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XXIX Encontro Anual da Anpocs 25 a 29 de outubro de 2005

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XXIX Encontro Anual da Anpocs 25 a 29 de outubro de 2005

GT Migrações Internacionais Identidades, Culturas e Direitos

Titulo do Trabalho:

A Segunda Geração de migrantes brasileiros: De Criciúma para Boston reconstruindo identidades

Autora: Gláucia de Oliveira Assis

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A segunda geração de emigrantes brasileiros: de Criciúma para Boston reconstruindo identidades1

Autora: Gláucia de Oliveira Assis

Instituição: Centro de Ciências da Educação/Universidade do Estado de Santa Catarina – Faed/ Udesc

Neste início de século XXI, quando olhamos para o expressivo número de brasileiros tentando a vida lá fora, constata-se que ocorreu não apenas uma consolidação do movimento de brasileiros para o exterior, mas também uma maior complexidade na composição étnica, etária e de gênero. Dessa forma, não são apenas homens solteiros que partem, mas mulheres, crianças e jovens, que compõem diferentes arranjos familiares e de gênero. Este trabalho pretende analisar a trajetória de famílias de emigrantes provenientes de Criciúma (SC) em direção à região de Boston (MA), demonstrando como se reconstroem as relações familiares no contexto da migração, bem como a configuração de uma segunda geração de imigrantes – os filhos da migração. Para compreender a configuração da segunda geração, o trabalho de campo seguiu o percurso dos migrantes de Criciúma para Boston reconstruindo as trajetórias familiares através da observação participante e de entrevistas semi-estruturadas. Essa segunda geração vivencia a reconstrução de suas identidades entre os EUA e o Brasil e já não compartilha do mesmo projeto migratório da primeira geração sentindo-se indecisos quanto ao retorno ao Brasil, país com o qual já não se identifica tanto quanto a geração de seus pais. Os dados demonstram que as questões que são colocadas para a segunda geração se diferem daquelas enfrentadas por seus pais, pois enquanto esses vivem e trabalham pensando no eventual retorno para o Brasil, os filhos, mais inseridos na sociedade americana, principalmente através da experiência escolar, vivenciam o dilema de ser ou não ser Brazilian.

1 Este artigo está baseado na pesquisa que venho desenvolvendo sobre a Segunda Geração de imigrantes brasileiros com a participação dos bolsistas de iniciação científica Natália Cristina Ihá e Beny Ricardo e também no capitulo IV de minha tese de doutorado.

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Introdução

A emigração de brasileiros para o exterior é um fenômeno que, desde as últimas décadas do século XX, inseriu o Brasil na migração internacional. Esse movimento de emigração marca uma inversão na imagem do país como país de imigrantes. Os milhares de homens e mulheres que partiram no final dos anos 80, ao longo da década de 90 transformaram, o que era um movimento esporádico de emigrantes em busca de uma vida melhor, num fluxo continuo de imigrantes que se dirigem principalmente para os Estados Unidos, Japão, Portugal e Itália. Assim, iniciamos o século XXI com cerca de 1,5 milhão de brasileiros no exterior. Essa ampliação de nossa gente lá fora, trouxe uma maior complexidade ao movimento ampliando sua composição étnica, etária e de gênero. Dessa forma, não são apenas homens solteiros que partem, mas mulheres, crianças e jovens, que compõem diferentes arranjos familiares, provenientes de diversas regiões do país, inclusive da cidade de Criciúma, principal ponto de partida de emigrantes da região sul. Nesse sentido, que podemos falar de uma segunda geração de emigrantes brasileiros no exterior.

A segunda geração de imigrantes brasileiros tem sido objeto de alguns estudos tais como:

Sales (2001), Menezes (2003) e Assis e Ihá (2004). Esses trabalhos procuram caracterizar o que se tem denominado a segunda geração de imigrantes brasileiros nos Estados Unidos, local de destino da maioria dos migrantes brasileiros (Assis, 2003; Sales, 1999a; Martes, 1999).

A constituição de uma segunda geração de imigrantes brasileiros tem colocado questões instigantes para a compreensão desse fluxo, pois demonstram que está ocorrendo uma ampliação da expectativa temporal dos imigrantes. Assim, embora o projeto migratório continue a ser formulado pelos imigrantes em termos temporários, a vida cotidiana nos EUA tem demonstrado que são necessários mais do que os quatro ou cinco anos que são imaginados como projeto inicial. Esta ampliação do tempo de permanência torna-se mais efetiva com a configuração de famílias nos EUA. Nesse momento “um migrante puxa outro”, fazendo com que a migração ocorra articulada numa complexa rede de relações de parentesco e amizade – as redes sociais na migração.

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É nesse contexto, que chegam aos Estados Unidos os jovens migrantes brasileiros articulados as redes familiares acompanhando seus pais. Portanto, para os objetivos desse relatório descreverei as trajetórias das famílias imigrantes demonstrando a importância das redes familiares no contexto migratório e como os jovens imigrantes são inseridos nesse processo.

A pesquisa que venho desenvolvendo sobre a segunda geração de imigrantes (Assis e Ihá, 2004) demonstra que, assim como já observado por Menezes (2003), os jovens imigrantes dividem-se em três grupos:

a) Os jovens que nasceram no Brasil e migraram pequenos para a região de Boston nos Estados Unidos, onde foram efetivamente socializados.

b) Os jovens que nasceram no Brasil, tiveram sua primeira infância e socialização no Brasil e depois imigraram para os Estados Unidos.

c) Os jovens que nasceram nos Estados Unidos filhos de pais brasileiros.

Esses jovens se inserem com diferentes status na sociedade americana, pois os primeiros em geral, são filhos de imigrantes indocumentados e portanto, são ilegais e o terceiro grupo, que nasceu nos Estados Unidos, tem a cidadania americana, independente do status legal de seus pais. Até concluírem a High School (que corresponde ao ensino médio no Brasil), esses jovens podem freqüentar as escolas públicas americanas independente do status migratório. No entanto, ao concluírem essa etapa e procurar ingressar no College (universidade) o status migratório torna-se um impedimento para a continuidade dos estudos, pois os imigrantes indocumentados não têm acesso aos programas de bolsas de estudos, aos quais só podem concorrer cidadãos americanos. Isso introduz uma diferença entre os jovens imigrantes, gerando aqueles que poderão entrar na universidade e aqueles que não conseguem concorrer às bolsas e têm que pagar como estudantes estrangeiros – o que torna muito caro o acesso à formação superior.

Nesse trabalho apresentarei uma trajetória de familiar e partir dessa trajetória tecerei alguma comentários sobre as dificuldades encontradas pelas segunda geração e como se sente confrontada com as representações acerca do Brasil e dos EUA, reconstruindo suas identidades entre esses dois lugares. Todos migraram para os Estados Unidos acompanhando os pais, freqüentaram escolas americanas e começaram a trabalhar quando

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chegaram a high school. Através desses relatos apresento as possibilidades e os limites enfrentados pelos imigrantes e por seus filhos/as na realização do projeto migratório.

Famílias em Movimento – Entre a primeira e a segunda geração os projetos de

“fazer a América”

“É uma vida, como o pessoal do campo que vai para cidade. Aqui nós nunca passamos dificuldade. Fomos para lá e tivemos que enfrentar dificuldades” (José Ramella  Pai de Lorena  emigrante retornado).

Quando começava a pensar nas trajetórias dos migrantes brasileiros lembrei-me do relato de Velho (1999) sobre seu encontro com uma descendente de imigrantes portugueses, mais exatamente, uma açoriana de 15 anos, chamada Catarina, que trabalhava numa das lanchonetes da Harvard Square. O relato de Velho é referente ao início dos anos 70 e demonstra que o projeto migratório, “o fazer a América”, é um sonho acalentado cujos significados são compartilhados por grupos imigrantes de diversas origens nacionais.

