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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia 14º SNHCT

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Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

A ciência portuguesa nos trópicos: estudos sobre a fauna e a flora do Brasil setecentista e sua relação com o pensamento iluminista

Gisele Cristina da Conceição Amélia Polónia Christian Fausto Moraes dos Santos

Introdução

O trabalho aqui proposto diz respeito a um breve resumo do projeto de tese de Doutorado iniciada a pouco mais de um ano, cuja abordagem permite situá-lo, em simultâneo, no domínio da História da Expansão Portuguesa no período Moderno, dos Estudos Coloniais, do estudo do Brasil colônia, ao mesmo tempo em que o enfoque seguido o situa no âmbito da História das Ciências, apelando a diversas dimensões desta área disciplinar: agentes, práticas e epistemologia.

Vamo-nos centrar na produção de conhecimento, fundado em experiências de observação em território colonial brasileiro, que nos permitam indagar acerca das bases de construção de um novo paradigma cientifico.

Objetivamos, assim, produzir uma contribuição à história da difusão e do impacto do Iluminismo, notadamente o português, na produção das obras a respeito do mundo natural na América portuguesa e, reciprocamente, indagar até que ponto essas descrições de universos desconhecidos da Europa contribuíram para a construção de um novo paradigma científico, de que a prática da ciência não deve ser alheia. A partir deste objetivo geral, iremos direcionar nossa pesquisa às descrições da fauna e flora da América portuguesa setecentista. Diante disso, podemos elencar alguns questionamentos primários, na tentativa de comprender os motivos que levaram, desde o século XVI e mais tarde no século XVIII, com toda a efervescência do pensamento ilustrado, ao desenvolvimento de trabalhos de catalogação, descrição, classificação e estudos filosóficos sobre o Mundo Natural do Brasil.

Bolsista pelo Programa de Doutorado Pleno no Exterior da CAPES. Doutoranda em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto/Portugal. Mestre em História.

Doutora em História. Professora Associada do DHEPI (Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais) da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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O contato do europeu com a natureza do Novo Mundo e as mudanças paradigmáticas acerca do Mundo Natural

Assume-se, como ponto de partida desse trabalho, a importância, para a história das ciências, dos contributos dos estudos desenvolvidos por filósofos naturais europeus, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, com base nos seus contatos com o Novo Mundo. Esses estudos terão contribuído em muito para a construção do conhecimento acerca do ambiente natural em toda a sua complexidade. O trabalho sistemático de identificação e catalogação da fauna e flora feita pelos naturalistas das chamadas Viagens Filosóficas ao longo do período da chama Ilustração, o Iluminismo, forneceu material para que a Filosofia Natural se desenvolvesse amplamente, ao mesmo tempo em que contribuiu, em muito, para que os poderes políticos da Metrópole reforçassem o controle sobre os domínios coloniais.

Se ao longo dos séculos XVI e XVII, os tratados, compilações e descrições do ambiente natural tinham por objetivo o reconhecimento do território, no século XVIII, as viagens eram orientadas por um cunho científico e o objetivo não era já apenas o de reconhecer o espaço geográfico e biogeográfico, mas também o de dominar os aspectos zoológicos, botânicos e minerais. Havia uma busca de complementariedade entre o reino e a colônia, e as chamadas Viagens Filosóficas pretendiam conhecer, classificar e dominar o território e as suas potencialidades, ao mesmo tempo em que contribuíram para estreitar os laços entre Portugal e seus domínios. O Reino precisava e queria conhecer e reconhecer o universo de possibilidades que a colônia poderia lhe fornecer (PATACA, 2007).

Nessa busca por compreender tais mudanças de perspectivas filosófico naturais, o início da nossa análise deve remontar, para contextualização, ao século XVI, com o primeiro contato dos povos ibéricos com o Novo Mundo, reportando-nos ao que já se sabe sobre as identificações, descrições e classificações do novo ambiente.

