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Bellini e a pura arte da melodia

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Academic year: 2022

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Bellini e a pura arte da melodia

A ópera como um todo possui uma reputação miserável, particularmente a italiana. Essa é a visão do musicólogo Charles Rosen (Harvard University), o que é favorecido – segundo o professor Philip Gossett (University of Chicago) – por seus enredos melodramáticos, melodias banais, tenores berrando dós agudos e sopranos fazendo trinados sobre flautas ao longo do século XIX.

Para Rosen, no entanto, a única injustiça cometida por Gossett seria quanto à banalidade das melodias. Banal, lembra o primeiro, é aquilo que se torna demasiadamente familiar; o que já se ouviu em excesso – mas, tornar uma obra sua demasiadamente familiar era exatamente o sonho de qualquer compositor de ópera… O sucesso inicial de uma ópera requeria, no mínimo, uma melodia original que parecesse familiar – isso já na primeira audição! – e que pudesse ser assobiada pela platéia ao sair do teatro.

Donizetti e Verdi: melodias belíssimas, mas suadas

Ao contrário do que parece, Giuseppe Verdi (1813-1901) trabalhou duro sobre a famosa “La donna è mobile” e sabia tão bem o que havia alcançado que manteve a melodia em segredo estratégico – mesmo ao primeiro intérprete foi negada a possibilidade de vê-la antes do ensaio dos figurinos. A propósito, o pesquisador Roger Parker (King’s College London) afirma que “Verdi tinha plena consciência da potencial popularidade dessa melodia; e também que sua veia melódica poderia diminuir consideravelmente seu efeito dramático”.

Nesse particular, Rosen discorda veementemente por entender que tal idéia

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sugere – uma vez conhecida a melodia – que seu efeito dramático é reduzido e, portanto, perde seu efeito após a estréia. Segundo ele, o efeito dramático depende justamente desse melodismo. O diferencial de Verdi e de outro conterrâneo seu, Gaetano Donizetti (1797-1848), repousa no uso dramático que eles fizeram de tais melodias.

Bellini: a melodia em primeiro lugar

Por outro lado, esses dois mestres italianos não eram dotados da habilidade de escrever as longas “melodias aristocráticas”, como as chama Rosen, do siciliano Vincenzo Bellini (1801-1835). Morto aos 33 anos, Bellini escreveu relativamente pouco, mas sempre com extremo cuidado e requinte minucioso. O musicólogo francês Roland de Candé o considera como o mais puro representante do romantismo italiano, sendo o primeiro a cortar qualquer vínculo com a ópera do século XVIII, ao despertar o interesse por um teatro humano em que o canto se torna a expressão natural e familiar de sentimentos fortes e comoventes.

Rossini

É sabido que as formas musicais de todas as óperas italianas por mais de meio século foram construídas pelo molde amplamente imposto por Gioacchino Rossini (1792-1868), como já foi frisado em outro post. Naturalmente, Bellini admitiu

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a supremacia de Rossini e aceitou as formas estipuladas pelo velho mestre.

No entanto, seu estilo se mostrou anti-rossiniano em vários momentos, como uma reação contra o chamado “brilhantismo artificial”, que teria dominado a cena vocal italiana. O novo estilo belliniano buscava eliminar os floreios de Rossini, apresentados no vídeo abaixo em vários pontos da difícil ária para tenor “Terra amica” da ópera Zelmira.

Zelmira (Rossini): Scena e aria “Terra amica”

Segundo Rosen, a divisão entre expressão do sentimento e representação da ação promovida por Bellini significou um retorno à concepção operística do barroco tardio – no qual toda a ação ocorria no recitativo e as árias eram as molduras da emoção. Além disso, caracterizaram tal resgate o reaparecimento da textura rítmica homogênea, a rejeição da articulação clássica bem- delineada e a tentativa de se efetuar uma transição mais fluente entre as frases.

A simetria estrutural formal de tônica – dominante do início ao final do século XVIII – é substituída por uma ênfase no ritmo repetitivo, às vezes quase hipnótico, e numa simples e única linha melódica ininterrupta, com um clímax empurrado para perto do final. O jornalista Alan Riding (The New York Times) afirma que Bellini transformou a voz em algo parecido com um raio laser atravessando a escuridão. Tal esforço já pode ser sentido, por exemplo, na ária final de seu primeiro triunfo: Il Pirata (vídeo abaixo).