A família, cuja história o autor relata através da jovem Catarina, tinha o projeto de melhorar de vida na América. Segundo o relato de Gilberto Velho, Catarina era uma jovem que vivia em Açores, mas quando desembarcou nos Estados Unidos não desconhecia de todo a vida na América, pela experiência em seu país de origem através do con2tato com outros migrantes, militares americanos, viajantes e turistas. Os pais, quando migraram, vieram em busca de uma vida melhor: o pai já havia trabalhado em outros serviços e tinha um emprego white collar, enquanto a mãe cuidava da casa e tinha precários conhecimentos de inglês. Segundo Velho, a migração constituía-se num projeto que havia sido acalentado pelos quatro membros da família nuclear, dentro de uma rede de relações em que a idéia era disseminada – tinham amigos, parentes e vizinhos que os haviam precedido. “Nunca sofreram privações, mas o apoio de parentes de amigos foi essencial”. Enquanto os pais

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tinham pouco conhecimento da língua e vivenciaram de modo restrito a sociedade americana, Catarina e seu irmão freqüentaram a escola americana, aprenderam inglês rapidamente e envolveram-se num novo estilo de vida, outras experiências de descoberta, em formas de sociabilidade imprevistas, como o contato com o universo das drogas e outras aventuras compartilhadas com seus colegas de escola. Os pais não conseguiram manter a mesma relação de autoridade, pois tiveram dificuldade de lidar com padrões novos e desconhecidos.

A partir dessa trajetória, Velho mostra as ambigüidades e os conflitos vivenciados por Catarina. Embora a jovem compartilhasse com sua família o projeto de “fazer a América”, os pais preocuparam-se com o bem estar material e os filhos queriam usufruir a sociedade e os valores americanos.

Assim, o projeto migratório, vai revelando, a partir das trajetórias dos sujeitos que pode ser vivenciado de maneira diferenciada pelos indivíduos que a compartilham, ou seja, embora o projeto seja coletivo, ele não era vivido de modo totalmente homogêneo por todos. Para o autor as diferenças de interpretação ocorrem devido a particularidades de status, trajetória, e, no caso de uma família, de gênero e de geração.

“As trajetórias dos indivíduos ganham consistência a partir de delineamentos mais ou menos elaborados de projetos com objetivos específicos. A viabilidade de suas realizações vai depender do jogo e da interação com outros grupos individuais ou coletivos, da natureza e da dinâmica do campo de possibilidades”. (Velho; 1999, p.47)

Quando iniciei a pesquisa com imigrantes brasileiros em 1993, identifiquei, no caso dos migrantes valadarenses, a migração como um projeto econômico, familiar e afetivo (Assis, 1995). Naquela época a predominavam jovens solteiros e havia poucas famílias com filhos nos EUA, mas mesmo assim pude observar que já nesse primeiro momento as diferenças entre a primeira e a segunda geração3.

3 Na ocasião fiz a seguinte observação: “Um dado que mereceria uma investigação mais aprofundada é o impacto sobre os filhos. Não entrevistei crianças ou filhos de emigrantes, pois não faziam parte dos objetivos deste trabalho, embora deva destacar que observei situações muito sugestivas nos Estados Unidos. Se no Brasil o cuidado dos filhos fica a cargo dos avós ou das esposas que permaneceram, quando estes vão para os

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Ao retornar ao campo em 1999, dessa vez em Criciúma e também a região de Boston em 2001, pude observar que o projeto migratório continua muito semelhante ao das famílias açorianas analisadas por Velho ou dos valadarenses que estudei; todavia, também pude constatar vivências diferenciadas de um projeto aparentemente homogêneo de “fazer a América”. Uma das constatações mais significativas que pude observar nas igrejas, nos restaurantes e também nos dados que pesquisei no consulado foi o aumento significativo do número de crianças e jovens. Se em 1993, quando entrei em contato com esse grupo de imigrantes havia o predomínio de jovens migrantes sozinhos para encontrar parentes, em 2001 há um aumento do número de famílias o que revela a consolidação das redes migratórias. São essas vivências que procurarei revelar através das trajetórias de vida dos migrantes.

Voltando aos Estados Unidos, é final de dezembro, num frio inverno de 2001.

Quando cheguei, juntamente com meu companheiro, estranhamos muito o frio e compreendi porque os migrantes sempre se referiam a essa época como sendo “o pior período na América”, pois nos sentimos tomados por uma saudade imensa do calor Brasil  calor humano das relações com amigos e parentes e também dos dias quentes que anunciam o verão. Lembrei-me dos migrantes que sempre dizem que vão voltar no Natal para o Brasil e daqueles que efetivamente partem nessa época, quando acham passagem, carregados de presentes e saudades.

Durante o trabalho de campo na região de Boston, embora tenha circulado por várias cidades, permaneci mais tempo em Cambridge onde fiquei na casa de amigos.

Cambridge. A região em torno da universidade de Harvard, mesmo no inverno, permanece efervescente. Embora o frio não estimule muita gente a caminhar pelas ruas, mas a Harvard Square permanece colorida, charmosa e, quando começa o ano letivo, vê-se gente em todos os lugares: no metrô, nas bibliotecas, nos cafés e nas ruas. Quando chegamos às lanchonetes, encontramos uma sonoridade conhecida, um burburinho que soa familiar;

Estados Unidos, juntamente com os pais, a situação é diferente. Lá, os filhos desde pequenos entram em contato com a sociedade americana, quer seja pelas escolas ou através das baby-sitter, aprendem o inglês muito mais rápido e, quando maiores, chegam a desafiar os seus pais que não dominam a língua, pois estes passam a depender de seus filhos para ir ao médico, por exemplo. Diante deste fato, a relação de autoridade é invertida e os pais têm dificuldades de orientar seus filhos” (Assis, 1995: p.111).

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algumas palavras em português (do Brasil), pronunciadas entre um atendimento e outro no balcão da lanchonete, revelam que os novos imigrantes que ocupam os serviços, anteriormente realizados por açorianos, são brasileiros e outros imigrantes latinos.

As trajetórias das famílias de imigrantes brasileiros assemelham-se a outras trajetórias de imigrantes que chegaram à região de Boston em busca do sonho americano.

Os brasileiros constituem parte da nova onda de imigrantes, que nas últimas décadas do século XX, chegaram à Nova Inglaterra e estabeleceram-se na área de Boston. Os imigrantes brasileiros são, juntamente com outros grupos migrantes, os mais novos integrantes dessa história e, em geral, residem próximos a antigas regiões de imigração portuguesa4. Segundo Bloeemraad (2002), a região Somerville/Cambridge conta com comércios que servem à comunidade portuguesa principalmente a região da Inman Square até uma pequena extensão da Union Square. A autora observa que recentemente essa região tem sido ocupada por comércios de brasileiros.

Portanto, não é por acaso que encontramos brasileiros nessa região. As cidades de Somerville, Cambridge, Everett e Lowell, onde se concentram os imigrantes brasileiros e a maioria dos imigrantes de Criciúma, são regiões que receberam levas de imigrantes portugueses até o início dos anos 80 e construíram uma rede de pequenos comércios, igrejas e organizações de apoio aos imigrantes. Atualmente, todas as teias dessa rede (organizações de apoio, igrejas e comércios) são compartilhadas/utilizadas pelos imigrantes brasileiros e cabo-verdianos que, juntamente com dominicanos e outros latinos e asiáticos, compõem os novos imigrantes para a região.

Os relatos a seguir revelam como os migrantes criciumenses foram construindo projetos coletivos de “fazer a América” e a importância das redes sociais, particularmente

4 Segundo Feldman-Bianco (1995, p. 98-99), a imigração portuguesa para o sudeste de Massachusetts iniciou- se no século XIX, durante a era das expedições das baleeiras que utilizavam a mão-de-obra masculina proveniente de Açores e Cabo Verde. A imigração em massa de famílias portuguesas (predominantemente de Açores, mas também de Madeira e Portugal continental) data do final desse século. Entre 1880 e 1930 famílias portuguesas, juntamente com outros grupos imigrantes (como ingleses, irlandeses, franco-canadense, italianos e outros), radicaram-se na região para suprir a necessidade de mão-de-obra na indústria têxtil. Na década de 1920, os portugueses já eram o grupo étnico dominante no sudeste de Massachusetts.

