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A ESTRANHEZA DE UM NOVO CORPO

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Academic year: 2021

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A ESTRANHEZA DE UM NOVO CORPO

Mingnon Pereira Lins1

A adolescência tem o seu campo de estudo bem demarcado no campo sócio histórico. Para a teoria psicanalítica, no entanto, é um tema que traz uma certa especificidade. Não se trata de uma época da vida, nem apenas de uma transformação corporal. Trata-se de uma retomada subjetiva diante do real da castração.

Em sua obra, Freud (1905/1989) não se refere à adolescência, mas à puberdade como um período de transformação que ocorre durante a vida sexual do indivíduo, no qual um despertar pulsional provocado pelas mudanças biológicas no corpo exigem, do jovem, um reposicionamento subjetivo diante do enigma sexual. Assim, para abordar a adolescência, em psicanálise, é necessário contextualizar o cenário da sexualidade infantil na qual um encontro inaugural com o sexo deixou suas marcas, a partir das quais o adolescente vai poder enfrentar outra vez, de forma mais contundente, o enigma do sexual

Freud argumenta que um estudo das manifestações sexuais na infância pode fornecer os traços essenciais que compõem a pulsão sexual. Propõe, então, uma segmentação do privilégio das zonas erógenas durante cada período do desenvolvimento sexual infantil, localizando, assim, o que seria o alvo da pulsão em cada fase da organização sexual (1905/1986). Não se trata aqui de abordar as ditas zonas erógenas enquanto etapas cronológicas do desenvolvimento, mas, a partir da leitura lacaniana, de situar a relação da criança frente à demanda do Outro, designando uma relação que pode incluir uma falta ou um excesso (Lacan, 1956-57/1994). O falo, segundo essa perspectiva, é um significante articulador que proporciona ao sujeito uma ascensão à castração e uma possibilidade de se situar frente ao irrepresentável para o inconsciente, ou seja, a relação sexual uma vez que, para os humanos, ela não existe (ibidem, p. 49).

Freud afirma que, ainda durante a infância, efetua-se uma escolha de objeto e que o púbere precisa, necessariamente, avançar quanto a essa escolha infantil. Devido ao Édipo, a escolha objetal de natureza infantil tem de ser renunciada, para que na adolescência a renovação da escolha de objeto possa ser refeita como uma corrente

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ sob orientação da Profª Drª Heloisa Caldas.

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sensual que foi, na infância, dissociada da corrente terna A conjunção das duas correntes (terna e sensual) viabilizaria ao sujeito se situar diante da partilha dos sexos e ir ao encontro do objeto (Freud, 1905/1987, p. 195).

Essa renúncia, feita ainda na infância, nos coloca no centro do drama psíquico do sujeito. A famosa promessa edípica de que para aceder ao desejo é preciso renunciar a um gozo incestuoso, se apresenta, na infância, como um caminho aparentemente seguro e apaziguador. Mas, é justamente na adolescência que o sujeito se dá conta do quanto essa promessa, na verdade, mostra-se enganosa.

A pulsão, cuja atividade era até então exclusivamente auto erótica e a partir da maturação fisiológica do aparelho genital, deveria supostamente direcionar o jovem para um encontro com o objeto sexual que resultasse numa harmonia plena. Contudo, para os humanos, justamente porque a pulsão passa pela linguagem, o despertar da adolescência se dará diante do fato de que nada é assim tão fácil. O único encontro que se chega a ter é, na verdade, o encontro com o eterno mal-entendido entre os sexos.

Irrompe, assim, o traumático do real sexual, algo que para o jovem pode ser catastrófico, pois escapa a qualquer significação, mas, diferentemente do que aconteceu na infância, ele não pode mais esperar.

É nesse ponto de real, para o qual toda significação é precária, que o sujeito adolescente é convocado a por em ato o real sexual pelo qual terá que se responsabilizar. Diante da possibilidade do encontro com o Outro sexo, ele é convocado a se situar na partilha sexual. Essa escolha se dará na forma de um imperativo ético diante dos paradoxos da pulsão e as contingências da novela edípica que escreveram sua determinação inconsciente, não havendo possibilidade de escapar a isso.

Em seu texto, “Prefácio a ‘O despertar da primavera’”, Lacan aponta esse furo do sentido que caracteriza o real ao dizer: “Que o que Freud demarcou daquilo a que chama sexualidade faça um furo no real, eis o que se percebe pelo fato de que, como ninguém escapa ileso, as pessoas não se preocupam com o assunto.” (Lacan, 1974/2003, p. 558). Trata-se de um furo diante do sexo como Outro e que desperta o mal-estar sexual, nas palavras de Cottet:

É no momento em que o rapaz satisfaz aos ideais de sua virilidade e a moça se instala na identificação, momento de assunção do desejo, que o encontro fracassa. Esse era o meio usado por Freud naquela época para designar o mal-estar sexual e, como diz Lacan nesse pequeno texto, o que faz ‘furo no real’ (Cottet, 1996, p.16).

