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PONTOS DE VISTA, METAFORAS, IRONIAS E AS
TRANSFORMAÇÕES DA IMAGINAÇÃO SOCIOLÓGICA
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Idilva M aria Pires Germano'
RESUMO
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
E s te tr a b a lh o d is c u te a c r e s c e n te m is tu r a d e g ê n e r o s q u e v ê m m a r c a n d o o p e n s a m e n to e a s p r á tic a s d a s
C iê n c ia s S o c ia is , le v a n d o - a s a a p r o x im a ç õ e s c a d a v e z m a is in te n s a s c o m a s fo r m a s e lin g u a g e n s e s té tic a s , n a
in te n ç ã o d e e s c a p a r d o s d iv e r s o s r e d u c io n is m o s a o s q u a is e s tã o s u je ita s . T o m a c o m o p o n to d e p a r tid a a s r e fle x õ e s
d e G e e r tz e Q u é r é a c e r c a d a n a tu r e z a h e r m e n ê u tic a d o s e s tu d o s s o b r e o s o c ia l, p a r a d e p o is a p r e s e n ta r o s c o n c e ito s
d e p o n to d e v is ta , m e tá fo r a e ir o n ia , c o m o b a s e p a r a p e n s a r n o m o d e lo d e u m a E s té tic a C o g n itiv a p a r a a s
d is c ip lin a s s ó c io a n tr o p o ló g ic a s .
P a la v r a s - C h a v e : S o c io lo g ia H e r m e n ê u tic a ; E s té tic a C o g n itiv a , P o n to d e v is ta , M e tá fo r a , I r o n ia .
P o in ts o f v ie w , m e ta p h o r s , ir o n ie s a n d tb e c h a n g e s o f s o c io lo g ic a l im a g in a tio n
ABSTRACT
T h is p a p e r d is c u s s e s th e p r o b le m o f th e " b lu r r e d g e n r e s " in a c tu a l S o c ia l S c ie n c e s a n d th e in c r e a s in g in te r e s ts o fs o c ia l fie ld s in a r tis tic fo r m s o f k n o w le d g e , a s m e a n s o f p r o te c tio n a g a in s t v a r io u s k in d s o fs im p lis tic
th o u g h t.
It
s ta r ts w ith G e e r tz s a n d Q u é r és
r e fle c tio n s o n th e in te r p r e ta tiv e n a tu r e o fs o c ia l s tu d ie s , la te r in tr o d u c in gth e c o n c e p ts o f p o in t o f v ie w , m e th a p h o r a n d ir o n y , to s u g g e s t C o g n itiv e E s th e tic s a s a m o d e l fo r s o c io lo g ic a l
im a g in a tio n .
K e y w o r d s : H e r m e n e u tic s /ln te r p r e ta tiv e S o c io lo g y , C o g n itiv e E s th e tic s , P o in t o f v ie w , M e ta p h o r , I r o n y .
• Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará.
29
1. A
QUESTÃO DOS GÊNEROS
INDE-FINIDOS EA RECONFIGURAÇÃO DO
PENSAMENTO
SÓCIO-ANTROPO-LÓGICO
Em
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S a b e r L o c a l, Clifford Geertz (1999) assinala uma série de transformações que marcam ateoria social contemporânea. Uma delas é o
surgimento de uma miscelânea de estudos sobre o
social cujos gêneros parecem indefinidos ou
misturados. Outra mudança é que muitos cientistas
sociais hoje tendem a deslocar sua atenção para os
fenômenos do simbolismo, numa clara assunção de
que sua tarefa é bem mais interpretativa do que
explicativa, contrariando os princípios e métodos
da tradição objetivista. Além disso, o discurso de
tais estudos se vale cada vez mais de analogias
tomadas de empréstimo às humanidades - teatro,
pintura, literatura, retórica, direito, gramática
etc.-e cada vetc.-ez metc.-enos das analogias metc.-ecânicas etc.-e orgânicas
características do pensamento sociológico clássico.