Posteriormente, entre 1960 e 1980, novas políticas migratórias do governo americano, privilegiando a migração em cadeia, estimularam novos e sucessivos contingentes migratórios que reconstruíram os enclaves portugueses na região através da cultura da saudade. Embora esses migrantes fossem econômica e educacionalmente mais estratificados que os contingentes anteriores, a maioria começou sua vida como operários nas fábricas baseadas no trabalho intensivo (como de confecções e mecânicas) que se instalaram na região no período, caracterizado pela “reestruturação da desindustrialização” americana. Sobre a imigração portuguesa ver também Bloeemraad (2002).

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as redes de parentesco e amizade, na realização desses projetos. Para os objetivos desse artigo centrarei a análise nas trajetórias dos adolescentes e nas suas trajetórias. Esses relatos evidenciam também que homens e mulheres situam-se muitas vezes distintivamente em relação ao projeto migratório, bem como no interior da família, destacando as diferenças entre a primeira e a segunda geração de migrantes nas suas expectativas em relação a permanência nos EUA e como reconstroem suas identidades étnicas ora se aproximando ora se distanciando do que os pais entendem por ser brasileiro nos EUA.

A Família Cruz

Brasileiro/a emigrante nos Estados Unidos Brasileiro sem experiência migratória

Filha de emigrante nascida nos Estados Unidos Letícia

A família Cruz, assim como a família Ramella, espalhou-se por algumas cidades da região de Boston. O primeiro a migrar foi o irmão mais velho, que partiu para “fazer a América”, em 1986, dirigindo-se a Allston/Brighton, em Boston. A irmã Letícia migrou em 1995 e os outros irmãos e a mãe vieram nos anos seguintes. Depois de residir com o irmão,

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foram morar em Somerville, Cambridge e Everett. Apenas o pai, que permaneceu em Criciúma, nunca passou pela experiência migratória.

Durante o trabalho de campo em Boston, consegui falar com Letícia e seu filho, Fábio, sua mãe, Laura, e a irmã Alessandra, e o irmão mais novo Carlos e a esposa. Não conversei com os dois irmãos mais velhos, porque um morava numa cidade distante de Boston e Cláudio, o primeiro a migrar, não consegui contatar.

Cláudio, o irmão mais velho, migrou solteiro com o objetivo de fazer a vida, ligava sempre para a família e convidava a irmã e o irmão para migrarem, mas Letícia não tinha coragem de fazê-lo porque era casada e o marido não queria, e os outros irmãos não sentiam necessidade/vontade de partir.

Conheci Letícia numa reunião do Grupo Mulher Brasileira. Na ocasião, estavam ocorrendo várias reuniões abertas à comunidade brasileira para discutir a situação dos imigrantes pós-atentados de 11 de setembro. Participavam da reunião: integrantes do Consulado Brasileiro e de outras associações de brasileiros, bem como advogados e autoridades americanas. Estavam todos assustados com as “batidas da imigração” em estabelecimentos de brasileiros. Logo que cheguei a campo, as primeiras pessoas com que conversei diziam-me que não era um bom momento para iniciar esta pesquisa, estavam todas muito assustadas com as mudanças em relação aos que tentavam ir para os Estados Unidos, com a maior dificuldade para a concessão de vistos para aqueles que pretendiam viajar, e aqueles que já estavam lá sentiram uma sensação de insegurança que nunca haviam sentido antes. Os indocumentados sentiam-se mais vulneráveis às “batidas” da imigração nos postos de trabalho, ao maior rigor na passagem na imigração quando da chegada nos aeroportos, uma maior dificuldade para conseguir renovar a carteira de motorista, matricular os filhos na escola, situações pelas quais nunca haviam passado, mesmo sendo ilegais. Foi nesse contexto que nos conhecemos. No entanto, em vez de demonstrar desconfiança, Letícia foi muito receptiva. Conversamos durante as reuniões e combinamos de conversar mais detalhadamente numa entrevista.

A migração familiar começou apenas quando Letícia resolveu ir ao encontro do irmão na região de Boston. Letícia mora em Somerville, e foi lá que me recebeu juntamente com o filho numa manhã fria de segunda-feira, seu dia off. Ela mora com o companheiro, numa casa que fica próxima a uma grande avenida da cidade, o que tornou mais fácil a

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minha localização. Peguei as indicações de ônibus e consegui descer bem próximo a sua casa. A casa, no andar térreo, era pequena, porém aconchegante; entrei pela cozinha, e Letícia logo me serviu um café com donuts e uns pães. Da cozinha seguimos para a sala, depois que tomei um café, e sentamos para conversar. O filho, que estava em casa naquele final de semana, também participou da nossa conversa. Desde que ingressou no College, mudou-se para uma cidade próxima, passa a semana numa moradia estudantil e retorna aos finais de semana para casa.

Letícia migrou para os Estados Unidos em 1995, estava com 30 anos quando partiu para se encontrar com o irmão e seu filho, Fábio, tinha 10 anos. Decidiu emigrar porque havia perdido o marido numa experiência dolorosa – havia se separado há apenas quatro meses, quando o marido suicidou-se. Essa experiência traumática para mãe e filho contribuiu para a decisão de migrar, pois queria esquecer aquele momento de sua vida. No Brasil, trabalhava como secretária, não tinha casa própria, ganhava pouco e pagava escola particular para o filho. A falta de perspectiva de vida em Criciúma fez com que Letícia considerasse a possibilidade de uma mudança radical de vida e, por isso, teve coragem de migrar. Assim relata: “queria superar os traumas, queria mudar de vida e dar estudo para meu filho e consegui, queria fazer algo que me desse assim orgulho de mim, entende?”.

O irmão, Cláudio, a esperava em Boston, mais precisamente em Allston/Brigthon.

Letícia contou com o apoio do pai para migrar. Quando se preparava para viajar, o pai preencheu a documentação necessária, fazendo como se estivesse dando o suporte financeiro para a viagem de turismo da filha e do neto. Com essa ajuda, o visto de turista saiu sem problemas no Consulado Americano. Mãe e filho partiram para os Estados Unidos utilizando como estratégia uma viagem num pacote turístico para Disneylândia. O passeio de nove dias foi o ritual de passagem para o status de migrante. Viagem triste, sofrida, pois Letícia estava com medo, preocupada com o futuro, enquanto o filho, aproveitava os brinquedos. Não era a primeira viagem internacional de Letícia, mas essa era uma viagem sem volta para o Brasil, para as lembranças tristes, para a vida que deixou para trás...

No relato de mãe e filho, a passagem pela Disney é o momento de entrada numa nova vida, os sentimentos em relação ao ritual de chegada através da Disney são ambíguos, pois é marcado pela tristeza das lembranças deixadas no Brasil e pela esperança de uma nova vida. No relato, ambos disseram que desejariam voltar à Disney para curtir melhor.

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Quando chegaram em Boston, foi um “choque”: a casa era uma república de jovens solteiros, onde moravam o irmão, a namorada e mais dois rapazes. Não tinha estrutura nenhuma, cama, lençóis, não parecia uma casa. Na primeira noite que passaram na casa de Brigthon, como a chamavam, dormiram no sofá da sala. Segundo Letícia, o irmão sempre foi “meio largado” e não ligava para a casa. No dia seguinte, saíram para comprar colchão, travesseiro, e encheram a casa de utensílios de “família” e não apenas de solteiros, como copos, talheres, roupas de cama, colchão, enfim, montaram uma casa.

Quando partiu do Brasil, Letícia levou todas as suas economias e não tinha projeto de retorno. Nesse sentido, o seu projeto difere do de uma parcela significativa dos migrantes que, pelo menos nos primeiros tempos, pensa a migração como temporária.

Letícia desejava mudar de vida, deixar para trás as lembranças, começar de novo, por isso não pensava em voltar.

Chegou na “América” com cerca de US$ 3000,00 dólares, tendo vendido tudo o que tinha no Brasil para migrar. Foi com esse dinheiro que se manteve nos primeiros tempos e comprou o social security. Este foi conseguido através de um esquema que ela descobriu depois, o qual consistia em casar a pessoa com alguém já falecido. O número do social é verdadeiro, mas agora que ela está no processo de legalização, tem medo do que possam descobrir sobre isso, pois significa que mentiu para o governo americano.

