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Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

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Tribunal da Relação de Évora Processo nº 449/12.6PACTX.E1

Relator: CARLOS BERGUETE COELHO Sessão: 02 Julho 2013

Votação: UNANIMIDADE

Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: PROVIDO

VEÍCULO APREENDIDO

DESOBEDIÊNCIA DE DEPOSITÁRIO LEGAL

DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

Sumário

I - Integra a prática do crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º1, al.

b) do Código Penal, a conduta do fiel depositário que conduz o veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil, apesar de advertido, no acto de apreensão, de que a condução de tal veículo enquanto vigorasse a apreensão o faria incorrer na prática de tal ilícito criminal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo sumário, com o número em epígrafe, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial do Cartaxo, o arguido JL, a quem o Ministério Público imputara a prática, entre outro, de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (CP), foi neste âmbito absolvido e, ao invés, condenado pela prática da contra-ordenação p. e p. pelo art. 162.º,

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n.º 8, por referência aos arts. 161.º, n.º 1, alínea e), e 162.º, n.º 1, alínea f), ambos do Código da Estrada (CE), na coima de €300 (trezentos euros).

Inconformado com essa parte da decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:

«1. A sentença recorrida é discordante da doutrina do Acórdão de

Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2009, publicado no Diário da República, 1.ª Série, N.º 55, de 19 de Março de 2009;

2. A questão de direito acerca da qual versou o AUJ n.º 5/2009 é uma e a mesma da que se ocupou a sentença sob recurso, a saber: qual a sanção aplicável ao depositário que utiliza um veículo automóvel, apreendido ao abrigo do disposto no art.162º, n.º 2, alínea f) do Código da Estrada;

3. Ainda que assim não se entendesse, sempre estaria preenchido o crime de desobediência simples, por se verificarem preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime, uma vez que o arguido faltou à obediência devida a ordem legítima de não utilizar o veículo apreendido, regularmente

comunicada por escrito e verbalmente, emanada de funcionário competente, que é a autoridade fiscalizadora de trânsito., tendo o arguido ficado ciente da sua obrigação;

4. Um agente policial fiscalizador do trânsito pode emitir a referida ordem, porque se assim não fosse, ficaria desprovida de conteúdo a aplicação da alínea b) do n.º 1 do art. 348.º do CP, pois que esta alínea não serve para dar cobertura à alínea a) do preceito, mas para a complementar em todas as situações em que não exista qualquer norma que sancione o comportamento do agente desconforme à lei;

5. Não coincidem no âmbito de aplicação, nem no interesse que visam

proteger, a contra-ordenação do artigo 162.º, n.º 7 do Código da Estrada e o crime de desobediência;

6. A contra-ordenação prevista no artigo 162.º, n.º 7 do Código da Estrada, que sanciona a condução de veículo com o documento de identificação deste apreendido, não pune de modo adequado e suficiente a conduta sob

apreciação, pelo que cumpre subsumi-la ao artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do CPenal, sem fazer apelo ao princípio da fragmentariedade e subsidiariedade

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do direito penal;

7. Mas mesmo que coincidissem, devia, no caso dos autos, optar-se pela subsunção da conduta a ambas as normas ou, se se considerasse que o concurso era apenas aparente, à norma do artigo 348.º do CPenal, por

proteger mais adequadamente o bem jurídico violado – o interesse do Estado em garantir a obediência aos mandados legítimos da autoridade;

8. Termos em que, ao decidir de forma contrária ao sobredito, a Meritíssima Juiz violou a norma ínsita no art. 348.º, n.º 1, b) do Código Penal.

Termos em que, pelo douto suprimento que se invoca, se requer seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, se revogue a sentença recorrida na parte em que absolve o arguido JL da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348.º, n.º 1, b) do CP, que deverá ser substituída por outra que condene o mesmo arguido pela prática do referido crime – com o que Vossas Excelências praticarão a costumada e sempre brilhante Justiça.»

O arguido não apresentou resposta O recurso foi admitido.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas nos arts.

379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo Código, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in DR I-A Série de 28.12.1995.

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Constituindo princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, conforme art. 428.º do CPP, o recorrente tão-só traz à apreciação deste

Tribunal questão de direito, residindo em saber se a sentença recorrida deveria ter configurado o comportamento do arguido como integrando a prática de crime de desobediência p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, alínea b), do CP.

