UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA PAULISTA DE POLÍTICA, ECONOMIA E NEGÓCIOS A EFETIVIDADE DA REDE DE CUIDADOS À SAÚDE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Marcelo Capelini da Silva Orientador: Prof. Dr. Celso Takashi Yokomiso Osasco 2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA PAULISTA DE POLÍTICA, ECONOMIA E NEGÓCIOS A EFETIVIDADE DA REDE DE CUIDADOS À SAÚDE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentando à Universidade Federal de São Paulo como requisito para aprovação no curso de Bacharelado em Ciências Atuariais.
Orientador: Prof. Dr. Celso Takashi Yokomiso Osasco 2021
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Unifesp Osasco e Departamento de Tecnologia da Informação Unifesp Osasco, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a) S586e SILVA, Marcelo Capelini da A efetividade da rede de cuidados à saúde da pessoa com deficiência / Marcelo Capelini da Silva. 2021. 24 f. Trabalho de conclusão de curso (Ciências Atuariais) Universidade Federal de São Paulo Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, Osasco, 2021. Orientador: Celso Takashi Yokomiso. 1. Pessoa com deficiência. 2. Saúde pública. 3. Inclusão social. 4. SUS. I. Yokomiso, Celso Takashi, II. TCC Unifesp/EPPEN. III. Título. CDD: 351
3 LISTA DE SIGLAS RCPD – Rede De Cuidados à Saúde Da Pessoa Com Deficiência PCD – Pessoa com Deficiência SUS – Sistema Único de Saúde CDPD – Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência ONU – Organização das Nações Unidas IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística EPCD – Estatuto da Pessoa com Deficiência PNEE – Política Nacional de Educação Especial PNH – Política Nacional de Humanização CEO – Centro de Especialidade Odontológica PEC – Proposta de Emenda à Constituição RAS – Redes de Atenção à Saúde
4 RESUMO
Com a latente queda na diligência brasileira em relação a causas sociais, fazse necessário analisar as medidas vigentes e o impacto de suas ações. O presente trabalho busca justamente contribuir para o tema ao conduzir discussões sobre a saúde da pessoa com deficiência no Brasil, especificamente no que tange a Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência. Por meio da literatura referente ao tema podese depreender que a atuação da RCPD está aquém das possibilidades e necessidades da população alvo. Apresentase um quadro de atendimento na capacidade máxima das unidades, sem espaço para um acompanhamento contínuo de reabilitação e cujos equipamentos não satisfazem as condições devidas. Há uma conexão construtiva entre comunidade e os profissionais atuantes, porém extremamente limitada e abaixo do potencial de desenvolvimento. A falta de transparência em relação aos investimentos específicos na RCPD é a grande barreira elucidada pelo estudo, onde apenas uma revisão de materiais sobre o assunto já possibilitou o entendimento da conjuntura. O cenário verificado é de sucateamento, congelamento de investimentos e direcionamento estratégico incongruente com os direitos da pessoa com deficiência.
Palavraschave: RCPD, Pessoa com Deficiência, PCD, Saúde Pública, Inclusão Social, SUS.
5 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...6 2. EVOLUÇÃO NORMATIVA NO BRASIL ...8 2.1. ASPECTOS GERAIS ...8 2.2. SAÚDE: INSTITUIÇÃO DA RCPD ...10 3. A ATUAÇÃO DA RCPD E DESAFIOS ...11 4. ASPECTOS ORÇAMENTÁRIOS ...16 CONSIDERAÇÕES FINAIS...20 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...22
6 1. INTRODUÇÃO
De acordo com o Artigo 1º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), pessoas com deficiência são aquelas que:
Têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. (CDPD, 2006). Tal convenção realizada pela ONU tornouse marco da ampliação e padronização das normas mundiais destinadas à população PCD, mesmo que para o caso do Brasil tenha havido significativo atraso na adaptação.
Para além de diretrizes específicas, são destacadas questões como o direito inalienável da dignidade humana, a autonomia de decisões da população com deficiência e da própria necessidade de identificação da diversidade dentro da população PCD. Pessoas com deficiência são heterogêneas tanto nos aspectos fundamentais de suas deficiências como em relação à gênero, raça, religião, etc.
