissão por episódio de sexo anal penetrativo é 0,08% a 3,2%.

Paralelamente, a probabilidade de transmissão sofre grandes alterações em função do estágio da infecção, de tal forma que, segundo evidências empíricas, quanto maior a carga viral sangüínea, maior a carga viral no sêmen e maior a probabilidade de transmissãoiii. Em estudo recente, baixa carga viral no sêmen (<5000 cópias/ml) esteve associada a probabilidade de transmissão tão pequena quanto 0,01%, enquanto uma carga viral muito elevada (1 milhão de cópias/ml) – encontrada entre homens HIV+ infectados por outras infecções sexualmente transmissíveis (IST), como gonorréia e tricomonas, na África – aumentou a probabilidade para 3% (Chakraborty et al., 2001).

Em princípio, qualquer fator que aumente a carga viral nos assim chamados compartimentos genitais, como a presença de uma infecção sexualmente transmissível (IST), funciona como fator de ampliação da eficácia da transmissão e, inversamente, pelo menos do ponto de vista teórico, outros fatores ou procedimentos que abaixam a carga viral, como o uso de terapia anti-retroviral, poderiam funcionar diminuindo a eficácia da transmissão. Obviamente é preciso ressaltar que o uso de terapia não implica o não-uso de outras medidas de proteção, como o condom masculino ou feminino.

Outro fator que, pelo menos provisoriamenteiv, poderíamos nomear como anatômico, refere-se à circuncisão. Por mecanismos ainda não completamente elucidados, vários estudos têm apontado de maneira consistente para o efeito protetor da circuncisão masculina, tanto no sentido de ser infectado pelo HIV como de infectar o/a parceiro/a (Levine, 1999). Não existem dados disponíveis para o Brasil a esse respeito.

Relações sexuais durante a menstruação parecem igualmente aumentar a probabilidade de transmissão do HIV; já os dados referentes

(9)

aos efeitos dos contraceptivos hormonais têm se mostrado conflitantes. Alguns estudos têm indicado aumento do risco entre as mulheres usuárias desses contraceptivos, devido a um adelgaçamento da mucosa vaginal, enquanto outros não conseguiram identificar qualquer efeito. Recentemente foi encontrado aumento de co-receptores para o HIV no epitélio cervical em mulheres que se encontram em condições hormonais de predomínio da progesterona. Tal fato, segundo Levine (1999), poderia por exemplo fornecer uma pista para entender como determinadas situações, como a gravidez, alteram a eficácia da transmissão do vírus.

Retomando a relação entre as ISTs e a aids, é consenso que homens ou mulheres com doença genital, ulcerativa ou não, são potencialmente mais transmissores e mais vulneráveis. A presença de lesões ulcerativas no parceiro HIV+, por exemplo, aumenta de 1,5 a 7 vezes a probabilidade de transmissão nas mulheres e nos homens (Levine, 1999). Recente estudo multicêntrico indicou que mesmo infecções como a monilíase e a vaginose bacteriana – altamente prevalentes em nossa realidade – contribuem fortemente para um aumento do risco (Wofsy, 1992; Levine, 1999).

Se por um lado a presença de uma IST aumenta tanto a vulnerabilidade para adquirir o vírus quanto a possibilidade de transmiti-lo, por outro é fundamental não perder de vista que as ISTs são mais freqüentemente assintomáticas nas mulheres e que, mesmo nessas circunstâncias, existe um processo de inflamação local e formação microlesões que diminui os mecanismos naturais de proteção vaginal ao HIV e facilita a transmissão do vírus. Nesse sentido, é possível dizer que essa característica biológica atua como um fator de vulnerabilização feminina, ao dificultar o diagnóstico e o tratamento.

Existe pois atualmente suficiente evidência para afirmar que a ocorrência de infecções sexualmente transmissíveis aumenta o risco da transmissão sexual do HIV, sendo essa conexão uma das mais importantes para ser considerada na viabilização de programas desenhados para o controle da epidemia de aids que se quer eficazes. Segundo Anderson (1996), é necessário reconhecer a existência de uma segunda epidemia, a das demais doenças sexualmente transmissíveis, e estabelecer ligação entre as duas, do ponto de vista das ações programáticas e políticas.

(10)

O impacto do tratamento das ISTs na incidência da infecção pelo HIV tem sido objeto de várias investigações e os resultados têm demonstrado que a interação IST/HIV é complexa, variando em função do estágio da epidemia nas diferentes regiões geográficas. Aparentemente, em áreas com baixa prevalência de HIV, sua transmissão pode ser reduzida de modo significativo por meio do controle das demais ISTs, enquanto em áreas com elevada prevalência seu controle pode não ser tão efetivo (DiCarlo, 1999). Redução de 42% na incidência da infecção pelo HIV foi observada entre indivíduos que receberam tratamento sindrômico para outras ISTs em Mwanza, Tanzânia, onde a prevalência era em torno de 4% (Grosskurth et al., 1995). Já em Rakay, na Uganda, onde a prevalência era 16%, não houve redução na incidência (Wawer, 1999).

Considerando que a prevalência da infecção no Brasil não chega a 4%, seria legítimo supor que o controle das ISTs poderia constituir, como propõe Anderson, uma estratégia importante para controle da epidemia do HIV. Isto obviamente sem perder de vista que as ISTs constituem por si só um grave problema de saúde pública, estando conectadas a outras doenças reprodutivas sérias, como a neoplasia de colo uterino, no caso da infecção pelo HPV. Apesar disso, do ponto de vista programático, é evidente o descompasso entre necessidade e ação nas políticas de prevenção das ISTs no Brasil.

Historicamente o viés discriminatório e preconceituoso com que essa questão foi tratada no Brasil, estudado por Carrara (1996), acabou gerando uma percepção negativa a seu respeito, compartilhada tanto pelos profissionais como pela clientela dos serviços de saúde, o que dificulta a procura, pela população em geral, dos poucos serviços capacitados para seu atendimento. Esse descompasso refletiu-se também, pelo menos até recentemente, na inexistência de um sistema de informação e vigilância das ISTs, o que, entre outras coisas, dificultou a compreensão de sua relação com a epidemia de aids em nossa realidade.

