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Paisagem, mobilidade e slow tourism: uma abordagem pós fenomenológica da experiência da paisagem na prática de bikepacking

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Academic year: 2023

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Universidade de Lisboa

Instituto de Geografia e Ordenamento do Território

Paisagem, mobilidade e slow tourism: uma abordagem pós

fenomenológica da experiência da paisagem na prática de bikepacking

Francisco Miguel Pedro Magalhães

Dissertação de mestrado orientada

pelo Prof. Doutor Eduardo Manuel Dias de Brito Henriques Mestrado em Geografia Humana: Globalização, Sociedade e Território

2022

Universidade de Lisboa

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Instituto de Geografia e Ordenamento do Território

Paisagem, mobilidade e slow tourism: uma abordagem pós

fenomenológica da experiência da paisagem na prática de bikepacking

Francisco Miguel Pedro Magalhães Dissertação de mestrado orientada

pelo Prof. Doutor Eduardo Manuel Dias de Brito Henriques

Júri:

Presidente: Professora Doutora Alina Isabel Pereira Esteves do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa

Vogais:

- Professora Doutora Elsa Maria Teixeira Pacheco da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

- Professor Doutor Eduardo Manuel Dias de Brito-Henriques do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa

2022

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3 Para a Ana,

Para o Miguel, Para o Rafael, Para os meus avós,

Todos eles foram fundamentais nesta e em tantas outras jornadas. Dedico-lhes este trabalho como gesto da minha profunda gratidão.

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4 Resumo

O bikepacking é uma forma de cicloturismo que combina o desportivo com o turístico, onde há saídas de vários dias, viajando-se de bicicleta e acampando-se. Pela dependência que o humano tem das materialidades que possibilitam a sua experiência do mundo, pode falar-se num cyborg cinético bicicleta-humano-tenda. Esta dissertação tem por objetivo perceber quais as disposições afetivas do humano, mediado pelas materialidades bicicleta e tenda, na forma de ser-no-mundo caraterística do bikepacking.

Procurou-se articular o bikepacking com o paradigma das novas mobilidades e o conceito de slow tourism, descrever o ser-no-mundo do cyborg cinético e perceber quais as particularidades na experiência multissensorial da paisagem que ele faz durante esta prática. A pesquisa concretizou-se através de uma etnografia da mobilidade, recorrendo a observação participante e a entrevistas em profundidade. Resulta do relato dos entrevistados e da observação participante que o bikepacking potencia ao cyborg um leque variado de escolhas no rumo a seguir e uma flexibilidade permanente de toldar a sua viagem, onde geralmente são exploradas estradas secundárias. As principais condicionantes nesta experiência são as condições materiais que medeiam o humano na sua experiência do mundo – das quais ele está dependente – e a sensação de segurança, nomeadamente ao nível da convivência com outros veículos nas estradas e da escolha dos locais para dormir. Conclui-se também que em Portugal, local onde foram recolhidos os dados, a prática de bikepacking é muito masculinizada, havendo um número reduzido de praticantes mulheres. Pela sua natureza, o bikepacking parece coincidir com o quadro teórico do slow tourism, relação essa que é problematizada. Os entrevistados não evidenciaram uma preocupação ambiental como causa da escolha da bicicleta como forma de viajar, pelo que a relação com o slow tourism – uma forma de turismo que tem como caraterísticas principais o desacelerar, o foco na integração nas comunidades e culturas locais e uma preocupação ambiental – encontra aqui uma primeira especificidade. Além disso resultou evidente que o ritmo do cyborg varia conforme os condicionalismos das materialidades e sobretudo das escolhas do humano que variam entre uma vontade de acelerar e de desacelerar. No bikepacking a relação com o ritmo é mais complexa do que uma mera vontade de desacelerar e isso faz com que, apesar de se poder enquadrar no quadro teórico do slow tourism, essa relação tenha de ser

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5 entendida na sua complexidade. As disposições afetivas mais relevantes apontadas pelos bikepakers entrevistados têm que ver com a flexibilidade nas escolhas do rumo a tomar, no maior leque de escolhas que esta forma de ser-no-mundo possibilitada, pela experiência do espaço não-fragmentada e por uma maior exposição a estímulos sensoriais dos diferentes elementos da paisagem.

Palavras-chave: bikepacking; paisagem; slow tourism; geografias mais-do-que-humanas;

cyborg cinético

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6 Abstract

Bikepacking is a form of bicycle touring that combines sport with tourism, where there are departures for several days traveling by bicycle and camping. Understanding bikepacking requires a more-than-human approach due to the dependence that humans have on bicycle materialities, which enable their experience of the world. This essential interaction to bikepacking makes it possible to speak of a kinetic bicycle-human-tent cyborg.

This dissertation aims to understand which are the affective dispositions of the human, mediated by materialities, such as bicycle and tent, in the form of being-in-the-world characteristic of the bikepacking performance. Consequently, it was required to articulate bikepacking with the theoretical framework of the paradigm of new mobilities and the concept of slow tourism, describe the experience of mobility and being-in-the- world of the cyborg and understand the particularities in the multisensory experience of the landscape that it makes during this practice. For this, an ethnography of mobility was carried out, using participant observation and in-depth interviews. As a result of the interviewees' reports and participant observation, the bikepacking activity gives the cyborg a wide range of choices in the direction to follow and a permanent flexibility, where secondary roads are usually explored.

The main constraints in this experience are the material conditions that mediate the human in his experience of the world – on which he is dependent – and the feeling of security, specifically at the level of coexistence with other vehicles on the roads and the choice of places to sleep. It is also concluded that in Portugal, where the data was collected, the practice of bikepacking is very masculinized, with a small number of female practitioners. By its nature, bikepacking seems to coincide with the theoretical framework of slow tourism, which can induce problematic. The bikepackers interviewed did not show an environmental concern as the reason for choosing the bicycle as a way of travelling, so the relationship with the theoretical framework of slow tourism - a form of tourism that has as main characteristics the slowdown, the focus on integration in communities and local cultures and an environmental concern – finds here a first specificity. Furthermore, it was evident that the cyborg's rhythm changes according to

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7 the constraints of materialities and, above all, the choices of the human, raging from a willingness to accelerate and to slow down. In bikepacking the relationship with rhythm is more complex than a mere desire to slow down and this means that, despite being able to fit into the theoretical framework of slow tourism, this relationship must be understood in its complexity. The most relevant affective dispositions pointed out by the interviewed bikepackers have to do with the flexibility in the choices of the course to be taken, in the widest range of choices that the way of being-in-the-world made possible, by the experience of non-fragmented space and by a greater exposure to sensory stimuli of the different elements of the landscape.

Key words: bikepacking; landscape; slow tourism; more-than-human geographies;

kinetic cyborg

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Conteúdos

1. Introdução ... 10

2. Revisão de literatura e metodologias: bikepacking e uma etnografia da mobilidade ... 20

2.1. O paradigma das novas mobilidades: mobilidade como forma de ser-no- mundo ... 20

2.2. Movimento pelo lento e Slow tourism ... 25

2.3. Slow tourism como experiência multissensorial da paisagem ... 28

2.4. O cicloturismo como forma de slow tourism ... 31

2.5. Cicloturismo como slow tourism? ... 33

2.7. Metodologias ... 36

2.7.1. Enquadramento teórico-metodológico ... 36

2.7.2. Bikepacking e uma etnografia da mobilidade ... 40

3. A atividade de bikepacking: caraterização de uma atividade entre o turístico e o desportivo e a constituição do cyborg cinético ... 45

3.1. O bikepacking e o cicloturismo: a relação dos bikepackers com as diferentes modalidades de cicloturismo ... 45

3.2. Caraterização da prática do bikepacking em Portugal ... 48

3.3. As motivações e escolhas dos bikepackers: a constituição do cyborg cinético e a sua forma de ser-no-mundo ... 49

3.4. O cyborg cinético: as materialidades do bikepacking ... 58

4. Cyborg cinético em ação: experiência da paisagem e disposições afetivas ... 66

4.1. Disposições afetivas na experiência da paisagem durante o pedalar ... 66

4.2. As disposições afetivas no acampar e no ficar transitório ... 75

4.3. Bikepacking: ritmos e disposições afetivas na relação com a paisagem durante a viagem ... 79

5. Conclusões e discussão ... 85

Bibliografia ... 93

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1. Introdução

Travel is at its most rewarding when it ceases to be about your reaching a destination and becomes indistinguishable from living your life.