Há ainda um preponderante elemento social nesse cenário. Se para países desenvolvidos questões como acessibilidade já seriam um desafio, em casos como o brasileiro sobram complicações. Percalços econômicos motivados pela vulnerabilidade desse grupo tendem a ser agravados devido a problemas como infraestrutura inadequada, ampla extensão territorial e concentração de riqueza em determinadas regiões.
Segundo o IBGE, a proporção de pessoas com deficiência no Brasil é de cerca de 24%, sendo 7% pessoas com grande ou total dificuldade para enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus (somados com pessoas com deficiência mental ou intelectual). Logo, se apresentam cenários distintos de representação na população total por parte das PCDs por consequência da conceituação das características dos indivíduos examinados.
Tal problemática do Brasil se origina da ausência de definição social, com conflitos na própria legislação vigente no país até a implementação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPCD, lei no.13.146/2015). A Constituição Federal de 1988, carta magna do país, não definia quem seriam as “pessoas portadoras de deficiência”, apesar de enumerar seus direitos. Essa condição seria uma forma de introduzir
7 elementos protetivos a ninguém, dado que não há afirmação do público que será afetado.
Consequentemente, as garantias sem destino passariam a excluir novamente a população PCD, já que “a condição de excluído consiste na ausência de uma lei que se aplique a ele” (BAUMAN, 2005). A adoção do termo “os excepcionais” no revogado inciso III do Art. 4º da CC/2002 vai ao encontro dessa reflexão, ao utilizar uma significação completamente incongruente e inócua.
As políticas e leis voltadas à assistência e saúde da PCD deveriam convergir para a humanização e consequente inserção social dos indivíduos, de modo a desenvolver a autonomia de cada um para exercer sua cidadania.
Na mesma medida, tais ações devem preconizar o empoderamento do cidadão e combater o capacitismo latente no ambiente social, entendido por Vendramin (2019) como “a leitura que se faz a respeito de pessoas com deficiência, assumindo que a condição corporal destas é algo que as define como menos capazes”, impactando diretamente no sentimento de pertencimento e da absorção do conceito de diversidade. Combater o referido capacitismo significa dissociar o convívio social da PCD do caráter de exceção. O conceito de inclusão pode ser facilmente desvirtuado em ações que entendem a acessibilidade universal como um elemento além do comum, quando na realidade é um direito básico.
8 2. EVOLUÇÃO NORMATIVA NO BRASIL
2.1. ASPECTOS GERAIS
Os mecanismos de proteção e garantia de direitos às pessoas com deficiência no Brasil têm se desenvolvido amplamente nas últimas décadas, principalmente da ocorrência da CDPD até o ano de 2016, onde se altera o perfil de governança do país. A partir do marco da CDPD, os conceitos que visam a equidade e empoderamento desta população ganharam maior padronização entre os países (principalmente no arcabouço legal).
Com a implementação no Brasil do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPCD, lei no.13.146/2015), finalmente houve a legitimação do novo padrão legislativo apresentado em 2008. Tal padrão busca a garantia de direitos sem deslegitimar a autonomia do indivíduo PCD nas tomadas de decisão.
Há de se notar que apenas neste momento o termo “Pessoa com Deficiência” passou a ser aplicado de maneira institucionalizada. A legislação vigente até então apresentava conceitos que ferem a visão social do indivíduo PCD como autônomo e capaz.
Como extensão aos direitos assegurados às PCD, os acompanhantes ou atendentes pessoais passam a ter previstas garantias durante os processos realizados pelos órgãos responsáveis. A título de exemplo, em caso de necessidade de locomoção do paciente PCD são garantidos transporte e acomodação de acompanhantes.
Paralelamente à instituição do EPCD, a norma ABNT NBR 9050/2015 estabelece padrões técnicos aos projetos do âmbito de condições de acessibilidade com maior sincronia em relação ao contexto mundial do tema. Tal documento apresenta não somente diretrizes no tocante a ações voltadas à infraestrutura, como também visa um papel pedagógico voltado aos profissionais da área.
Quanto à efetividade do texto, BERNARDI (2020) disserta que há uma falha no atingimento da ideia de que a atuação técnica deve atender a todos os indivíduos, recaindo na essência reativa de adaptar um ambiente comum já infectado pela falta de diversidade.