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Outra importante tarefa a ser executada por parte do jovem é o desligamento da autoridade paterna. Essa operação caracteriza-se por fazer parte do cenário dos grandes feitos do psiquismo, acarretando, porém, bastante sofrimento.

Durante a infância, o lugar dos pais fora resguardado como ideal. Porto seguro dos referenciais infantis, a criança precisava se ancorar no mito dos pais como onipotentes, salvando-os do horror da castração. Na adolescência, porém, essa onipotência, onipresença e onisciência são postas à prova e passam a ser vistas como insuportáveis e insustentáveis para o próprio sujeito. O pai não é mais aquele que tudo sabe, a mãe já não é a mulher mais bela e o que diziam sobre como fazer com a vida parece não ter mais nenhum sentido. Há uma ruptura com aquilo que um dia lhe assegurava um lugar de ideal do eu e funcionava como identificação durante a infância.

Como os antigos referenciais parentais não conseguem responder satisfatoriamente, passam a ser duramente questionados quando o jovem se sente invadido por um gozo oriundo do mal-estar das suas transformações corporais e psíquicas.

A adolescência, no entanto, necessita desse corte das amarras que um dia ligaram o sujeito ao que ele acreditava ser um “porto seguro”. Freud vai valorizar a falha da função paterna como necessária para que o jovem possa buscar seus recursos para lidar com esse encontro impossível. A exigência dessa separação da autoridade paterna é imprescindível para lidar com as contingências das relações amorosas durante o encontro sexual. (Barros, 1996, p. 71). É justamente a possibilidade de elaborar a falta do Outro que guiará o adolescente diante do inevitável encontro com o real sexual. O despertar para o sexual permitirá o desligamento das figuras reais dos pais, mas não a separação da autoridade exercida pelos significantes que deles recebeu e dos quais se apropriou, através da alienação subjetiva, para recobrir a perda que o constitui.

Para ilustrar essa elaboração, traremos um recorte clínico que nos permitirá tecer algumas considerações sobre esse encontro com o Outro sexo e suas consequências para o sujeito adolescente.

M., uma adolescente de 13 anos, é levada ao tratamento pelo seu pai que, em uma conversa inicial, logo expressa suas demandas em relação a ela: “M. precisa emagrecer! Já está pesando quase 120 kg! Está quase com diagnóstico de obesidade mórbida! Fica no computador o dia inteiro e não faz as tarefas de casa”. Ele argumenta que procurou o tratamento para a filha porque um amigo, psicólogo, disse que isso

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poderia ter a ver com algum trauma provocado pela relação da filha com a mãe. “M., desde os oito anos, logo depois da escola vai para o meu restaurante e fica o tempo todo comendo batata frita e me perguntando: ‘Pai, posso comer mais batata? Posso comer mais batata?’ Digo logo que a responsabilidade é dela. Ela é que tem que escolher”.

M. chega à primeira entrevista cabisbaixa e, quando questionada porque estava ali, responde: “Meu pai acha que se eu vier aqui, vou emagrecer e que eu tenho que emagrecer, se não eu posso morrer. Mas o que ele nem você entendem é que já estou morta!” a assertiva mortífera – que incluía a suposição de saber do analista – foi rebatida no sentido de dar a esse sujeito um espaço para advir: “Não! Você está viva!

Está falando!”.

Foi um convite para M. tomar a palavra, relatando, então, um pouco de sua história. Seus pais se separaram quando ela e o irmão mais novo ainda eram bem pequenos. O pai, comerciante e dono de restaurante, ficou com a guarda dos filhos e se casou com outra mulher com quem tinha, na ocasião, um filho recém-nascido. Eles moravam na casa da avó paterna, uma mulher autoritária que muito incomodava a M., pois lhe fazia demandas demais. “Ela não me pede apenas para arrumar o quarto, fazer as tarefas e coisas assim. Ela quer mais do que isso, ela quer mandar em mim!”. A madrasta é outra figura insuportável para M. que muitas vezes a nomeia de forma pejorativa.

Certa vez, relatou uma solução que tinha encontrado para não sofrer mais com as decisões tomadas pelo pai: “Agora já sei! Para não ter que ficar pensando tanto sobre as coisas que o meu pai faz, eu já tenho a minha própria solução! Vou ficar dando sentido às coisas que ele faz, sabe! Vou ficar dando sentido a tudo o que ele faz ou diz e assim não tenho que ficar pensando tanto sobre o assunto”. Chamou atenção a forma como ela se debatia com o sentido e a falta de sentido advinda do campo do Outro através da fala paterna. Dar um sentido parecia uma forma de se apaziguar, rapidamente, diante da falta de sentido, o que, de certa forma, era correlato a se apaziguar comendo vorazmente o que lhe vinha do Outro, evitando assim também o mal-estar do corpo.