Paul Theroux in Ghost Train to the Eastern Star

A viagem é uma característica ancestral da condição humana. Contudo nunca como hoje vivemos um tempo histórico tão marcado pela mobilidade. A evolução tecnológica construiu uma vida social marcada pela mobilidade permanente. Estamos perante uma realidade em que as nossas vidas se situam numa permanente contingência móvel (Cresswell, 2006). O aumento da mobilidade como aspeto social relevante é concomitante ao incremento do fluxo de informações, capitais, serviços e de pessoas – à viagem.

A viagem pode assumir várias formas e motivações: a mais banal deslocação de automóvel, a deambulação a pé pelas paisagens urbanas, a viagem de avião, a viagem ferroviária, a viagem de barco e a roadtrip. É de notar que a todas as viagens mediadas por meios tecnológicos é comum a ideia de aceleração e superação dos limites; uma aceleração social, na qual o expoente máximo corresponde ao paradigma do ilimitado.

A contemporaneidade tem como traço fundamental a hipervelocidade (Lipovetsky, 2004; Virilio, 2006).

Estas formas de aceleração marcaram muitos aspetos da vida da sociedade, destacando-se entre eles o turismo, onde o aumento de fluxos, a sua massificação e vulgarização marcaram uma nova era global. Só neste milénio, entre 2000 e 2019, o número de turistas internacionais duplicou de 673 milhões/ano para 1464 milhões (UNWTO, 2022)1. Esta massificação do turismo global assentou num desenvolvimento dos transportes que, pelo aumento da velocidade, permitiu uma ligação cada vez mais rápida entre os vários pontos do globo (Sezgin & Yolal, 2012). E o turismo parecia ver o

1 Tendo nos anos de 2020 e 2021, fruto das medidas restritivas de controlo da COVID-19, caído para valores de cerca de 400 milhões em cada ano.

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11 seu desenvolvimento dependente desta circunstância. Contudo, novas formas de turismo alternativo, assentes numa diferente relação com o espaço-tempo, começaram a surgir e a ganhar relevância.

Desde o início do século têm-se vindo a desenvolver práticas alternativas a um mainstream marcado pela velocidade – uma nova forma lenta de ser-no-mundo (a slow way of doing things). Este conjunto de condutas surgem “(em) resistência a um domínio económico que prioriza a globalização, a uniformização e a racionalidade – a desumanização”(Dickinson & Lumsdon, 2010b, p. 2), tendo sido cunhadas como movimento pelo lento (slow movement) e desdobrando-se em movimentos como consumo lento (slow consumption), slow food, cittàslow e turismo lento (slow tourism).

Todos estes movimentos encontram por detrás de si práticas específicas e, amiúde, partilham motivações e discursos semelhantes.

É também por essa altura que a discussão conceptual em torno das práticas lentas, a sua relação com princípios de turismo sustentável, assim como as suas motivações e as ofertas do setor do turismo, começam a ganhar expressão na literatura científica. É nessa discussão que o slow tourism ganha uma forma conceptual. O slow tourism apresenta-se como um conjunto de práticas alternativas ao turismo de massas, onde se dá o encontro entre a viagem lenta (slow travel), o consumo lento (slow consumption) e as mobilidades suaves (soft mobilities) (Fullagar, Markwell, et al., 2012, p.

2).

A viagem lenta implica um ritmo específico na mobilidade, enfatizando a experiência da viagem como um fenómeno em si. Este tipo de viagem surge em alternativa às mobilidades rápidas que visam apenas a ligação entre dois pontos específicos do mapa, tentando reduzir ao máximo o ruído entre eles e, consequentemente, abstraindo tudo o que está no meio. Ao contrário do mundo marcado pela aceleração – “apostado em incrementar um domínio do nada em forma de não-lugares, não-coisas, não-pessoas e não-serviços; tudo à custa de um continuo não- algo” (Høyer, 2009, p. 65) –, na viagem lenta, o que é privilegiado é precisamente a viagem como forma de conhecer os locais em mobilidade lenta (Cresswell, 2006). Este ênfase na experiência da viagem pode enunciar-se na seguinte máxima: “viajar mais

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12 lentamente, estadias mais demoradas e viajar menos” (Dickinson & Lumsdon, 2010a, p.

482).

A viagem lenta contempla também uma dimensão de mobilidade verde ou suave (soft or green mobilities) – onde é tido em conta o impacto ambiental dos meios de transporte utilizados. Fruto de uma preocupação ambiental, as mobilidades suaves começam a estabelecer-se como algo de fundamental nas mais diversas áreas da atividade humana. O uso de meios de transporte amigos do ambiente, com baixas emissões de carbono, caraterizam-nas. Este conjunto de novas condutas confluem numa forma alternativa de conhecer e visitar os territórios, constituindo a base do slow tourism.

Podemos, assim, dizer que o slow tourism assenta em três componentes principais: i) distâncias curtas; ii) ênfase na experiência da viagem; iii) práticas amigas do ambiente.

Pela natureza de ritmos lentos do slow tourism, a experiência torna-se inevitavelmente uma experiência sensorialmente rica. As práticas de slow tourism, pela sua natureza de mobilidade lenta, levantam questões da ordem do sensorial na afetação da paisagem sobre as pessoas, distintas das proporcionadas por outras práticas turísticas – o contacto multissensorial com a paisagem (Fullagar, Markwell, et al., 2012; Howard, 2012). Neste contexto, interessa trazer à colação o turismo sensorial. O turismo sensorial apresenta-se como uma abordagem à prática do turismo em que os sentidos são explorados, proporcionando um contacto mais autêntico com a paisagem (Meacci &

Liberatore, 2018). Mais do que uma tipologia, o turismo sensorial é uma forma de abordagem à prática turística com consequências epistemológicas. Perceber os sentidos implica uma abordagem não representacional e fenomenológica, onde corpo, performance e afeto se cruzam numa mesma experiência da paisagem (Jensen et al., 2015).

O quadro conceptual do slow tourism parece adequar-se ao estudo das práticas de cicloturismo. Tradicionalmente esta atividade é caraterizada como tendo ritmos lentos, que permitem uma experiência multissensorial da paisagem mais rica em mobilidade (Dickinson & Lumsdon, 2010a; Howard, 2012; Lamont, 2014; Ritchie, Tkaczynski, &

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13 Faulks, 2010)2. Mas interessa perceber em que medida há uma aproximação e um afastamento entre as características tradicionais do slow tourism, acima enunciadas, e a prática do cicloturismo. Interessa perceber se há no cicloturismo uma conjugação das três componentes principais do slow tourism, ou se, pelo contrário, ele tem particularidades que fazem dele um objeto de estudo a ser enquadrado neste contexto teórico com alguma cautela. Matteucci & Tiller (2022) apontam que o a terceira componente – mobilidades suaves e preocupações ambientais – não se revelou com um fator decisivo para os cicloturistas por eles entrevistados. Além do mais a experiência dos ritmos e das temporalidades apresentou uma componente fortemente subjetiva, pelo que seria bastante redutor dizer que o cicloturismo é uma prática marcada por ritmos lentos, preferindo os autores dizer que o que marca a prática é a possibilidade de os próprios agentes poderem determinar a sua relação com os ritmos de fruição no espaço e de relação com a paisagem.

Não obstante esta problematização da relação entre slow tourism e cicloturismo, a análise de um turismo ciclável que aqui está a ser tomada em consideração será feita tento por base um cruzamento conceptual entre slow tourism e turismo sensorial.