Na época, não pensava propriamente em se legalizar. Com esse documento tirou a carteira de motorista, que é fundamental nos Estados Unidos, já que é utilizada como um documento de identificação no dia-a-dia. Letícia, que praticamente não dirigia no Brasil, entrou na auto-escola, teve algumas aulas e tirou carteira em Massachusetts. Dirigir possibilitou a Letícia uma maior autonomia e também montar seu schedule de faxina.

Letícia experimentou com esses documentos, mesmos falsos, o que Sales (1999a) chamou de legitimidade da condição clandestina, pois com o social security e a carteira de motorista os imigrantes podem inserir-se no mercado de trabalho, já que os locais de trabalho não verificavam os números, ou faziam “vistas grossas” para os documentos ilegais. Além disso, com esses documentos, colocavam os filhos na escola, tinham acesso ao atendimento médico, sentiam-se cidadãos. Tudo isso acontecia antes dos atentados de 11 de setembro. O fato de conseguirem trabalhar com esse social security falso e ter acesso a outros serviços levava os migrantes, e nesse caso Letícia, a não se preocupar muito com a

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legalização, o que ocorre particularmente com quem trabalha na faxina, que tem poucas condições de se legalizar através desse trabalho. Limpando as casas americanas, um serviço no qual se concentram as brasileiras imigrantes, as mulheres conseguem um certo prestígio e bons rendimentos para o negócio, mas têm dificuldades em legalizar o status migratório.

Essa observação também foi feita por Hagan (1998) e Hondagneu-Sotelo (1994) com relação a outras migrantes latinas que, por se inserirem no emprego doméstico, encontram mais dificuldade para a legalização. Hagan, analisando as redes segmentadas por gênero evidencia que as mulheres provenientes da comunidade Maya (Guatemala), que trabalham como empregadas domésticas e baby-sitters na região de Houston (Estados Unidos), têm desvantagens em relação aos homens no processo de legalização. Essas mulheres migrantes, que utilizaram as redes sociais para conseguir empregos live-in (morando no emprego), com o passar do tempo, perdem os contatos com a comunidade mais extensa e têm mais dificuldade de obter informações sobre os processos de legalização, bem como reunir a documentação que possibilite a elas “aplicar”5 para o processo. Segundo a autora, os homens, sendo bem integrados dentro de sua comunidade migrante, baseada em redes, conseguem com maior facilidade não apenas as informações quanto ao processo de legalização, como também reunir a documentação necessária:

recibos de aluguel, contas de telefone e energia, comprovante de que trabalharam junto aos empregadores, o que se constitui numa vantagem quando iniciam o processo de legalização.

As mulheres que se legalizaram trabalhavam como diaristas (housecleaners) e conseguiram com algum de seus patrões que “assinassem os papéis” e outras casaram-se beneficiando-se dos recursos provenientes de seus maridos.

No caso de Letícia e de outras mulheres imigrantes latinas, como as mexicanas analisadas por Hondagneu-Sotelo (1994), que também se inserem no serviço doméstico, o problema não é que ficam isoladas da comunidade mais ampla, pois não moram live-in e sim trabalham como diaristas em várias casas por dia, o que para as brasileiras constitui-se num lucrativo negócio. A questão é que torna-se um tipo de serviço de difícil comprovação, pois recebem em geral em cash6 e não têm nenhum tipo de contrato de trabalho. Além

5 Os imigrantes brasileiros usam o termo aplicar numa tradução literal para o português da palavra application para se referir ao processo de se submeter a qualquer seleção seja para um trabalho, seja para a legalização.

6 Pagamento à vista, em dinheiro.

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disso, as últimas leis de imigração privilegiavam as pessoas que trabalhavam em restaurantes ou padarias, o que facilitou a legalização dos homens.

Letícia, como outras migrantes brasileiras, está conseguindo legalizar-se através do casamento. Ela conheceu Mário, carioca que tentava pela segunda vez a vida nos Estados Unidos, quando ainda morava na casa de Brigthon com o irmão. Mário foi procurar um quarto para alugar e acabaram juntos. Quando chegou aos Estados Unidos, Letícia estava muito traumatizada com a morte do ex-marido e permaneceu dois anos sozinha, apenas trabalhava e cuidava do filho. Em 1997, ela e Mário começaram a namorar e logo saíram da casa de Brighton para morar juntos em Somerville. Quando o processo de legalização de Mário começou a correr, através da firma de construção civil na qual trabalha, resolveram casar, pois assim poderia também incluir o filho no processo. Tudo teve que ser feito rapidamente, antes que o filho completasse 18 anos.

Na época em que migrou, não fez um social security para o filho, pois ficaria muito caro e ele não precisava do documento para se matricular nas escolas públicas. Mais tarde, tentou legalizá-lo através do irmão. O irmão, que já era legalizado, iria adotar o sobrinho, mas perdeu de entrar com o processo por causa da idade completou 14 anos antes de entrar com o processo. Agora, quando o filho terminou a High School e desejava ingressar no College, o status de residência legal tornou-se uma barreira efetiva para prosseguir os estudos. Por causa da falta de documentos, Fábio não pôde concorrer à bolsa de estudos, e Letícia está custeando esses gastos. O problema de Fábio é enfrentado por vários jovens brasileiros sem residência legal, que tentam seguir seus estudos. Dessa forma, através da legalização de Letícia, Fábio garante a sua permanência no College e poderá concorrer a uma bolsa de estudos. O filho não tem projeto de retornar ao Brasil, a não ser para passear, fala inglês fluentemente e tem uma namorada americana, o que não é muito comum entre os adolescentes brasileiros.

A questão enfrentada por Fábio tem se tornado um problema relevante para a comunidade brasileira, pois seus filhos, que não são legalizados ou não nasceram no país, e portanto não tem a cidadania americana, quando tentam ingressar no College não conseguem entrar nos programas de bolsa de estudos7. Assim, o crescimento da

7 Conforme observa Sales e Loureiro (2003, p.29) em nível federal, dois dispositivos legais do Código Civil dos EUA aprovados em 1996, a saber o 8 U.S.C. 1623 e o 8 U.S.C. 1621, tornaram mais difícil o acesso do estudante indocumentado à universidade. O primeiro estabelece que um Estado não poderá estender ao não-

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comunidade e a constituição de uma segunda geração, bem como a ampliação do tempo de permanência tem colocado de maneira mais significativa a questão da legalização, bem como o maior rigor da polícia e da imigração com relação aos documentos falsos, depois dos atentados de 11 de setembro. Por isso, Letícia, que não pensa em retornar ao Brasil, a não ser para passear e seu filho também, deseja muito legalizar-se para poder viver nos Estados Unidos sem a ameaça/o temor da deportação.

Dois anos depois que Letícia havia se estabelecido na casa do irmão mais velho, 1997, emigraram sua mãe, Laura, que tinha 54 anos, em 1997, e Alessandra, que era sua irmã mais nova e estava com dezoito anos quando foi morar na mesma casa em Brigthon.

Em 1999, veio o irmão André, que estava com 33 anos, tinha um negócio de seguros e trabalhava também com o pai, era casado e deixou mulher e dois filhos para trazê-los em seguida.