É preciso também notar que grande parte das clínicas de atendimento às ISTs se caracteriza por apresentar uma clientela majoritariamente masculina e que a instância da assistência médica em que se apresentam as ISTs entre as mulheres é basicamente o ambulatório ginecológico, através das queixas de leucorréia (“corrimento”), que constituem

(11)

morbidade freqüente desses ambulatórios. No entanto, as vaginites e cervicites têm sido raramente enfrentadas como doenças de transmissão sexual pelos serviços de atenção à saúde da mulher. Paralelamente, no cotidiano das mulheres, obter atendimento quando a queixa é “apenas” de “corrimento” pode constituir uma tarefa difícil, na medida em que as lotadas agendas dos serviços públicos obedecem a critérios de priorização de gravidade, onde os riscos de uma demora para o tratamento de uma leucorréia tendem a ser minimizados. Além disso, quando o atendimento ocorre, estará freqüentemente restrito à prescrição de medicação para a mulher e o parceiro e à orientação de abstinência sexual durante o tratamento. Embora esforços de mudança nesse cenário sejam evidentes, em função da gravidade da epidemia de HIV/aids, as iniciativas para integrar ação educativa e curativa ainda se dão timidamente. Raramente esse momento de atendimento será aproveitado para esclarecer a mulher sobre as formas de transmissão dessa infecção e da importância da adoção de práticas sexuais mais seguras, que impeçam a reinfecção ou aquisição de outras ISTs.

Do ponto de vista sociocultural, a ampliação da vulnerabilidade feminina pode ser retratada de diferentes formas. Bastos (2000), por exemplo, chama atenção que as “regras” de pareamento entre os sexos em vigor na maioria das sociedadesv fazem com que as mulheres estabeleçam relações sexuais e parcerias com homens mais velhos, onde os níveis de prevalência do HIV e de outras ISTs são mais elevados e a prática de uso do preservativo mais difícil. Nesse sentido, é interessante mencionar ainda que a assimetria de idade no pareamento sexual tem outros desdobramentos, ao reforçar mais ainda a assimetria de poder que em geral marca as relações entre homens e mulheres, questão central para pensar a vulnerabilidade feminina.

No entanto, essa é apenas uma das dimensões a ser enfatizada. Os eixos de desigualdade que mantêm as mulheres em situação de maior vulnerabilidade têm uma dimensão micro e simultaneamente macrossocial, estando organizados em termos políticos, culturais e econômicos (Parker, 2000). Compreendem tanto a não–observância de direitos básicos, relações desiguais de poder e acesso diferenciado a serviços e bens, materiais e simbólicos, acontecendo no âmbito da família e das parcerias, como também da cultura e sociedade. Sua concretização pode

(12)

ser apreendida por exemplo no menor acesso da mulher ao emprego, em salários menores, na dupla jornada de trabalho feminino e na existência de uma dupla moral sexual.

De maneira sintética, poderíamos dizer que as desigualdades vigentes em diferentes instâncias interagem e geram efeitos de maneira sinérgica:

A combinação da violência simbólica e material, da ‘dupla moral’ no que diz respeito ao comportamento sexual de homens e mulheres no âmbito da família e da sociedade, da assimetria na capacidade de tomar decisões e efetivá-las (...) faz com que seja mais difícil para as mulheres ter acesso a informações adequadas e atualizadas e, uma vez dispondo delas, modificar seus comportamentos e, uma vez alterados esses comportamentos, manter essas mudanças nas interações cotidianas. (Bastos, 2000, p.13)

Direitos reprodutivos e transmissão materno-infantil do HIV O fato de a epidemia de HIV/aids atingir preferencialmente mulheres jovens, aliado à importância que a transmissão sexual do vírus tem na dinâmica de sua disseminação entre a população feminina vem produzindo uma série de desafios e desdobramentos para a saúde reprodutiva e sexual. Em primeiro lugar, agravou o quadro de saúde já bastante precário, caracterizado, em linhas gerais, pelo recrudescimento de outras doenças sexualmente transmissíveis, por um perfil distorcido do uso de métodos contraceptivos, pelo recurso indiscriminado à esterilização cirúrgica e ao parto cesáreo, pela prática clandestina do aborto e pela manutenção de elevados índices de mortalidade materna e por câncer de colo e de mama (Barbosa e Lago, 1997).

Em segundo lugar, as novas demandas geradas pela epidemia do HIV/aids entre as mulheres foram respondidas, salvo algumas exceções, de maneira setorizada e verticalizada, por meio de uma forte ênfase nas estratégias de diminuição da transmissão vertical do vírus. Ao fazer isso, acabou-se reeditando a histórica priorização da assistência pré-natal, com a finalidade primeira de beneficiar o recém nascido, deixando à margem outras conexões existentes entre saúde reprodutiva e aids.

(13)

Assim, o objetivo aqui é enfatizar a necessidade de recolocar a discussão de seu enfrentamento em termos de direitos reprodutivos, o que significa reconhecer, antes de prosseguir, que as mulheres têm o direito: de usufruir uma vida sexual, se assim o desejarem; de escolher se, quando, com quem e como vão ter filhos; e de exercer essas escolhas com segurança e com mínimo de risco para a saúde (Corrêa e Petchesky, 1994).

Partir desse ponto de vista implica reconhecer também que as escolhas realizadas pelas mulheres têm uma dimensão individual, já que é cada mulher que realiza e exerce tais escolhas, mas que ao mesmo tempo elas se relacionam a um conjunto mais amplo de condições sociais, econômicas e sexuais, no interior das quais as mulheres vão exercer suas escolhas (Petchesky, 1985). E é aqui portanto que a aids se insere, tornando ainda mais complexo o cenário no qual essas escolhas vão se dar. O acesso à terapia anti-retroviral vem tornando a aids uma doença crônica, o que coloca atualmente duas questões distintas, com as quais as mulheres infectadas pelo HIV vão ter de lidar com relação a sua vida sexual: a prevenção da transmissão sexual e vertical do HIV e a prevenção da gravidez indesejada.

Num primeiro momento da epidemia, a aids estava tão ligada à idéia de morte e eram tão poucas as mulheres infectadas que as questões reprodutivas não tinham o impacto que têm hoje. Mais tarde, quando a participação da população feminina na epidemia aumentou e intervenções terapêuticas capazes de reduzir o risco de transmissão mãe-filho se tornaram disponíveis, houve uma grande ênfase nas ações de prevenção da transmissão vertical, em termos político e programático, e a conseqüente eleição da assistência à maternidade como o momento de detecção da infecção pelo HIV em mulheres.