O cicloturismo, em 2012, com cerca de 2,295 mil milhões de viagens por ano, representava, como setor, uma receita de 44 mil milhões de euros na Europa (Weston et al., 2012). Além dos valores há que considerar um quadro bastante heterógeno na distribuição desta atividade pelos diferentes países da Europa, onde o “cicloturismo representa um pequeno produto de nicho em países como a Grécia e Portugal” (Weston et al., 2012, p. 31)3.

2 Em todo o caso, há que considerar que a experiência proporcionada no cicloturismo é complexa e interrelaciona-se com fatores de ordem múltipla. A perceção da paisagem pode ser influenciada pelo esforço físico, nomeadamente ao nível do condicionamento dos sentidos - “vision ‘gets more or less from things according to the way it questions them, ranges over or dwells on them'’ (Merleau-Ponty, 1962, page 153; in Ingold, 2000, page 263). The eyes see, and the body moves towards and feels the flattest path in order to reduce exertion and the kinaesthetic burn in the legs” (Spinney, 2006, p. 725).

3 Fruto das novas realidades pós Covid-19 é espectável que estes valores vejam o seu ritmo de crescimento acentuar-se ainda mais, dada a visibilidade que ganharam formas de turismo alternativas ao turismo massas (Higgins-Desbiolles, 2020).

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14 O cicloturismo compreende dentro de si práticas de variada natureza, desdobrando-se em múltiplas subcategorias (Fernández-Latorre, 2015; Lamont, 2015).

Interessa para já considerar duas grandes tipologias: as viagens inferiores a um dia e as viagens que implicam o pernoitar (overnight e day cyclists). Das 2,295 mil milhões de viagens de cicloturistas por ano na Europa, 20,4 milhões têm uma duração superior a um dia e representam uma fatia de 9 mil milhões de euros no total de 44 mil milhões das receitas do setor. As práticas de cicloturismo que duram mais que 24 horas e implicam dormida têm, segundo Weston et al. (2012)4, vindo em exponencial aumento, alcançando a nível global, em 2019, um valor de 33,4 milhões de viagens por ano.

Dentro da categoria de viagens com duração superior a um dia há ainda a referir um desdobramento: os que utilizam alojamentos e unidades hoteleiras ao longo do percurso para pernoitarem e os que recorrem à prática do campismo. Os segundos constituem os protagonistas da prática de bikepacking self supported como subcategoria do cicloturismo. O que carateriza esta categoria é o hibridismo da conjugação entre o humano e as materialidades bicicleta e tenda. Esse hibridismo traduz-se numa experiência em que o humano vê a sua ação codeterminada por si e pela interação com as materialidades no registo de um fenómeno de agência ou mediação da experiência da paisagem, onde ele passa a ser um cyborg que se desloca no espaço com temporalidades, ritmos e sensorialidades singulares – um cyborg cinético. O bikepacking self suported, como prática turística, apresenta desafios a vários níveis: i) por poder constituir uma experiência multissensorial da paisagem que se distingue de outras formas de fruição e relação com a paisagem; ii) por ser uma forma de viagem marcada por uma perceção das temporalidades distinta de outras formas de viagem e por ritmos lentos (Cresswell, 2006); iii) por ser uma experiência da perceção do sujeito mediada por tecnologias ou materialidades – a bicicleta e a tenda. Interessa-me agora esclarecer a relevância deste último aspeto.

Referi anteriormente que, por estarmos num quadro teórico de estudo de experiências e perceções, a abordagem epistemológica seria necessariamente uma abordagem fenomenológica, mas este aspeto agora trazido à colação põe-nos na pista de

4Que baseou a sua análise na recolha de dados de um conjunto de estudos isolados para diferentes países e algumas estatísticas do Veloland até 2012.

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15 um novo desafio epistemológico onde surgem as ontologias materialmente orientadas (object‐oriented ontologies). A experiência da paisagem aqui tomada em conta é uma experiência que se dá em ritmos diferentes, oscilando entre mobilidade e paragens transitórias; o que significa dizer que o cenário está em constante mutação. Esta forma de relação só é possibilitada por meio de apetrechos tecnológicos – a bicicleta e a tenda.

Deixamos, assim, de considerar o sujeito e passamos a considerá-lo no novo quadro ontológico que estabelece na sua relação com a paisagem, por meio da constituição de um cyborg cinético (humano, bicicleta e tenda). Isto significa dizer que o estudo clássico das perceções que poderia ser levado a cabo pela abordagem fenomenológica tem de se ver aqui complementado por uma abordagem onde o sujeito seja tomado na sua relação ontológica com o mundo mediada pela tecnologia. Tendo isto presente, surge o prefixo pós à palavra fenomenologia, constituindo-se a pós-fenomenologia como quadro epistemológico de referência à abordagem destas problemáticas (Ihde, 2009; Roberts, 2019).

A constituição do cyborg cinético – humano, bicicleta e tenda – resulta num hibridismo e uma assemblagem das conjugações ontológicas entre o humano e essas materialidades. Perceber o cyborg cinético na nova relação ontológica que o humano estabelece com as materialidades em causa, implica considerar a teoria ator-rede (Latour, 2005), a ideia de novos materialismos e matéria vibrante (Bennett, 2010b), enquadrando o humano num quadro ontológico relacional de geografias mais do que humanas. As geografias mais do que humanas assentam numa reconsideração da ideia de social, onde o humano e não-humano (no caso, bicicleta e tenda) são tomados num plano ontológico relacional, ultrapassando a dualidade humano-mundo material e promovendo uma compreensão da ação antrópica e não antrópica num âmbito unificado e mais abrangente.

As práticas inerentes à atividade de bikepacking resultam numa relação entre humano, mundo material e paisagem. O cyborg cinético daí resultante pode abrir novas formas de relacionamentos mais horizontais com elementos não-humanos da paisagem, esbatendo-se assim o tradicional dualismo humano-natureza. Essa particularidade constitui a prática de bikepacking como uma atividade complexa, que contempla: i) o

“mochilismo”, ii) o acampar de forma integrada e em sintonia com o meio e os seus

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16 diferentes elementos humanos e não-humanos e iii) uma mobilidade com ritmos próprios, que permitem uma experiência multissensorial da paisagem.

Tendo presente todo este quadro teórico e as três principais características do bikepacking, interessa referir que esta atividade como fenómeno turístico, apesar de ter uma expressão, comparativamente com outros países europeus, baixa em Portugal, tem vindo a assumir uma expressão cada vez maior, aproximando-se de valores de outros países europeus e representando uma atividade económica significativa no setor turístico (Ferreira et al., 2020).

Sendo que estas atividades têm vindo a assumir cada vez maior expressão, torna- se interessante perceber de que forma elas constituem uma potencialidade numa perceção mais plena da paisagem, quer na prática da mobilidade lenta, quer na integração relacional do humano com atores não-humanos. Nesse sentido o trabalho que aqui é levado a cabo interessa-se por responder à questão geral: De que forma a performance de bikepacking self supported permite ao humano, mediado pelas materialidades bicicleta e tenda, a criação de disposições afetivas mais fortes na relação com a paisagem?

Com vista a responder a esta questão geral, são objetivos desta dissertação: i) esclarecer o quadro teórico do paradigma das novas mobilidades e os conceitos de slow tourism e bicycle touring, através da revisão crítica da literatura, para assim poder operar o problema aqui visado através de um corpo teórico definido; ii) descrever a experiência da mobilidade e do ser-no-mundo envolvidas na prática de bikepacking, através da aplicação de entrevistas em profundidade, de métodos auto-etnográficos e da observação participante, para perceber o hibridismo, as temporalidades, os ritmos e as formas de contacto com outros atores em que o cyborg cinético humano-bicicleta-tenda se relaciona com a paisagem; iii) perceber quais as particularidades na experiência multissensorial da paisagem que o bikepacking permite ao humano, com a mediação das materialidades tenda e bicicleta. Para isso será feito recurso de entrevistas em profundidade e de métodos auto-etnográficos, tendo em vista a compreensão dessas especificidades.

