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1. RESUMO 2. INTRODUÇÃO

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Academic year: 2021

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1. RESUMO

O presente artigo estuda a importância que tantos povos de tradição oral têm dado a registros escritos e busca desprender-se da noção imediata de que este interesse parte de uma necessidade de sua preservação cultural. Dada a abertura e a afeição por outras perspectivas e assimilações sobre a adesão de povos ágrafos à palavra escrita, busca-se explorar as porosidades que a escrita e a oralidade têm com​ ​a​ ​memória​ ​social.

2. INTRODUÇÃO

As relações entre sociedade e escrita passaram a ser sistematicamente estudadas em meados do século XVII, “quando o confronto de europeus com o que eles percebiam como ‘povos sem escrita’ gerou formas de pensar essa diferença como deficiência” (Gnerre, 1987 apud Testa, 2008, p.300). O processo civilizador, definido por Norbert Elias​(1994) como uma mudança na conduta e nos sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica – a da lógica etnocêntrica de restrição e transposição do comportamento das pessoas sob uma perspectiva europeia –, acontecia por meio de práticas de violências tanto físicas quanto simbólicas. No que diz respeito ao olhar destinado a povos de tradição oral, estabelecia-se “uma espécie de linha imaginária, evolutiva e progressiva na qual situavam diversas sociedades segundo a utilização ou não da escrita alfabética” (Gnerre,​ ​1987​ ​apud​ ​Testa,​ ​2008,​ ​p.300).

A disseminação mundial do ato de escrever providenciou a elaboração de crenças que, embora infundadas, foram bastante difundidas e contribuíram largamente para a marginalização da oralidade. Dentre elas, a convicção de que a palavra transposta no papel teria um valor de verdade e confiança incontestáveis. Outra crença comum instalada nesse processo é a de supostas clareza e precisão apostadas no escrito. Convencionou-se, então, que “a oralidade, com suas pausas, improvisos e hesitações, seria o lugar do impreciso, e, por isso mesmo, o lugar preferido dos equívocos” (Cavalcanti et​ ​al​,​ ​2005,​ ​p.9).

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Em contato com a sociedade colonizadora e dominante, os povos indígenas no Brasil, tradicionalmente ágrafos, “rapidamente perceberam a necessidade de também dominarem a escrita para poder minimizar a situação de desvantagem em que foram historicamente colocados” (Cavalcanti ​et al​, 2005, p.8). Se “as populações indígenas encontram-se hoje onde a predação e a espoliação permitiram que ficassem” (Cunha, 2012, p.125), a relevância de ler e escrever nasce a partir “do fato de que a escrita pode constituir um instrumento de defesa potencialmente importante no pós-contato [com os não indígenas].” (Cavalcanti et​ ​al​,​ ​2005,​ ​p.9).

3. OBJETIVOS

Observar como os registros escritos vêm ganhando espaço e relevância entre os​ ​povos​ ​indígenas,​ ​que​ ​constroem,​ ​tradicionalmente,​ ​memória​ ​oral.

4. METODOLOGIA

Para cumprir os objetivos dados, esta pesquisa fundamenta-se

primordialmente na ampla revisão e pesquisa bibliográfica, recorrendo a estudos interdisciplinares de áreas como a Antropologia, Comunicação e Psicologia Social. Também foram feitas diversas conversas com antropólogos que serviram como suporte para pensar o tema e indicaram caminhos a serem percorridos na consulta bibliográfica.

5. DESENVOLVIMENTO

Se ao estudar o surgimento da escrita na história, associamos a ele, quase que instantaneamente, a necessidade de enraizamento. Essa atribuição imediata está contagiada, em boa parte, por uma construção ocidental da utilidade de produzir lembranças. Vincular a escrita unilateralmente à memória ou imaginar que a reminiscência só opera por meio de palavras escritas é encargo da obviedade e das associações​ ​automáticas​ ​e​ ​mecânicas​ ​do​ ​senso​ ​comum.