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um destes lugares onde um poder colonial europeu estabeleceu seus domínios, através de um vasto controle territorial, num processo de longa duração com implicações extensas do ponto de vista económico, comercial, mas também ambiental, envolvendo as dimensões geográficas, biológicas, zoológicas e botânicas (SCHWARTZ, 2010: 21 - 51).

No século XVI, sob a influência dos eventos desencadeados a partir das grandes navegações e do estabelecimento dos europeus em suas colônias no Novo Mundo, foram construídas, paulatinamente, novas perspectivas referentes à compreensão do Mundo Natural a partir do contato dos europeus com as novas espécies de animais e plantas. Ao chegarem no continente europeu, as descrições da natureza do Novo Mundo participaram da reconstrução das perspectivas filosófico-naturais vigentes até então (SCHWARTZ, 2010: 21-51; SAVOIA, 1996; GRANT, 2009: 353-358; DEBUS, 2002; SMITH; FINDLEN, 2002). Estes relatos

sobre a fauna e flora, advindos das terras recém-descobertas, foram fundamentais para que, na Europa, uma rede de agentes pudesse, a partir da segunda metade do século XVI, dar início a profundas transformações no universo da Filosofia Natural (CARVALHO, 1987: 7-11; OGILVIE, 2008: 36-39). Trabalhos como os de Azpilcueta Navarro (1523-1557), Gabriel Soares de Sousa (1540-1591), André Thevet (1502-1590), Ulisses Aldrovandi (1522-1605), Hans Staden (1525-1579), Charles L’Ecluse (1525-1609), López Medel (1520-1583), Jean de Léry (1536-1613), Pero de Magalhães Gandavo (1540-1580), Garcia da Orta (1500-1568), José de Anchieta (1534-1597), Fernão Cardim (1549-1625), Karl Von Lineu (1707-1778), Adriaen Cornelissen van der Donck (1655), Gabriel Meurier (1557) e John White (1585), puderam auxiliar na construção de tais paradigmas, uma vez que são extensas e detalhadas as descrições da fauna e flora do Novo Mundo, americano ou oriental (SANTOS; CONCEIÇÃO; BRACHT: 2013: 1-21).

As transformações iniciadas no século XVI continuaram, e ao longo de todo o século XVII, houve o desencadear de uma “revolução” no que até então, era compreendido por Filosofia Natural*. Neste período, as palavras “razão e natureza”, eram harmônicas e não poderiam ser separadas uma da outra. Para se compreender o funcionamento do universo os filósofos deveriam observar a natureza através do experimentalismo. Os conceitos de inteligência e razão se modificaram com os novos pensamentos filosóficos iluministas. Agora,

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o conceito de “razão”, antes compreendido como uma “inteligência perfeita” passou, a partir das premissas iluministas, passará a ser designado razão como reconhecimento e compreensão das leis da natureza (HANKINS, 2002: 1-17).

Essa revolução epistemológica no campo da Filosofia da Ciência projetou-se paulatinamente para o domínio da prática científica. Só durante o século XVIII, com o concurso do Iluminismo, este ciclo de transformações recebeu contributos que potenciaram a sua cabal projeção nos domínios da ciência (HANKINS, 2002: 113-157). A partir desde período, novas perspectivas e questionamentos se apresentaram aos que se dedicaram à observação do Mundo Natural, tanto na Europa, quanto nas colônias. Neste âmbito, a compreensão da natureza, com toda a sua diversidade e complexidade, ganhou novas perspectivas e o entendimento do que era o Mundo Natural baseado nos pensamentos aristotélicos começou a ser questionado. No cruzamento entre as experiências derivadas dos eventos relacionados com as navegações interoceânicas; o contato dos europeus com o novo ambiente natural dos trópicos, e o turbilhão intelectual que culminou no Iluminismo do século XVIII, resultou uma mudança de paradigma científico. Em termos teológicos ou filosófico naturais, virtualmente nenhum dogma deixou de ser exaustivamente examinado, passando por uma reflexão crítica sobre os seus parâmetros (HALL, 1990).