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17 Se olharmos à formulação dos objetivos e da questão de partida, afigura-se evidente que a abordagem epistemológica da investigação se enquadra na pós- fenomenologia. Fenomenologia por ser integrante dos estudos da experiência e perceção. Pós-fenomenologia por essa experiência da paisagem ser mediada por materialidades – a bicicleta e a tenda – que permitem a circunstância do cyborg cinético perceber a paisagem com ritmos que oscilam entre a mobilidade e a paragem circunstancial.

A concretização do primeiro objetivo baseia-se na revisão crítica da literatura.

Para isso far-se-á uso de motores de busca científicos, compilando um conjunto de textos.

Essa seleção responde a dois critérios fundamentais: i) a pertença à corrente epistemológica aqui adotada como forma de olhar o mundo e ii) a consideração de aspetos do cicloturismo sobre outros ângulos metodológicos de análise que permitam clarificar alguns aspetos do que está em causa. Isto é dizer que a seleção bibliográfica é maioritariamente referente ao quadro teórico-epistemológico da pós-fenomenologia, em concreto na sua relação direta com o slow tourism e com o cicloturismo, que poder-se-á ver pontualmente complementada por estudos que abordam a mesma temática de outra perspetiva. Todo este trabalho verter-se-á na redação de um texto que procure articular os conceitos entre si e com o tema suprarreferido, constituindo assim o primeiro capítulo da dissertação.

O segundo objetivo concretizou-se metodologicamente através da realização de entrevistas em profundidade a praticantes de bikepacking. A descrição das especificidades desta prática exige cuidado na construção do guião da entrevista.

Perceber os diversos momentos, como eles se articulam quer no hibridismo do cyborg cinético humano, bicicleta e tenda, quer na multiplicidade de ritmos e sensações. A descrição desta prática fará uso também de conhecimento adquirido pelo autor em experiências auto-etnográficas e de observação participante. Os diferentes aspetos notados a partir da auto-etnografia e a observação participante foram anotados em cadernos de campo que permitiram a sistematização e organização posterior das diferentes observações. Estes cadernos de campo ou diários de estrada assumem a sua relevância por estarmos a falar de atividades que decorrem durante vários dias, que envolvem múltiplas sensações e a sucessão contínua de acontecimentos. Essa forma de

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18 registo foi feita em dois diferentes suportes: através do registo manuscrito em cadernos, complementado pela gravação de áudio e vídeo.

O terceiro objetivo subdivide-se em duas componentes: i) a experiência em mobilidade on the saddle; ii) o acampar como ficar transitório. As duas oscilam num hibridismo do cyborg cinético. A primeira componente encontra paralelo no estudo de Spinney (2006), pelo facto de ambos ambicionarmos estabelecer uma relação de afetação entre os humanos e a paisagem na prática ciclística. Não obstante isto, mesmo na primeira componente a correspondência não é total. Enquanto Spinney (2006) se serviu essencialmente de métodos auto-etnográficos, aqui eles serão conjugados com a informação proveniente de entrevistas em profundidade a outros praticantes e com a observação participante, onde serão também contempladas conversas em trânsito5. Relativamente à segunda componente ela não encontra qualquer ponto de apoio no estudo de Spinney (2006), por este se ter debruçado num evento de um só dia - recreational cycling, nas categorias de Lamont (2009). Contudo, pela natureza da análise, ela será considerada segundo a mesma abordagem metodológica que a primeira: a conciliação de entrevistas, auto-etnografia e observação participante.

O registo das sensações resultantes da experiência auto-etnográfica da paisagem feita pelo cyborg cinético, que se encontra no hibridismo de conjugação humano- bicicleta-tenda, deve ter em atenção a diversidade de ritmos que a atividade de pedalar envolve e que encontram condicionalismos em múltiplos fatores (relevo, condições físicas do ciclista e as condições da bicicleta) e de que forma essa diversidade cria disposições afetivas variáveis no espaço e no tempo. Ter atenção a esta multitude de ritmos em diferentes momentos constitui também um ponto essencial na recolha de dados numa investigação deste tipo – uma investigação on the saddle6.

Consumada a recolha de dados, apresenta-se o desafio de articular esses dados com os quadros conceptuais inerentes à discussão. O relatar das práticas com um

5 Esta metodologia encontra suporte nas walking interviews, sendo que aqui a prática do caminhar dá lugar à circulação em bicicleta.

6 Se pensarmos em viagens que têm por base outros meios de transporte, no caso das roadtrip, o automóvel, por exemplo, talvez a questão do hibridismo do ritmo da deslocação seja um dos pontos que constituem particularidade do ciclismo ou cicloturismo.

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19 formato académico constitui um dos maiores desafios a todas as investigações de caráter não-representacional e descritivo (Edensor, 2008). Um dos aspetos a considerar no estudo de uma performance marcada pela multisensorialidade, como a que está aqui em causa, é a dificuldade de produção de uma narrativa suficientemente eficaz na descrição de eventos que amiúde se sobrepõem ou repetem no espaço e no tempo e que despertam sentidos que nem sempre encontram equivalentes descritivos nos signos da linguagem.

As histórias, dos eventos ciclísticos, à semelhança da prática de caminhar, são fragmentadas, não-lineares e contingentes (Spinney, 2006). Produzir um discurso coeso, claro e que faça jus a esta complexidade do fenómeno nos seus múltiplos aspetos é um dos maiores desafios desta investigação. Como Magris (2020, p. 18) descreve, na viagem

“alguma coisa corre e passa através do corpo, o ar insinua-se entre as roupas, o eu dilata- se e retrai-se como uma medusa”.

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2. Revisão de literatura e metodologias: bikepacking e uma etnografia da mobilidade

No sentido de responder ao primeiro objetivo traçado para o presente trabalho - esclarecer o quadro teórico do paradigma das novas mobilidades e os conceitos de slow tourism e cicloturismo, através da revisão crítica da literatura, para assim poder operar o problema aqui visado através de um corpo teórico definido –, interessa agora estabelecer e esclarecer o quadro teórico que está em jogo.

2.1. O paradigma das novas mobilidades: mobilidade como forma de ser- no-mundo

O paradigma das novas mobilidades começa a esquiçar-se no quadro teórico de várias ciências sociais, como a sociologia, antropologia e a geografia, nomeadamente nas áreas dos estudos culturais, do turismo, das migrações e dos transportes, no início do milénio. Urry (2000) foi o primeiro a enunciar o termo new mobilities paradigm, que também aparece amiúde como mobilities turn, querendo significar o mesmo. Contudo, Urry (2009) aponta Georg Simmel como o pioneiro relativamente ao estudo das mobilidades de um ponto de vista integrado (Simmel, 1997, pp. 171–178). Pelos anos de 2004, 2005 este novo paradigma começa a ganhar destaque nas ciências sociais (Bissell &

Gillian Fuller, 2010), sobretudo pelas mãos de nomes como Cresswell (2001, 2003, 2006, 2011, 2012), Sheller e Urry (2006; 2014; 2004, 2006, 2016).

Para se perceber em que medida se fala de um paradigma das novas mobilidades deve considerar-se as particularidades que fazem dele um paradigma. Por paradigma deve entender-se “uma visão do mundo subjacente às teorias e metodologias de um determinado tema científico” (Oxford dictionary). Um paradigma é uma nova forma de olhar o mundo, onde novas problemáticas e questões são levantadas e que, consequentemente, exigem novas metodologias e novas teorias que lhes possam dar

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21 respostas (Kuhn, 2009). Assim, “o paradigma das novas mobilidades implica um conjunto de questões, teorias e metodologias e não uma descrição genérica e redutiva do mundo contemporâneo” (Sheller & Urry, 2006, p. 210).