Obviamente a prevenção da infecção em bebês é necessária e deve ser contemplada nas estratégias de controle da aids e, para que isso ocorra, é preciso que a mulher conheça sua situação sorológica e tenha acesso à terapia e às informações necessárias para a redução do risco de transmissão vertical. No entanto, é necessário estabelecer como beneficiários dessa estratégia as mulheres e seus filhos, e não apenas os últimos.

(14)

Eleger a gestação como momento de detecção do HIV em mulheres, de modo a beneficiá-las, pressupõe reconhecer seu direito de decisão sobre a reprodução e propiciar o apoio e os serviços necessários para sua realização. Ao mesmo tempo, para que esse processo se dê, é necessário que a instituição de saúde se perceba a serviço da mulher e não o contrário, como muitas vezes ocorre. É do enfrentamento dessas concepções que resultam as alternativas de oferta ou imposição do teste anti-HIV e de acolhimento da decisão da mulher ou “prescrição da conduta reprodutiva” (Barbosa e Lago, 1997).

Saber-se infectada pelo HIV é, sem dúvida, um dos fatores a serem considerados no processo de decisão reprodutiva, tanto na direção de ter como na de não ter filho. Em recente pesquisa, realizada em São Paulo com 1.068 mulheres infectadas pelo HIV, 2,6% das entrevistadas estavam grávidas e 13% desejavam ter filhos no futuro, sendo essa proporção maior entre as mais jovens: 39% entre as mulheres de 18-24 anos e 25% entre as de 25-29 anos (Paiva et al., 2002). Segundo as autoras, a maioria absoluta das mulheres relacionaram o desejo de filhos a sua “realização como mulher”, ao desejo de constituir uma família ou a não ter o número de filhos desejados.

A possibilidade de ter um filho pode ser ainda uma estratégia de lidar com a exclusão que a aids instala, já que a maternidade teria a capacidade de resgatar a identidade social, posta em questão pela infecção do HIV (Knauth, 1997). Nesse sentido, é uma forma de continuar dizendo e se sentindo: “sou uma mulher como as outras”. Isso é particularmente presente na fala das mulheres grávidas infectadas pelo vírus, além do medo e da angústia de que o filho seja HIV+.

Assim, ao pensar sobre a reprodução no contexto da aids, é importante contextualizar, primeiramente, o valor atribuído pela cultura à maternidade e, no caso específico das mulheres pertencentes aos setores populares, é necessário reconhecer a importância conferida por esse segmento social à família (Salem, 1981; Sarti, 1996; Heilborn e Prado, 1996). Ao constituir-se num dos principais valores do sistema simbólico desse grupo, torna-se um elemento fundamental de determinação da identidade social, de tal forma que as decisões a respeito de ter ou não filhos – mesmo no caso especifico das mulheres

(15)

portadoras do vírus da aids – vão estar de alguma maneira modeladas pelo valor-família (Knauth et al., 2002).

Fica portanto evidente que considerar as decisões referentes à procriação no contexto da aids, em uma perspectiva de direitos reprodutivos, implica considerar outros aspectos que ultrapassam, em muito, o nível de decisão individual; e que, nesse contexto específico, parecem inclusive assumir um peso muito maior, como é o caso do papel exercido pelos profissionais e serviços de saúde. Nessa direção, estudo que analisa as opções realizadas por gestantes HIV+ de São Paulo e Porto Alegre com relação à laqueadura tubária e ao tipo de parto sugere que “para essas mulheres, as decisões reprodutivas são, antes de tudo, um problema médico e que, embora elas possuam experiências e desejos nesse sentido, estes encontram-se submetidos, em última instância, à prescrição médica e à conduta adotada pelo serviço ao qual essas mulheres estão vinculadas” (Knauth et al., 2002).

Assim, se por um lado é inequívoca a importância da cultura na valorização da maternidade, como também das questões relativas ao relacionamento entre os parceiros – lugar onde as relações de poder de gênero ficam mais evidentes –, no caso das mulheres HIV+ é preciso levar especialmente em consideração o contexto institucional de apoio e atendimento à saúde.

Quando a opção e o desejo pela maternidade são explicitados pelas mulheres HIV+, estas não têm encontrado amparo institucional para viabilizar uma gestação com mínimo de risco. Muito se sabe e muito se fala sobre o uso de terapias anti-retrovirais para diminuir o risco da transmissão vertical; no entanto, existe um silêncio total com relação à possibilidade de sua utilização tornar mais segura a relação sexual entre casais que desejem ter filhos. Isso é cada vez mais importante se considerarmos que o uso das terapias combinadas vem possibilitando um convívio com a aids similar ao das doenças crônicas. A necessidade de desenvolver formas de viabilizar a concepção com risco mínimo de infecção pelo HIV constitui portanto uma questão central hoje em dia para começarmos a falar em direitos reprodutivos e em ações de saúde voltadas para seu reconhecimento.

(16)

Ao mesmo tempo, para muitas mulheres, ser soropositiva pode constituir razão fundamental para não ter mais filhos e essa opção também não encontra amparo institucional adequado. Como a legalidade do aborto permanece restrita aos casos em que a gravidez resulta de estupro ou oferece risco de vida para a mulher, em caso de gravidez resta às mulheres HIV+ seguir com a gravidez ou lançar mão de um aborto clandestino, portanto inseguro. Do mesmo modo, o acesso aos métodos contraceptivos não tem sido viabilizado nos serviços de atendimento especializado (SAE) onde, por questões ligadas a necessidades específicas de acompanhamento, a maioria das mulheres HIV+ é atendida. Este constitui, no momento, o modelo de atenção privilegiado dessas mulheres e, portanto, simplesmente encaminhá-las para outros serviços de planejamento familiar certamente não é a melhor opção.

Nesse sentido, os resultados de pesquisa anteriormente referida, realizada em três serviços selecionados nas cidades de Porto Alegre e São Paulo, (Barbosa et al., 2001), demonstram, com base em dados coletados entre mais de 400 gestantes infectadas pelo HIV e atendidas no pré-natal entre julho de 1999 e junho de 2000 nesses serviços, que respectivamente 67% e 56% das mulheres já sabiam da sua condição sorológica antes de ficarem grávidas e que a imensa maioria não desejava mais filhos, ficando evidente que algum tipo de acompanhamento e oferta de métodos poderia em princípio ter evitado aquela gestação. O rompimento ou o esquecimento de usar a camisinha constituía fala recorrente nos discursos, ao justificar a gravidez não-planejada. Acreditar que não poderia engravidar mais, devido a freqüentes atrasos menstruais ou mesmo suspensão da menstruação por longos períodos, em função da própria aids ou do uso de terapia, era a segunda justificativa mais recorrente. Do ponto de vista das mulheres, todas referiam apenas o uso da camisinha e desconheciam o recurso da contracepção de emergência. Do ponto de vista dos serviços, era evidente a insistência no uso do preservativo como método único, sem que fosse viabilizado acesso a outros métodos.