O tratamento humanizado e inclusivo da PCD implica na visão social da eliminação de barreiras para a existência digna. A falta de acessibilidade para toda a população seria a causa do problema, não a deficiência de determinado indivíduo. As
9 diferenças entre os membros da sociedade existem e é papel do Estado possibilitar a execução dos direitos e liberdades de cada um. Vale citar que são adicionadas tipificações de crimes resultantes de preconceito.
Em continuidade a esse conceito há uma valorização da abordagem pedagógica inclusiva, onde o conceito de educação apartada das PCDs (segregação para ensino especializado) é substituído por métodos de inclusão garantidores da universalização do acesso ao ensino regular. Novamente é aplicada a questão de tornar a pessoa com deficiência parte do todo, implementar seus direitos em sua essência. Em conformidade com esta abordagem, verificase por meio do Censo Escolar de 2020 um aumento no percentual de alunos com deficiência matriculados em classes comuns. Para alunos de 4 a 17 anos houve o alcance da marca de 93,3% de alunos com deficiência matriculados em classes comuns, crescente em relação aos 89,5% de 2016. Quanto ao total de alunos matriculados na educação especial, também houve crescimento, no valor de 34,7%. Verificamos assim uma maior viabilização da educação da pessoa com deficiência no todo. O crescimento em ambos os tipos de classe acentua o conflito de visões do método de educação, mas sem apresentar resultados concretos para a temática.
No que tange as medidas voltadas ao tema, no ano de 2020 é instituída a Política Nacional de Educação Especial Equitativa (PNEE), inclusiva e com aprendizado ao longo da vida. Tal política se distancia do movimento inclusivo, com planos de justamente retomar ações de tratamento especial.
Vale ressaltar que no corpo do documento de transição entre abordagens é constantemente acionada a ideia de embasamento técnico na decisão. É indicada ausência de resultados positivos na abordagem inclusiva até então e são mencionados autores que não verificaram efetividade em tais medidas.
Entretanto, a ideia de adoção de profissionais especializados no ensino de pessoas com deficiência, argumento central da discussão, também é vital na abordagem inclusiva.
A visão apresentada por KAUFFMAN (2014) não aponta diretamente para o caminho de segregação, apenas destaca que o ensino unicamente inclusivo não obterá sucesso na instrução adequada dos estudantes de acordo com suas características e necessidades. Logo, as próprias tentativas de justificativa do texto falham, dado que a
10 principal citação apenas descreve que uma educação inclusiva falha se não tiver a capacitação para lidar adequadamente com os alunos.
Para Lima (2020), o PNEE (BRASIL, 2020) seria um “retrocesso histórico no tocante à remoção de barreiras dos educandos com deficiência ao direito de frequentar a escola regular”, onde uma espécie de redoma separatista de “aptos e inaptos” vigoraria. A deficiência de um indivíduo deveria ser compreendida apenas como parte da sua condição humana, e não como fator de exclusão e segregação de suas atividades sociais. 2.2. SAÚDE: INSTITUIÇÃO DA RCPD
Sedimentar o ambiente inclusivo de auxílio imediato e posterior desenvolvimento social da população PCD exige alto grau de articulação e organização das esferas responsáveis. Para tanto, o decreto Nº 7.612, de 17 de novembro de 2011, institui o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Plano Viver sem Limite).
Em linhas gerais, o plano visa legitimar os direitos das pessoas com deficiência pela integração e articulação dos dispositivos disponíveis. Especificamente no âmbito de saúde, o plano impacta na instituição da denominada Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD).
Por meio da portaria Nº 793 de 24 de abril de 2012 a instituição da RCPD representa um marco para a saúde das pessoas com deficiência no Brasil. Até então não havia desenvolvimento especializado e estruturado de ações em saúde, mesmo com a complexidade e diversidade da população alvo.
Entre os pilares da RCPD, estão ações de identificação precoce de deficiências, tratamento intersetorial dos usuários e, principalmente, reabilitação dos indivíduos (articulada com a Assistência Social e com a sociedade civil).
A Rede funciona como parte do Sistema Único de Saúde, certificando o direito universal, de qualidade e gratuito para os cidadãos com deficiência.