Todos moraram na casa do irmão mais velho por um tempo, mas aos poucos a irmã saiu e os outros irmãos também. No entanto, foi em torno de Letícia que se estruturaram, foi Letícia quem colocou todos para trabalhar na faxina, até arranjarem outros trabalhos, ajudou o irmão a arrumar uma casa para trazer a família, inclusive emprestando dinheiro, e deu apoio à família do irmão logo que chegaram. A mãe ainda trabalha com ela na faxina, o que às vezes é um pouco difícil, pois o trabalho é pesado e a mãe já está cansada, mas ela tenta manter a situação, já que o seu projeto é dar o College para o filho. Assim, embora o irmão mais velho tenha sido o primeiro a migrar, foi a irmã quem centralizou as relações familiares: a mãe trabalha com ela na faxina, ajuda a irmã e o irmão mais novo, que migrou por último.

nacional ilegalmente presente nos Estados Unidos determinados benefícios locais e estaduais, inclusive aqueles relativos à educação pós-secundária, a menos que o mesmo benefício seja estendido aos cidadãos ou nacionais não-residentes naquele Estado (...) Por sua vez, o 8 U.S.C 1621 também estabelece que imigrantes indocumentados não fazem jus a benefícios estaduais ou locais relativos à educação pós-secundária. As autoras ainda observam que, embora não haja uma proibição explícita para que imigrantes indocumentados freqüentem a Universidade ou College, essas instituições dificultam a conquista de um diploma universitário, não apenas pelo valor das anuidades de não-residente, mas também porque, embora não exijam a comprovação de regularidade imigratória no momento da matrícula, em algumas instituições, exigem no momento de conclusão do curso, sem o que o diploma não será emitido. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, tais medidas tornaram-se mais restritivas e inclusive projetos de lei que tramitavam para possibilitar o acesso de estudantes indocumentados ao ensino superior estão parados, pois não há um sentimento favorável ao imigrante, nesse momento, nos Estados Unidos.

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Quando Letícia começou a trabalhar com faxina e montar seu schedule as primeiras casas “comprou”8, depois foi “comprando” outras casas de amigas que estavam indo embora. Trabalhou também com uma amiga e um amigo que simplesmente fizeram de presente algumas casas, para dar uma força para que Letícia iniciasse seu negócio. Foi no

“negócio da faxina” que Letícia encaixou a mãe, a irmã e o irmão quando decidiram migrar. A mãe ficou durante um ano e depois retornou ao Brasil. A irmã ficou algum tempo (antes de sair para morar sozinha) e o irmão ficou um tempo até arranjar outro trabalho e conseguir trazer a família, com a ajuda de Letícia. Enquanto trabalhava os irmãos foram passando pelo trabalho da faxina até conseguirem outra coisa.

Segundo Letícia, as dificuldades com o irmão, foram maiores, porque ele não gostava da tarefa de limpeza doméstica mesmo, reclamava que era muito detalhe, que era coisa para mulher. O irmão era muito machista, conforme relatou Letícia, ele não gostava de fazer uma tarefa que nunca fez no Brasil. Um ano depois, já com o irmão trabalhando numa pizzaria, Letícia ajudou o irmão a trazer a esposa. A irmã mais nova também morou e trabalhou um tempo com a irmã, mas depois que aprendeu a se movimentar pela cidade, resolveu buscar sua própria autonomia, queria ficar mais independente e acabou indo morar com outras amigas. Laura disse que emigrou para juntar-se aos filhos, pois não conseguia ficar distante deles, mas no decorrer de nossa conversa e depois confirmado pelo depoimento de Letícia, ela deixou escapar que não vive bem com o marido há muitos anos e que prefere ficar com os filhos, a migração então tornou-se uma maneira de separar-se do marido, sem precisar fazê-lo legalmente. Laura chegou a retornar para o Brasil, por insistência do marido, mas pouco tempo depois, quando todos os filhos estavam juntos na

“América” decidiu juntar-se eles. Com a ajuda de Letícia e dos outros filhos voltou para os Estados Unidos há dois anos e está trabalhando na faxina com a filha.

8 A compra de casas é umas das maneiras de montar um schedule de faxina. Consiste em adquirir dos imigrantes que estão retornando para o Brasil as casas, ou melhor dizendo, os locais em que realizam as faxinas: nesse caso, as casas convertem-se em pontos que são negociados. Os imigrantes apresentam os compradores como seus conhecidos e possibilitam que a relação de confiança seja transferida para a nova faxineira. A transação é feita sem o conhecimento do dono da casa, que nem imagina que sua casa está sendo

“vendida”. No entanto, é interessante observar que alguns imigrantes relataram ganhar casa de amigos, o que revela que, mesmo no negócio da faxina, há outras trocas circulando que não apenas as trocas monetárias.

Voltarei a esse ponto quando discutir o nicho do trabalho doméstico das imigrantes brasileiras. Esse tem se constituído num nicho de trabalho das imigrantes brasileiras na área de Boston, conforme têm demonstrado vários estudos (Martes, 2000; Fleisher 2001; Sales 1999; Assis 1995) Outras maneiras de montar um schedule seriam: a propaganda, a referência de outros patrões, a indicação, “ganhar” casas de parentes e amigas, e

“roubar” casas (Fleischer, 2001).

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Nos Estados Unidos, trabalhando com faxina, Letícia conseguiu garantir o sustento do filho e ainda ajudou a trazer os demais integrantes da família. Após sete anos e com quase toda a família na região de Boston, a vida ficou mais fácil, os irmãos reúnem-se com certa freqüência, aos finais de semana e em ocasiões festivas, como o Natal e o Ano Novo.

O irmão mais velho continua solteiro, agora está noivo e já tem uma filha de um relacionamento anterior. No relato de Letícia, uma das ex-namoradas de seu irmão, que conheceu quando ela foi ao Brasil, tornou-se uma de suas grandes amigas nos Estados Unidos e atualmente integram um mesmo grupo de trabalho com mulheres brasileiras imigrantes.

Segundo Letícia, sua vida mudou para melhor depois que veio para os Estados Unidos, embora tenha sofrido muito nos dois primeiros anos, agora, apesar das dificuldades e do peso que às vezes é ter a família tão perto, as coisas estão bem. Ao final da entrevista, foram aparecendo as fotos da casa de Brighton, aonde chegaram, do sofá em que dormiam, das outras casas que viveram antes de morar na casa atual, em Somerville, do Ano Novo junto com a família nos Estados Unidos, do marido Mário, do irmão, da sobrinha. Fotos familiares que foram mostradas por Fábio e Letícia rindo dos tempos difíceis e felizes de estarem ali, ou melhor lá, fazendo a América. Letícia pensa em voltar ao Brasil para passear, porém diz que está fora há sete anos e tem medo de voltar pelos traumas, e tem de resolver o problema da legalização primeiro. É interessante notar que, ao longo da entrevista, não falou em voltar para morar no Brasil.

Na época da realização da entrevista, a família estava espalhada em torno da grande área de Boston. O irmão mais velho continuava em Brigthon, enquanto Letícia e Mário residiam em Somerville. Laura e a Alessandra moram num apartamento em Cambridge; o irmão Carlos, Fabiana, a esposa, e os filhos moram numa casa em Malden e o outro irmão, do qual não falaram muito, morava num outro estado americano.

A irmã mais nova, Alessandra, tinha 18 anos quando migrou, em 1998. Era estudante em Criciúma, não trabalhava e residia com os pais. Quando a irmã morava no Brasil, era muito próxima e vivia com o sobrinho, que é quase da mesma idade. Quando a irmã migrou, sentiu muito sua falta. Quando uma amiga que residia em Criciúma resolveu partir para os Estados Unidos, aproveitou que já tinha visto de turista, obtido na mesma época em que a mãe havia tirado o visto para viajar e foi ao encontro da mãe, da irmã, do

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sobrinho e do irmão, aproveitou que tinha uma amiga vindo e partiu junto para os Estados Unidos. Morou e trabalhou um tempo com a irmã, mas logo decidiu morar sozinha para ficar mais independente, pois ela achava que a irmã controlava muito sua vida. Quando realizei a entrevista, estava trabalhando como housecleaner e também numa padaria, aprendendo a fazer bolos de casamento.

Depois de um tempo morando com uma senhora, que alugou um quarto para ela, Alessandra ainda residiu com amigas e também com um namorado americano. Em 2002, quando conversamos, havia voltado a morar com mãe. Quando fui entrevistá-las, receberam-me num apartamento pequeno, numa área em Cambridge, próxima à casa da irmã Letícia. Como em outros apartamentos de imigrantes brasileiros, quando cheguei estavam assistindo à novela das 20h na TV a cabo brasileira. Receberam-me na sala e, olhando a volta, podia-se ver a cozinha e os quartos.