Com relação à realização da laqueadura pós-parto, o que vamos observar é um grande diferencial nas duas cidades. Embora, do ponto de vista do desejo de ser esterilizada seja muito alto e igual entre as

(17)

gestantes soropositivas dessas duas cidades, a proporção de laqueadura é muito maior em São Paulo (51%) do que em Porto Alegre(4,3%), e se encontra intimamente correlacionada ao parto cesáreo e ao tipo de serviço (Barbosa et al. (2002). Os dados disponíveis para a população em geral em São Paulo apontam para uma proporção de laqueadura na hora do parto próxima a 10% e 12%, segundo os trabalhos de respectivamente Vieira (2001) e Berquó (2001).

Assim, é fundamental considerar o papel dos serviços e da cultura médica local nas decisões dessas mulheres. Em São Paulo, onde a cultura médica é favorável à esterilização, parece existir uma facilitação e até estímulo, nos serviços. O fato de ser portadora do vírus é considerado como condição que inclui a mulher nas exceções previstas na lei, no sentido de que um segundo ato cirúrgico poderia significar risco para a saúde, possibilitando a laqueadura no momento do parto. A ausência de consenso e de normatização a respeito permite que cada serviço atue, em São paulo, segundo seu próprio entendimento da lei ou segundo sua rotina de atendimento. Já em Porto Alegre, onde a cultura médica é contrária à esterilização, o desejo das mulheres é desestimulado e as poucas laqueaduras foram decididas na hora do parto. Resumindo, a mulher vai ter seu desejo mais ou menos atendido em função do serviço que a atende (Knauth et al., 2002).

Portanto, é fundamental ressaltar a necessidade de organizar serviços de apoio às decisões reprodutivas dessas mulheres, que garantam o acesso a outros insumos além da camisinha, e apoio clínico, psicológico e educativo para sua utilização. E, ao fazer isso, reconhecer que não se trata simplesmente de facilitar o acesso à laqueadura nesses casos ou oferecer outros métodos contraceptivos, mas de inserir essa e outras questões em uma discussão sobre o direito de as mulheres infectadas tomarem decisões acerca de suas vidas reprodutivas, o que significa romper com a perspectiva ética de responsabilizar individualmente a gestante soropositiva e reconhecer que as mulheres são agentes morais e que suas decisões devem ser respeitadas. Caso contrário, corre-se o risco da laqueadura e o uso do condom se converterem em instrumentos de imposição de conduta reprodutiva.

(18)

Tratar as decisões e opções reprodutivas das mulheres infectadas em uma perspectiva de direitos reprodutivos significa reconhecer também que as mulheres que aparecem nas estatísticas de casos de aids são as mesmas que têm acesso reduzido aos serviços de saúde, à educação e ao trabalho. A aids, na verdade, só faz amplificar e dar tons mais dramáticos à exclusão. O reconhecimento desse contexto é fundamental para mudar o foco de atenção para questões éticas, que reconheçam a influência das circunstâncias da realidade individual das mulheres nas decisões, comportamentos e ações, passando a tratá-las como uma questão de direitos reprodutivos.

Transmissão sexual do HIV e possibilidades de prevenção

No contexto de feminização e pauperização, já aludido, as questões relativas à transmissão sexual tornaram-se centrais para o controle da epidemia. Além do incentivo ao uso do condom masculino, estratégias para ampliar as opções de proteção feminina vêm sendo traçadas e implementadas, dentre as quais o desenvolvimento de métodos e dispositivos de prevenção sob controle da mulher, como é o caso do condom feminino e dos microbicidas (Stein, 1990).

Basicamente, a idéia de que é necessário desenvolver e divulgar uma forma de prevenção de ISTs/aids controlada pelas mulheres advém da constatação de que, até muito recentemente, os únicos métodos existentes – o preservativo masculino e a monogamia mútua – eram dependentes da cooperação do parceiro. Essa constatação, por sua vez, é agravada pela assimetria de gênero vigente no interior das relações, que dificulta às mulheres negociarem os termos das trocas que aí se estabelecem. Violência, coerção e dependência econômica nas relações dificultam negociar o uso de preservativo ou romper um relacionamento que põe a mulher em risco. A existência de métodos controlados ou iniciados, como prefere Stein (1999), pela mulher, ainda que por si só não seja capaz de resolver inteiramente essas questões, possibilita mais alternativas e instrumentos de negociação.

Além disso, “cada encontro sexual, dependendo do parceiro e da circunstância, requer determinada estratégia de proteção, que muitas vezes é a única possível. Desse modo, para as mulheres não basta lançar

(19)

mão da mensagem ‘use camisinha (masculina)’ ” (Stein, 1999, p.8), nem tampouco insistir na possibilidade de estabelecer acordos de fidelidade ou de qualquer outra natureza. Em inúmeras situações, essas estratégias são impossíveis ou inaceitáveis e, nesses casos, a ampliação do leque de opções pode, de fato, diminuir o número de relações sexuais desprotegidas.

Embora seja verdade que o uso do condom masculino tem aumentado de maneira significativa em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, também é fato que esse aumento é maior na população mais jovem, e menor entre as parcerias estáveis (Berquó et al., 2000). Segundo Heise (1999), que procedeu a uma revisão de estudos sobre o assunto, o uso consistente de preservativos tem sido universalmente difícil nos relacionamentos estáveis (em geral menor do que 20%), mesmo após intensos e bem desenhados projetos de intervenção. Indivíduos dispostos a usar preservativo com seus parceiros eventuais mostram pouca ou nenhuma disponibilidade de usá-los nos seus relacionamentos estáveis. Assim, a introdução de novas alternativas de proteção poderia, em teoria, atingir outros grupos populacionais e aumentar a consistência de práticas sexuais mais seguras entre aqueles que já utilizam métodos de prevenção.