Esses fatos reunidos indicam uma espécie de
reviravolta cultural, onde filósofos, críticos literários,
historiadores, romancistas, sociólogos e ideólogos
produzem discursos sobre o social que parecem se
mesclar uns aos outros, quebrando as fronteiras das
especialidades e tornando difícil a classificação das
obras e dos autores. O estado da teoria social hoje
sugere que esse foi o modo encontrado para as
Ciências Sociais criarem personalidade própria
-mesmo que plural- e assim, se desfazerem das idéias
recebidas sobre o que e como investigar seus objetos.
A vocação das Ciências Sociais parece mais assumida:
ao invés de imitar modelos de um ou outro saber, é
possível descobrir ordem na vida coletiva pela via
hermenêutica. A abordagem interpretativa concebe
a vida social como uma realidade organizada em
símbolos cujos significados devem ser apreendidos
para que se compreenda tal organização e se
formulem seus princípios. A opção herrnenêutica
não significa a renúncia à reorizaçâo: procura-se saber
o quê e como uma coletividade pensa ou age a fim
de distinguir princípios para além daquela sociedade
particular, ou seja, leis da ordem social e de outras
experiências da sociabilidade humana. Esse
deslocamento no olhar sociológico é acompanhado
30
por novidades na retórica analítica, isto é, nas figuras
utilizadas para a explanação dos fenômenos.
É
assimque vemos as analogias da conduta social como
máquina ou organismo serem substituídas por
analogias tais como a do jogo, teatro ou texto.
Certamente que a mudança não ocorre apenas no
nível da representação lingüística no sentido estrito,
mas ela significa principalmente a transformação
radical na imaginação sociológica, obrigada a pensar
e a dizer o real a partir do paradigma da
inrersubjetividade.
Quer a conduta humana seja concebida como
lugar de regras e estratégias (como jogo), de atores,
máscaras e rituais (como teatro), ou de ditos e
não-ditos (como texto), verifica-se que essas analogias
traduzem um mesmo posicionamento filosófico, a
saber, que todo conhecimento é construido no
interior de uma comunidade de discurso. Essa
abordagem, a do r e a lis m o s im b ó lic o (M enezes, 1996), supõe a existência de realidades múltiplas construídas
intersubjetivamente, de modo que a própria ciência
- tal como o senso comum, o mito, a arte - é vista
como construção parcial e metáforica da realidade.
Essa visão destrói o ideal de unanimidade explicativa
e a pretensão de descrição fiel das coisas. Os objetos
científicos deixam de ser considerados dados, e as
proposições científicas renunciam à univocidade.
Com efeito, a preocupação atual com a
metáfora na ciência é fruto da reviravolta lingüística
na filosofia. Considerando que todo saber é mediado
por símbolos localizados, a distinção tradicional
entre arte e ciência torna-se mais tênue, elevando a
metáfora a um lugar central na discussão
epistemológica e ontológica, e dispondo-a como
modelo para o pensamento sociológico. Não se
reconhece mais a existência de um saber dos saberes,
que esteja fora da mediação cultural. Na sociologia
e na antropologia, o uso das metáforas passa a ser
internamente objeto de reflexão e as próprias
metáforas agora traduzem o espírito "dialógico" da
realidade social: intertexrualidade, jogo, etc.
Essas analogias, entretanto, apresentam-se como
caminho de mão-dupla: podem tanto oferecer
imagens fecundas ao pensamento, quanto soluções
enganosas e simplistas. Uma das dificuldades no uso
científico das novas figuras de linguagem é que nessa
fronteira indistinta entre as artes e a ciência, é fácil
tropeçar nos conceitos e no vocabulário da Estética
quando na sua transposição para a teoria social. No
lado das vantagens, essas analogias permitem
visualizar melhor a articulação epistemológica entre
os procedimentos estéticos e científicos,
tradicionalmente inconciliáveis, na construção e
representação do real.
De fato, as Ciências Sociais têm admitido o
"argumento herrnenêutico" a fim de lidar com várias
reduções epistemológicas. O "argumento
herrne-nêutico" refere-se à "proposição de que a realidade
social só se revela
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n a ep e la interpretação, em virtude de sua consistência própria: não somente ela épré-interpretada por aqueles que nela vivem (versão
tímida), mas, sobretudo, ela se constitui n a ep e la
interpretação de si mesma, no sentido de que a
atividade e as instituições sociais organizam-se e
estabilizam-se através das interpretações dos agentes a seu respeito." (Quéré, 1992: 49)
Essa peculiaridade faz com que a sociologia
apresente um estatuto "duplamente herrnenêutico".