Alessandra chegou sem falar inglês e aprendeu na rua, quer dizer, no trabalho, fez alguns cursinhos que não concluiu e, diferentemente de Fábio, não tem projeto de estudar.

Quando aterrissou nos Estados Unidos, foi recebida por um amigo do irmão, junto com a mãe e o sobrinho.

A vida afetiva de Alessandra, assim como a de outras mulheres que entrevistei, cruza os afetos com as questões de legalização. No cotidiano das mulheres, essas questões ficam mais evidentes, porque os homens, que trabalham na construção civil e nos restaurantes, em sua maioria, conseguem beneficiar-se das leis que periodicamente surgem para regularizar o status migratório. Alessandra começou a namorar Cristiano, o amigo do irmão que foi buscá-la no aeroporto, logo após sua chegada, em 1998. Depois de um tempo namorando, separam-se por sete meses, quando Cristiano tentou retornar ao Brasil. Nesse período, Alessandra namorou um americano descendente de imigrantes portugueses chamado Joe. Durante o relacionamento, ambos trocaram o aprendizado de idiomas, Joe ensinava inglês para ela e Alessandra português para ele, chegaram a morar juntos nesse período. A família dele não gostava, dizia que ela se casaria, pegaria o green card, resolveria sua vida e o abandonaria depois.

Essa é uma acusação recorrente que recai sobre as mulheres brasileiras, como veremos em outros relatos. Embora gostasse do Joe e sentisse que “os americanos colocam tapete vermelho para a gente”, ele ajudava nas tarefas de casa, a estimulava a ser

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independente, mas mesmo assim Alessandra preferiu voltar para o antigo namorado quando este retornou do Brasil. Cristiano já tem o resident permit e disse que vai ajudá-la a conseguir a legalização.

Portanto, como outras mulheres entrevistadas, o casamento com americano ou brasileiro legalizado é uma das oportunidades de legalização. Ao longo do trabalho de campo encontrei algumas mulheres brasileiras relacionando-se com homens brasileiros com o green card que prometiam legalizá-las e que utilizavam seu status legal, muitas vezes, para mantê-las dependentes na relação9, assim como já foi observado com outras mulheres migrantes (Hagan, 1998).

Em 1999, Carlos decidiu ir ao encontro dos irmãos para tentar, assim como eles,

“fazer a América”. Carlos havia pensado em ir em 1986, quando o irmão migrou pela primeira vez, mas não deu certo, porque já conhecia Fabiana, com quem casou-se nesse mesmo ano. A casa de Brighton recebeu mais um morador, que contou com o apoio de Letícia desde o começo. Morou um tempo com o irmão, depois morou com a irmã até conseguir alugar uma casa para trazer sua família. Quando conseguiu a casa, em que paga US$ 950,00 de aluguel, foi Letícia quem arranjou parte do dinheiro para pagar o adiantamento negociado com o proprietário a fim de garantir imóvel.

A esposa permaneceu no Brasil com os dois filhos: um menino de 5 anos e outro adolescente de 15 anos. A decisão de migrar ocorreu após o marido perder o emprego como corretor de seguros num banco da cidade e tentar montar uma firma de seguros que não deu certo. Segundo Fabiana, o marido sempre quis emigrar, mas ela nunca teve vontade. Foi apenas quando a situação financeira ficou muito difícil que resolver tentar a vida no exterior, partindo para a mesma cidade onde já estavam estabelecidos os irmãos. Esse padrão de migração familiar corresponde ao observado por Hondagneu-Sotelo (1994): o marido migrou antes, conseguiu trabalho, morou um tempo com a irmã e depois que conseguiu arrumar uma casa, trouxe a mulher e os filhos.

Carlos trabalhou como housecleaner, durante quatro meses, com a irmã Letícia. No entanto, não gostava do serviço porque “todo dia era o mesmo serviço, limpar casa, passar aspirador”. Depois desse período, arrumou outro tipo de trabalho com a irmã mais nova e

9 Voltarei a esse ponto quando apresentar os relatos de outras imigrantes solteiras.

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foi procurando trabalho até arranjar o emprego de delivery10 numa pizzaria e também aprendeu a fazer pizza, trabalho que realiza atualmente.

Fabiana é cunhada de Letícia, casada com Carlos, seu irmão mais novo. Ela tinha 37 anos na época da realização da pesquisa. É casada há 16 anos com Carlos e tem formação superior completa. Possui descendência italiana, mas, assim como Letícia, não solicitou a dupla cidadania. No Brasil, ao contrário da maioria das imigrantes entrevistadas, não trabalhava, fazia bijuterias e era artista plástica. Em abril de 2000, Fabiana partiu junto com os filhos para se juntar ao marido. Entretanto, diferentemente da grande maioria das mulheres com as quais conversei e convivi no dia-a-dia na grande área de Boston, Fabiana nunca trabalhou efetivamente nos Estados Unidos. Segundo seu relato:

“Não trabalho porque tenho problema de coração e não agüento a correria da faxina. Como o meu marido está conseguindo sustentar a família, então...(...).

Além disso, os meus filhos são pequenos e não tenho com quem deixar. Uma vez trabalhei como baby-sitter, mas foi só um mês, quando os meus filhos estavam de férias. Às vezes, eu cuido da criança da vizinha que é brasileira, mas só por amizade, eu não cobro nada. É difícil conciliar casa e filho pequeno com trabalho”.

(Fabiana – 37 anos – entrevista realizada em 2002)

Para uma família migrante, em vez de significar que o migrante ganha o suficiente para sustentar sua família, esse fato indica que vão levar mais tempo para “fazer a América”. O objetivo inicial era ficar três anos: como o casal migrou com o projeto de comprar um apartamento e juntar algum dinheiro para retornar ao Brasil, o fato de Fabiana não trabalhar contribuiu para ampliar o tempo de permanência na América.

Ao contrário das trajetórias das demais mulheres entrevistadas, a migração não alterou as posições de gênero. Fabiana permaneceu vinculada ao trabalho doméstico e ao cuidado dos filhos, e Carlos trabalha num restaurante como delivery, mas também ajuda na cozinha do restaurante, sempre que é necessário. Quando Carlos chega em casa, está muito cansado para ajudar e, como ela não trabalha fora, não pede ajuda ao marido. Portanto, para Fabiana a migração não trouxe maior autonomia, como relataram várias mulheres, pois

10 Serviço de entrega em domicílio.

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sente-se um pouco presa, tem uma vida monótona e com pouca liberdade de circular: ela não tem carteira de motorista, não fala inglês, não interage com a sociedade americana, nem na escola dos filhos, pois lá conversa ou com outras mães brasileiras, ou com outras mães de origem latina que falam espanhol. Além disso, diferente da maioria das mulheres entrevistadas, que desejam permanecer nos Estados Unidos, Fabiana, assim como o marido, deseja retornar ao Brasil.

O outro irmão de Letícia que aparece na genealogia, embora também more nos Estados Unidos, reside em outra cidade e tanto Letícia quanto os outros irmãos não parecem manter um contato freqüente com ele.

A trajetória da família Cruz revela a importância das mulheres como articuladoras de redes de migração, pois foi através de Letícia que os outros irmãos e a mãe migraram. É interessante observar que, diferentemente de uma parcela das famílias imigrantes analisadas que têm o desejo de retornar ao Brasil como parte do projeto migratório, apenas Carlos e Fabiana têm projeto de retorno, enquanto os demais pretendem permanecer os Estados Unidos, fazer a vida na América, e não apenas trabalhar para retornar ao Brasil. Por isso, Letícia investe na educação do filho, que é o grande motivo de sua migração. Revela também uma combinação dos papéis de gênero com a posição que os/as filhos/as ocupam nas relações familiares. É o que revela seu relato sobre sua participação na migração dos demais irmãos:

“É... eu sempre fui a que mais estive à frente de tudo e meio que sempre peguei o problema de todo mundo... que eu ainda hoje... mas eu to me libertando. E aí eu comecei... e aí eu vi... que a minha irmã que é solteira né... ela tem 21 anos, ela quis vir também... ela era muito infantil, ela tinha 18 anos quando ela veio... e ela não fazia nada lá, não trabalhava, não gostava muito de estudar.. aí eu disse, ah, então vamos trazer... e assim, ela sentia muito a minha falta, porque a Alessandra sempre foi como minha filha. Apesar dela ser tia do Fábio, ela sempre teve muito ciúme... É... e sempre fui eu quem corri com tudo par trazer e para ajudar. Esse meu irmão mesmo, Carlos, fui eu que ajudei, emprestei dinheiro, essa coisa toda.