11 3. A ATUAÇÃO DA RCPD E DESAFIOS
A ação de um profissional da RCPD deveria ocorrer por meio de uma abordagem adequada de acordo com o indivíduo impactado, uma vez que a população afetada é extremamente heterogênea; de uma solução da forma mais eficiente possível do motivo de acionamento e, como elemento primordial, da continuidade de ações para integração e desenvolvimento da PCD.
Esses tipos de medidas só seriam possíveis com a devida capacitação dos trabalhadores, onde estariam englobados tanto os aspectos comportamentais dos indivíduos responsáveis pela aplicação das ações quanto os instrumentos utilizados.
Portanto, uma consulta de rotina onde médico e paciente não conseguem se comunicar de maneira eficiente não deveria ocorrer. Nóbrega (2017) verifica que tal tipo de evento é comum no cotidiano de atendimento de pacientes surdos, nos quais normalmente os médicos responsáveis não possuem conhecimento suficiente da língua brasileira de sinais e faltam intérpretes para realizar a intermediação.
O resultado do despreparo das unidades é a ocorrência de tratamento inadequado de pacientes e constante constrangimento dos usuários. Logo, o emprego de profissionais sem o grau correto de especialização acaba por colocar em risco a saúde direta do paciente (tratamento disfuncional) e sua saúde mental (exposição a um ambiente não inclusivo e extremamente intrusivo).
Como possível meio de mitigação do problema, Nóbrega (2017) verifica que o investimento em intérpretes de língua de sinais seria adequado. Hoje é prevista a existência desses profissionais nas unidades de tratamento, porém isso não ocorre em 100% dos casos. A capacitação de mais profissionais e de maneira apropriada ao ambiente da medicina causaria impacto positivo nos tratamentos.
Mesmo assim, o cenário de aumento significativo no contingente de intérpretes pode não ser efetivo na resolução do problema. Ter funcionários capazes de utilizar adequadamente a língua de sinais (fato estritamente técnico) não significa necessariamente que eles estejam preparados para o atendimento, dado que o púbico alvo estará constantemente em situação de extrema fragilização, em que o fator psicossocial é fundamental. Os próprios profissionais da saúde devem receber uma formação com direcionamento para atendimento humanizado.
Neste contexto, no ano de 2003, foi instituída pelo SUS a Política Nacional de Humanização (PNH) justamente visando a valorização dos usuários por meio da
12 qualificação dos trabalhadores. Entre os pilares da política estão as diretrizes de acolhimento da população alvo (utilização de escuta qualificada para garantir acessos de acordo com a necessidade específica daquele indivíduo), de Cogestão/Ambiência (participação ativa do usuário nos direcionamentos) e valorização do trabalhador (diálogo direto com participação nas tomadas de decisão).
Mesmo sem ser verificada a efetividade da PNH para a população PCD, a existência de tais diretrizes deveria fomentar maior articulação entre os profissionais das áreas para difusão de conhecimento. A autonomia de cada agente e a valorização da contribuição de cada um para o desenvolvimento do todo são justamente pontos com destaque na PNH que merecem atenção especial.
Dando continuidade ao ponto da capacitação de atendimento, quanto ao aparato técnico de tratamento, de forma semelhante, encontramse muitos desafios. No cenário de pacientes com sequelas neurológicas, Machado (2018) identifica a ausência de material adequado para tratamento odontológico. A aplicação de anestesia geral, necessária para o tratamento odontológico desses indivíduos, não é suportada pelo Centro de Especialidade Odontológica (CEO).
Novamente, as unidades onde deveriam ocorrer atendimentos especializados com aplicação de fato do direito universal à saúde ficam estagnadas pela falta de preparo. Os usuários sofrem com mais uma forma de exclusão e nem mesmo no centro especializado é oferecido tratamento adequado.