O seu objeto - a ação social - é produzida e mantida
por meio de uma interação simbólica entre atores
que atribuem inteligibilidade e pertinência a essa
onduta; por outro lado, a disciplina tem que
recorrer à interpretação como meio para o
entendimento desse mundo simbólico, seja na coleta
de dados (a observação significa identificação de um
ato como isso ou aquilo, o que pressupõe a
explicação de um sistema simbólico dentro do qual
a decisão quanto ànatureza do fato foi tomada) ou na sua análise em sentido estrito. Para Quéré, o olhar
interpretativo combate dois tipos de limitações
omuns do pensamento sociológico: a "redução
empiricista" e a "redução construtivista".
A redução empiricista consiste em dividir o
objeto em dois elementos: uma realidade bruta (à
qual se atribui propriedades independentes de sua
qualidade de objetos da experiência subjetiva dos
agentes) e um sentido atribuído a essa realidade pelos
sujeitos, sob forma de valores, atitudes etc. Para
onhecer a experiência, portanto, converte-se a
mesma a fatos brutos, como, por exemplo, categorias
Argumenro que é a base da crítica a certa linhagem de Psicologia Social.
8CH-PE
RIODICOS
profissionais, etárias, sexuais, religiosas e outras, elas
mesmas deixadas sem interpretação. A tarefa do
pesquisador é extrair as regularidades com que tais
disposições se manifestam em certas amostras (cuja
escolha também não é interpretada) de modo
descritivo. Nesse caso, não vale a interpretação, já
que ela é produtora de dissenso, mas uma verificação
de proposições descritivas observáveis e suscetíveis
de refutação. No positivismo lógico, a interpretação
só é permitida no plano da formulação de hipóteses,
na contextualização do objeto, mas é vedada na
instância da prova.
A crítica herrnenêutica ao positivisrno
volta-se principalmente para a sua perda do sentido
intersubjetivo da ação social. Uma das conseqüências
do empiricismo é uma redução subjetivista da
cultura, isto é, a cultura passa a ser vista como o
conjunto das atitudes individuais tomadas por cada
sujeito em certa coletividade para com um mundo
objetivo pretensamente fora das suas experiências
deinteraçâo simbólica' .O posirivisrno também não
lida adequadamente com o problema da
auto-interpretação nas Ciências Sociais, uma vez que não
inclui em sua análise aquilo que torna os fatos brutos
inteligíveis para a investigação. Daí os delineamentos
mais ernpiricistas privilegiarem o pólo técnico da
pesquisa (adotando a distinção de Bruyne et aI,
1977) e suas exigências de precisão e validade, u m a
v e z a s v a r iá v e is e s te ja m o p e r a c io n a liz a d a s . No âmbito
de uma Sociologia e Psicologia Social reflexivas, o
momento da problematização se torna mais
complexo, envolvendo uma discussão das categorias
pré-determinadas (sexo, profissão, classe social e
assim por diante) e do trabalho social que as
produziu. Esse procedimento evitaria o obstáculo
que Bourdieu (1989) chama de "senso comum
douto", muito comum nesses tipos de desenhos
positivistas.
Na redução chamada por Quéré de
"construtivisra", a inteligibilidade das condutas
sociais se dá em termos de determinações ou
cons-trangimentos externos aos indivíduos- um sistema
de leis, regras, estruturas objetivas que fixam as
disposições e que dirigem as práticas. A teoria
Revista de Psicologia. Fortaleza. V19(l/2) p. 29 - p. 35 jan/dez 2001
sociológica busca, aqui,
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r e c o n s tr u ir tais mecanismos de coerção, adotando algumas premissas: a ligaçãoestável entre a situação e os comportamentos nela
ocorridos; a idéia de que as ações particulares são
representadas por seus agentes como pertinentes a
uma classe de ações e essa pertinêricia dirige a ação
do agente em cada situação; e por fim, a existência
de um consenso cognitivo ou partilha de um mesmo
sistema de símbolos e significados, que permite a
cada um dar uma resposta apropriada a cada situação.