Se essa perspectiva parece em princípio ser promissora, as discussões em torno de sua viabilidade e efetividade têm trazido à tona várias questões que merecem ser sinalizadas. Assim, frente ao aumento de uso do preservativo masculino já referido, uma preocupação de implementadores de políticas e programas, bem como de alguns ativistas na área de saúde reprodutiva e aids, diz respeito à possibilidade de ocorrer, com a introdução de métodos controlados pela mulher, falta de estímulo e abandono do uso do condom masculino. Nesse caso, em vez de novos/as usuários/as, o aumento do leque de opções acarretaria simplesmente um fenômeno de migração. No entanto, as evidências existentes têm demonstrado que tal fato não ocorre. Estudo realizado na África do Sul, por exemplo, mostrou que, quando as mulheres tinham a sua disposição três métodos (preservativo feminino/masculino e óvulo de Nonoxinol-9) e oficina educativa (quatro sessões), o uso de qualquer método de proteção aumentou de 16% para 72%, não tendo sido encontrada evidência de migração. Além disso, na ausência do preservativo feminino e do óvulo,

(20)

14% das mulheres não teriam usado qualquer forma de prevenção (Heise, 1999). Um aumento na consistência de relações sexuais protegidas foi também demonstrado em recente estudo no Brasil, que pôs à disposição de usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS), além do condom masculino, também o feminino (Barbosa; Berquó e Kalckmann, 1999).

Uma segunda preocupação que vem sendo enfatizada refere-se à eficácia, no sentido de estar promovendo mudança de um método mais eficaz (o condom masculino) para outro menos eficaz ou de eficácia ainda não empiricamente comprovada (o condom feminino)vi. No entanto, do ponto de vista populacional, o nível de proteção conferido por um método de prevenção (o número de casos evitados) depende do produto de três fatores: sua eficácia, consistência e extensão de uso no interior de um grupo populacional (cobertura). Portanto, um método de baixa eficácia usado com altos níveis de consistência ofereceria a mesma proteção que um método de alta eficácia usado menos consistentemente.

Segundo Watts; Thompson e Heise (1998), um método 90% eficaz (como o condom masculino) usado em 20% dos atos sexuais oferece menos proteção do que:

 um método 70% eficaz usado em mais de 30% das vezes;  um método 50% eficaz usado mais de 40% das vezes;  um método 30% eficaz usado mais de 60% das vezes.

De maneira similar, em um determinado grupo populacional, a disseminação do uso de um método de baixa eficácia poderia impedir mais infecções pelo HIV do que a baixa cobertura de um método de alta eficácia. Assim, a ampliação do leque de opções, mesmo pela inclusão de métodos menos eficazes que o preservativo masculino, constituiria, em princípio, uma estratégia capaz de evitar novas infecções. Com base nessa idéia, propostas de intervenção mais criativas e próximas do dia-a-dia da população têm sido idealizadas e postas em prática, como é o caso do modelo hierárquico de prevenção (Gollub, 1997). Admitindo que apenas uma parcela da população quer ou pode abrir mão de um encontro sexual, esse modelo propõe que a usuária, de posse das informações necessárias acerca da eficácia de cada método, adote o método que melhor convier a determinada situação.

(21)

Nesse modelo, além do condom masculino e da abstinência sexual, outros métodos como a camisinha feminina e os microbicidasvii são incorporados às opções de escolha. Além desses, algumas experiências têm incorporado também outros métodos de barreira, como o diafragma e o coito interrompido. Assim, segundo o modelo abaixo (Diagrama 1), a abstinência sexual e sexo não-penetrativo, por serem os mais eficazes, se localizariam no topo. A seguir, situar-se-iam os preservativos e assim por diante. De maneira complementar, a contracepção de emergênciaviii, nos casos de uso inadequado, falha ou não-uso do método, poderia ser oferecida para diminuir o risco de gravidez indesejada nas situações referidas acima.

Diagrama 1 Modelo hierárquico de prevenção de ISTs/aids Mais eficaz Abstinência sexual Sexo não-penetrativo Condom masculino Condom feminino Microbicidas

Diafragma e capuz cervical com microbicidas

C o n t r a c e p ç ã o d e e m e r g ê n c i a Coito interrompido Menos eficaz

A idéia básica é a de, em vez de propugnar aderência ou adesão ao uso de um único método, enfatizar a aderência ao modelo, de forma a aumentar a chance de uso de pelo menos um dos métodos. As experiências em curso, como a do Departamento de Saúde do Estado de Nova Iorque, que adotou em 1992 o modelo hierárquico de prevenção, vêm demonstrando que é muito mais viável ser aderente ao modelo do que ao uso de um único método (Gollub, 1997).

Com base na idéia de que “qualquer proteção é melhor que nenhuma”, estimula-se a escolha de algum método de prevenção após a avaliação

(22)

do risco implícito naquela relação sexual, o que, por sua vez, levará em conta uma série de fatores, tais como o desejo, a capacidade de negociação com determinado parceiro, o risco de agressão e violência, a percepção de risco da infecção, entre outros.

Paralelamente, a maior flexibilidade contida nessa proposta permite que a necessidade ou não de dupla proteção, ou seja, proteção contra a gravidez indesejada e as ISTs/HIV, possa ser mais facilmente incorporada na formulação e operacionalização da estratégia. Isso é fundamental, já que os métodos contraceptivos considerados de alta eficácia, como o DIU, a contracepção hormonal e a laqueadura, não conferem qualquer proteção contra as ISTs/HIV. Por outro lado, é necessário considerar também que, em princípio, o uso consistente de dois métodos associados é mais difícil e incomum do que o uso de um único método com as duas funções.

A experiência internacional tem demonstrado que o preservativo masculino é mais facilmente incorporado quando oferecido e percebido como método contraceptivo, embora o risco de falha contraceptiva, por não uso ou uso inadequado, possa constituir ao mesmo tempo motivo de rejeição do método. Portanto, se o risco ou medo de uma gravidez indesejada for muito grande, o uso de um método contraceptivo adicional poderá ser necessário. Nesse sentido, o oferecimento da contracepção de emergência, nos casos de rompimento, utilização incorreta ou não-uso do preservativo, tanto masculino como feminino, constitui uma referência importante para ampliar a eficácia contraceptiva e conseqüentemente a aceitabilidade desses métodos.