Este ponto se mostra crucial no desenvolvimento dos tratamentos por ferir diretamente a relação dos pacientes e dos familiares com o sistema que deveria zelar por eles. No caso de pacientes que, na sequência estejam fadados à um atendimento genérico, temos claramente uma quebra no ciclo de inclusão e frustração do envolvidos. Eventuais situações, como a citada anteriormente a respeito do CEO exigem a efetividade de outro elemento fundamental na RCPD: a articulação de suas faces. No referido caso, os pacientes deveriam ser encaminhados para o local adequado para o tratamento, sendo este especializado no tratamento de PCD ou não. Entretanto, para autores como Machado (2018) a integralidade do sistema é falha. O tratamento eficiente do indivíduo deveria ocorrer por meio de ações contínuas, onde após o tratamento de fato haveria orientação acerca dos cuidados a serem tomados e principalmente da reabilitação. Machado (2018) ressalta que muitos pacientes deixam de receber orientações básicas sobre cuidados domiciliares ou mesmo sobre sua contínua reabilitação.
13 Há ainda carência de orientações fundamentais para pessoas envolvidas na continuidade do tratamento: os familiares. Hospitais deixam de oferecer uma adequada instrução para estes indivíduos e, consequentemente, perdem força na manutenção de tratamento e abalam sua relação com os usuários.
Temos envolvidos três elementos fundamentais no tratamento: paciente, familiar e profissional. Dada a natureza de maior continuidade da relação entre familiar e paciente, não seria claramente de vital importância a inclusão desse indivíduo no ciclo do tratamento?
Neste ponto visualizamos um sistema desconexo e, de certo modo, fragmentado. A RCPD carece, segundo Machado (2018), de profissionais “capazes de implementar instrumentos que possam assegurar acesso a cuidados e assistência integral, interdisciplinar e intersetorial”.
O autor ainda conclui, no âmbito de reabilitação, que nossa atuação se caracteriza pela “fragmentação e descontinuidade assistencial” com fragilidade na gestão do sistema e necessidade de maior articulação das ações.
Claramente podemos ver o ferimento das diretrizes da PNH, citada anteriormente. A cogestão e valorização do trabalhador deixariam de existir nesse ambiente onde não há ação conjunta dos profissionais de áreas distintas. Um profissional alienado em suas funções não exerce seu papel como devido ao lidar com assuntos de caráter socialmente sensível.
A ausência de ações contínuas de reabilitação dos indivíduos, por outro lado, não consiste na inexistência de qualquer articulação com a comunidade. Há, segundo Dubow (2018), uma espécie de “rede viva” na RCPD, mantida pela constante construção tecida tanto pelos colaboradores como pelos usuários (parceria eficiente).
Esta “rede viva” abrange as formas de criação de conexão de grupos, tanto no âmbito coletivo quanto individual, e seus impactos sociais. Em contrapartida com o apresentado por Machado, o estudo de Dubow (2018), referente à 28ª Região de Saúde do Rio Grande do Sul, nota considerável integralidade entre o trabalho dos profissionais, com constante troca de informações.
Nos próprios pontos de limitação dos serviços da RCPD são visualizados aspectos positivos, onde a triagem e a orientação dos usuários no fluxo da rede atendem as expectativas dos pacientes.
14 Como ponto de atenção regional, no entanto, é destacada a questão de investimentos e suas implicações. Para indivíduos com deficiência visual não há serviço de referência especializado. A falta de uniformidade entre as possibilidades para cada deficiência certamente não é exclusiva dessa região. Os profissionais ficam reféns das limitações locais e os pacientes são submetidos a situações degradantes.
Ainda sobre investimentos, surge uma interseção entre os estudos de MACHADO e DUBOW. A segunda autora verifica que nos casos onde foi identificada falta de integração entre áreas da RCDP havia ocupação máxima dos equipamentos de saúde.
Não realizar incrementos de investimentos proporcionais ao crescimento de sua atuação implica em sobrecarga de atividades. Consequentemente os profissionais acabam exaustos, sem espaço para criarem as relações de comunidade essenciais no mecanismo como um todo e, principalmente, reduzindo a qualidade do acolhimento ao usuário. Do mesmo modo que os investimentos devem suprir as necessidades direcionadas para as ações básicas, deveriam promover ações além. Não basta tratar os problemas finais, é necessário viabilizar as conexões sociais para eliminar a possibilidade de reincidência dos problemas, eliminando concretamente custos futuros. Retomando o ponto do atendimento de deficientes visuais no Rio Grande do Sul, Dias (2020) averigua que o oposto ocorre em Minas Gerais. A autora nota alta concentração de unidades de atenção da pessoa com deficiência intelectual, com ausência de equipamentos para atender as demais.