A mensagem endereçada foi subvertida e devolvida: “Você quer colocar um sentido para não pensar? Talvez você pudesse tirar o sentido para poder pensar.” Ela recebeu a intervenção com espanto: “Hum! Como assim?” Na sessão seguinte, relatou a raiva que sentia da madrasta, pois ela apenas atrapalhava a vida de todos. Mas quando ia acusar a madrasta, culpando-a por tudo de errado que acontecia, ela cometeu um sutil ato falho: “A culpa é toda minha!”. Diante do assinalamento desse equívoco, fica aflita

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e responde: “Não! Não! Você não ouviu isso! Quis dizer que a culpa era dela!”. Tenta então dizer a frase correta três vezes e comete o mesmo ato falho em todas as três.

O tema da culpa, nas sessões seguintes, dá espaço ao que se pode fazer com a responsabilidade. O ato falho, algo estritamente da ordem do sem-sentido, atravessa M.

na sessão seguinte em que havia sido pontuado que para pensar era preciso tirar o sentido. Se pensarmos que a falha do ato é justamente a falta de um significante, verificamos que a falta pôde entrar no jogo e o sujeito pôde se ver ultrapassado pela linguagem, na sua fala. Abriu-se o campo para o advento de uma pergunta sobre o que ela desconhecia em si mesma: o sexo como um Outro gozo, alheio, que acontece no corpo. O Outro sexo, tomado como radicalmente estrangeiro ao sujeito, em M.

demonstra seus efeitos de estranheza sintomatizando em seu corpo, o corpo como extritamente suporte do gozo, definição que vai além do corpo como uma construção imaginária, como nos ensina Miller em seu curso de orientação lacaniana (2011).

M. testemunha o sofrimento do encontro com esse Outro gozo que ela experimentava na compulsão pela comida e nos xingamentos contra a madrasta. Para o encontro com o Outro sexo não existe nome nem palavras. Os nomes feios, as injúrias eram os poucos recursos de linguagem que M. dispunha para elaborar essa perda de seus referenciais infantis diante do desvelamento da falta do Outro. Seu pai, sua madrasta, sua avó, quem quer que encarne imaginariamente o Outro imaginário, não possui as palavras ou a maneira certa para dizer sobre o estranho encontro com o Outro gozo.

A compulsão de M. pela comida poderia ser pensada justamente como uma tentativa de anular a falta do Outro contextualizando, no corpo de M., os efeitos do encontro com o traumático do real sexual. Isso pode ser percebido na tentativa infrutífera de dar sentido a tudo. Inclusive ao que seu pai fazia de errado. O sujeito utilizava artifícios sintomáticos para velar a castração do Outro, o que agravava sua adolescência quando a tarefa principal do jovem é elaborar a castração, para suportar o encontro com o Outro sexo e se situar na partilha sexual.

Algum tempo depois, ela relatou que passou a ir para casa imediatamente após o almoço. Já não queria ficar no restaurante do pai o dia todo, pois, nas palavras dela:

“Afinal, eu tenho minhas coisas pra fazer em casa!”. Encontrou um primeiro namorado na escola e diz que não é algo grandioso, mas é legal estar com alguém. Se M. vai obedecer à demanda de emagrecer, não sabemos ainda. Esperamos que, com o tratamento, ela consiga dar um destino mais desejante a isso que lhe acontece no corpo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, S. (2009) Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Contra capa.

BARROS, M.R.C.R. (1996) Adolescência: quê despertar? Adolescência: o despertar.

Coleção kalimeros da Escola Brasileira de psicanálise. Rio de Janeiro: Contra capa livraria.

COTTET, S. (1996) Estrutura e Romance Familiar na adolescência. Adolescência: o despertar. Coleção kalimeros da Escola Brasileira de psicanálise. Rio de Janeiro: Contra

capa livraria.

FREUD, S. (1901/1989) A Psicopatologia da vida cotidiana. Obras completas de Sigmund Freud. Edição Standard, vol. VI. 1º Ed. Rio de Janeiro: Imago.

________ (1905/1989) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Obras completas de Sigmund Freud. Edição Standard, vol. VII. 1º Ed. Rio de Janeiro: Imago.

LACADÉE, P. A (2007) Passagem ao ato nos adolescentes. a Sephallus – Revista Eletrônica do Núcleo Sephora, Tânia Coelho dos Santos editora, Rio de Janeiro.

____________ (2008) O púbere em que circula o sangue do exílio e de Um pai. Revista estudos lacanianos, Programa de pós-graduação em Psicologia. Belo-Horizonte:

UFMG/Scriptum.

____________ (2007) O Despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra capa livraria.

LACAN , J. (1956-57/1994) O Seminário, livro 4 : a relação de objeto. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor.

_________. (1957-58/1998) O Seminário, livro 5 : as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

_________ (1974/2003) Prefácio a O despertar da primavera. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

MILLER, J.-A. (2010-2011) Curso de orientação Lacaniana III, 13: l’être e l’Un.

Lição de 09/03/2011. Inédito.

ROVERE, C. (2011) Caras del goce feminino. Buenos Aires: Letra viva.

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