Quais são então as circunstâncias que conduziram a esta nova visão do mundo que veio instalar um novo paradigma? Artigos que exploraram o paradigma das novas mobilidades começam por apontar para o facto de hoje viajarmos mais, percorrendo distâncias maiores e com maior velocidade (Schorpp, 2016; Sheller & Urry, 2006). Esta nova forma de organização social e de relação com o espaço abre caminho a novas problemáticas e afigura-se como tema de novas investigações científicas. As ciências socias começam então a ir em busca de perceber como é que a globalização associada às mobilidades atua nos lugares e na sua formação e como é que se constitui uma realidade fluída marcada permanentemente pela mobilidade, não só física, mas também cultural.

Os estudos da mobilidade vão, portanto, além da ideia de movimento e contemplam diferentes significados aí implicados – políticos, afetivos e culturais.

Cresswell (2006) distingue movimento e mobilidade (p. 2-4), definindo movimento (movement) como a ligação entre dois pontos abstratos A e B. Essa ideia de movimento não é desprovida de propósito, significado, história e afeto. Contudo, quando falamos em mobilidade não falamos só nesta ligação entre dois pontos. Falamos de mobilidade como um ato pleno de significado. Queremos perceber quais são os significados políticos, culturais e afetivos que são concomitantes a essa ligação entre dois pontos.

Neste sentido Cresswell (2006, pp. 2–5) aponta para três diferentes componentes da mobilidade: i) a mobilidade como um facto em si – observável e mensurável; ii) as representações da mobilidade, que se servem de um conjunto diversificado de estratégias representativas (cinema, fotografia, medicina, literatura filosofia e direito).

Essas representações interpretam as mobilidades segundo significados que são frequentemente ideológicos, tornando o facto bruto na mobilidade dotado de um significado – liberdade, transgressão, criatividade; iii) a mobilidade como experiência corporizada – a mobilidade como forma de ser-no-mundo. A mobilidade humana como envolvendo corpos físicos movendo-se em paisagens materiais, mas não só: envolvendo também sistemas categoriais representativos da realidade material. Pessoas em movimento nunca são simplesmente pessoas – são seres dançantes e caminhantes, são

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22 condutores e atletas, refugiados e cidadãos, turistas ou homens de negócios, homens e mulheres que têm diferentes experiências das mobilidades (Cresswell, 2006, p. 6).

A mobilidade transgride a dimensão empírica e torna-se numa experiência. Uma experiência plena de significados e corporizada (Roy & Hannam, 2013). Esta nova forma de olhar para as mobilidades como experiências exigirá novas abordagens metodológicas e epistemológicas.

O paradigma das novas mobilidades deve ser entendido como um paradigma que as estuda num sentido amplo, onde além das diferentes formas de movimento físico, mediadas ou não por tecnologias, são considerados os fluxos de informação, ideias e culturas, bem como as estruturas imóveis que permitem e são produzidas por esta realidade de mobilidade constante (Sheller & Urry, 2006, p. 212)7. Diferentes elementos são objeto de mobilidade. Desde ideias, imagens, sons, até pessoas e materialidades não- humanas. E um paradigma que queira, como lhe é próprio, olhar para esta realidade de forma integrada e articulada, compreendendo-a num quadro abrangente, não pode analisar os diferentes aspetos separadamente – sem nexo entre si. Nesse sentido há que considerar que “as mobilidades precisam de ser examinadas na sua interdependência fluída e não nas suas esferas separadas” (Sheller & Urry, 2006, p. 212).

Podemos afirmar, estabelecendo numa única proposição o que se deve entender como paradigma das novas mobilidades, que este novo modo de olhar o mundo não está somente preocupado em mensurar quantitativamente os movimentos, mas sim em perceber os seus diferentes significados e as suas causas e consequências sociais.

Sobretudo ele procura estudar uma realidade em que as mobilidades assumem um caráter cada vez mais complexo e híbrido, que exige um olhar que perceba essas mobilidades num complexo relacional entre pessoas, materialidades, imagens e informação. É neste âmbito que podemos falar de um paradigma – uma nova forma de

7 “Mobilidades neste paradigma são assim utilizadas num sentido genérico, relacionando movimento físico com caminhar e fazer montanhismo com movimento marcado por tecnologias como bicicletas e autocarros, carros e comboios, navios e aviões. As mobilidades também incluem movimento de imagens e informação.

(…) Investigadores das áreas do transporte, por exemplo, tomam a consideração do transporte num quadro abrangente como uma black box que não precisa de muito mais investigação ou como derivando de uma razão social. Eles tendem a examinar simples categorias de viagem, tais como pendulares, de lazer ou de negócios como se fossem categorias separadas e independentes”

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23 ver o mundo que considera novos pontos de vista, novas teorias e, sobretudo, que exige novas abordagens metodológicas e epistemológicas.

Importa agora explorar sumariamente algumas das novas metodologias surgidas para ensaiar respostas às novas problemáticas levantadas. Os novos métodos de investigação têm de se coadunar à investigação nesta realidade móvel e aos desafios por ela impostos.

O afeto na relação do humano com o movimento é tomado, no novo contexto das mobilidades, como um aspeto central a ser tido em conta. Nesta nova forma de olhar as mobilidades “a viagem não é apenas uma questão de chegar a um destino” (Sheller &

Urry 2004). A viagem não é encarada como uma forma de ligar A e B da forma mais rápida possível. A viagem é, neste contexto, encarada como uma experiência, com contornos diversos – culturais, políticos, sensoriais (Lyons & Urry, 2005). É assim que surgem as etnografias móveis – uma fenomenologia da mobilidade. Estes métodos visam precisamente averiguar os comportamentos dos humanos numa realidade móvel, no sentido de perceber esse movimento na sua componente de mobilidade – pleno de significado. Sheller & Urry (2006, 2016) e Schorpp (2016) apontam Schein (2002) como pioneira na aplicação destes métodos móveis, enunciando-os como itinerant ethnography, referindo-se a um estudo aplicado à comunicação das diásporas relativamente à fruição de cassetes, vídeos e CD’s.

As mobilidades estão presentes no quotidiano de diversas formas. Considerando desde as comunicações, ao movimento de mercadorias e de pessoas, as novas vidas encontram-se fortemente marcadas por essa mobilidade. Mas a mobilidade envolve amiúde materialidades híbridas onde humanos e mediadores capazes de incutir velocidade ao movimento dos corpos se imiscuem – “sistemas híbridos, «materialidades e mobilidades», que combinam objetos, tecnologias e sociabilidades, e fora desses distintos lugares são produzidos e reproduzidos” (Sheller & Urry, 2006, p. 214). Esta perspetiva leva a uma transgressão do humano e à consideração das materialidades como tecnologias que afetam a experiência que este faz do espaço (Ihde, 2009). A fenomenologia da mobilidade que enunciamos deve ver-se agora complementada com uma perspetiva onde, muitas vezes, esses significados e afetos da mobilidade só se

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24 constituem por uma mediação tecnológica híbrida que permite ao humano ter uma diferente experiência do movimento. É assim de perceber o sujeito da ação de forma relacional onde a compressão dos fenómenos está dependente da compreensão de uma rede de múltiplas componentes onde ele se insere – como sugere a teoria do ator-rede (Latour, 2005). Os objetos que permitem essa mediação da forma do humano ser-no- mundo8 e de se relacionar com ele passam a ser fundamentais à perceção da paisagem.

Outra das componentes que marcam a contemporaneidade é a mobilidade de informação digital, sobretudo através da internet. O novo paradigma também integra o movimento de realidades não materiais no mundo digital. Para isso afigura-se como essencial a netnografia, que reconsidera o campo de estudo da etnografia tradicional, transportando-o para o ciberespaço (Keeley-Browne, 2011).

Nesta abordagem são também consideradas viagens imaginárias (imaginative travels). Estas geografias imaginárias consistem numa presentificação dos lugares ou em antecipação ou por memória (Sheller & Urry, 2006, p. 218). Esta geografia imaginária desenvolveu-se como uma das inovações mais significativas desta consideração das mobilidades no seu significado mais do que na sua realidade material. Aqui vemos nitidamente a distinção entre movimento e mobilidade, enunciada acima com base nos trabalhos de Cresswell (2001, 2006, 2011).