Caso as situações de Minas Gerais e Rio Grande do Sul se assemelhem ao resto do país, claramente a questão de regionalização dos serviços é de urgência extrema. A especialização desequilibrada de cada local pode acabar por causar necessidades de locomoção dos usuários, o que se afasta dos objetivos propostos pela PNH e dos princípios do SUS.
Entretanto, especificamente para Minas Gerais, existem outros problemas latentes. Segundo Dias (2019), elevados tempos de espera para o tratamento frustram os usuários da região. Mais uma vez o problema está diretamente associado ao orçamento que não comporta o volume de atendimentos suportado por cada local. O grau crítico da situação pode ser visto no fato de 25% dos usuários avaliarem negativamente os atendimentos recebidos.
15 A autora apresenta ainda um aspecto extremamente interessante para o entendimento da atuação específica de cada região: as características da população atendida.
Dias (2019) descreve a predominância de homens brancos entre os pacientes, com idade média de 28,6 anos. Além da idade média já ser baixa, 50% dos usuários tem menos de 14 anos. Compreender a população afetada pelos serviços pode apresentar soluções específicas para o local, mas não deve significar atuações somente para o indivíduo médio. Mais estudos voltados ao tema edificariam o debate do tópico. A alta heterogeneidade das características das pessoas com deficiência e o fato da própria luta desta população ser direcionada à universalidade de direitos denota a necessidade de disponibilização de serviços adequados a todos, impreterivelmente.
Considerando toda essa dinâmica de atuação da RCPD, foram identificados então 4 aspectos que carecem de atenção especial: a capacitação das unidades e dos profissionais atuantes das redes, a integração dos trabalhos de cada unidade e o relacionamento com os usuários. O impacto latente de limitações orçamentárias nos conceitos apresentados associados a alteração de direcionamento estratégico evidenciada no capítulo anterior, acabam por apontar para um cenário prejudicial à constante evolução do funcionamento da RCPD.
16 4. ASPECTOS ORÇAMENTÁRIOS
No que se refere a destinação de recursos as esferas socioassistenciais, o Brasil encarou uma gradativa evolução após a constituição de 1988, principalmente no período subsequente à virada de século, quando o país alcançou patamares nunca antes observados.
Crescimento econômico e avanços de movimentos sociais acabaram por impulsionar o país ao máximo de seu potencial. A conjuntura economicamente próspera era causa e efeito das conquistas históricas na seguridade, de modo a que se tornasse improvável dissociar os dois conceitos.
Entretanto, os rumos do país são agressivamente alterados no ano de 2016, quando o comando do país é assumido por Michel Temer, após a queda da então presidente Dilma Rousseff.
O direcionamento do país passa a se calcar em um orçamento enxuto e limitado, em um grande retrocesso em comparativo ao período anterior. Evidenciase a guinada liberal brasileira com a instauração do novo regime fiscal, calcado nas diretrizes da Emenda Constitucional 95/2016 culminando na PEC 55/2016. Tal medida objetivou um corte nos gastos principalmente relativos a saúde e educação, mascarados como contingenciamento temporário e emergencial por 20 anos.
Nesse cenário os recursos das duas esferas, que encaravam incrementos substanciais todos os anos, passariam a ter seu piso decretado pelo investimento no ano posterior à PEC. Nos anos subsequentes este valor seria ajustado apenas pela inflação, sem acompanhar devidamente o crescimento econômico do PIB do país.
Na visão de ROSSI (2016), a PEC se tratava de uma medida de desvinculação de saúde e educação do orçamento, dado que o novo regime em si não exigiria uma emenda. Quanto ao impacto a longo prazo nos investimentos, o autor define o cenário pós emenda como de um “piso deslizante”.
Isso se deve ao fato da variação anual deixar de seguir o crescimento do PIB. Em suma, haverá incremento mínimo, de modo que duas esferas passarão a ocupar uma proporção cada vez menor do orçamento.
As projeções apresentadas na obra Austeridade e Retrocesso: Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil corroboram para este ponto, ao inferirem que 18%
17 do PIB destinado à saúde em 2016 poderia se tornar apenas 12% em 2036, na ótica da emenda constitucional.
