1. RESUMO
O presente artigo estuda a importância que tantos povos de tradição oral têm dado a registros escritos e busca desprender-se da noção imediata de que este interesse parte de uma necessidade de sua preservação cultural. Dada a abertura e a afeição por outras perspectivas e assimilações sobre a adesão de povos ágrafos à palavra escrita, busca-se explorar as porosidades que a escrita e a oralidade têm com a memória social.
2. INTRODUÇÃO
As relações entre sociedade e escrita passaram a ser sistematicamente estudadas em meados do século XVII, “quando o confronto de europeus com o que eles percebiam como ‘povos sem escrita’ gerou formas de pensar essa diferença como deficiência” (Gnerre, 1987 apud Testa, 2008, p.300). O processo civilizador, definido por Norbert Elias(1994) como uma mudança na conduta e nos sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica – a da lógica etnocêntrica de restrição e transposição do comportamento das pessoas sob uma perspectiva europeia –, acontecia por meio de práticas de violências tanto físicas quanto simbólicas. No que diz respeito ao olhar destinado a povos de tradição oral, estabelecia-se “uma espécie de linha imaginária, evolutiva e progressiva na qual situavam diversas sociedades segundo a utilização ou não da escrita alfabética” (Gnerre, 1987 apud Testa, 2008, p.300).
A disseminação mundial do ato de escrever providenciou a elaboração de crenças que, embora infundadas, foram bastante difundidas e contribuíram largamente para a marginalização da oralidade. Dentre elas, a convicção de que a palavra transposta no papel teria um valor de verdade e confiança incontestáveis. Outra crença comum instalada nesse processo é a de supostas clareza e precisão apostadas no escrito. Convencionou-se, então, que “a oralidade, com suas pausas, improvisos e hesitações, seria o lugar do impreciso, e, por isso mesmo, o lugar preferido dos equívocos” (Cavalcanti et al, 2005, p.9).
Em contato com a sociedade colonizadora e dominante, os povos indígenas no Brasil, tradicionalmente ágrafos, “rapidamente perceberam a necessidade de também dominarem a escrita para poder minimizar a situação de desvantagem em que foram historicamente colocados” (Cavalcanti et al, 2005, p.8). Se “as populações indígenas encontram-se hoje onde a predação e a espoliação permitiram que ficassem” (Cunha, 2012, p.125), a relevância de ler e escrever nasce a partir “do fato de que a escrita pode constituir um instrumento de defesa potencialmente importante no pós-contato [com os não indígenas].” (Cavalcanti et al, 2005, p.9).
3. OBJETIVOS
Observar como os registros escritos vêm ganhando espaço e relevância entre os povos indígenas, que constroem, tradicionalmente, memória oral.
4. METODOLOGIA
Para cumprir os objetivos dados, esta pesquisa fundamenta-se
primordialmente na ampla revisão e pesquisa bibliográfica, recorrendo a estudos interdisciplinares de áreas como a Antropologia, Comunicação e Psicologia Social. Também foram feitas diversas conversas com antropólogos que serviram como suporte para pensar o tema e indicaram caminhos a serem percorridos na consulta bibliográfica.
5. DESENVOLVIMENTO
Se ao estudar o surgimento da escrita na história, associamos a ele, quase que instantaneamente, a necessidade de enraizamento. Essa atribuição imediata está contagiada, em boa parte, por uma construção ocidental da utilidade de produzir lembranças. Vincular a escrita unilateralmente à memória ou imaginar que a reminiscência só opera por meio de palavras escritas é encargo da obviedade e das associações automáticas e mecânicas do senso comum.
Não se deve, no entanto, desprezar ou negar a conveniência da memória, que possui “uma função decisiva na existência, já que ela permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso atual das representações” (Bósi, 2003, p.36).
Olhando a rememoração sob o prisma de Benjamin (apud Bósi, 2003), ela é uma retomada salvadora do passado e este, a rigor, “uma alteridade absoluta, que só se torna cognoscível mediante a voz do narrador” (Bósi, 2003, p.61). Diante disso, narrativa e memória entrecruzam-se à medida em que a primeira fia o tecido da lembrança da vida.
Se a sociedade vem enfrentando a decadência da narrativa, prevista por Walter Benjamin em 1936, porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis e porque “o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos” (Benjamin, 1994, p.202), “convém verificar se a perda do dom de narrar é sofrida por todas as classes sociais; mas não foi a classe dominada que fragmentou o mundo e a experiência; foi a outra classe que daí extraiu sua energia, sua força e o conjunto de seus bens” (Bósi, 2003, p.25).