A decisão ao nível da matéria de facto não é posta em crise, nem se vislumbra que padeça de qualquer vício a que se reporta aquele n.º 2 do art. 410.º do CPP, o qual teria de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, por um lado, sem apelo a elementos que não fossem intrínsecos à própria decisão e, por outro, atentando nas máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece.

No que ora releva, consta, pois, da sentença recorrida:

Factos provados:

1. No dia 13.06.2012, o arguido foi nomeado fiel depositário do veículo

automóvel de matrícula ----IA, por não possuir seguro de responsabilidade civil obrigatório.

2. Nessa qualidade foi devidamente notificado e advertido das obrigações que sobre ele incumbiam e que delas ficou ciente.

3. Teve o arguido conhecimento de que sobre ele impendia a obrigação de não utilizar o veículo nem o alienar por qualquer forma e de o entregar quando lho for exigido, sob cominação de incorrer na prática de um crime de

desobediência.

4. Tal notificação foi efectuada por agente da PSP, no exercício das suas funções, e, depois de reduzida a escrito, foi assinada pelo referido agente e pelo arguido.

5. No dia 08.11.2012, pelas 23:34 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel referido em 1., na Avenida Mestre Cid, Cartaxo, área desta comarca.

(…)

7. Na data referida em 5. o veículo continuava apreendido uma vez que o

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arguido continuava a não ter seguro de responsabilidade civil obrigatório.

8. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente (…)

9. Agiu ainda com o propósito de conduzir aquele veículo, do qual era fiel depositário, apesar de estar ciente das obrigações que, enquanto tal, sobre si impendiam, e de assim desobedecer às ordens que lhe foram transmitidas, pondo em causa a autoridade subjacente às mesmas, o que quis e conseguiu.

10. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

(…)

Motivação da decisão da matéria de facto:

O tribunal fundou a sua convicção com base nas declarações do arguido que confessou os factos de forma livre, integral e sem reservas (…).

Fundamentação de direito:

Quanto ao crime de desobediência.

Dispõe o artigo 348º, nºs 1 Código Penal que Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

Sobre a questão da utilização de veículo apreendido pelo fiel depositário pronunciou-se o Acórdão de fixação de jurisprudência 5/2009 (publicado no DR nº 55, 1ª Série A, de 19.03.2009) tendo clarificado que o depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro.

Ficou pois esclarecida a questão já há muito debatida de saber se o crime era simples ou qualificado.

Porém, e se bem se entende o teor do Acórdão referido, o mesmo não toma

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posição quanto ao cometimento efectivo do crime, diz que verificados que estejam os respectivos pressupostos o crime é de desobediência simples (vd.

neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.03.2010, relatado por R. Costa e Silva, disponível para consulta in www.trp.pt, cujo texto se seguiu de perto na elaboração da presente decisão).

Cumpre, pois, verificar se tais pressupostos estão preenchidos.

A alínea b) do artigo 348º Código Penal existe para as situações em que nenhuma norma jurídica, seja de que natureza for, preveja determinado comportamento como sendo desobediente, caindo no âmbito da mesma as desobediências não tipificadas, não previstas, em qualquer ramo do direito sancionatório, que ficam, destarte, dependentes para assumirem relevância penal, de uma simples cominação funcional (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, Cristina Líbano Monteiro).

A alínea b) do artigo 348º Código Penal é aplicável, pois, se nenhuma outra norma jurídica, seja qual for a sua natureza, preveja tal comportamento como sendo desobediente, pois que só nestas circunstâncias será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade.

Em nosso entendimento, sufragando a posição defendida no Acórdão supra mencionado, a cominação do comportamento do fiel depositário que faz transitar a viatura apreendida como desobediente não pode ser feita pelos agentes de autoridade policial porque lhes está vedada legitimidade funcional para tal, pois que não pode estar na dependência de qualquer entidade

concreta – seja qual for a sua ordem ou título de legitimação, a alteração dos tipos legais de crime abstractamente fixados, ampliando ou restringindo o seu âmbito de aplicação.

Assim, onde a lei estabeleça um qualquer tipo normativo – penal, contra- ordenacional, civil ou administrativo – e não comine o seu desacatamento como desobediente, tal cominação não pode ser feita por qualquer declaração ad-hoc.

Assim sendo, o preenchimento do tipo legal de crime do nº 1, alínea b) do artigo 348º Código Penal, está reservado a situações em que os factos se subsumam à norma sem que a mesma intervenha, em sentido forte, de outra norma que a nomeie como cominação.