Fica evidenciado, dessa forma, o desmonte das conquistas realizadas nas políticas públicas nos últimos 20 anos. O enfoque do país mudou, dado que o desenvolvimento dos aspectos básicos para a população poder exercer seus direitos fundamentais foi deixado de lado.
Com a alteração de liderança, o movimento de retrocesso social para entrada de uma agenda liberal calcada no corte de gastos e sucateamento de políticas públicas ganhou força. Além da PEC 55, citamos anteriormente o próprio alinhamento estratégico da educação no âmbito de ensino especial. Para a saúde vemos um cenário similar, com divergências entre os entendimentos de cada entidade responsável, conforme citaremos posteriormente.
Ao nos debruçarmos no entendimento do financiamento da RCPD, seu ajuste em relação ao SUS é fundamental, dada a simbiose entre ambos. Neste âmbito, Dubow (2018) identifica que há desacordo entre os objetivos com o SUS.
Realizar tratamentos emergenciais e principalmente de alta densidade tecnológica geram custos extremamente elevados. Por isso, a saúde caminha cada vez mais para tratamentos preventivos, onde há custo com todos, porém inferiores ao que ocorreria em casos de necessidade.
Esta conclusão não é exclusiva da esfera pública. As próprias operadoras de planos de saúde identificaram a relação benéfica entre investimentos preventivos e custos. Além do ganho na imagem da marca em relação ao usuário, os tratamentos mais utilizados passam a ser os menos custosos.
Apesar de claramente ser mais benéfico ao sistema o enfoque em medidas preventivas, não é o que se verifica para o Sistema Único de Saúde. Para Dubow (2018), a falta de alinhamento entre o SUS e as Redes de Atenção à Saúde (RAS) estaria relacionada justamente ao fato das redes entenderem a vantagem de tratamentos precoces. Nos primeiros capítulos foi apresentado que para a população com deficiência o tratamento precoce é justamente um dos pilares no tratamento. Identificar o mais cedo possível a deficiência de uma pessoa tende a elevar sua qualidade de vida em todos os sentidos, dado que nesse cenário é possível destinar os recursos corretos para aquele indivíduo.
18 Verificamos nesse aspecto o quanto se ganha em eficiência ao trabalhar com análises prévias. Uma saúde essencialmente exercida após a ocorrências de enfermidades pode ser considerada como reativa, dado que aguarda a ocorrência de problemas e só então age. Essa reatividade no âmbito da saúde torna os problemas mais complexos, necessitando de uma solução mais elaborada e, consequentemente, mais cara.
Considerando o cenário de desmonte de políticas públicas, as medidas corretas são aquelas eficientes, onde a relação custo benefício é baixa. Desta forma, estrategicamente é nocivo ao sistema o direcionamento de tratamentos complexos em detrimento de preventivos.
Como atualmente as formas de tratamento precoce não são amplamente fomentadas, o quadro problemático acaba por extrapolar a esfera de saúde. Um indivíduo fragilizado acaba por sofrer em educação e, principalmente, com as implicações sociais disso.
Segundo o Observatório Municipal da Pessoa Com Deficiência da cidade de São Paulo, apenas cerca de 17,8% dos usuários do Programa de Inclusão Econômico possuíam formação superior completa ou pósgraduação. Tal proporção indica o grau de exceção da formação superior para esta população, um dado extremamente preocupante. Uma consequência direta deste ponto é a situação econômica média. Grau de escolaridade tem em média uma relação com condição financeira, dado que implica na capacidade técnica do indivíduo. São mais de 1,3 milhão de famílias em situação de pobreza em São Paulo, onde mais de 60% tem faixa de renda familiar inferior a meio salário mínimo. No caso de pessoas com transtorno mental o cenário é o mais grave, onde a renda mensal familiar média é de 434 reais. Como resposta a esses indicadores, por exemplo, a prefeitura de São Paulo aposta em metas de triplicar os estágios para estudantes com deficiência na prefeitura e ampliar a atuação do Contrata SP, programa de fomento de empregos para toda a população. Fica latente com esta digressão a forma de melhoria concreta nas condições de vida da população PCD: ações intersetoriais. Para eficiência em medidas de reabilitação se faz necessário integrar educação, saúde e assistência.