Verificamos, a partir do que foi explorado acima, que a relação entre escrita e memória não é linear. Não parece surpreendente dizer que a aquisição da palavra escrita não implica em qualquer garantia de que o conteúdo transposto no papel será lembrado. E se o suporte não atinge instantaneamente a reminiscência, a forma narrativa se aproxima desta função por natureza, uma vez que ela “conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver” (Benjamin, 1994, p.204).
Walter Benjamin ainda nos ajuda a complexificar a relação entre memória e escrita quando diz que “entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (Benjamin, 1994, p. 198). A relação entre narrativa e oralidade, por sua vez, pode ser vista como a de que “ambas se desenvolveram no tempo, falam no tempo e do tempo, recuperando na própria voz o fluxo circular que a memória abre do presente para o passado e deste para o presente” (Bósi, 2003, p.45).
Sendo assim, os pressupostos de que os registros escritos de conhecimentos indígenas são apenas caminhos de preservação e valorização culturais merecem ser colocados em suspensão, “de forma que possamos vê-los e revê-los partindo de outros lugares ou perspectivas” (Testa, 2008, p.293).
O discurso de Davi Kopenawa, do povo Yanomami, é mais um sinal que aponta para a direção de que a necessidade da escrita entre os povos indígenas não surge diminutamente da carência de fazer lembrar:
Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte. (Kopenawa et al, 2015, p.75)
Em depoimento dado em 2006, Verá Mirim, da etnia Guarani Mbya, conta: “Xeramoi [nosso pajé] sempre fala para nós que as palavras dos livros duram pouco. (...) O papel rasga, queima ou se molha na água e derrete, já a palavra que é falada dentro de cada um não morre” (Testa, 2008, p.293). E, se a esta palavra é atribuído um caráter imortal, é porque “a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração” (Benjamin, 1994, p.211). Assumindo o papel de intermediária cultural entre gerações, a memória “deixa de ter um caráter de restauração e passa a ser a memória geradora do futuro” (Bósi, 2003, p.66).
6. RESULTADOS
Se para os não indígenas, quando se fala em formas de fazer lembrar, a escrita é algo que automaticamente vem à tona, para os povos indígenas a memória é algo que não depende deste rastro, do residual, da marca deixada no papel. A função geracional da narrativa se encarrega de manter acesa a chama da memória.
A necessidade da escrita entre povos tradicionalmente ágrafos, como resultado do processo de contato com os não indígenas e suas instituições, surgiu, portanto, por várias situações que convergem principalmente no fortalecimento da identidade étnica do povo, dado que:
A língua é o instrumento mais forte de identificação e luta das comunidades indígenas, pois por fazer parte do indivíduo (nós somos o que falamos) e identificar sua origem (fazemos parte da comunidade que fala nossa língua), ela torna a pessoa um agente que leva a comunidade consigo, representando o coletivo do qual faz parte. (Pacheco, 2006, p. 825)
E a necessidade de enraizamento não é vista, aqui, como nenhuma forma de amarra, mas como um vínculo natural com o passado do qual se extrai forças para a formação e a renovação da identidade (Bósi, 2003), identidade esta que é “simplesmente a percepção de uma continuidade, de um processo, de um fluxo: em suma, uma memória” (Cunha, 2012, p.120).
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Num contexto em que os direitos à igualdade dos povos indígenas foram entendidos como deveres e a essência política desta igualdade foi dissolvida em nome da homogeneidade cultural, o direito passou a significar um dever de assimilação envolto em equivalências perversas: “integração e desenvolvimento passaram a sinônimos de assimilação cultural, discriminação e racismo a reconhecimento das diferenças” (Cunha, 2012, p.129).
O interesse pela escrita torna-se, a partir daí, mais uma ferramenta para resistir: “a alfabetização quer assimilar o índio; o índio quer assimilar a alfabetização, mas para não ser assimilado.” (Meliá apud Cavalcanti et al, 2005, p.11).
8. FONTES CONSULTADAS
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.
BÓSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
CAVALCANTI, Marilda do Couto; MAHER, Terezinha de Jesus M. O índio, a leitura e a escrita - O que está em jogo? Cefiel/IEL/Unicamp, 2005.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador - volume 1: Uma história dos costumes.
Tradução Ruy Jungman; revisão e apresentação, Renato Janine Ribeiro – 2ª edição – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
PACHECO, Frantomé B. Palavra escrita e produção de textos em Ikpeng (Karíb): uma reflexão sobre a origem e o estatuto da escrita em uma sociedade de tradição oral. In: Estudos linguísticos XXXV, p. 818-827, 2006. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
- Universidade de São Paulo. Disponível em:
<http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/artigo%3Apacheco-2006/pacheco_2006 _palavra.pdf>.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã
yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de
Castro – 1ª edição – São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
TESTA, Adriana Queiroz. Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e conhecimento entre os Guarani Mbya. Universidade de São Paulo, Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n.2, p. 291-307, maio/agosto 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-9702200800020000>.