Além destas componentes, o novo paradigma das mobilidades preocupa-se ainda em compreender as diferenças do acesso à mobilidade – a capacidade ou incapacidade de cada um se mover. A capacidade de acesso à mobilidade – a motilidade – traz assim para a discussão também as imobilidades e os espaços dessas imobilidades, dos quais os campos de refugiados constituem excelentes exemplos. “A mobilidade e o controlo sobre essa mobilidade refletem e reforçam o poder. A mobilidade é um recurso com o qual nem todos têm uma relação igual”(Skeggs, 2004, p. 49).

8 Cresswell (2006) faz referência aos trabalhos de Heidegger para explicar este ser-no-mundo e é oportuno explicar agora, a propósito da mediação tecnológica e da multiplicação das possibilidades de presença do ser, esse tópico. A ideia de Dasein de Heidegger é a ideia de o ser na sua orientação no projeto eudemonista de superlativação do si dominado pelo interesse prático. O ente assume-se como várias possibilidades de existência no ser-o-aí; na sua presença ou existência no mundo; no seu Dasein. A ideia de Cresswell, que se encontra melhor explicitada nos trabalhos de Idhe (2009), é que a mediação tecnológica na relação sujeito- mundo material é justamente a multiplicação dessas possibilidades do Dasein dilatando o ente no seu ser – nas suas possibilidades de existência ou nas opções disponíveis na sua navegação vital.

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25 Neste quadro podemos entender o paradigma das novas mobilidades como uma visão que pretende olhar para a nova realidade líquida em permanente movimento não como uma mensuração quantitativa desses fluxos, mas sim como uma realidade que determina e é determinada por uma conjuntura social complexa, imbuída de significados e corporizada num complexo relacional entre diferentes realidades. Esta nova forma de olhar leva a novas problemáticas e consequentemente a novas abordagens epistemológicas e metodológicas. Apresenta-se em plenitude como um novo paradigma; uma nova forma de ver e problematizar o mundo que não era tida em conta até então e que exige novas formas de pensar, sendo completamente incomensurável com paradigmas anteriores que não estavam despertos para a problematicidade então levantada (Kuhn, 2009). E essa nova abordagem das mobilidades diz também respeito às práticas turísticas (Coleman & Crang, 2002; Sheller & Urry, 2004). Principalmente aquelas que privilegiam o fenómeno da viagem em si e o tomam como uma experiência e não como uma mera ligação entre dois pontos (Larsen, 2001). É aqui que interessa destacar o slow tourism.

2.2. Movimento pelo lento e Slow tourism

O slow tourism surge num quadro de um movimento mais abrangente: o movimento pelo lento. Por sua vez este movimento surge num panorama social onde a consciência ambiental ganha cada vez mais destaque na escolhas e práticas quotidianas de um significativo e crescente número de pessoas. Esta preocupação ambiental é transversal às mais diversas áreas de atividade humana (Jamal & Higham, 2021). Uma das componentes desta forma de vida, marcada pelo cuidado, é a preocupação em ter um menor impacto nos ecossistemas, procurando para isso reduzir a velocidade implícita nas diferentes ações comuns do quotidiano e nos diferentes aspetos sociais. É assim que surge o movimento pelo lento.

O movimento pelo lento surge “em resistência a um domínio económico que prioriza a globalização, a uniformização e a racionalidade” (Dickinson & Lumsdon, 2010, p. 2) – a uma ideia de globalização potencializadora de uma desumanização, marcada pela

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26 velocidade (Lipovetsky, 2004; Virilio, 2006) e “apostada em incrementar um domínio do nada em forma de não-lugares, não-coisas, não-pessoas e não-serviços; tudo à custa de um continuo não-algo” (Høyer, 2009, p. 65). O movimento pelo lento é um conjunto de práticas alternativas ao mainstream marcado pela velocidade – uma forma lenta de fazer as coisas (a slow way of doing things) – que se opõem ao consumismo, à homogeneização globalizada (globalized homogenisation) e à sociedade hipermoderna (Humphery, 2013;

Rose, 1999; Schor, 2010). Vários fenómenos passam então a ver-se acrescidos do prefixo slow: slow food, slow cities (ou cittàslow), slow travel, slow tourism. Todas estas novas práticas devem ser vistas não fragmentadamente, mas como partilhando uma filosofia comum e integrando-se num conjunto onde existem relações de interdependência entre elas. O movimento pelo lento carateriza-se por ter ritmos lentos, pela sustentabilidade e por lutar contra a uniformização cultural, buscando e desfrutando das particularidades de cada cultura (Dickinson & Lumsdon, 2010b; Schor, 2010).

Perante a tendência de crescimento das práticas lentas nas mais diversas áreas da vida humana, o turismo não é exceção. A atividade turística viu-se também modificada pelos novos estilos de vida determinados pela evolução de uma preocupação ambiental que determinaram um crescimento de formas de turismo mais amigas do ambiente e mais justas (Higgins-Desbiolles, 2008; Jamal & Camargo, 2014; Jamal & Higham, 2021;

Liu, 2003; Moira et al., 2017). O turismo de massa vê-se agora em competição com uma nova forma de encarar a experiência turística: o slow tourism (Higgins-Desbiolles, 2020;

Stamboulis & Skayannis, 2003). O termo slow tourism surge da aplicação desta conceptualização do lento às práticas turísticas (Dickinson & Lumsdon, 2010b; Fullagar, Markwell, et al., 2012; HALL, 2009; L. M. Lumsdon & McGrath, 2011). Na primeira década do século XXI inicia-se a discussão concetual em torno destas novas condutas

“«slow» em relação aos princípios do turismo sustentável, e também em relação à forma como identificar o conjunto de práticas slow, as suas motivações e as demais questões para o desenvolvimento do turismo” (Fullagar, Markwell, et al., 2012, p. 2), surgindo aí o termo slow tourism na literatura científica. Desde então uma série de atividades foram classificadas como slow tourism. O slow tourism apresenta-se como um conjunto de práticas alternativas ao turismo de massa, onde se dá o encontro entre viagem lenta, consumo lento e mobilidades suaves (Moira et al., 2017).

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27 Note-se que o slow tourism começa a desenvolver-se concetualmente na sequência da problematização dos significados das mobilidades – no contexto do paradigma das novas mobilidades – e aparece sobretudo associado à viagem lenta (Dickinson, Lumsdon, & Robbins, 2011). Assim, tal como o paradigma das novas mobilidades, este conceito surge no início do século, tendo-se vindo a desenvolver sobretudo a partir da última década, onde as práticas de viagem lenta e slow tourism9 têm vindo a ganhar uma expressão cada vez mais significativa (Dickinson & Lumsdon, 2010b; Fullagar, Markwell, et al., 2012; L. M. Lumsdon & McGrath, 2011).

A viagem lenta implica um ritmo específico na mobilidade, enfatizando a experiência da viagem como um fenómeno em si. Este tipo de viagem surge em alternativa às mobilidades rápidas que visam apenas a ligação entre dois pontos específicos do mapa, tentando reduzir ao máximo o ruído entre eles e, consequentemente, abstraindo tudo o que está no meio. Este novo ritmo da mobilidade pretende potencializar uma nova forma de conhecer os locais, com uma interação mais próxima e mais demorada com as culturas e com as pessoas, e uma ênfase na experiência da viagem como forma de conhecer os locais em mobilidade lenta (Cresswell, 2006). Este ênfase na experiência da viagem carateriza-se por privilegiar mobilidades lentas, estadias mais longas e contactos com as populações e culturas locais mais demorados, onde há uma integração do turista nessas comunidades. Essa forma de encarar a experiência turística, onde há uma procura por um contacto mais demorado com os lugares, pessoas e culturas que se visitam, implica também que se viaje menos (Howard, 2012). Pode dizer-se que há um prescindir da quantidade de lugares visitados durante a viagem de forma a privilegiar o contacto mais aturado com as geografias que se visitam.