A tarefa sociológica reside em identificar as
estruturas objetivas (ex. "o campo" de pertença, o
"habirus", como em Bourdieu) e deduzir daí os traços
pertinentes dos comportamentos observados,
mostrando que essas disposições duradouras são o
que confere à ação o seu caráter racional e ordenado,
mediante arbitrariedade social e cultural. O modelo
de análise é bem mais explicativo do que descritivo
ou interpretativo e se vale da forma dedutiva, com
intenção nomológica (Quéré, o p . c it. 5 4 - 5 5 )
A crítica herrnenêutica mais concreta nesse
caso é o risco de considerar falas e atos singulares
dos agentes como ilustrações ou exemplos das
categorias do sociólogo, bem como a pouca atenção
que se dá ao modo como opiniões singulares sobre
o que deve ser feito se convertem em signos de
regras, papéis, etc. Como se percebem as estruturas
objetivas por detrás das ações singulares? Para
Quéré, o programa da ernometodologia se propõe
a solucionar esse problema, buscando investigar
empiricamente o argumento hermenêutico. Ela
procura examinar as práticas usadas pelos membros
de uma coletividade para dar inteligibilidade às suas
ações e como essa auto-percepção mediatiza a
organização das relações interpessoais e a ordem
social. A tarefa deixa de ser a explicação dos
mecanismos de constrangimento entendidos como
externos aos agentes para ser a explicação do sistema
de saberes e práticas cotidianos produzidos e
compartilhados no próprio interior das estruturas
de experiência. Desse modo, o modelo é o de uma
sociologia da interpretação ordinária. Um
tratamento empírico dessa natureza focalizaria o
caráter público e observável do sentido, sem cair
numa investigação intuitiva das vivências, nem
reproduzir as reduções já comentadas.
32
Ainda no encalço de modelos
episterrio-lógicos capazes de defender as Ciências Sociais das
ameaças reducionistas, a ref1exão interna das
disciplinas tem se voltado cada vez mais para as
formas e linguagens estéticas, cujos fundamentos de
apreensão do real parecem objeto de partilha
comum.
É
assim que pontos de vista, metáforas, ironias e outros tropos deixam de ser entendidoscomo assuntos exclusivos da literatura, para ser
reivindicados por cientistas sociais empenhados na
ampliação dos horizontes do seu trabalho.
2. O MODELO DA ESTÉTICA
COGNI-TIVA
E SUAS
APLICAÇÓES
NA
SOCIOLOGIA:
PONTOS
DE VISTA,
METÁFORAS, IRONIAS.
A partir da perspectiva do realismo
simbóli-co, verifica-se que a arte pode contribuir para o
pró-prio desenvolvimento das Ciências Humanas,
for-necendo-lhes informações importantes sobre seu
caráter de cognição. A Sociologia comumente aborda
a arte como um objeto externo, nas diferentes
teo-rias sociológicas das formas estéticas ou das obras
de arte. Entretanto, a arte pode ser investigada pela
Sociologia na sua perspectiva de produção de
co-nhecimento, como caminho para a compreensão da
ação social. A arte, que assume de partida sua
con-dição de "criadora de sentido" pode, assim, oferecer
um modelo para a investigação social que admite
como pressuposto o caráter de criação do conheci-mento. A Estética torna a ficcionalidade do real mais
visível, daí a pertinência para a teoria sociológica de
base hermenêutica.
Embora pouco tematizada na Sociologia, a noção estética de p o n to d e v is ta mostra-se bastante
próxima da reflexão sociológica sobre o lugar
ocu-pado pelo cientista em relação ao seu objeto de
in-vestigação. A necessidade de um meio-termo entre
o distanciamento e a proximidade do objeto pelo
sujeito cognoscente é compartilhada pela percep-ção estética, que identifica no modo de
conheci-mento artístico um posicionamento subjetivo feito
ao mesmo tempo de atenção desinteressada
e
departicipação. Com efeito, o discurso sociológico de vertente herrnenêutica assinala que o trabalho de
pesquisa exige uma objetividade composta dos dois
_ s de distância. É nesse sentido que surge a
es-égia metodológica da "observação participante",
e permite ao pesquisador dar conta do seu objeto,
rn e confundir com ele, nem dele se afastar ao
nto da neutralidade.