Il Pirata (Bellini): Scena, aria e finale “Oh! s’io potessi”

Quanto à famigerada simplicidade da orquestração de Bellini, o próprio compositor a justificou de forma objetiva – e sem qualquer complexo – ao afirmar que

La natura piena e corsiva delle cantilene non amettono altra natura d’istrumentazione.

(A natureza plena e cursiva das canções não admitem outra natureza de instrumentação.)

Os musicólogos franceses Jean e Brigitte Massin reconhecem que Bellini não era um grande orquestrador, mas sabia empregar com grande precisão um dado instrumento que isolava do resto da orquestra e ao qual confiava o cuidado de dobrar a voz humana. Nesse sentido, o solo instrumental possui função essencialmente dramática, como na scena inicial do finale de Il Pirata – uma verdadeira ária sem palavras que absorve os sinais de loucura da heroína (começo do vídeo acima).

Bellini introduz o cantabile puramente instrumental na scena inicial de uma ária ou conjunto, seguindo certos precedentes notáveis de Rossini – mas, com uma densidade que não estava presente neste, segundo Rosen. Nesse mesmo aspecto, Candé afirma que criticaram Bellini obstinadamente pela pobreza da polifonia e da orquestração e que isso é um absurdo, pois um canto tão

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perfeito e sutil só pode ser acompanhado por um murmúrio. Bellini considerava que os artifícios de composição cortam o efeito dramático das situações.

Rosen nos certifica que a combinação de simplicidade com intensidade deixa a arte de Bellini intocável pela tal vulgaridade da forma melodramática do século XIX, apontada por Gossett. Afirma, ainda, que as inovações do compositor tiveram uma influência até mesmo no estilo de performance. Riding ressalta que Bellini trabalhava sem pressa, compondo apenas 10 óperas em seus 33 anos de vida – um terço do que Rossini compusera na mesma idade. O siciliano era tão perfeccionista que pediu ao libretista que reescrevesse a ária final de La Sonnambula nada menos do que 10 vezes até ficar satisfeito.

Essa ária é apresentada por completo no vídeo abaixo.

La Sonnambula (Bellini): Aria “Ah! non credea mirarti”

As inovações de Bellini requeriam algo do modo antigo de cantar e ninguém antes dele havia utilizado simples ornamentações com uma intensidade tão concentrada. Em sua obra, elas se tornaram meios de se prolongar as dissonâncias, com papel central na capacidade de Bellini em escrever suas longas melodias (“melodie lunghe, lunghe, lunghe…” – dizia Verdi). São essas simples ornamentações que são usadas para adiar a cadência da cavatina de Tebaldo de I Capuleti e i Montecchi (áudio abaixo).

I Capuleti e i Montecchi (Bellini): Cavatina “L’amo tanto”

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/01/I-Capuleti-e-i-Monte cchi-Lamo-tanto-Luisi.mp3|titles=Netrebko/Garanca/Luisi (Deutsche

Grammophon)]

Rosen recomenda que tais ornamentos sejam cantados lentamente e através de uma expressão de sutis nuanças, evidenciando a substituição da agilidade da coloratura rossiniana pelo estilo spianato, ou seja: a livre, suave e tranqüilamente sustentada flutuação da linha vocal.

Nesse sentido, os Massin salientam que Bellini sabia recorrer com perfeição a um canto que, partindo do pianíssimo, faz, gradativamente, brotar o fortíssimo que atinge o mais alto ponto das emoções de uma curva sonora. A intenção do compositor era aplicar radicalmente o estilo lírico (apoiado na técnica do spianato) inclusive sobre conjuntos e recitativos. Bellini definitivamente não possuía veia cômica, mas se tornou, segundo Rosen, o mestre supremo do estilo elegíaco, um lirismo que transforma inclusive as próprias cenas de ação.

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Início da ária “Ah! non credea mirarti” (La Sonnambula) no túmulo de Bellini (catedral de Catânia, Itália)

Rossini afirmou ao ouvir Il Pirata que era algo “tão filosófico a ponto que, em certas partes, chegava a faltar brilhantismo”. La Straniera pode ser considerada, nesse sentido, a ópera mais “filosófica” de Bellini, em sua busca de realizar um novo tipo de música que expressasse estritamente as palavras, que formasse um simples objeto a partir de ambos, canção e drama.