O movimento pelo lento, no qual se integram o slow tourism e a viagem lenta, tem preocupações ao nível ambiental. Nesse sentido, importa trazer à colação as mobilidades verdes ou suaves, onde uma preocupação com os impactos ambientais dos meios de transporte utilizados se constitui como caraterística central. Esta prática reflete-se na

9 Estes dois termos podem amiúde confundir-se na bibliografia, sendo que quando se fala de slow travel se está a pensar num contexto turístico. Contudo, importa esclarecer que aqui, por limitação linguística para designar o que se pretende significar por slow tourism, consideraremos a slow travel como uma das componentes do slow tourism, que se vê complementado pelo que designaremos por soft ou green mobilities e locality – ver, por exemplo (Fullagar, Wilson, et al., 2012, pp. 1–10)

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28 atividade turística como uma nova forma de visitar os territórios que faz uso de meios de transporte suaves, com baixas emissões de carbono.

O slow tourism constitui-se assim não como uma subcomponente separada dentro do quadro do movimento pelo lento, mas sim como uma aplicação da forma de pensar lenta ao âmbito do turismo, que se interliga com muitas outras componentes do movimento pelo lento, tais como a viagem lenta, o consumo lento e as mobilidades suaves. Podemos dizer que o slow tourism, como forma de pensar slow, assenta em três eixos estruturantes: i) distâncias curtas; ii) ênfase na experiência da viagem; iii) práticas amigas do ambiente. Esta forma de visitar os locais tem um conjunto de características e princípios próprios: “i) a viagem lenta é um estado de espírito; ii) os turistas devem viajar lentamente e evitar aviões; iii) a viagem é intrínseca à experiência turística; iv) o local é importante; v) desacelerar para desfrutar da cidade ou da paisagem é essencial; vi) a cultura através da língua e do envolvimento com a população local contribui para umas férias melhores; vii) os turistas devem criar oportunidades procurando o inesperado;

viii) retribuir às comunidades locais é fundamental” (L. M. Lumsdon & McGrath, 2011, p. 266) cit. (Gardner, 2009).

Esta natureza lenta leva a que a experiência do slow tourism seja distinta das práticas comuns de turismo (Dickinson & Lumsdon, 2010b, p. 191), distinguindo-se também por uma experiência multissensorial mais rica dos diferentes elementos do espaço (Fullagar, Markwell, et al., 2012). Perceber os sentidos implica uma abordagem não-representacional e fenomenológica, onde corpo, performance e afeto se cruzam numa mesma experiência da paisagem (Jensen et al., 2015).

2.3. Slow tourism como experiência multissensorial da paisagem

À semelhança do quadro teórico que temos vindo até aqui a explorar, só recentemente, em especial a partir da primeira década do séc. XXI, na história dos estudos em turismo, a dimensão sensorial passou a ser foco de análises pormenorizadas (Meacci & Liberatore, 2018). Pese embora o termo sensescape aparecer pela primeira vez

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29 referido por Porteous (1985), só a partir da década de 1990 ele viria a ser explorado de forma sistemática e aturada (Agapito et al., 2013). Até ao início da década de 1990, o olhar era tomado como o sentido central na prática turística. Desde então, outros sentidos têm sido explorados dando origem a termos como paisagens sonoras, paisagens olfativas, paisagens do paladar e geografias do toque (soundscapes, smellscapes, tastescapes, ou geographies of touch).

Estas múltiplas dimensões sensitivas, que iam além do visual, foram percebidas conjugadamente, dando lugar a uma compreensão multissensorial da experiência da paisagem: “o que pode parecer à primeira vista ser uma perceção visual, numa inspeção mais cuidada pode ser visto como incluindo importantes componentes auditivos, olfativos e táteis” (Rodaway, 1994, p. 26). A compreensão multissensorial do lugar passou então a ser central para o estudo da experiência do humano (Crouch, 2002).

A aceção ontológica do fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty, que propõe uma compreensão da experiência que supera o clássico dualismo corpo-mente, onde o corpo é o que experiencia e a experiência é a única forma de conhecimento do humano (Merleau-Ponty, 1945)10, foi determinante para o desenvolvimento dos estudos da

10Maurice Merleau-Ponty insere-se na tradição fenomenológica e destaca-se pelos seus estudos sobre a condição do corpo como irredutível instrumento de perceção e mediação com o mundo (Merleau-Ponty, 1945). O seu interesse pela questão insere-se numa crítica direta a Heidegger e a Husserl, que, para ele, não tinham esclarecido suficientemente bem o conceito de perceção e de mundo da vida (Lebenswelt) como fenómeno para o corpo, tomando-os como evidentes (Abram, 1996).

“O corpo próprio está para o mundo como o coração para o organismo” (Le corps propre est dans le monde comme le cœur dans l'organisme) (Merleau-Ponty, 1945, p. 235). Para Merleau-Ponty, a experiência é a experiência feita pelo corpo próprio – uma experiência na primeira pessoa do singular humanamente corporizada, que se assume como central a toda a perceção, distinguindo-se por isso de tudo o resto: “não haveria espaço para mim se eu não tivesse corpo” (il n'y aurait pas pour moi d'espace si je n'avais pas de corps) (Merleau-Ponty, 1945, p. 119). O corpo constitui-se como um ser-para-o-mundo, que em qualquer experiência de uma qualquer coisa, a percebe através de si (Moya, 2014).

Tomando a primeira pessoa do singular, enquanto corporizada, como centro da experiência, Merleau-Ponty analisa a relação típica do corpo com o espaço vivido (ilustrando-a a partir do famoso caso de Scheider). A projeção do espaço, defende o autor, corresponde a um sistema pré-consciente, onde o corpo se percebe num contexto situacional, mantendo uma relação com as materialidades dominada pela potencialidade de intervenção delas no contexto da sua navegação vital (Carman, 1999). O esquema corporal estabelece-se como uma relação de afetação potencial entre quem percebe e o que é percebido. O espaço aparece-nos como a multiplicidade de possibilidades da experiência – o corpo não está apenas no espaço, vive nele e mantém como ele uma relação de afetação – de possibilidades do desenrolar da sua navegação vital, o que determina uma forma particular e subjetiva de representação (Halák, 2018). Esta relação do corpo com o mundo, além de se dar no registo da perceção enquanto possibilidades para si, dá-se num registo de

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30 experiência da paisagem e, consequentemente, da experiência turística. A experiência corporizada deu lugar a uma corrente epistemológica no estudo dos lugares e da multissensorialidade (Williams et al., 1992). O estudo das perceções e do sentido de lugar vê em Yi-Fu Tuan (1990, 2001) o pioneiro, mas a ele muitos se seguiram com abordagens progressivamente diferentes. Precisamos de chegar ao século XXI para vermos, pelas mãos Thrift (2007), o surgimento das perspetivas não representacionais na Geografia, como uma geografia do que acontece ou uma geografia da experiência. Esta nova abordagem olha para a experiência da paisagem como uma relação entre ela e o humano no sentido em que essa experiência só se dá de forma corporizada.