Até hoje ainda assim dá um trabalho. Um trabalho e ajudando a Alessandra

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também, a mãe... a mãe fomos nós todos que ajudamos a pagar a passagem”

(Letícia – 37 anos – entrevista realizada em 2002)

Na família Cruz, embora o irmão mais velho tenha um papel importante em receber os irmãos, dando o help aos recém-chegados, as relações interfamiliares e a migração dos demais membros ocorreram com a ajuda de Letícia. Ela partiu do Brasil apenas com o filho e, ao longo desses sete anos nos Estados Unidos, ajudou de diferentes maneiras os demais membros de sua família de origem a migrar. Nesse sentido, atua como uma articuladora de redes familiares de migração.

Essa rede, no entanto, é dinâmica. Ao longo dos anos, Letícia ajudou e também recebeu ajuda de outros/as amigos/as que conheceu nos Estados Unidos, além de se integrar em outras redes de amizade construídas na sociedade de imigração. Ampliando suas redes de relações, Letícia passou a participar em num grupo de mulheres imigrantes, o “Grupo Mulher Brasileira”, que promove atividades culturais e informativas para a comunidade brasileira. Esse grupo realiza reuniões semanais e possibilitou a Letícia um espaço diferente do seu dia-a-dia de trabalho na faxina. Ela conta que no grupo sente que pode falar e ouvir sobre as mais variadas temáticas, lá se sente incluída, respeitada e convive com pessoas de diferentes origens sociais, níveis de escolaridade (Letícia não tem formação superior), com as quais pensa que não conviveria se estivesse no Brasil.

Ao contrário de seus irmãos, que não interagem muito com as associações comunitárias existentes na região de Boston, Letícia ainda participa dos eventos promovidos pelo grupo, como sessões de cinema, palestras, ou na organização do dia do Brasil, que ocorre para comemorar o dia 07 de setembro nos Estados Unidos11, que é re- significado, não como o dia da Independência, mas como o dia do Brasil. Letícia, ao

11 Falar em comemorar o dia 07 de setembro pode soar estranho para quem está no Brasil e associa essa data às paradas militares realizadas durante o regime militar (1964-1984) ou a desfiles escolares que ainda ocorrem em algumas cidades, ou ainda aos grandes protestos que ocorreram na época do governo Collor em que jovens saíram de preto para pedir o impeachment do presidente. Em Boston, a festa de 07 de setembro é realizada pelas associações de brasileiros e pelo Consulado Brasileiro e representa uma data em que se comemora o dia do Brasil. É uma festa de afirmação da identidade nacional e que procura construir a imagem de uma comunidade brasileira. Há uma programação que envolve exibição de filmes brasileiros, eventos musicais e uma festa ao ar livre, onde são montadas barraquinhas de produtos brasileiros, comidas consideradas típicas, e também de entidades que prestam assistência ao imigrante, construindo um outro significado para a mesma, que procura marcar a presença brasileira na região de Boston.

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participar desse grupo e de suas atividades, sente-se participando da comunidade e amplia suas redes, para além das redes familiares.

O irmão mais velho, conforme o relato de Letícia, não participa muito da comunidade brasileira, já é legalizado e não interage muito com os eventos promovidos pelas associações de brasileiros. Analisando as trajetórias, parece que Letícia conseguiu não apenas trazer os familiares e manter as relações entre os domicílios, como também articular e construir outras redes de amizade que a levaram para um grupo de mulheres imigrantes.

Pode-se notar ainda que nem todos os irmãos têm condições de oferecer ou retribuir a ajuda recebida. Essa retribuição não ocorre apenas de maneira objetiva, como através do pagamento do dinheiro emprestado pela irmã, mas de maneira simbólica através do reconhecimento da ajuda recebida. Nos depoimentos, Carlos e Fabiana reconheceram a importância da ajuda de Letícia, não apenas no momento da migração, mas para a permanência, pois ajudou no aluguel da casa e também forneceu outros contatos, como o realizado para conseguir o free care12. Da mesma forma, a mãe, que teria dificuldades de conseguir trabalho, por causa da idade e da falta de conhecimento da língua, tem na filha um importante apoio e reconhece isso. A filha, também ao receber a mãe, contribui para que ela consiga uma separação “branda” do marido, sem precisar assumir claramente essa condição – para todos os efeitos está com os filhos nos Estados Unidos. No entanto, Laura não consegue tecer outras redes de relações que não as articuladas dentro da rede de parentesco. O fato de não falar inglês, bem como a idade, contribui para que suas relações fiquem circunscritas às estabelecidas no núcleo familiar.

É interessante observar que o filho Fábio, que migrou bem pequeno para os EUA e aprendeu a falar o inglês quase sem sotaque, está bem inserido na sociedade americana.

Embora quando questionado, diga que se identifica como brasileiro, afirma que, como não se parece com o brasileiro típico, pois sendo do sul é mais branco que a maioria dos migrantes brasileiros, pode se passar por american quando se faz necessário. Essa possibilidade de transitar entre as identidades, as experiências vivenciadas por um maior convívio com a sociedade americana faz com que não se sinta tão ligado ao Brasil cujas lembranças estão mais relacionadas as imagens passadas pelos avós e parentes do que por

12 Serviço gratuito de assistência de saúde oferecido por hospitais e instituições americanas aos cidadãos considerados pobres. Esse serviço tem sido utilizado por imigrantes em geral, inclusive os brasileiros, que conseguem ter acesso a tratamentos de saúde, mesmo sendo indocumentados.

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suas próprias lembranças, não sente essa ligação com o país como seus tios, ou sua mãe, conforme ele mesmo observou.

Já Alessandra, que não chegou a estudar com regularidade nos EUA e que aprendeu inglês trabalhando permanece mais ligada à comunidade brasileira, e não tinha projeto de continuar a estudar para tentar um emprego melhor que o de housecleanner.

A Escola como o lugar de reconstrução das identidades

O relato da família Cruz e em outras famílias analisadas, demonstram que as diferenças entre a primeira e a segunda geração acentuam-se a medida em que enquanto os pais, em sua maioria trabalham entre brasileiros ou outros latinos, como no caso da família Cruz e por isso, não sentem muita falta do domínio do idioma o que faz com que fiquem dentro da comunidade brasileira, mantendo contato com a sociedade americana através do trabalho, mas não participando de seu cotidiano. Na realidade entram nas casas dos americanos, nos seus restaurantes, em suas laundrys, limpam, cozinham, faxinam, mas não

“entendem muito os americanos e acham os mesmos muito frios em oposição ao calor dos brasileiros”. Essa é uma representação forte entre os imigrantes brasileiros, que é compartilhada por uma parcela significativa dos migrantes. É importante ressaltar que aqueles imigrantes há mais tempo e que dominam melhor o idioma, em geral, não têm uma representação tão estereotipada dos americanos, mas essa não é a representação predominante nessa primeira geração. As crianças e adolescentes, através da escola, têm um maior contato com a sociedade americana. Portanto, analisando como se relacionam na escola e os conflitos e dificuldades pelos quais passam podemos entender esse encontro/confronto de culturas.

Conforme observaram Assis e Ihá (2004) ao analisar as comparações que emergem quando as crianças ingressam no sistema escolar americano.