Dessa forma, distanciamento estético e
~ stanciamento sociológico seguem uma mesma
ati-- de de descoberta. Por meio da sátira, o narrador
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
- ~ V ia g e n s d e G u lliv e r c o n s e g u e fixar um outro ponto
ce vista sobre sua sociedade, de forma a provocar
a cisão nas visões estabeleci das e uniformes
so-re ela. Isto é, sob o pso-retexto de descrever as
estra-~ as práticas dos povos que visitou, Gulliver, como
uangeiro, esclarece a lógica subjacente às condu;
bem mais familiares de sua própria sociedade. O
uror marca, assim, a necessidade de distanciamento
.•do exercício do pensamento relacional para se
co-nhecer a realidade. Nesse caso, o deslocamento
es-acial evocado com o termo "viagem" serve como
::netáfora do trabalho intelectual crítico que deve se
dispor a se afastar do sentido evidente e comum para
ar conta das próprias leis dos sentidos ordinários.
A posição de Gulliver (espelho do olhar
irônico do seu criador) aproxima-se da atitude do
ociólogo que aceita a reflexividade de sua
discipli-na. Assim a postura de "estranharnenro" do nosso
herói é o estado de espírito do intelectual que, ao
desejar "conhecer os outros, não pode contentar-se
om estudã-los, mas deve também e s c u ta r - s ee
con-r ontar-se ... " (Gouldner, a p u d M enezes, 1996: 36)
Do mesmo modo que os p o n to s d e v is ta , a
m e tá fo r a também amplia as' possibilidades de
reflexividade das Ciências Sociais. Por muito
tem-o ctem-onsiderada simples adorno para fins
persuasi-'os ou, na pior das hipóteses, perigoso instrumento
e engano para os espíritos incautos, o aspecto
ognoscitivo da metáfora permaneceu
desconheci-do ou pouco tematizadesconheci-do. Para alguns filósofos, como
Paul Ricoeur (1992), a linguagem metafórica do
poeta também é s o b r e a realidade (não só sobre a
palavra) e sua atuação se dá mediante a abolição da
conotação normal (literal) da linguagem descritiva.
As metáforas, via suspensão do olhar ordinário,
per-mitem ver as coisas de maneira nova ou diferente.
Ela evoca a multiplicidade de "verdades" de que é
-eito o universo dos sentidos. Como mostra Karsten
Harries (1992) , o poder da metáfora reside "mais
na habilidade de revelar a inadeq uação da língua
que herdamos, das lentes através das quais vemos as
coisas. Revelando essa inadequação, a poesia
resta-belece a fissura que separa as palavras das coisas, o
conflito entre a língua e o que a transcende como
seu terreno e medida." ( in Sacks, 1992: 173)
A capacidade de evocar visões duplas ou
estereoscópicas também é fornecida pela ir o n ia . Nas sua origem, a ironia designava a arte de interrogar,
com o fim de estimular a "rn a iê ut ica" ou o
surgimento de idéias. Ela consistia em propor
ques-tões aparentemente ingênuas ao interlocutor
desavisado, a fim de confundí-lo e forçá-Io a pensar
em seus próprios argumentos (M oisés, 1995:295).
Como forma de apreensão da realidade, pode-se
dizer que constitui-se uma epistemologia, além de
uma prática persuasiva. M odernamente, a ironia é
entendida como figura do pensamento e da palavra
que consiste em dizer o contrário do que se pensa.
Do ponto de vista de sua estrutura, ainda segundo
M oisés, a ironia situa-se entre duas realidades, no
limiar entre conteúdos distintos. Ela pressupõe que o interlocutor, embora não venha a compreender a
mensagem de imediato, seja capaz de reconhecê-Ia
através de uma análise mais atenta das palavras e de
seu contexto de uso. Desse modo, a ironia
mostra-se como importante instrumento de conscientização,
já que supõe a admissão da potencialidade de
men-tira implícita na linguagem. A idéia de negatividade
presente na ironia, literária portanto, é
comparti-lhada pela prática científica, principalmente no
âmbito das disciplinas humanas.