A experiência turística viu também o seu quadro teórico significativamente afetado por estas novas abordagens epistemológicas e pelo incremento (como vimos no ponto dois) das práticas lentas de viagem, como tendo num dos seus pilares a preocupação com uma vivência mais plena da paisagem (Dickinson & Lumsdon, 2010b;

Guiver & McGrath, 2016). A natureza dos ritmos das práticas de slow tourism determina que o contacto com os elementos da paisagem seja feito de uma forma mais demorada tornando-se, consequentemente, sensorialmente mais rico (Stamboulis & Skayannis, 2003). O slow tourism, quando encarado por uma abordagem que pretende determinar a vivência da paisagem pelo ângulo das afetividades, mostra-se invariavelmente como sendo sensorialmente mais estimulante que a prática turística convencional (Agapito et al., 2013; Gretzel & Fesenmaier, 2003, 2010; Meacci & Liberatore, 2018; Rahmani et al., 2019). O tempo para assimilação dos fenómenos e a desaceleração dos ritmos são apontados como os principais elementos distintivos deste tipo de experiência (Gretzel &

Fesenmaier, 2010; Kastenholz & Breda, 2018; Pan & Ryan, 2009). Qualquer análise a uma

perceção temporal. Neste aspeto, Merleau-Ponty partilha das visões de Kant, Husserl e Heidegger (e Santo Agostinho), defendendo que a perceção que fazemos do tempo é de cada vez total – compreendendo passado, presente e futuro numa unidade compacta e a cada momento variável10(Shen, 2021).

Em linha com o pensamento de Husserl e Heidegger, o seu entendimento da consciência difere dos modernos, elegendo Descartes como interlocutor, para criticar ao dualismo corpo-mente. A perceção aparece-nos como uma redução fenomenológica existencial, onde o mundo é percebido pelo corpo em relação a si como um conjunto de possibilidades de afetação – intencionalidade operativa do processo reflexivo. O mundo aparece-nos como significativamente estruturado pela pré-consciência e pela temporalidade, onde o corpo é o centro dessa experiência. Para Merleau-Ponty,“a fenomenologia expressa assim o aparecimento do significado do mundo” (Toadvine, 2019).

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31 experiência de slow tourism envolve, portanto, uma atenção a esta sua componente distintiva que é o contacto multissensorialmente mais rico com a paisagem.

2.4. O cicloturismo como forma de slow tourism

São múltiplas as atividades que, com o advento do movimento pelo lento e, mais concretamente do slow tourism, se viriam a tornar cada vez mais significativas, cativando sucessivamente um maior número de adeptos. O slow tourism é uma forma de encarar a viagem e experiência que se quer fazer dos locais. Esta filosofia da viagem privilegia algumas atividades específicas como turismo de comboio (Theroux, 1989, 2006, 2009)), caminhada (Careri, 2017; Solnit, 2001), ciclismo, algumas formas de viagem em transportes aquáticos e excursões de autocarro (Dickinson & Lumsdon, 2010b).

Apresenta-se como um aparente caso paradigmático destas novas práticas lentas o cicloturismo, no qual nos interessa agora concentrar-nos.

Assim como outras atividades ao ar livre, o cicloturismo “assume maior expressão em territórios rurais e montanhosos”(Carvalho, 2021, p. 1). Contudo, a bicicleta é utilizada para deslocações de vários tipos (embora eles não sejam indissociáveis entre si): para deslocações quotidianas, de lazer, de turismo e para a prática desportiva. De todas estas interessa-me excluir as deslocações quotidianas em ambiente urbano e focar-me nas deslocações por lazer e turismo – deslocações que assumem como principal motivação o ato de viajar como um prazer em si próprio.

A circulação em bicicleta como prática turística coaduna-se totalmente com o cruzamento conceptual entre slow tourism e turismo sensorial, por ser uma atividade com ritmos lentos, permitindo uma experiência multissensorial da paisagem mais rica em mobilidade (Dickinson & Lumsdon, 2010a). Em todo o caso, a experiência é complexa e interrelaciona-se com diversos fatores. A perceção da paisagem pode ser influenciada pelo esforço físico, nomeadamente ao nível do condicionamento dos sentidos (Spinney, 2006, p. 725).

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32 A prática ciclística como forma de sentir a paisagem insere-se numa tipologia de dimensão turística: o cicloturismo (bicycle tourism ou cycling tourism). Definir este conceito pode não ser fácil, dadas as diferentes considerações técnicas tomadas por diferentes autores. Ademais, esta prática compreende diferentes modalidades, o que não facilita a fixação de um conceito claro e objetivo (Lamont, 2015). Contudo, Lamont (2009, p. 32) propõe o seguinte entendimento para o conceito de cicloturismo: “viagens fora da área de residência da pessoa, nas quais a participação ativa ou passiva no nos eventos ciclísticos é considerada o principal propósito dessa viagem”.

A prática do bikepacking, associada a saídas longas, de vários dias, onde as noites são passadas ou em alojamentos ou em acampamentos, enquadra-se neste conceito de cicloturismo. No entanto há que ressalvar que outras definições para este conceito, algumas mais, outras menos restritivas, foram propostas por diversos autores (Fernández-Latorre, 2015; Han, Meng, & Kim, 2017; Lumsdon, 1996; Ritchie, 1998;

Simonsen, Jørgensen, & Robbins, 1998; Weston et al., 2012).

Dentro do cicloturismo há que levar em conta distintas tipologias que se diferenciam segundo alguns critérios, tais como: duração, propósito, motivação, distância, locais da viagem. Fernandéz-Latorre (2015), com critérios menos restritivos, diferencia três tipologias: férias ciclísticas (cycling holidays), férias com ciclismo (holiday cycling) e viagens ciclísticas de um dia (cycling day visit). Enquanto a primeira é entendida como uma viagem turística centrada na prática do ciclismo, a segunda consiste na utilização de bicicleta em eventos pontuais durante uma viagem e a última numa tirada ciclística com duração inferior a um dia. Nesta tipificação a prática do bikepacking insere- se na primeira tipologia.

Contudo, Lamont (2009) propõe cinco diferentes categorias: a) turismo ciclístico independente (independent cycle tourism) – viagens onde o foco principal é a atividade de pedalar e que têm uma duração superior a um dia, tendo como único meio de transporte a bicicleta; b) ciclismo recreativo (recreational cycling) – viagem com duração inferior a um dia, onde a bicicleta é o único meio de transporte; c) participação em eventos de ciclismo amador (participatory cycling events) – eventos de ciclismo não competitivos, tais como passeios promovidos por associações ou outro tipo de organizações; d)

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33 participação em eventos de ciclismo competitivo (competitive cycling events); e) participação passiva como espectador em eventos de ciclismo (passive participation spectating – at cycling events) – viagens com o objetivo de assistir a eventos de ciclismo.

Enquanto nas categorias de Fernandéz-Latorre (2015) a prática de bikepacking se insere na tipologia férias ciclísticas, na categorização proposta por Lamont, essa mesma prática é tomada como turismo ciclístico independente.

2.5. Cicloturismo como slow tourism?

Embora o cicloturismo seja uma prática turística com cada vez maior expressão e importância, os estudos que associam a prática ciclística e o turismo são ainda escassos e deixam muitos caminhos por explorar (Hannam et al., 2021).

Matteucci & Tiller (2022) problematizam a relação entre o slow tourism e o bikepacking. Apesar de na literatura tradicional o cicloturismo ser, amiúde, apresentado como uma das formas paradigmáticas de slow tourism, estes autores defendem que essa relação não é tão simples como possa parecer a uma primeira vista: “as experiências dos ciclistas não refletiram os preceitos da viagem lenta encontrados na literatura. Os resultados do nosso estudo revelam claramente que não é possível identificar um viajante lento com base apenas numa observação externa (como andar de bicicleta)”

(Matteucci & Tiller, 2022, p. 10).

Interessa neste ponto ter presentes os três aspetos estruturais do slow tourism: i) distâncias curtas; ii) ritmos lentos e ênfase na experiência da viagem; iii) práticas amigas do ambiente. A problematização da relação entre o cicloturismo e as práticas lentas assenta em dois eixos fundamentais, a saber: i) a efetividade da preocupação ambiental dos cicloturistas e ii) a complexificação da ideia de ritmo envolvida nesta experiência, à qual seria redutor adjetivar apenas como lento. Interessa agora perceber melhor a argumentação envolvida nessa problematização.

Dickinson et al. (2011; 2010b) já tinham apontado que a ligação entre o movimento pelo lento no âmbito das práticas turísticas e as preocupações ambientais não resultava evidente com base nas suas investigações. Esta argumentação contrariava os estudos de

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