Na realidade, a concepção geral de hierarquizar as opções de proteção não é nova e apresenta várias similaridades com os programas de redução de danos, já consolidados e testados em relação ao uso de drogas. Nestes, o objetivo da ação não é o risco em si, mas o dano e sua redução. Ao mesmo tempo, essas estratégias consideram necessariamente que os/as usuários/as dos programas de prevenção são sujeitos capazes de atuar e decidir, embora reconhecendo que as escolhas e decisões acontecem em sua grande maioria em contextos restritos (Strang, 1993)ix. Ao centrar a ênfase no dano resultante de determinado comportamento ou prática, torna a proposta mais viável e próxima da realidade, ao ampliar o leque de

(23)

possibilidades ou instrumentos estratégicos de prevenção e, ao mesmo tempo, permitir flexibilidade no seu uso em função de contextos específicos.

No Brasil, no entanto, se essa discussão já constitui uma realidade com relação ao uso de drogas – contexto no qual se defende a distribuição e a limpeza de seringas – o mesmo não se verifica quando se trata do risco de infecção associada à prática sexual. Nesse campo, essa discussão praticamente não existe ou engatinha e, em geral, a estratégia preventiva, tanto governamental como não-governamental, tem-se limitado à indicação do uso do preservativo masculino e, mais recentemente, também do feminino.

Em princípio, a idéia de admitir a existência de uma diversidade de comportamentos e desejos e, ao mesmo tempo, a necessidade de tornar sua vivência minimamente prejudicial à saúde é extremamente bem-vinda e oportuna, em especial por se tratar de práticas ligadas ao exercício da sexualidade.

Para tanto é fundamental que se diversifiquem as tecnologias de prevenção disponíveis para as mulheres, permitindo-lhes maior controle sobre as decisões e experiências relativas a sua sexualidade. Como mencionado anteriormente, existem controvérsias a respeito do que seriam tecnologias sob controle da mulher, já que em algum grau a maioria dos métodos existentes depende da cooperação do parceiro. De qualquer forma, e independente da maneira como se conceitue, há na atualidade duas opções de prevenção que conferem à mulher uma ampliação de sua capacidade de proteção e algum grau de controle sobre a mesma e que serão tratados a seguir: os microbicidas e o preservativo feminino.

(24)

Microbicidas: uma tecnologia ainda em pesquisa

Microbicida é qualquer substância capaz de reduzir substancialmente a transmissão de ISTs, quando aplicada no interior da vagina. Sua grande vantagem em relação aos preservativos é o fato de constituir um método que poderia ser utilizado sem conhecimento do parceiro. Outras vantagens apontadas para o desenvolvimento desses produtos seriam um custo provávelmente menor e de acesso mais fácil. Poderiam estar disponíveis no balcão das farmácias e supermercados ou serem distribuídos, como os preservativos, por agentes educativos.

No entanto, persistem vários e difíceis desafios para se chegar a um produto pronto para ser usado pelas mulheres, que variam de questões ligadas à aceitabilidade e eficácia do método ao tipo de cobertura e espectro de atuação desejados, passando por outras relativas a financiamento e ao desenho dos estudos clínicos. Muito também se tem discutido e polemizado a respeito.

Um dos desafios que tem suscitado polêmica refere-se à necessidade de desenvolver microbicidas não-espermicidas e o fato de essa questão ser ou não prioritária para o desenvolvimento do produto. Por um lado, seu desenvolvimento possibilitaria que mulheres também pudessem ter os filhos desejados ou esperados sem o risco de infecção pelo HIV, o que poderia ser particularmente importante em sociedades nas quais a fecundidade e os filhos são culturalmente valorizados e que, ao mesmo tempo, convivem com uma alta prevalência da infecção pelo HIV. Por outro lado, enfatiza-se que a gravidade da infecção pelo HIV é de tal ordem que a prioridade deveria ser definida unicamente pela possibilidade de desenvolver o que for mais factível no menor espaço de tempo.

Outro desafio refere-se à possibilidade de os microbicidas terem um amplo espectro de atuação com relação às ISTs, ou seja, proporcionar proteção não só contra o vírus da aids, mas também para outros agentes. Atualmente, está devidamente comprovada a associação entre várias doenças sexualmente transmissíveis não só com a infecção pelo HIV, como também com a infertilidade, a gravidez ectópica e o câncer cervical, tornando o desenvolvimento de microbicidas com amplo espectro de atuação um instrumento fundamental para a melhoria da

(25)

saúde reprodutiva das mulheres. Embora exista consenso quanto à necessidade de um produto com amplo espectro, mantém-se a polêmica sobre o que é prioritário. Advoga-se, por um lado, que os recursos são insuficientes para serem dispersados no desenvolvimentos de vários produtos e, por outro, que as chances de se chegar a um produto final é sempre maior quando se tem várias possibilidades sendo testadas. Nesse caso, portanto, a questão seria aumentar o investimento nessa linha de pesquisa. Concretamente, muitos produtos-candidatos em estudo, além de virucidas, são também microbicidas e poderiam em princípio proteger contra várias ISTs.

Um terceiro desafio, provavelmente o maior, que tem suscitado discussão acirrada e sobre a qual não se consegue construir consenso mundial, diz respeito à capacidade de desenvolver estudos clínicos metodologicamente corretos ao mesmo tempo do ponto de vista científico e ético. Nesse sentido, a polêmica tem se centrado em torno da definição de padrão ouro e sua relação entre o best proven (o melhor tratamento comprovadamente eficaz), e best attainable (o melhor tratamento disponível). De acordo com os princípios éticos de pesquisa em seres humanos, estabelecidos em Helsinque, a participação de qualquer ser humano em um estudo clínico deve estar respaldada por um padrão, denominado de ouro, que define, entre outras coisas, que ninguém pode ser submetido a um risco que poderia ter sido evitado, tendo como referência o conhecimento já produzido a respeito e as tecnologias de prevenção e de tratamento existentes. Além disso, prevê também que, se for causado algum tipo de dano à saúde, conseqüente à pesquisa, a instituição e o pesquisador têm o dever de assegurar tanto assistência integral, como indenização pelos danos causados. A questão que se coloca é se o padrão ouro adotado deve ser o do país que financia o estudo, em geral do Primeiro Mundo (nesse caso o padrão seria o best proven), ou daquele onde está sendo realizada a pesquisa, mais comumente um país em desenvolvimento (o padrão seria o best attainable), onde a incidência de ISTs/aids é maior e, portanto, a possibilidade de avaliar a eficácia de uma determinada tecnologia poderia ser teoricamente mais “fácil e rápida”.