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Neste sentido, condição necessária de legitimidade é a competência em concreto da entidade donde emana a ordem ou o mandado; a norma de

conduta penalmente relevante resultar de um acto de vontade da autoridade ou do funcionário contemporâneo da actuação do agente; nenhuma norma jurídica preveja aquele comportamento desobediente.

Ora, no caso dos autos, a apreensão do veículo teve por base o disposto no artigo 162º, nº 1, alínea f) do Código da Estrada. Ora implicando tal

apreensão, de acordo com o disposto no artigo 161º, nº 1, alínea e) do mesmo Código, a apreensão do documento de identificação do veículo, a condução de veículo nestas condições constitui contra-ordenação e é sancionada com

coima, nos termos do nº 8 da mesma disposição legal.

Assim, não podia o agente de autoridade cominar com a prática do crime de desobediência a conduta do agente, por tal ser ilegal, não estando pois preenchidos os pressupostos do crime de desobediência, impondo-se a absolvição do arguido da prática do crime de que vinha acusado.

Como se deixou dito, a conduta do arguido é, outrossim, punida como contra- ordenação.

Ora, compulsada a norma contra-ordenacional e a factualidade apurada, não restam dúvidas de que o arguido sabia que não poderia conduzir o veículo em causa nos autos porque para tanto foi notificado; não obstante quis e logrou conduzi-lo, pelo que subsumindo-se a sua conduta aos elementos objectivo e subjectivo do tipo contra-ordenacional (sendo que as contra-ordenações estradais são puníveis a titulo de dolo ou de negligência cfr. artigo 133º Código da Estrada), impõe-se a respectiva condenação.

Apreciando:

A questão relativa ao enquadramento do comportamento de quem, sabendo que o veiculo se encontra apreendido, por falta de seguro obrigatório, e tendo sido nomeado fiel depositário desse veículo, designadamente com a obrigação de não o utilizar, vem a transitar com ele na via pública, foi, conforme consta da sentença recorrida, dirimida pelo acórdão de fixação de jurisprudência (AFJ) n.º 5/2009, de 18.02, publicado no D.R 1.ª série, n.º 55, de 19.03.2009, no sentido de que, verificados os elementos constitutivos do crime de

desobediência, integre o tipo legal do art. 348.º, n.º 1, alínea b), do CP.

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Nele se sublinhou que:

Pode, pois, concluir-se, que a apreensão do veículo por falta de seguro

obrigatório de responsabilidade civil não se enquadra em nenhum dos actos regulados no Decreto--Lei n.º 54/75 e não sendo uma «apreensão prevista neste diploma» (a ela se não referem os n.os 1 e 2 do artigo 22.º).

E que não existe ilícito próprio no qual se subsuma a conduta do agente que não respeite a proibição de conduzir um veículo apreendido por falta de seguro obrigatório, nem existe norma legal que a qualifique como

desobediência simples ou qualificada.

E, sendo assim, resta a subsunção directa dessa conduta à alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal.

Sendo o artigo 150.º, n.º 1, do actual Código da Estrada («anterior n.º 1 do artigo 131.º»): «Os veículos a motor e seus reboques só podem transitar na via pública desde que seja efectuado, nos termos de legislação especial, seguro da responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização.») a fonte de

legitimidade da autoridade de trânsito que, ao apreender o veículo por falta de seguro, «proíba» o depositário de o fazer transitar.

Embora reconhecendo e aceitando a solução aí firmada, o tribunal recorrido entendeu, todavia, que isso dependerá de que, em concreto, os elementos típicos da desobediência se verifiquem, questão sobre a qual esse AFJ não se terá directamente debruçado.

A fundamentação respectiva reside em que não assistia legitimidade funcional e substancial da autoridade para cominar a conduta como desobediente, dado que o comportamento é apenas punível a título contra-ordenacional, por via do art. 161.º, n.º 8, do CE (correspondente ao n.º 7 do preceito na redacção

anterior à conferida pelo Dec. Lei n.º 113/2009, de 18/05), segundo o qual, « Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 6, quem conduzir veículo cujo

documento de identificação tenha sido apreendido é sancionado com coima de

€ 300 a € 1500».