Ele buscava introduzir um estilo puramente declamatório na ária e no conjunto (áudio abaixo).

La Straniera (Bellini): Quarteto “Che far vuoi tu?”

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/01/La-Straniera-Quartet o-Aliberti.mp3|titles=Aliberti/Bello/Masini (BMG Ricordi)]

A propósito, a ária final de La Straniera demonstra como a preferência de Bellini pela ornamentação expressiva, em detrimento do brilhantismo, deu-lhe possibilidade de prolongar linhas melódicas (áudio abaixo).

La Straniera (Bellini): Aria “Or sei pago, o ciel tremendo”

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/01/La-Straniera-Finale- Aliberti.mp3|titles=Aliberti/Bello/Masini (BMG Ricordi)]

Rosen aponta que a experimentação com a pura declamação lírica e as nuas linhas monofônicas de La Straniera jamais voltaram a ser repetidas de forma tão dogmática por Bellini. Isso, no entanto, proporcionou-lhe a técnica que produziu a intensidade lírica das óperas que se seguiram.

Bellini dedicou a maior parte de seu trabalho aos cantores e suas vozes. Para ele, a expressão se constrói pelas linhas desnudas e os cantores devem priorizar a produção de uma bela sonoridade. Disso decorre a extrema exigência imposta àqueles que se candidatam a cantar suas óperas – e a dificuldade de se identificar cantores devidamente habilitados para tal desafio. São raríssimas as vozes que aliam beleza, pureza, limpidez, fluidez e segurança técnica que configuram o sentido mais essencial da expressão Bel Canto. A célebre soprano alemã Lilli Lehmann (1848-1929), certa vez, comentou

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que “cantar todas as três Brünnhildes de Der Ring des Nibelungen [de Richard Wagner (1813-1883)] seria menos estressante do que cantar uma Norma“. Ela explicava que

Quando cantamos Wagner, somos levados pela emoção dramática, pela ação e pela cena. Não temos como pensar em cantar as palavras. Isso acontece por si só. Mas, em Bellini, devemos sempre ter o extremo cuidado com a beleza tonal e emissão correta do som.

Em I Capuleti e i Montecchi, o estilo declamatório criado por Bellini é usado até mesmo na última seção de conjunto. Romeo inicia um tema sob a forma de cabaletta, mas a interjeição de Giulietta (Ciel crudele!) entra de forma surpreendentemente simples (vídeo abaixo). Rosen afirma que o peso expressivo conferido nessa frase não havia ocorrido no palco de ópera desde as obras de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Gradualmente, a forma em conjunto retorna à declamação e, então, segue uma seqüência ascendente que atinge o clímax.

I Capuleti e i Montecchi (Bellini): Duetto “Vivi… vivi… e vien talora”

Rosen entende que muito do poder emocional da música de Bellini deriva da tensão gerada pelos arabescos longos, sustentados, delineados por suas melodias, e do modo pelo qual as dissonâncias expressivas nas melodias são postas em relevo com a maior simplicidade. Na cena da loucura de I Puritani, primeiramente ouvimos a voz de Elvira atrás dos bastidores, cantando uma frase que, ainda segundo o pesquisador, foi a mais poderosa invenção do compositor. A melodia principal da cena da loucura revela a arte de Bellini em adiar a inevitável resolução e cadência. Essa passagem é apresentada no vídeo abaixo pela incomparável soprano Dame Joan Sutherland (1926-2010), a maior intérprete para Bellini. Sutherland deixou suas lendárias gravações nesta caixa.

I Puritani (Bellini): Scena “O rendetemi la speme”

A melodia dessa passagem é atípica no sentido de que algumas de suas notas estão presentes na orquestra e a aparente imobilidade do cantor de executar toda a linha melódica representa seu sofrimento e angústia. A maneira de Bellini não deixar que a melodia cesse é especialmente visível no exemplo acima.