Durante o século XVIII, diversos indivíduos empreenderam esforços para ampliar, reformular ou ainda construir novos instrumentos de compreensão da natureza (HANKINS, 2002: 113-157). Podemos dizer que um dos maiores contributos do pensamento ilustrado tenha sido a criação de novas disciplinas científicas que trouxeram certa modernização aos estudos científicos, tanto no âmbito da Filosofia Natural, como na Física, Química, Matemática e Astronomia. O Iluminismo, longe de ser um movimento homogêneo, produziu uma grande diversidade de ideias e abordagens. Em parte por esse motivo, o século XVIII configurou-se enquanto um período de grande difusão da Filosofia Natural e de outros campos do conhecimento (HANKINS, 2002: 113-157).

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notórias foi “L’Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné Des Sciencies, Des Arts et Des Métiers”†.

A Encyclopédie, em concordância com o princípio de renovação e reformulação das antigas concepções epistemológicas, promoveu ataques contundentes às velhas ortodoxias e à cosmologia então hegemônica. Esta característica foi, em parte, promovida a partir da postura revolucionária de seus colaboradores, que compreendiam personalidades como Denis Diderot (1713-1784), responsável pela coordenação geral de verbetes da História da Filosofia, François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694-1778) e Mary Jean Antoine Nicolas Caritat, marquês de Condorcet (1743-1794), que trabalharam questões relacionadas à Filosofia, e Jean Jacque Rousseau (1712-1778), que compôs o verbete sobre Música. Participaram também, Jean le Rond d’Alembert (1717-1783), Paul-Henri Thiry, o barão de D’Hobach (1723-1789), François Quesnay (1694-1777) e Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781). Dentro do contexto das transformações paradigmáticas referentes à compreensão do mundo natural, uma das mais importantes contribuições aos quadros da Encyclopédie veio da participação de George Louis-Leclerc (1707-1788), o Conde de Buffon, a quem foi entregue o tema das Ciências Naturais (SANTOS, 2005: 86).

A importância do Conde de Buffon para a Filosofia Natural do século XVIII perpassa pela maneira como ele procurou estabelecer uma epistemologia que pudesse servir à compreensão e classificação das faunas, tanto da Europa, quanto da América, Ásia e África. O Conde de Buffon foi tão ou mais prestigiado em sua época quanto o sueco Karl Von Linaeus (1707-1778). Este último acabou por ser considerado o idealizador do sistema de classificação binominal das espécies (PRESTES, 2000: 58-72).

Havia um profundo interesse pela natureza, sendo que isso catapultou progressos sensíveis em variados campos do estudo da fauna e da flora. O novo interesse pelo mundo natural, guiado pelos paradigmas do Iluminismo, potencializado pela ampla circulação de textos impressos e pela criação de diversas instituições de divulgação, tais como as academias de ciências, jardins botânicos, periódicos e coleções particulares, proporcionou também o

“L’Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné Des Sciencies, Des Arts et Des Métiers”: Enciclopédia Iluminista: Indexada em 1759, legitimada por um total de 28 volumes, 71.8181 e 2.885 pranchas. Já na página de rosto proclamava a pretensão da obra: “Dicionário Raciocinado das Ciências, das Artes e dos Ofícios”. Com uma trajetória de denuncias a Enciclopédia parecia estar com os dias contados, contudo devido o alto investimento de seus editores que agiam com rapidez, revelou-se um sucesso, tendo suas vendas impelidas justamente por aquilo que fizera o governo confiscá-la. “Ela desafiava

os valores tradicionais e as autoridades constituídas do Antigo Regime” DARNTON, Robert. O Iluminismo como Negócio: História da publicação da Enciclopédia, 1775-1800. São Paulo: Cia das

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surgimento dos gabinetes de História Natural. Financiadas pelos patronos e mecenas da Ciência e da Filosofia Natural, nobres ou burgueses abastados, estas instituições fomentaram a publicação de livros, memórias e catálogos de coleções de plantas e animais exóticos (MAYR, 1998). Uma das consequências marcantes deste grande interesse pela História Natural foi a concepção, muitas vezes por parte dos governos nacionais, de que era necessária a investigação sistemática, tanto das áreas ainda desconhecidas do globo, quanto das colônias já estabelecidas e em processo de expansão.