Ora, o crime de desobediência está integrado no Título V do Código Penal - Dos Crimes contra o Estado -, no seu Capítulo II – Dos crimes contra a Autoridade Pública –, em que o bem jurídico protegido reside na autonomia

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intencional do Estado, em particular, visando a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos (Cristina Líbano Monteiro, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Coimbra, 2001, tomo III, pág. 350).

A função da autoridade pública é, por via dele, protegida, sem distinguir entre autoridade administrativa, judiciária ou outra (…) sendo legítima a asserção de que o conceito de autoridade assume um sentido objectivo, ligado à ideia de poder legal (funcional) de impor um determinado comportamento, na ausência de indicação dos sujeitos a quem é atribuído tal poder (concepção subjectiva), conforme Lopes da Mota, in “Jornadas de Direito Criminal, revisão do Código Penal”, vol. II, pág. 426.

Configura-se como um crime de dano, atenta a lesão desse bem jurídico inerente à sua consumação, podendo a actuação ser por acção ou omissão.

Já desde há muito fazendo parte do elenco dos tipos penais, nunca a sua existência e a sua amplitude foi pacífica, vista a sua natureza eminentemente subsidiária, tendo merecido, aliás, no seio da comissão de revisão do Código Penal, a ponderação da necessidade da sua consagração, então se concluindo pela positiva, por servir a múltiplas incriminações extravagantes, mas, ainda assim, com a restrição do âmbito de aplicação àquelas ordens protegidas directamente pela disposição legal que o preveja ou à exigência de que a

autoridade ou o funcionário façam a respectiva cominação, tudo isso com vista a garantir que a Administração Pública, no seu sentido funcional, possa

desempenhar a missão que lhe está cometida, justificativa de que o respeito das suas ordens terá o devido acatamento.

Conforme Maia Gonçalves, in “Código Penal Anotado e Comentado”, Almedina, 18.ª edição, pág. 1045, Trata-se de um artigo controverso controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência.

Na vertente objectiva, constituem elementos típicos do crime:

- a ordem ou mandado;

- a legalidade substancial e formal dessa ordem ou mandado;

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- a competência da autoridade ou funcionário para emitir a ordem ou mandado;

- a regularidade da transmissão ao destinatário dessa ordem ou mandado.

Ao seu preenchimento, está, pois, implícita a prévia legitimidade da ordem ou mandado, regularmente comunicado, relativamente ao qual se verifique a falta de obediência, que só assumirá dignidade penal quando assente numa das fontes da punição estabelecidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 348.º do CP, ou seja, numa disposição legal que comine essa actuação como desobediência ou, na ausência dessa disposição legal, a autoridade ou o funcionário a comine como desobediência.

Em ambos os casos teremos, portanto, um dever qualificado de obedecer – qualificado na medida em que o seu não cumprimento traz consigo uma sanção criminal. Com a diferença de que, no primeiro, a imposição da norma de conduta é feita por lei geral e abstracta, anterior à prática do facto;

enquanto no segundo, a norma de conduta penalmente relevante resulta de um acto de vontade da autoridade ou do funcionário, contemporâneo da actuação do agente (Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., pág. 351).

Resulta do fundamentado na sentença que a cominação do comportamento do fiel depositário que faz transitar a viatura apreendida como desobediente não pode ser feita pelos agentes de autoridade policial porque lhes está vedada legitimidade funcional para tal, pois que não pode estar na dependência de qualquer entidade concreta – seja qual for a sua ordem ou título de

legitimação, a alteração dos tipos legais de crime abstractamente fixados, ampliando ou restringindo o seu âmbito de aplicação.

Assentou-o em que, tendo a apreensão do veículo por base o art. 162.º, n.º 1, alínea f), do CE, implicando tal apreensão, de acordo com o disposto no artigo 161º, nº 1, alínea e) do mesmo Código, a apreensão do documento de

identificação do veículo, a condução de veículo nestas condições constitui contra-ordenação e é sancionada com coima, nos termos do nº 8 da mesma disposição legal, esgotando-se nesta a punição permitida.

Ora, afigura-se que a fonte de legitimidade da competente autoridade de trânsito para, ao apreender o veículo por falta de seguro, proibir o depositário de o fazer transitar, assenta, desde logo, no disposto no art. 150.º, n.º 1, do CE.

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Se assim é, a violação dessa proibição poderá fundamentar o crime de desobediência, conforme à advertência nesse sentido, feita por essa mesma autoridade?

Tal advertência, para ser válida, tem de ter como suporte a circunstância de fundar-se na lei.