Embora a realização de estudos clínicos em países pobres envolva múltiplas e complexas questões – que, tendo em vista o objetivo deste

(26)

trabalho, não poderão ser tratadas em profundidade – em relação ao desenvolvimento dos microbicidas essas discussões têm se desdobrado em duas grandes polêmicas que merecem ser pontuadas. A primeira diz respeito ao caráter ético de testar microbicidas em participantes que não estejam usando também o preservativo e suas implicações em termos de tamanho de amostra, custo e tempo para se chegar a algum resultado conclusivo. A segunda grande discussão refere-se à garantia de acesso à assistência integral, inclusive à terapia anti-retroviral, para as mulheres e parceiros que vierem a se infectar durante o estudo, e suas implicações em termos de custo da pesquisa. Dada a importância dessas questões e os desafios colocados, é fundamental promover seu debate tendo em vista a necessidade de tomada de posição e decisão que ativistas e pesquisadores necessariamente terão que fazer, para que os microbicidas possam ser desenvolvidos no menor espaço de tempo e dentro de padrões eticamente aceitáveis. No Brasil, o consenso firmado é o de adotar como padrão o best proven, com todas as implicações em termos de prevenção e assistência.

Essas discussões são não só oportunas como fundamentais, já que, segundo Heise (1999), será necessário uma grande pressão política, que acarrete uma ampliação dos investimentos públicos nessa área, para que as mulheres tenham um novo instrumento de prevenção num futuro próximo. Estima-se que custaria aproximadamente US$20 milhões para descobrir um novo componente e finalizar a fase IIx; a fase III teria um custo adicional de US$20-30 milhões, segundo a autora. Diante da certeza de que um novo microbicida só chegará ao mercado se os países mais ricos aumentarem seus investimentos nas pesquisas, têm-se mobilizado alguns (poucos) grupos de mulheres que, trabalhando em uma coalizão, encabeçam uma campanha pelo desenvolvimento dos microbicidas. Um abaixo-assinado tem circulado amplamente, solicitando ampliação dos investimentos no desenvolvimento de métodos controlados pela mulher, com ênfase nos microbicidasxi.

Estima-se que existam, em 2002, 56 produtos em estudo, em diferentes fases de desenvolvimento: 34 em fase pré-clinica, 15 em fase I, 4 em fase II e 3 em fase II/III (Van de Wijgert e Coggins, 2002). Além desses estudos, diferentes formas de apresentação, tais como gel, creme, filme, supositório, esponja, também estão sendo testadas. Taxas

(27)

diferentes de aceitabilidade e mesmo de efetividade estão associadas a distintas formas de apresentação, já que cada uma possui características próprias com relação à capacidade de cobertura, difusão intravaginal e facilidade de uso. O filme, por exemplo, poderia ser considerado por muitas mulheres como o mais prático de usar: é discreto, de fácil colocação e é menos lubrificado. No entanto, sua capacidade de difusão e de cobertura vaginal é provavelmente menor do que as outras formas em estudo, implicando menor efetividade.

Os microbicidas atualmente em estudo podem ser agrupados, segundo seu mecanismo de atuação, em quatro categorias, sendo que 35 produtos possuem também ação contraceptiva, além de microbicida. O primeiro grupo de microbicidas se caracteriza por serem derivados de substâncias naturais e/ou funcionarem com o auxílio do mecanismo de defesa natural da vagina. Em outras palavras, atuam mantendo a ecologia vaginal, ou melhor ainda, promovendo seu equilíbrio. É o caso do Buffer gel e do Acid form, cujo mecanismo de atuação se faz ao manter a acidez natural da vagina mesmo na presença do sêmen, que é alcalino. Normalmente, o HIV não sobrevive ao ambiente ácido existente na vagina. No entanto, durante a relação vaginal, o sêmen torna alcalino o ambiente vaginal, que é favorável ao HIV e a outros agentes causadores de ISTs. Assim, ao manter o pH ácido, esses produtos criam uma barreira física que inibe a passagem desses agentes para o interior do epitélio vaginal e cervical. O Buffer gel é um dos produtos que devem iniciar fase II/III em 2002.

Outro componente que atua de maneira similar é o Lactobacillus Crispatus, que atua recolonizando a flora vaginal com lactobacilos produtores de peróxido de hidrogênio, substância que normalmente ajuda a manter o pH vaginal ácido. Quando a flora vaginal está desequilibrada, os lactobacilos que normalmente habitam a vagina sadia morrem ou diminuem de quantidade, permitindo que outros agentes causadores de doenças aí se instalem.

Uma segunda linha de atuação é constituída por substâncias que, quando aplicadas vaginalmente, formariam um “envoltório”, revestindo o epitélio vaginal e bloqueando a fixação do agente patógeno à superfície celular. É o caso do Cyanovirin-N, que é um bloqueador especifico do

(28)

HIV, e do Pro 2000, Carraguard, Ushercell e Emmenele, que são polímeros sintéticos e, por não serem bloqueadores específicos do HIV, poderiam prevenir várias ISTs. O Pro 200 e o Carraguard estão prontos para entrar em fase II/III em 2002 ou 2003.

Uma terceira linha de investigação é constituída pelos anti-retrovirais de atuação vaginal local, como o PMPA gel. Uma vez absorvido pelo epitélio vaginal, o PMPA bloquearia o vírus e sua multiplicação no interior das células que compõem a camada superficial da vagina. Uma das principais polêmicas aqui é o receio do estabelecimento de resistência ao medicamento, cujo uso poderia vir a ser necessário se a mulher estiver ou ficar infectada pelo HIV, além do fato de consistir em monoterapia, quando tem sido demonstrado que o mais efetivo são as terapias combinadas. Esse produto se encontra atualmente em fase I/II. Paralelamente, microbicidas compostos de anticorpos humanos ativos contra o HIV e outros agentes causadores de ISTs, produzidos pela engenharia genética, constituem outra linha de desenvolvimento que vem sendo testada. Nesse caso, anticorpos anti-HIV seriam aplicados intravaginalmente e atuariam localmente impedindo a entrada do vírus no corpo humano.

Finalmente, a quarta linha é constituída por componentes detergentes ou surfactantes, cujo mecanismo de atuação é bastante diverso do descrito até agora. As substâncias detergentes atuam rompendo as membranas celulares e os envoltórios virais, razão pela qual, quando usadas repetida e diariamente, podem ocasionar também uma reação irritativa em mucosas. Na verdade, são estes os únicos microbicidas atualmente disponíveis no mercado para uso. O nonoxinol-9, ou simplesmente N-9, é o ingrediente ativo mais comum, presente em vários produtos espermicidas usados para fins contraceptivos. Atuam rompendo a membrana celular do espermatozoíde, tornando-o inativo. Outros exemplos são o octoxinol-9, o cloridrato de benzalcônio.