De fato, diferentes nações europeias financiaram empreendimentos de cunho filosófico natural. Viagens como as do capitão inglês James Cook (1728-1779) (FISHER; JOHNSTON, 1979), famoso por ter explorado o Oceano Pacífico, do francês Louis Antoine de Boungaiville (1729-1811), autor de um tratado de cálculo de navegação e que empreendeu uma viagem ao redor do globo (DUNMORE, 2007) ou mesmo a Viagem Filosófica pela América portuguesa, levada a cabo pelo luso brasileiro formado em Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) (PATACA, 2007) demonstram que nações como Inglaterra, França e Portugal compreendiam a necessidade de se estudar o mundo natural e suas potencialidades.

Como movimento intelectual, o Iluminismo esteve longe de ser um privilégio de uma determinada nação, e, em diversas partes da Europa, como Alemanha, Inglaterra, Escócia, Itália, França, características próprias eram desenvolvidas. Foi um fenômeno que se estendeu a, praticamente, toda Europa ocidental e Américas. Um grande volume de informações, resultantes da investigação e observação da natureza, encontrados em tratados, memórias, jardins botânicos e museus, impulsionadas pelos princípios de uma nova racionalidade, divulgada pelas conquistas do pensamento iluminista percorriam a Europa e, em certa medida, suas colônias (SANTOS, 2005: 86). É certo afirmar, portanto, que a exemplo da França ou da Inglaterra, as Ciências Naturais em Portugal não estiveram alheias a este processo. Pelo contrário, em muitos aspectos, os homens de letras portugueses ocuparam posição de vanguarda, principalmente no que se refere à História Natural (CARVALHO, 1987: 7-11), desenvolvendo trabalhos ricos em descrições e classificações da fauna e flora americanas.

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tirar Portugal da condição de atraso intelectual (BOXER, 2011: 340 - 348). Se é que o mesmo existia.

Apesar das particularidades que envolveram as questões da ilustração e das tribulações pelas quais passaram as Ciências Naturais em Portugal em meio de reformas, perseguições, reviravoltas políticas e desconfiança por parte dos bastiões do Antigo Regime (SANTOS, 2005: 86), a produção filosófico-natural lusa daquele período é considerável (DOMINGUES, 2001: 823-38; DOMINGUES, 2006: 150-174).

Ao longo do século XVIII, com a consolidação do pensamento ilustrado em Portugal, deu-se um processo que representou um esforço sistemático, principalmente sob os auspícios estatais, que visava promover a renovação das bases do conhecimento, tanto no Reino quanto nas colônias. Promoveu-se o envolvimento de diversos setores da sociedade portuguesa, com a congregação dos trabalhos de matemáticos, astrônomos, médicos, cirurgiões, engenheiros e filósofos naturais, alguns vindos de outras partes da Europa. Não foram -poucos os funcionários estatais que, impulsionados pelos ventos da ilustração, realizaram notáveis trabalhos à frente da administração pública e na promoção e produção de saberes acerca do mundo natural (DOMINGUES, 2001: 823-38). Uma parcela considerável destes esforços foi direcionada às colônias, na Ásia e África, mas principalmente, ao Brasil. Os objetivos de tal política eram múltiplos e iam, desde a intenção de racionalizar e superar as dificuldades relativas à produção de bens em território colonial, quanto à de consolidar e sustentar o ainda corrente processo de expansão e domínio territorial.