A sua legitimidade tem de ser aferida, então, enquanto elemento integrado na ordem jurídica no seu todo, só podendo ser reconhecida quando não a

contrarie.

À luz destas considerações, tendo por referência aquele art. 150.º, n.º 1, do CE, e as atribuições geral reconhecidamente conferidas aos agentes da PSP, não se encontra razão válida para resposta negativa, embora a vertente

subsidiária do ilícito e a circunstância da conduta de quem conduz veículo sem documento de identificação se encontrar coberta por sancionamento contra- ordenacional.

Com efeito, tendo sido o arguido nomeado fiel depositário do veículo, ao abrigo do art. 162.º, n.º 5, por referência à alínea e) do n.º 1 do art. 161.º, ambos do CE, com as inerentes obrigações (o que aqui não se discute), pese embora se tivesse verificado, como se impunha, a respectiva apreensão do documento de identificação, assinale-se, na esteira do que foi explicitado no acórdão desta Relação de Évora de 05-02-2013, no proc. n.º

146/12.2GBCTX.E1, sendo Relator o Ex.mo Desembargador João Amaro (acessível em www.dgsi.pt), que nem todos os casos de apreensão de tais documentos implicam a apreensão do veículo (cfr. os nºs 3, 4 e 5 do artigo 161º em referência), e nem todos os casos de apreensão do veículo conduzem à investidura do titular do respectivo documento de identificação como seu fiel depositário (cfr. os nºs 4 e 5 do artigo 162º do Código da Estrada).

Deste modo, configura-se que o âmbito de protecção da contra-ordenação prevista naquele n.º 8 do art. 161.º não coincide propriamente com o campo destinado à preservação das consequências da preterição pelo fiel depositário das obrigações que o oneram, nada obviando a que estas sejam tidas como subsumíveis ao crime de desobediência, sob pena, até, de descurar a

nomeação nessa qualidade.

Aliás, note-se que, à fundamentação do AFJ citado, esteve implícito o

entendimento de que a dignidade penal desse comportamento se deva ter em

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conta, só assim se justificando que a sua posição tivesse sido sufragada.

Não se divisa razão relevante para que não deva ser seguida, sendo que a explicitação operada pela sentença recorrida por apelo à fundamentação contida no invocado acórdão da Relação do Porto de 10.03.2010, no proc. n.º 961/05.3PTPRT.P1 (www.dgsi.pt), redundaria, afinal, em esvaziá-la de

conteúdo.

Na verdade, a punição como desobediência, nessas circunstâncias, não contende com o carácter subsidiário desta, nem com a restrição mínima de intervenção por que o regime penal se deve pautar.

Decorrendo, então, como provado, que o arguido, cujo veículo se encontrava apreendido por falta de seguro obrigatório e como fiel depositário do mesmo, foi regularmente notificado por agente da PSP, no exercício das suas funções, de que, caso utilizasse a viatura, incorreria em crime de desobediência e, não obstante, conhecedor dessa ordem, legitimamente transmitida, a conduziu, agindo livre e conscientemente, praticou esse crime, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, alínea b), do CP, tal como vinha acusado.

Assente que a conduta em causa preenche o crime de desobediência e que em conformidade o arguido vai condenado, entende-se que, apesar do disposto no art. 424.º, n.º 3, do CPP, a escolha e a determinação da pena a aplicar-lhe nesse âmbito devem ser efectuadas na 1.ª instância, pelo tribunal recorrido.

Na verdade, sem prejuízo de que esta Relação não estará, para tanto, propriamente inibida, dentro da reconhecida amplitude de conhecimento e apreciação do recurso legalmente conferida pelos arts. 402.º, n.º 1, e 428.º do CPP, desde que os autos contenham os elementos para o efeito suficientes, a relativa autonomização, “quase cesure”, estabelecida nos termos dos arts.

368.º e 369.º do CPP, podendo, até, suscitar a produção de prova suplementar (n.º 2 do mesmo preceito) e a reabertura da audiência (art. 371.º do CPP), configura realidade que não deve ser preterida em favor daquela plenitude jurisdicional.

Se assim não se entendesse, preteridas ficariam, em concreto, garantias de defesa do arguido, incluindo ao recurso - art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) -, já que nessa parte atinente à pena que viesse a ser aplicada, não teria possibilidade de reagir, o que, aliás, também ocorreria com o Ministério Público, pese embora tivessem tido a oportunidade de, em

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sede recursiva, terem suscitado a questão da pena, o que não fizeram.