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Não se deve, no entanto, desprezar ou negar a conveniência da memória, que possui “​uma função decisiva na existência, já que ela permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso atual das representações”​ ​(Bósi,​ ​2003,​ ​p.36).

Olhando a rememoração sob o prisma de Benjamin (apud Bósi, 2003), ela é uma retomada salvadora do passado e este, a rigor, “uma alteridade absoluta, que só se torna cognoscível mediante a voz do narrador” (Bósi, 2003, p.61). Diante disso, narrativa e memória entrecruzam-se à medida em que a primeira fia o tecido da​ ​lembrança​ ​da​ ​vida.

Se a sociedade vem enfrentando a decadência da narrativa, prevista por Walter Benjamin em 1936, porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis e porque “o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos” (Benjamin, 1994, p.202), “convém verificar se a perda do dom de narrar é sofrida por todas as classes sociais; mas não foi a classe dominada que fragmentou o mundo e a experiência; foi a outra classe que daí extraiu sua energia, sua força e o conjunto de seus bens” (Bósi, 2003,​ ​p.25).

Verificamos, a partir do que foi explorado acima, que a relação entre escrita e memória não é linear. Não parece surpreendente dizer que a aquisição da palavra escrita não implica em qualquer garantia de que o conteúdo transposto no papel será lembrado. E se o suporte não atinge instantaneamente a reminiscência, a forma narrativa se aproxima desta função por natureza, uma vez que ela “conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver” (Benjamin, 1994, p.204).

Walter Benjamin ainda nos ajuda a complexificar a relação entre memória e escrita quando diz que “entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (Benjamin, 1994, p. 198). A relação entre narrativa e oralidade, por sua vez, pode ser vista como a de que “ambas se desenvolveram no tempo, falam no tempo e do tempo, recuperando na própria voz o fluxo circular que a memória abre do presente para​ ​o​ ​passado​ ​e​ ​deste​ ​para​ ​o​ ​presente”​ ​(Bósi,​ ​2003,​ ​p.45).

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Sendo assim, os pressupostos de que os registros escritos de conhecimentos indígenas são apenas caminhos de preservação e valorização culturais merecem ser colocados em suspensão, “de forma que possamos vê-los e revê-los partindo de outros​ ​lugares​ ​ou​ ​perspectivas”​ ​(Testa,​ ​2008,​ ​p.293).

O discurso de Davi Kopenawa, do povo Yanomami, é mais um sinal que aponta para a direção de que a necessidade da escrita entre os povos indígenas não​ ​surge​ ​diminutamente​ ​da​ ​carência​ ​de​ ​fazer​ ​lembrar:

Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória​ ​é​ ​longa​ ​e​ ​forte.​ ​(Kopenawa​ ​et​ ​al,​ ​2015,​ ​p.75)

Em depoimento dado em 2006, Verá Mirim, da etnia Guarani Mbya, conta: “Xeramoi [nosso pajé] sempre fala para nós que as palavras dos livros duram pouco. (...) O papel rasga, queima ou se molha na água e derrete, já a palavra que é falada dentro de cada um não morre” (Testa, 2008, p.293). E, se a esta palavra é atribuído um caráter imortal, é porque “a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração” (Benjamin, 1994, p.211). Assumindo o papel de intermediária cultural entre gerações, a memória “deixa de ter um caráter de​ ​restauração​ ​e​ ​passa​ ​a​ ​ser​ ​a​ ​memória​ ​geradora​ ​do​ ​futuro”​ ​(Bósi,​ ​2003,​ ​p.66).

6. RESULTADOS

Se para os não indígenas, quando se fala em formas de fazer lembrar, a escrita é algo que automaticamente vem à tona, para os povos indígenas a memória é algo que não depende deste rastro, do residual, da marca deixada no papel. A função​ ​geracional​ ​da​ ​narrativa​ ​se​ ​encarrega​ ​de​ ​manter​ ​acesa​ ​a​ ​chama​ ​da​ ​memória.