Tal processo permitia ainda a reunião, com propósitos acadêmicos, de informações sobre a natureza, que pudessem servir e potencializar as ações das instituições do império como um todo. Neste período, a questão das ciências tornou-se crucial à manutenção, sustento, progresso e expansão imperial, principalmente no entendimento do próprio Estado (DOMINGUES, 2001: 823-38). No que se refere aos paradigmas filosófico-naturais e ao estudo do ambiente nos domínios coloniais, diversas iniciativas foram promovidas pelo Estado, que visava à coleta da maior quantidade possível de dados a respeito das potencialidades existentes na natureza da colônia americana (DOMINGUES, 2006: 150-174).

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D. José I (1750 – 1777) e D. Maria I (1777 – 1816), das chamadas Viagens Filosóficas. Neste período, foi contratado pelo Marquês de Pombal, para ocupar a cátedra de História Natural da Universidade de Coimbra, o filósofo natural italiano Domenico Vandelli (1735-1816). A partir de 1764, quando contratado, Vandelli foi o principal idealizador de uma série de viagens pelo reino e possessões ultramarinas, todas elas condensando o caráter científico a intenções de cunho econômico e político, tais como o de fazer um inventário dos recursos naturais que pudessem ser explorados no futuro. Dentro deste mesmo princípio, foram planejadas viagens às colônias. Da mais importante foi incumbido o luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, que estudara Filosofia Natural na Universidade de Coimbra.

A Viagem Filosófica capitaneada por Alexandre Rodrigues Ferreira deve ser compreendida dentro do contexto do Iluminismo português. Neste contexto há que considerar o importante papel do Estado‡, para o qual o empreendimento das expedições científicas fazia parte da construção de uma rede de informações que permitisse, sobretudo na América portuguesa, uma melhor compreensão e, consequentemente, exploração dos recursos naturais de suas possessões (DOMINGUES, 2006: 150-174).

A viagem em si teve dimensões monumentais, e não apenas pela distância percorrida em território colonial pouco explorado (foram, aproximadamente, 39.372 km) ao longo das regiões da bacia amazônica e da Capitania do Mato Grosso. Foi grande também o volume de informações coletadas durante quase dez anos nas florestas da América portuguesa. Apesar dos posteriores desencontros que proporcionaram a pilhagem (SANTOS, 2010), perda e deterioração de boa parte do material coletado, a expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira demonstra a importância conferida, em termos estratégicos, ao estudo da natureza dentro do império português (SANTOS, 2007; SANTOS, 2010).

Outra orientação sistemática adotada pela Coroa portuguesa, que visava uma melhor compreensão dos recursos coloniais e, assim, fortalecer a posição de Portugal no cenário político internacional, foi à criação de instituições responsáveis pelo estudo e divulgação das Ciências Naturais na metrópole e na colônia. Uma dessas instituições foi a Casa Literária do Arco do Cego. Idealizada pelo então Secretário de Estado de Negócios da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), e concretizada a partir da ação do luso-brasileiro Frei José Mariano da Conceição Velloso (1742-1811). A Casa Literária do Arco do

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Cego foi um claro empreendimento do enciclopedismo português. Seu principal objetivo era o de fomentar as ciências, sua publicação e a otimização do uso das potencialidades econômicas do império e da colônia a partir de uma perspectiva ilustrada. Apesar de seu curto período de funcionamento (1799-1801) a Casa Literária do Arco do Cego contribuiu para a construção, em Portugal, de novas perspectivas, além de uma nova maneira de se ver a América portuguesa. Não é possível enumerar todos os pontos impulsionados pelo trabalho desenvolvido no Arco do Cego, mas é certo que houve uma mudança expressiva na posição que a colônia americana ocupava, em termos estratégicos e políticos. Dentro do contexto iluminista, portanto, era cada vez maior a preocupação das nações com o mundo natural e a racionalização dos processos exploratórios deste (DOMINGUES, 2006).