Os estudos literários têm distinguido pelo
menos dois tipos de ironia: uma dita ironia retórica,
e outra, chamada de ironia romântica, porque
forjada a partir dos princípios filosóficos do
romantismo ( mas não restrita à literatura romântica
propriamente dita). Na ironia retórica, identificada
com a sátira, o locutor espera que o receptor
decodifique a mensagem que já está pronta e que o
locutor concebe como "correta" ou "verdadeira". Seu
caráter é mais monológico e mais autoritário, uma
vez que o receptor deve apreender o sentido ou o
partido do ironista e não, criar um sentido. Ou seja,
nesse tipo de ironia, há maior passividade do receptor
e a mensagem é aceita sem contradição. No caso da
"M odesta Proposta" de Swift, onde o narrado r
propõe a criação e o abate de criancinhas para o
problema da fome dos pobres da Irlanda, o efeito
irônico decorre da discordância de vozes entre o
narrado r e o autor. Também é o caso da "Teoria do
M edalhão" de M achado de Assis, que apresenta os
insólitos conselhos de um pai ao seu filho de vinte
um anos. No diálogo, o experiente pai, representante
da classe senhorial do II Império, define as condições
a serem observadas pelo jovem a fim de alcançar o
prestigiado destino de "medalhão" na sociedade
brasileira oitocentista. Entre os requisitos para a
brilhante carreira, está a de não nutrir idéias, nem
estimular quaisquer capacidades intelectuais:
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T u , m e u filh o , s e n ã o m e e n g a n o , p a r e c e s d o ta d o
d a p e ife ita in ó p ia m e n ta l c o n v e n ie n te a o u s o d e s
-te n o b r e o fic io . N ã o m e r e fir o ta n to
à
fid e lid a d ec o m q u e r e p e te s n u m a s a la a s o p in iõ e s o u v id a s
n u m a e s q u in a , e u ic e - u e r s a , p o r q u e e s s efa to , p o s to
in d iq u e c e r ta c a r ê n c ia d e id é ia s , a in d a a s s im p o d e
n ã o p a s s a r d e u m a tr a iç ã o d a m e m á n a . N ã o ; r e
fi-r o - m e a o g e s to c o r r e to e p e r fila tÚ J c o m q u e u s a s
e x p e n d e r fa n c a m e n te a s tu a s s im p a tia s o u a n tip a
-tia s a c e r c a tÚ Jc o r te d e u m c o le te , d a s d im e n s õ e s d e
u m a c h a p é u , d o r a n g e r o u c a la r d a s b o ta s n o v a s .
E is a í u m s in to m a e lo q ü e n te , e is a í u m a e s p e r a n
-ç a . N o e n ta n to , p o d e n d o a c o n te c e r q u e , c o m a id a
-d e , v e n h a s a s e r a flig i-d o -d e a lg u m a s id é ia s p r ó p r
i-a s , u r g e i-a p i-a r e lh i-a r fo r te m e n te o e s p ír ito . A s id é ia s
s ã o d e s u a n a tu r e z a e s p o n tâ n e a s e s ú b ita s ; p o r m a is
q u e a s s o fe e m o s , e la s ir r o m p e m e p r e c ip ita m - s e .
D a í a c e r te z a c o m q u e o v u lg o , c u jo fa r o é e x tr e
-m a -m e n te d e lic a d o , d is tin g u e o m e d a lh ã o c o m p le
-to d o m e d a lh ã o in c o m p le to . ( 1986,2 9 0 )
A ironia, advinda da clara oposição entre os
valores do autor e os de seu personagem, permite ao
contista firmar sua visão crítica sobre a sociedade
do seu tempo, marcando seu ponto de vista como
mais verdadeiro, e mais nobre. O leitor é conduzido
a compartilhar essa "leitura", presumidamente a
leitura correta. Nessa ironia, apesar da feroz crítica à
sociedade, não haveria uma verdadeira ruptura com
ela, já que o autor busca apoio c reforço às suas idéias
junto a essa mesma sociedade (Duarte, 1994).
No romantismo, os pressupostos são a
oposição entre indivíduo e sociedade e a
valorização da subjetividade negada pelo sistema.