Nas entrevistas realizadas em Boston, junto a estudantes e profissionais da área educacional, pôde-se observar enormes diferenças entre a educação brasileira e a americana. As diferenças aparecem desde os conteúdos até a maneira de vestir, pois nas escolas americanas o padrão brasileiro de vestir, principalmente das meninas, é considerado

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muito erótico, conforme observou uma orientadora educacional13 entrevistada. Na realidade, um dos marcadores onde as diferenças culturais aparecem é nas concepções de corporalidade que evocam uma corporalidade brasileira diferente da corporalidade americana. É esse um dos momentos em que há uma construção de uma etnicidade brasileira que se manifesta na corporalidade distinta e que gera conflitos, recriminação e discriminação dentro e fora da escola.

Esse estranhamento pode ser observado no relato de uma orientadora educacional que analisa esse choque vivenciado pelas crianças brasileiras ao entrarem nas escolas bilingues americanas. Alguns pontos da entrevista são de extrema importância para fundamentar o estranhamento das crianças brasileiras no contexto americano, como ressalta a orientadora:

.

Orientadora: “Eu não tenho mais jeito, eu tenho 53 anos, eu sou eu entendeu? Eu sou brasileira e não poder tocar nas crianças é muito difícil e para as crianças é a mesma coisa, elas se tocam, elas se empurram e se chutam e isso não pode acontecer, então a gente faz um trabalho de ensinar a eles a respeitar os outros, de não tocar nos americanos”.

Gláucia: E as crianças ficam chocadas?

Orientadora: Ficam. E a conclusão que nós chegamos é que se disser pra não tocar elas vão tocar menos, mas eles têm que estar preparados pra sobreviver aqui e não no Brasil, então eles têm que aprender as regras daqui e a gente diz que no Brasil se pode fazer isso, que abraço é bom e a gente pode dar abraço, mas que é preciso ter muito cuidado com o toque e que a gente precisa respeitar a área e o espaço de cada um, a gente tem que aprender a respeitar. A gente tem que educar as crianças pra isso, e claro que na sala de aula é mais fácil e mais aceitável do que na escola toda junta. Porque o programa bilíngüe vai acabar e ela vai passar para o Standard, e depois pra universidade, se chegar lá. Ela vai viver numa sociedade em que isso não é permitido do mesmo jeito. Ela vai selecionar os amigos dela e vai saber que no Brasil é isso que a gente quer, que no Brasil a gente se toca mais, que a gente é mais afetivo e que mostra a afeição de maneira diferente, mas isso tudo em nível intelectual, entendeu? É uma coisa difícil porque a gente é obrigada, pensando na adaptação, a dar algumas ferramentas pra essas crianças.”14

Outro ponto a destacar da entrevista, principalmente no diferencial de comportamento entre as crianças brasileiras e as americanas:

“Orientadora: (...) As nossas crianças foram educadas por pais que não seguiram tantas regras na escola, entendeu? A gente é muito mais espontâneo, já a criança de classe média alta americana é mais direitinho, não é espontâneo. Quando a gente coloca essa criança americana pra jogar soccer,

13 Para preservar a identidade das informantes vou me referir apenas ao cargo que ocupavam nas escolas.

14 – Entrevista realizada em Boston por Assis (2001)

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ela quer saber a sua posição, as regras..., as nossas crianças não. Elas correm pra lá e pra cá, vai e pega a bola e corre atrás da bola.Então você vê na escola a criança mais espontânea que ri gostoso e a criança que se “comporta bem”. Aí tem as exigências da escola e a gente tenta balancear. Tendo crianças do Brasil na escola, muda o perfil e as exigências porque pro nosso povo, o povo brasileiro não tem tanta exigência quanto os outros, em termos de comportamento, mas acontece muito conflito nesta área, porque são duas forças muito fortes”

Com este depoimento, entendem-se as dificuldades, não apenas enfrentadas pelas crianças, mas também pelos educadores brasileiros que tentam manter o equilíbrio entre o que é certo para os brasileiros e não tão certo para os americanos, fazendo o possível para educar essa segunda geração para apreender as normas da nova sociedade, para se inserir na escola americana sem “problemas de comportamento ou disciplina”.

Além da questão da corporalidade, outro fator muito importante é a qualidade do ensino americano. As escolas americanas priorizam a qualificação do estudante e suas aptidões e não o seu conhecimento, como acontece no Brasil. Contudo, as crianças ou jovens brasileiros, ao ingressarem no sistema educacional norte-americano (bilíngüe ou não), normalmente passam por constrangimentos, ocasionados por uma barreira, imposta pelo desconhecimento da língua inglesa e dos costumes de comportamento muito diferentes nos dois países.

As escolas americanas, inicialmente, preparam os alunos para o mercado de trabalho, desenvolvendo suas aptidões e são gratuitas. Somente no College, o conhecimento científico deverá ser aprimorado, e que fique muito clara a questão primordial de que o ingresso no College é somente para os americanos ou naturalizados, ficando para o restante a opção do trabalho. Assim quando os jovens pensavam em ir além dos pais, porque dominam o idioma esbarram no fato de não poderem prosseguir os estudos e acabam se inserindo precocemente no mercado de trabalho em firmas como Dunkin Donuts, Burguer King ou grandes lojas de departamentos. A imprensa brasileira nos EUA15 às vezes reforça a idéia de que esses jovens venceram na América ao trabalharem como gerente dessas lojas e ressaltar que com esses ganhos podem adquirir bens de consumo e ajudar a família, mas não percebem que esses jovens permanecem no mesmo mercado secundário de trabalho que seus pais.

15 Gazal, Simone. “Gerente aos vinte anos: jovens brasileiros chegam nos EUA e em pouco tempo conquistam cargos de destaque em empresas americanas”. Brazilian Times year XIV. no. 794, Friday, mar.01.2002. p.02.

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Esse é um dilema que coloca em cheque a legitimidade da condição clandestina (Sales, 1999), pois enquanto para a primeira geração o fato de ser indocumentado não fazia muita diferença, pois podiam trabalhar e não tinham muita perspectiva de mudar de emprego, a segunda geração deseja se inserir mais efetivamente na sociedade americana.

Isso significa buscar mais qualificação, continuar a estudar além da High School e é esse o problema que a segunda geração começa a enfrentar a condição indocumentada impede de conseguir bolsas para ingressar na universidade16.

Menezes (2003), analisando os programas ESL (english second linguage), destaca que dentro da comunidade brasileira em Denburry havia divisão sobre as vantagens e desvantagens do programa, pois muitos consideravam que as escolas para imigrantes eram mais fracas e que por isso os filhos quando estudavam nessas escolas ao sair só conseguiriam emprego em fast foods e supermercados e não conseguiriam empregos mais qualificados.

Menezes (2003) demonstra, em sua pesquisa realizada em Denbury, que apesar do aparente benefício que os programas ESL e Bilíngüe oferecem, muitas são as vozes, dentro e fora da comunidade brasileira, contrárias a esse tipo de educação. As principais reclamações referem-se à duração desses programas, considerada demasiadamente longa, e à política pull out, considerada discriminatória e mesmo segregacionista por retirar o aluno da sala de aula.

Assim para esse autor, ao participarem dos programas ESL ou Bilíngüe, as crianças são matriculadas nas turmas de conteúdo mais básico, sob a alegação de que elas necessitariam de maior conhecimento de inglês para acompanhar as turmas avançadas. Em razão disso, alegam os estudantes de 2a geração, a entrada na universidade passa a ser muito mais difícil, reduzindo o mercado de trabalho a atividades e carreiras menos promissoras.

16 Essa questão vem sendo debatida na comunidade brasileiras pelas lideranças comunitárias no Grupo Mulher Brasileira e Centro do Migrante brasileiro dentre outros e se tornou um dos pontos abordados na novela “América” exibida atualmente pelo Rede Globo. Ao retratar a trajetória de uma migrante mexicana que fazia High School e que descobre, quase no final do curso, que não poderia prosseguir seus estudos, o que faz com que ela desista de continuar estudando e comece a trabalhar. O seu “sonho americano”,que incluía se qualificar para ir além da trajetória de sua mãe imigrante, não se realizou, assim como não ser realiza para os jovens migrantes indocumentados brasileiros. Para uma discussão sobre as leis americanas para conseguir bolsa para o College ver Sales e Loureiro (2004).

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