A necessidade da escrita entre povos tradicionalmente ágrafos, como resultado do processo de contato com os não indígenas e suas instituições, surgiu, portanto, por várias situações que convergem principalmente no f​ortalecimento da identidade​ ​étnica​ ​do​ ​povo,​ ​dado​ ​que:

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A língua é o instrumento mais forte de identificação e luta das comunidades indígenas, pois por fazer parte do indivíduo (nós somos o que falamos) e identificar sua origem (fazemos parte da comunidade que fala nossa língua), ela torna a pessoa um agente que leva a comunidade​ ​consigo,​ ​representando​ ​o​ ​coletivo​ ​do​ ​qual​ ​faz​ ​parte.​ ​(Pacheco,​ ​2006,​ ​p.​ ​825)

E a necessidade de enraizamento não é vista, aqui, como nenhuma forma de amarra, mas como um vínculo natural com o passado do qual se extrai forças para a formação e a renovação da identidade (Bósi, 2003), identidade esta que é “simplesmente a percepção de uma continuidade, de um processo, de um fluxo: em suma,​ ​uma​ ​memória”​ ​(Cunha,​ ​2012,​ ​p.120).

7. CONSIDERAÇÕES​ ​FINAIS

Num contexto em que os direitos à igualdade dos povos indígenas foram entendidos como deveres e a essência política desta igualdade foi dissolvida em nome da homogeneidade cultural, o direito passou a significar um dever de assimilação envolto em equivalências perversas: “integração e desenvolvimento passaram a sinônimos de assimilação cultural, discriminação e racismo a reconhecimento​ ​das​ ​diferenças”​ ​(Cunha,​ ​2012,​ ​p.129).

O interesse pela escrita torna-se, a partir daí, mais uma ferramenta para resistir: “a alfabetização quer assimilar o índio; o índio quer assimilar a alfabetização, mas para não ser assimilado.” (Meliá apud​​ ​Cavalcanti​ ​​et​ ​al​,​ ​2005,​ ​p.11).

8. FONTES​ ​CONSULTADAS

BENJAMIN, Walter. ​O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.

In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:​ ​Brasiliense,​ ​1994,​ ​p.​ ​197-221.

BÓSI, Ecléa. ​O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê​ ​Editorial,​ ​2003.

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CAVALCANTI, Marilda do Couto; MAHER, Terezinha de Jesus M. ​O índio, a leitura e​ ​a​ ​escrita​ ​-​ ​O​ ​que​ ​está​ ​em​ ​jogo?​​ ​Cefiel/IEL/Unicamp,​ ​2005.

CUNHA,​ ​Manuela​ ​Carneiro​ ​da.​ ​​Índios​ ​no​ ​Brasil.​​ ​São​ ​Paulo:​ ​Claro​ ​Enigma,​ ​2012.

CUNHA,​ ​Manuela​ ​Carneiro​ ​da.​ ​​Cultura​ ​com​ ​aspas.​​ ​São​ ​Paulo:​ ​Ubu​ ​Editora,​ ​2017.

ELIAS, Norbert. ​O processo civilizador - volume 1: Uma história dos costumes.

Tradução Ruy Jungman; revisão e apresentação, Renato Janine Ribeiro – 2ª edição –​ ​Rio​ ​de​ ​Janeiro:​ ​Jorge​ ​Zahar​ ​Ed.,​ ​1994.

PACHECO, Frantomé B. ​Palavra escrita e produção de textos em Ikpeng (Karíb): uma reflexão sobre a origem e o estatuto da escrita em uma sociedade de tradição oral. In: Estudos linguísticos XXXV, p. 818-827, 2006. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

- Universidade de São Paulo. Disponível em:

<http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/artigo%3Apacheco-2006/pacheco_2006 _palavra.pdf>.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. ​A queda do céu: Palavras de um xamã

yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de

Castro​ ​–​ ​1ª​ ​edição​ ​–​ ​São​ ​Paulo:​ ​Companhia​ ​das​ ​Letras,​ ​2015.

TESTA, Adriana Queiroz. ​Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e conhecimento entre os Guarani Mbya. Universidade de São Paulo, Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n.2, p. 291-307, maio/agosto 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-9702200800020000>.

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