Esses princípios levam ao reconhecimento do eu
e da opinião individual e, portanto, à valorização
do outro (como um outro eu) e à busca do
diálogo. O escritor se dá conta da impossibilidade
de um relato completo da realidade, para além
das subjetividades que a constróem. Como
conseqüência, o eu enunciador torna-se mais
visível e passa-se a admitir o caráter ficcional ou
construtivo da obra. Na concepção da ironia
romântica, esta surge como atitude crítica, que,
no texto, se apresenta como contradições e
ambigüidades na trama e uma freqüente referência
à própria construção textual. Como mostra Lélia
Duarte, é assim que certos contos de Guimarães
Rosa e de M achado de Assis? evocam o trabalho
de construção da própria narrativa que estão a
fazer. Ao invés de antífrases com significados
definidos (e freqüenremente opostos), o que
aparece é a falta de sentido prévio que deverá ser
construído pelo leitor ativa e criativamente. Nesse
caso, a ironia traduz uma forma de concepção do
real: que ele é inventado (e não dado à
consciência), que é múltiplo (que não há sentidos
"melhores" ou "mais verdadeiros" que os outros)
e que não está sujeito à imitação pela consciência
(que o literário - ou o científico - não é mimese
do real). A obra de arte deixa de ser a representação
tal e qual da realidade, para ser o lugar da
duplicidade, da polissemia, da ambivalência:
N a ir o n ia r o m â n tic a , n ã o s ã o a p e n a s a s n a r r a
-tiv a s c o m o ta is q u e s ã o ir ô n ic a s , m a s é o s u je ito
q u e a s e n u n c ia q u e a s s u m e a titu d e ir o n ic a m e n
-te c r ític a e m r e la ç ã o a o m u n d o , a s i p r ó p r io e a o
q u e c r ia . A o r e c o n h e c e r a s p e c to s d e o u tr id a d e d e
d is tin to s s u je ito s n o s u je ito in d iv id u a l, a ir o n ia
e s tilh a ç a o is o la m e n to a o q u a l a a u to c o n s c iê n
-c ia a p a r e n te m e n te c o n d e n a o s u je ito , q u e r e c o
-n h e c e p o d e r a tin g ir o m a is a lto a p e n a s d e fo r m a
lim ita d a e fin ita , is to é , d ia le tic a m e n te , a tr a v é s
d a ir o n ia . ( D u a r te , 1994: 61)
, Como ilusrrações desse tipo de ironia, conferir o conto "Esses Lopes", incluído em T u ta m é ia , de Guimarães Rosa e "M issa do galo", de M achado de Assis, incluído em P á g in a s r e c o lh id a s .
34
o
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humor funciona na ironia romântica como veículo de construção da ambigüidade de vozes arrnde
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( . . .) d e m o n s tr a r a im p o s s ib ilid a d e d e e s ta b e le
-c im e n to d e u m s e n tid o -c la r o e d e fin itiv o . A ir o
-n ia r o m â -n tic a fu -n d a m e -n ta - s e a in d a , c e r ta m e n
-te , n a s o c r á tic a , q u e u s a o r e c u r s o d a m a iê u tic a
p a r a le v a r o in te r lo c u to r
à
r e fle x ã o e a o c o n h e-c im e n to , a tr a v é s d o p r o c e s s o d e d e s tr u ir q u a
l-q u e r o p in iã o is o la d a p o r c o lo c d - la e m c o n ta to
c o m u m c o n te x to m a is a m p lo o u e s tr a n h o e p o r
a p r e s e n ta r s u c e s s iv a s q u e s tõ e s q u e n ã o e n c o n
-tr a m r e s p o s ta s , m a s v a z io s . A o n e g a r a s
pleni-tu d e s e a s c e r te z a s , e s s e tip o d e a to ir ô n ic o a b r e
b r e c h a s c o n c e p tu a is im p o s s ív e is d e p r e e n c h e r ,
c r ia n d o e s p a ç o p a r a o o u tr o s u je ito , o
in te r L o c u to r . " ( id e m , ib id e m : 6 2 )
A reflexão sobre os modos de apreensão
artÍsticos, dessa forma, sugere a existência de pontos
de convergência entre a Estética e uma Sociologia
reflexiva de base herrnenêutica. O estudo mais
minucioso dos processos cognitivos na arte poderá
contribuir para a formulação de novos modelos
epistemológicos e metodológicos para uma
sociologia cansada das limitações positivistas, mas
que também não deseja confundir-se com a arte
nem renunciar à sua função de teorização da
conduta social.
35
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