No entanto, não apenas do fomento promovido pela Coroa e dos indivíduos com formação acadêmica viveu a investigação da natureza e o pensamento crítico no mundo lusófono setecentista. Não foram poucos os indivíduos que, mesmo sem uma formação acadêmica, produziram memórias, diálogos e tratados de características filosófico-naturais. Dentre as produções deste gênero, elaboradas na América portuguesa ao longo de setecentos, destaca-se a de José Barbosa de Sá, autor dos Diálogos Geográficos, Chronológicos, Políticos e Naturaes. Este advogado licenciado, radicado na Capitania do Mato Grosso, em meados do século XVIII, concebeu uma obra que, além de original, demonstrou sintonia com a revolução intelectual que se processava na Europa. Apesar de não ser possível determinar, de maneira precisa, as obras com que teve contato, os Diálogos Geográficos de Barbosa de Sá trazem inúmeras sugestões de que o saber iluminista, e as ciências dele derivadas, circulavam, no então distante Mato Grosso e sua capital, na vila de Cuiabá (PAPAVERO, et all., 2012; SANTOS, 2007).

Assim como Barbosa de Sá, diversos indivíduos, educados na Europa ou não, produziram obras em sintonia com o momento de efervescência intelectual pelo qual passava a Europa e, mais especificamente, Portugal. Grande parte desses autores deixaram manuscritos em forma de tratados e memórias que constituem registros únicos da circulação dos saberes e paradigmas que norteavam o estudo do mundo natural na América portuguesa do século XVIII.

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como títulos, por exemplo, “Das principaes aves que ha em o estado do Brezil [...]”, “Dos Principaes Animaes que se criam em o estado do Brezil [...]”,“De todas quentes sevandijas e Bichos se criam em o Estado do Brezil [...]”, “Das Principaes Arvores de Fruto do estado do Brezil [...]”. Com descrições de pássaros, animais terrestres, árvores, animais voláteis (como morcegos), estes documentos demonstram o interesse da Metrópole por conhecer o Mundo Natural da colônia e descobrir quais eram as possibilidades de exploração de fauna e flora. As suas potencialidades para o estudo do ambiente natural do Novo Mundo são, por isso, evidentes.

As Viagens Filosóficas tiveram início ao mesmo tempo em que a Coroa portuguesa estava preocupada com a demarcação territorial da colônia. A princípio, pode-se notar certa confluência entre os objetivos políticos e financeiros em relação à busca reconhecimento e definição territorial, em associação com os objetivos científicos das Viagens Filosóficas. Por isso, podemos encontrar trabalhos de catalogação e descrição de espécies de animais e plantas escritos por engenheiros, governadores de capitanias, e por homens não letrados que acompanhavam as expedições. Ou seja, o universo natural, naquele momento, suscitava o interesse de todos (DOMINGUES, 2001: 823-838), além de ser uma questão primordial para o desenvolvimento da colônia, o reconhecimento territorial e científico do ambiente americano.

Conclusões

Se, ao longo dos primórdios da colonização portuguesa do Brasil, o interesse dos viajantes, missionários e senhores de engenho era o reconhecimento em prol da própria sobrevivência, no século XVIII, sob influência do pensamento ilustrado, tais descrições poderiam auxiliar a coroa na averiguação das potencialidades do território tropical para uma sistemática e organizada exploração. Sendo assim, tais manuscritos abrem e alimentam uma via empírica relevante para estudos a desenvolver no campo da História Colonial Moderna e das Ciências, englobando aspectos históricos pertinentes para o estudo do Iluminismo luso, da circulação do saber no império português e da importância da biodiversidade e do patrimônio natural colonial para as questões estratégicas da expansão e colonização portuguesas. Não menos importantes podem ser os seus contributos para o entendimento das novas perspectivas filosófico-naturais vinculadas à construção de um novo paradigma científico.

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