Acresce que, admitindo-se que, no caso, exista fundamento para a escolha de pena de multa, a decisão proferida por esta Relação, revogando, nos termos sobreditos, a decisão absolutória da 1.ª instância, seria irrecorrível, de acordo com o art. 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, pelo que a ser aplicada por este Tribunal, retirar-se-ia ao arguido, neste âmbito, a possibilidade de recorrer e, assim, com preterição, mormente, do duplo grau de jurisdição consagrado nesse art. 32.º, n.º 1, da CRP (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in

“Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 2007, volume 1, pág. 516).

Este fundamento constitui razão bastante para que a determinação da pena deva ser feita pelo tribunal recorrido e no cabal cumprimento das regras constitucionais e penais (substantivas e processuais) aplicáveis, com a eventual realização das diligências que entenda por pertinentes.

Pese embora não se desconheça que este entendimento não é pacífico (a

jurisprudência, supõe-se que, até maioritariamente, tem sufragado perspectiva contrária), afigura-se que é o que melhor assegura as garantias de defesa do arguido, relativamente às quais alguma restrição tem de ser, desde logo, suficientemente justificada e ponderada, à luz da dimensão desse duplo grau de jurisdição e da interpretação dos instrumentos internacionais a que o Estado se encontra vinculado (art. 8.º da CRP), conjugados com as normas internas de índole estritamente penal.

Com efeito, partindo do princípio consagrado no art. 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (aprovado para ratificação pela Lei n.º 29/78, in D.R. I Série, número 133, de 12.06) – Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito a fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei -, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, in D.R. I Série, número 236, de 13.10, não tendo, propriamente aludido ao duplo grau de jurisdição, deu expressão às garantias da necessidade do processo equitativo e da presunção da inocência (seu art. 6.º) – identicamente, vieram a ser previstos nos arts. 47.º e 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias 2000/C 364/01, de 18.12.2000) – e a sua explicitação expressa (do duplo grau de jurisdição) só decorre do art. 2.º do Protocolo n.º 7 à CEDH, publicado em 22.11.1984.

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Segundo este último, a declaração de culpabilidade ou de condenação de qualquer pessoa, confere a esta o direito de exame por jurisdição superior, ainda que, no tocante a alguns aspectos, previstos no n.º 2 do mesmo artigo, as leis nacionais possam excepcionar esse direito.

E, aqui, não só se incluem os casos de infracções definidas legalmente como de menor gravidade, ou do interessado ter sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição, ou, ainda, deste ter sido declarado culpado e

condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição.

A interpretação do art. 2.º, n.º 2, do Protocolo à CEDH, consente,

efectivamente, a delimitação das situações em que o duplo grau de jurisdição pode ceder (nas quais se incluiria o caso “sub judice”), mas não permite extrair a conclusão de que essas excepções devam considerar-se como presentes nas leis nacionais, se destas não decorrerem com um mínimo de segurança e certeza.

Por seu lado, crescentemente se foi firmando jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no sentido da efectiva concessão do duplo grau de jurisdição e, não o contrário.

Acresce que toda a problemática que a matéria suscita deve ser vista, não como sintoma de diminuição do exercício jurisdicional do tribunal de recurso, mas sim, antes, como manifestação da importância que, aos interesses

constitucionalmente protegidos, deve ser conferida – com o que as normas penais se harmonizam -, o que não contende, aliás, com a delimitação que qualquer recurso tem de merecer (art. 412.º do CPP), nem com a dignidade própria que, ao enquadramento da culpabilidade e à determinação da sanção penal, é substancial e processualmente atribuída.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente,

- revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu o arguido JL da prática do crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, alínea

(15)

b), do CP, por que vinha acusado, e o condenou pela prática da contra- ordenação, p. e p. pelo art. 161.º, n.º 8, do CE;

- em substituição, condenar o arguido pela prática desse crime de desobediência;

- determinar que o tribunal recorrido proceda à escolha e à

determinação da pena concreta a aplicar relativamente a esse crime, através das diligências que entenda pertinentes, seguidas da

elaboração e leitura de nova sentença.

Sem custas.

Processado informaticamente e integralmente revisto pelo Relator.

Évora, 02 de Julho de 2013 Carlos Berguete Coelho João Gomes de Sousa

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