Nos últimos anos, foram realizados alguns estudos com a finalidade de estabelecer a eficácia desses ingredientes, e em particular do N-9, na prevenção das infecções sexualmente transmissíveis. No entanto, esta ainda não foi completamente estabelecida, persistindo muitas dúvidas e controvérsias a respeito. Segundo Heise (1999), existe um razoável

(29)

consenso de que o N-9 proporciona alguma proteção contra a gonorréia e a clamídia, mas não com relação ao grau de proteção conferido. Com base em metanálise, pesquisadores têm chegado a estimativas de efeito protetor que variam de 15-25% (Roddy et al., 1998) a 40-50% (Cook e Rosemberg, 1998). Ou seja, na primeira alternativa, de 100 mulheres que potencialmente contrairiam uma infecção, 15 a 25 estariam protegidas se usassem N-9. Na segunda alternativa, de 40 a 50 estariam protegidas.

Com relação ao HIV, a controvérsia é maior ainda, tendo se convertido em assunto de grande polêmica na XIII Conferência Internacional de Aids, realizada em julho de 2000, na África do Sul. Embora sua eficácia in-vitro esteja comprovada – o N-9 mata rapidamente o HIV nos testes de laboratório, como também proporciona alguma proteção nos testes em modelos animais – no que se refere ao seu efeito em seres humanos, os dados disponíveis são controvertidos e de difícil interpretação, pois as dosagens e formulações (gel, filmes, cremes, etc.) utilizadas variam bastante nos estudos. Hoje em dia, sabe-se que tanto o tipo de formulação quanto a dosagem são questões fundamentais para a determinação do efeito protetor do N-9. Dosagens muito altas podem irritar e provocar ulcerações na mucosa vaginal e formulações do tipo filmes podem não promover um bom revestimento da parede vaginal, contribuindo para uma menor efetividade. Assim, o que se busca é uma combinação entre dosagem e formulação que possibilite um amplo revestimento vaginal, pouca ou nenhuma irritação e ampla capacidade virucida.

Embora houvesse um razoável consenso de que formulações de N-9 a 2,5% são bem toleradas, se usadas uma vez por dia ou menosxii – fato confirmado também por ensaios clínicos de fase I e II realizados em humanos para testar a segurança do método – estudos de fase III não têm conseguido comprovar sua eficácia na prevenção da transmissão sexual do HIV. Um primeiro estudo, conduzido em 1994-96, com filme contraceptivo contendo 72 mg de N-9, não encontrou qualquer efeito protetor contra o HIV, clamídia e gonorréia entre trabalhadoras do sexo na República dos Camarões, mas também não demonstrou efeitos adversos (Roddy et al., 1998).

A recente divulgação, na XIII Conferência Internacional de Aids, dos resultados preliminares de um estudo (fase III) de efetividade do Advantage

(30)

24, um gel “bioadesivo” contendo 52 mg de N-9, financiado pela UNAIDS, mudou completamente o panorama, no sentido de questionar não só a possibilidade de uso desse microbicida como método de prevenção de ISTs/aids, como a continuidade dos estudos com microbicidas contendo N-9. Resumidamente, o referido estudo encontrou uma maior incidência de novas infecções pelo HIV no grupo de usuárias de N-9 do que entre aquele usando placebo, ambos constituídos por trabalhadoras do sexo em quatro sites na África e dois na Tailândia (Van Damme, 2000). O fato, atribuído ao maior número de lesões vaginais causadas pelo N-9, gerou um intenso debate e posições divergentes. Dado que a capacidade irritativa do N-9 é dose-dependente, a grande dúvida é quão conclusivo os resultados deste estudo podem ser considerados, já que as participantes do estudo eram trabalhadoras do sexo, portanto sua exposição ao produto era em geral muito mais freqüente, e conseqüentemente as lesões vaginais, explicando assim os achados. De qualquer forma, a proposta de interromper os outros dois estudos fase III em andamento com o Conceptrol gel, que contém 100 mg de N-9, defendida por Van Damme na Conferência, foi imediatamente aceita por alguns grupos de ativistas, como o Act-up, enquanto outros defenderam posturas menos radicais, como o global Campaign for STI/HIV Prevention Alternatives for Women, que propõe aguardar dados originados de análises mais definitivas do referido estudo, já que em Abidjan, um dos sites da pesquisa, a associação negativa entre uso de microbicida e novas infecções pelo HIV não foi encontrada e não havia sido levada em consideração na análise a freqüência de relações sexuais.

Em termos de estratégias de prevenção, a questão que se coloca é: as evidências já existentes são suficientes para contraindicar o nonoxinol-9 como um método que confere proteção contra o HIV? Até a XIII Conferência Internacional de Aids, seria possível afirmar que a resposta dessa pergunta dependeria muito da perspectiva estratégica em pauta. Se a idéia de redução de dano fosse o eixo norteador das ações, a recomendação do uso do nonoxinol-9, associado ou não ao diafragma, faria todo sentido, com base no conceito de modelo hierárquico de prevenção, como forma de reduzir o risco de infecção e/ou gravidez, em situações nas quais o uso dos preservativos não é possível ou viável, tal como já explicitado. No entanto, frente à possibilidade de o N-9 aumentar o risco de infecção pelo HIV, a resposta ao menos provisoriamente é sim, ou seja, os resultados

Referências

Documentos relacionados

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Assim, cumpre referir que variáveis, como qualidade das reviews, confiança nos reviewers, facilidade de uso percebido das reviews, atitude em relação às reviews, utilidade

A presente dissertação é desenvolvida no âmbito do Mestrado Profissional em Gestão e Avaliação da Educação (PPGP) do Centro de Políticas Públicas e Avaliação

É importante destacar também que, a formação que se propõem deve ir além da capacitação dos professores para o uso dos LIs (ainda que essa etapa.. seja necessária),

O Programa de Avaliação da Rede Pública de Educação Básica (Proeb), criado em 2000, em Minas Gerais, foi o primeiro programa a fornecer os subsídios necessários para que

Este capítulo tem uma abordagem mais prática, serão descritos alguns pontos necessários à instalação dos componentes vistos em teoria, ou seja, neste ponto

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem

A tem á tica dos jornais mudou com o progresso social e é cada vez maior a variação de assuntos con- sumidos pelo homem, o que conduz também à especialização dos jor- nais,