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As dores da desigualdade de gênero

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Academic year: 2022

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As dores da desigualdade de gênero

Artigo | Daniela Dallegrave, professora da Escola de Enfermagem, expressa o peso acrescentado à vida das mulheres pela pandemia de covid-19

*Por: Daniela Dallegrave

*Foto de capa: Flávio Dutra/Arquivo JU 08 mar. 2017

Era domingo, véspera do Dia Internacional das Mulheres, e meu ovário doeu. Uma dor insuportável que lembrava as dores abafadas na última semana, nos últimos meses, durante a vida…

Os últimos dias foram duros. As mortes da pandemia aproximaram-se com velocidade vertiginosa. Me doíam as dores silenciadas por outras mulheres, aquelas vivenciadas pelas profissionais de saúde diante do colapso do sistema, pelas mães que perderam seus filhos, das mulheres desempregadas ou mal-remuneradas, daquelas que tiveram seu sustento ameaçado, que se encontraram com a fome nesta pandemia.

O Brasil é o país onde as profissionais da enfermagem, em sua expressiva maioria mulheres, e também as gestantes, mais morrem por coronavírus no mundo, por causa da disseminação irrefreada do vírus e da falta de proteções sociais. Estamos perdendo para o vírus. Nossas heroínas estão morrendo por coronavírus (e os nossos inimigos estão no poder?).

As dores que me doíam são dores por todas elas, por todas nós que estamos expostas a vulnerabilidades sistêmicas que exigem uma força tremenda. Para nossa surpresa, dizem o contrário… As mulheres são o sexo frágil. Há que se reconhecer a serviço de quem e por que esse discurso se perpetua. Há de se pensar que a manutenção do patriarcado, sedimentado em finas camadas (praticamente indestrutíveis), alimentado por séculos e séculos, garante benefícios incontáveis.

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No Centro de Triagem para Covid-19, no Hospital Conceição, em Porto Alegre, profissionais da saúde atendem população nos primeiros meses da pandemia. Segundo a autora, o Brasil foi o país em que mais morreram agentes dos serviços de enfermagem por decorrência da doença, majoritariamente mulheres (Fotos:

Flávio Dutra/ Arquivo JU 22 abr. 2020)

Nossos corpos ainda sofrem o domínio da lei e das igrejas.

Somos condenadas a vidas não escolhidas e solitárias. Temos jornadas diárias exaustivas, com menores remunerações, com julgamentos atrelados ao nosso sexo e não à nossa capacidade.

A pandemia expôs feridas relacionadas à desigualdade de gênero, e o nosso sangue jorra por elas.

Será tão difícil estancar esse sangue quanto está sendo difícil parar esse vírus que está levando os nossos amores.

As medidas para a igualdade de gênero e para parar o vírus são amplamente conhecidas, mas por que não conseguimos interromper esses desequilíbrios?

Mulheres sobrecarregadas com o trabalho, as tarefas domésticas, os cuidados com os filhos e com as filhas, com

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rede de apoio significativamente diminuída, quando não extinta, compõem o retrato dos nossos dias. Algumas iniciativas de apoio mútuo e de suporte foram abruptamente prejudicadas e interrompidas. Paradoxalmente, ao analisar os lugares governados por mulheres, podemos elencar os resultados mais positivos relacionados à pandemia (contenção do vírus – testagem, vacinação, distanciamento; política pública de renda básica ou subsídio emergencial; aporte para o sistema de saúde etc.). O cuidado é referido como uma característica feminina e, portanto, desvalorizado, com impactos remuneratórios, inclusive para a enfermagem.

Passado mais de um ano de pandemia, ainda sem medicamentos eficazes, o cuidado e o conforto foram as medidas mais necessárias para quem luta contra o vírus e também para as famílias derrotadas por ele.

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Para marcar o 8 de Março como dia de lutas, mulheres protagonizam marcha de protesto por questões como a dupla jornada de trabalho, a busca de oportunidades iguais no mercado de trabalho e o feminicídio (Fotos: Flávio Dutra/Arquivo JU 08 mar. 2017)

Na ciência, ao mesmo tempo que o número de publicações de

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pesquisadoras diminuiu significativamente, uma universidade da Europa publicou que, em virtude da necessidade de modificação dos procedimentos de seleção de ingressantes em um programa de pós-graduação, transformados em formato a distância e anônimo, o número de mulheres aprovadas cresceu de 40% para 80%. Por que, quando não somos vistas nem identificadas, nossa capacidade é valorizada? Que preconceitos solidificados em nós mesmas são expostos quando colocamos à frente da competência uma característica biológica? Por que o exercício da sororidade é tão difícil e ainda nos colocamos umas às outras em condições inferiores quando educamos nossos filhos e filhas ou quando julgamos nossas colegas ou quando não defendemos outras mulheres?

As dores que me doem fisicamente são dores de todas nós. São as dores que imploram por direitos iguais, mas também são dores que reconhecem e valorizam todas aquelas que vieram antes de nós e que não perderam o ânimo, que resistiram, de mãos dadas, que foram solidárias e que já conquistaram tanto.

Para a dor de ovário, aquecimento local. Para as dores de todas nós, calor humano, sororidade e direitos iguais!

*Texto escrito para curar as dores que não cabem mais nas mulheres.

Daniela Dallegrave é professora do Departamento de Assistência e Orientação Profissional da Escola de Enfermagem e do PPG em Ensino na Saúde.

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