Neste ponto, o fomento de ações conjuntas comandadas pelo SUS é fundamental. No caso de pacientes que entram no sistema em busca de atenção básica,
19 o direcionamento para instituições para capacitação educacional ou para centros de referência se faz necessário enquanto medida de reinserir um cidadão no pleno gozo de seus direitos. A disponibilização de formas de capacitação da pessoa com deficiência permite que, de maneira autônoma, o indivíduo possa exercer seu direito ao trabalho, ao lazer, ao convívio social. O quadro de paciente verificado na entrada dessa pessoa no sistema é tratado no ponto de saúde, mas não termina nesse momento. Reabilitar implica em apresentar as ferramentas de reestabelecimento daquele cidadão, capaz como todos os outros de realizar todas as ações que se dispuser a fazer, dentro dos limites da lei. É papel do Estado possibilitar a existência autônoma e digna de todos os cidadãos do país.
20 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio de toda a discussão apresentada por este trabalho pudemos compreender a dimensão e complexidade da atuação da RCPD no Brasil, bem como sua vital importância no avanço dos direitos das pessoas com deficiência em nosso país. A contribuição realizada por este estudo esbarra em um ponto essencial das análises de medidas socioassistenciais: transparência orçamentária.
Infelizmente os dados encontrados no âmbito de saúde se limitam à investimentos gerais e, quando são divulgadas informações especificamente às PCDs, se tratam de medidas isoladas, como o caso de São Paulo no capítulo quatro.
Para que pudéssemos realizar uma análise aprofundada da relação entre recursos investidos e os resultados apresentados esses dados deveriam estar disponíveis e, principalmente comparáveis. Por meio dos movimentos estratégicos evidenciados após a alteração de liderança no país em 2016 notamos o sucateamento das políticas socioassintenciais, porém sem informações específicas do público deste estudo.
Dada a ausência de informações orçamentárias, foi possível focar apenas no desenvolvimento das medidas protetivas e seus desdobramentos, bem como suas implicações no todo.
A RCPD tem contribuído para a saúde das pessoas com deficiência no Brasil, construindo uma relação com a comunidade em que há uma série de trocas visando a ampliação das atividades e o alcance de um elevado grau de especialização, culminando em medidas cada vez mais eficientes.
Com a atuação em capacidade máxima das unidades, a sobrecarga nos profissionais tende a reduzir seu impacto nos usuários. A exaustão dos funcionários não permite que estes alcancem o grau de especialização que melhor atenda o público, que atuem de forma integrada com órgãos assistenciais ou mesmo que construam a relação continuada vital no processo de reabilitação.
O tema de reabilitação, de suma importância no tratamento de PCDs, apresenta alto grau de distanciamento do adequado. Pacientes e propriamente familiares/acompanhantes deixam de receber uma instrução continua de como proceder após as intervenções e, consequentemente, o ciclo de utilização acaba por continuar.
21 De modo análogo, temos a alta valorização de uma saúde cara, principalmente pelo caráter complexo de seus procedimentos. A saúde de pessoas com deficiência deveria se calcar em atendimentos precoces e preventivos, o que hoje está em desacordo com o SUS.
Saúde como um todo deveria ter um fomento mais amplo de medidas preventivas, dado o caráter custoso de ações emergenciais. Recursos escassos carecem de uma utilização o mais eficiente possível, com pulverização de poucos fundos para todos os cidadãos, de modo a evitar que estes tenham enfermidades dispendiosas.
Um elemento fundamental que deve ser analisado profundamente é o da regionalização das atividades. Notamos pelos estudos abrangidos que cada região apresenta déficits diferentes na sua atuação, levantando a carência de investimentos específicos, reduzindo assim possíveis ocorrências de migração formada de pacientes buscando auxílio.
Portanto, verificase um cenário de escassez de recursos na RCPD, onde a sobrecarga nas unidades limita sua atuação e impossibilita a execução de todo o potencial. Um orçamento específico mais transparente possibilitaria a contínua revisão desta conclusão, sendo vital para o futuro.
22 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAUJO, Luiz Alberto David; FILHO, Waldir Macieira da Costa. O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EPCD (LEI 13.146, DE 06.07.2015): ALGUMAS NOVIDADES. Revista dos Tribunais | vol. 962/2015 | p. 65 80 | Dez / 2015.
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