Mozart e Haydn: a inspiração primordial de Bellini

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O jornalista Lauro M. Coelho (O Estado de S. Paulo) esclarece que o motivo de essas melodias serem tão bem-sucedidas é a capacidade que tem o compositor de reproduzir, com exatidão minuciosa, cada sentimento que anima suas personagens. Candé, por sua vez, investigando a origem dessa perspicácia do compositor, afirma que o próprio Bellini estudara os quartetos de Mozart e Franz Joseph Haydn (1732-1809) para buscar neles a naturalidade da invenção melódica. Abaixo, está uma passagem que certamente deve ter influenciado a arte de Bellini: o lírico cantabile do Quarteto nº 5 do Op. 33 de Haydn. É uma verdadeira ária para violino.

Quarteto Op. 33, nº 5 (Haydn): Largo e cantabile

Em trabalhos mais densos do que as obras de Donizetti, Bellini introduz os

“maravilhosos vôos de árias etéreas”, como chamam o casal Massin, nos quais a voz se transforma no mais sublime dos instrumentos. O encanto provém da melodia.

Stravinsky e Beethoven: o amigo e o inimigo dos pentes

Os Massin destacam a citação (como sempre polêmica) do compositor russo Igor Fyodorovich Stravinsky (1882-1971) em sua obra Poética Musical, quando opõe Ludwig van Beethoven (1770-1827), a quem negava qualquer senso de melodia, a Bellini:

Beethoven constituiu para a música um patrimônio que parece ser exclusivamente devido ao seu obstinado trabalho. Já Bellini recebeu a melodia sem se dar ao incômodo de solicitá-la, como se o Céu lhe houvesse dito:

eu te dou exatamente aquilo que faltava a Beethoven.

A atração pelas melodias de Bellini é criada não somente pela extensão, mas também pelo modo como cada uma delas é prolongada para além dos limites esperados. Na mais famosa ária de Bellini, “Casta diva, che inargenti”, de Norma, a segunda parte do período inicial se desenvolve com extraordinário efeito e opõe a ornamentação convencional dos primeiros compassos ao lento, amplo e mais impetuoso contorno. Isso já é suficiente para aumentar o pathos.

A grande soprano espanhola Montserrat Caballé é uma das referências nesse papel (áudio abaixo).

Norma (Bellini): Aria “Casta diva, che inargenti”

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[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/01/Norma-Casta-Diva-Cab allé.mp3|titles=Caballé/Cillario (RCA)]

Wagner ajoelhou-se perante Norma de Bellini

Riding afirma que, em Norma, a música reforça o drama, dando origem a uma obra profundamente comovente. Uma orquestração que surpreende pela simplicidade sustenta os longos e complexos conjuntos, assim como árias de grande riqueza melódica. O papel de Norma é particularmente difícil, exigindo uma soprano coloratura de voz de grande força, extensão, resistência e virtuosismo, além de talento trágico. Wagner nunca escondeu sua aversão à maioria das óperas italianas, mas abria exceção para Norma. Ao ouvir a obra- prima de Bellini comentou: “Não devemos nos envergonhar de derramar uma lágrima e expressar emoção”.

A maior conquista de Bellini, segundo Rosen, é exatamente a cena final de Norma, em que sua habilidade de sustentar uma longa linha se aplica a um stretto (vídeo abaixo). Ao escutar estas páginas, Wagner, admirado, mais uma vez desabafou: “Isso Richard Wagner não podia ter feito!”. Foi, de fato, afirma o musicólogo, a única parcela da arte de Bellini que Wagner jamais aprendeu a dominar, e a cena final de Norma permaneceu como modelo para muito de sua música posterior, chegando até Tristan und Isolde.

Norma (Bellini): Scena ultima “Deh! non volerli vittime”

Chopin: o Bellini do piano

Para Candé, as preciosas antologias do Bel Canto deixadas por Bellini são La

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Sonnambula (Milão, 1831), Norma (Milão, 1831) e I Puritani (Paris, 1835) e não carecem de interesse dramático, pois o mais puro deleite vocal é suficiente para polarizar a atenção dos melômanos, em detrimento do interesse cênico e do sentido geral da obra.

Já Rosen entende que Bellini construiu o estilo operístico ideal para o século XIX, mas sua melodia elegíaca não podia ser reproduzida – exceto por Fryderyk Franciszek Chopin (1810-1849), em outro terreno. Afirma, ainda, que a obra do mestre siciliano não deve ser vista como um beco sem saída, mas como um monumento isolado.

Referências

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